À BEIRA DE UM REGATO Henrique Portugal À laia de introdução Fases há na vida duma pessoa em que a sensibilidade atinge tal nível, tornando-a tão susceptível, que até o mais insignificante dos estímulos exerce a sua acção, o que em condições normais nem sequer aconteceria. Nessas alturas pára-se, olha-se em torno, pensa-se e atenta-se no importante que é o carinho de uma Mãe ou de um Pai e no valor da amizade, do companheirismo, do espírito de colaboração. E como o senti bem. E percebi-o tão melhor quanto é verdade que fui obrigado a parar e pude pensar. Tive de me confrontar com grave e prolongada situação de doença, de pessoa muito querida, resultante de toda uma vida de trabalho árduo e dura luta e de um acentuado consumo do tabaco. É evidente que o tabaco não foi a razão de tal situação, mas indubitavelmente foi uma das mais assinaláveis. Fumador praticante desde os catorze anos, deixei o cigarro tempos mais tarde, já com dezoito, à força primeiro e por opção voluntária depois, se bem que não totalmente consciente na época. De há muito, quer no seio da família, quer junto de amigos, conhecidos e discípulos, tenho vindo a alertar para os malefícios do cigarro, e outros, mas lamentavelmente os resultados têm sido nulos. É apanágio nosso pensar que as coisas funestas só acontecem aos outros. Nada mais errado, na verdade. É que, quando nós assim pensamos, perdemos de vista que igual pensamento de um desses outros nos coloca a nós próprios num grupo de «outros», o que equivale a dizer que a nossa situação se torna perigosa. E tornou! Por outro lado, vive-se a voragem da era do progresso que, afinal, não deixa de ser um retrocesso. Este paradoxo pode explicar-se: progresso é industrialização, que representa a destruição do ambiente, o esgotar de recursos naturais não renováveis e poderio crescente de alguns; progresso é riqueza, que representa o poder dos sistemas económicos, ideológicos e das armas; progresso é rapidez sempre e sempre maior, que representa máquinas cada vez mais velozes e poderosas; progresso é consumo, que representa o aumentar das diferenças entre ricos e pobres; progresso é substituir o homem pela máquina, o que representa desemprego, degradação económica e social, atentados à dignidade do Homem, enquanto tal, o que em inúmeras situações pode vir a traduzir-se na entrada no role das pestes do nosso fim de século; progresso significa, em suma, mecanização, desumanização, alargar de diferenças entre homens e povos, domínio de alguns, o que representa perda de valores tão relevantes e significativos como a amizade, igualdade e outro tão importante como a liberdade com respeito pelos direitos de cada um, individualmente considerado ou quando política e socialmente organizado. São valores que significam algo de tão valioso mas que, aos poucos, se vai perdendo. E isso tão somente porque o Homem já não pode parar, já não quer parar. Todavia, quando pára, olha em redor e reflecte, constata horrorizado que perdeu esses valores ou, na melhor das hipóteses, esqueceu-os. Assim, como transmiti-los às gerações seguintes? Chamou-se "juventude rasca", à actual, e a terminologia nem sequer é minha. Contudo, tendo em conta a velha ideia de que a culpa morreu solteira, qual será a quota parte que, a cada um dos da minha geração, caberá desse celibato? Parei, tive de parar, e senti que, apesar de tudo, ainda há quem defenda esses valores, não com simples palavras, mas com actos; porém, já são tão poucos... Isso distingue-os e aumenta e realça o significado dos valores referidos e que tento transmitir. Valores que me foram incutidos por meus Pais tão saudosos, a quem quero aqui prestar a mais singela das homenagens e a quem deixo expressa a mais profunda das gratidões pelo que quiseram e souberam ser: verdadeiros Pais. A questão, cada vez mais presente, da degradação de valores, quer morais, humanos, sociais, naturais, quer os económicos, tem sido profusamente tratada, e assim, este tema não é original. Mas, já em certa ocasião, dizia uma internacionalmente conhecida figura pública do nosso panorama musical: "nenhuma obra é original: tem dez por cento de criação e noventa por cento de influências do exterior". Nas páginas seguintes procurarei abordar essas questões de forma que tentarei simples e clara, fazendo-o apenas com o intuito de recordar alguns desses tais valores e situações, não tanto para ensinar o que quer que seja. A protagonista é uma pequenina Flor que, na sua singeleza e cor branca, simboliza a simplicidade e pureza de um ser desejoso de saber e a que a imobilidade permite observar, aprender com os ensinamentos e exemplos de terceiros, pensar, incapaz de compreender o mundo dos homens, mas capaz de reconhecer o valor da Amizade, da ternura, da verdadeira igualdade. O Regato, com as suas águas frescas e puras, e o Sol, com o seu calor e luz, simbolizam a vida. Cabe ao Mocho o simbolizar da sabedoria, tarefa em que igualmente se enquadra o velho Avô, pois que é a velhice que encerra o saber. O Neto, na ingenuidade da sua infância, é o campo onde o Avô tentará que uma sementeira de bons ensinamentos se transforme em bons frutos. A Neta juvenilmente sabichona, na sua «inteligente cegueira», surge como o fruto de uns pais «modernos», seguidores de modas, mas incompetentes para um correcto desempenho dessa sua função. A suavidade do Esquilo sorridente, do Coelhinho felpudo e branco e a leveza da passarada completam o ambiente e todos, no seu conjunto, simbolizam a alegria de viver. E se, como deseja a Flor, todos pudessem ensinar aos homens os seus sentimentos, por certo que no Mundo haveria muitos outros lugares à beira de um regato. Lisboa, 9-10 de Dezembro de 1998 CAP I À beira de um Regato Envergonhado primeiro e mais corajoso depois, o rei Sol foi rompendo as nuvens que teimavam em cobri-lo. Umas mais altas, outras mais escuras, umas arredondadas e outras parecendo castelos, aos poucos deixaram de brincar com ele e alegremente foram permitindo que ternamente beijasse a superfície da Terra. Aqui e ali minúsculos passaritos esticavam as não muito longas asas multicolores e, como que bocejando, foram soltando suaves chilreios. Por entre o arvoredo protector, pequenos animaizinhos começaram as correrias, enchendo o espaço com mil e um ruídos. As águas límpidas de um regato, que ao longo da noite tinha embalado tudo em seu redor com um murmúrio, qual estremosa mãe, as águas do regato silenciaram. Na margem, uma Flor de pétalas brancas, como que se espreguiçou. Olhou o Sol, agradecida pelas carícias com que ele a presenteava, e comentou em voz alta: -- Que bom é viver nesta terra com tantos amigos, tanta paz, com tanta alegria. -- Tens razão. -- concordou o Esquilo, sem interromper a sua tarefa. -- É bom viver em paz, com amigos e com alegria. -- Tomara que nunca aconteça nada que possa mudar tudo isto. Que seria de mim, se perdesse esta água, se o Sol deixasse de me aquecer, se tu e outros animaizinhos não pudessem correr e saltar para eu me poder distrair? Que seria de mim, se as aves deixassem de cantar, as árvores deixassem de me proteger do Sol, que ele é brincalhão e às vezes queima-me? Se tudo isto mudasse... Mas não, não mudará, estou certa. -- Esqueceste-te, minha linda e crédula irmã, que a Terra é habitada por outros seres, os homens, que são seres terríveis? -- Mas, amigo Pintassilgo, -- admirou-se a Florzinha .. eles são assim tão terríveis? -- Minha querida e pobre Flor, se andasses de sítio em sítio e tivesses possibilidade de os ver, como eu, não te espantarias. Repara: tu ou alguma irmão tua tornaram-se inimigas, por causa da falta de espaço ou de alimentos? Eu ou algum irmão meu matamo-nos, só porque é divertido? O Macaco, que ali olha para nós... Olá Macaco!... o Macaco abandona o seu filhote, só por ele ser um estorvo? Aquele Escorpião que ali vai, e de que tenho medo, ataca, se não for atacado ou se não pensar que vai sê-lo? Sabes de onde vim há uns dias? Não sabes? Enquanto a Florzinha agitava as petalazinhas em sinal de ignorância, o Pintassilgo chilreou à sua companheira e prosseguiu: -- Vim de uma coisa a que os homens chamam gaiola, onde nos metem, onde nos põem comida e água e ficam à espera que nasçam muitos filhos nossos, para depois os venderem. -- Sério?! Falas verdade?! E é só aos teus que eles fazem isso? -- Falo muito a sério. Eles fazem isso a muitos pássaros. A outros, por exemplo os pardais, matam-nos para os comerem. -- Vê só que disparate. O pardal é tão pequeno e o homem deve ser tão grande. Como pode ele dizer que é para se alimentar? -- É louco, o Homem! -- Só por comer os pardais e outros passarinhos? -- Não, Florzinha. É louco, por isso e por outras coisas. Olha à tua volta. Não é belo tudo o que vês, ouves e sentes? -- Sim, é muito belo. É o sítio mais bonito que conheço. -- No dia em que o Homem o descobrir, destroi-o. Se descobrir estes frutos, esta passarada, aqueles peixinhos, estas sombras e esta água fresca e pura, vem para cá fazer uma coisa a que chamam campismo. Depois vêm outros, abrem buracos e fazem umas coisas muito feias, que se chamam hoteis, e vêm para cá os turistas. -- Turistas!? Campismo!? Que coisas mais esquisitas. -- Esquisitas, dizes bem. Se ainda ao menos nos deixassem viver sossegados... Mas não. Deitam as árvores a baixo, sujam as águas dos regatos, espantam-nos ou aprisionam- nos e matam-nos. -- E às flores também? -- Chega aqui, amigo Pardal, por favor. -- Já vou. Tenho que ir devagar porque me estou a restabelecer duma chumbada. Que me queres? -- Conta aqui à Florzinha o que os homens lhes fazem. -- Bem, os homens não tanto, mas as fêmeas deles. As mulheres têm a manias de as apanhar nos jardins, nos campos... -- Apanhá-las como? -- inquiriu, aterrada a Flor. -- Ora. Cortam as flores, põem-nas em jarras e cheiram-nas. Depois nunca mais lhes ligam. -- Tens razão, são malucos. -- Também são malucos porque não gostam do sossego. Olha só. Para andarem mais depressa eles arranjaram umas coisas que parecem... Não sei como explicar. Eles dizem que são motas, carros, aviões. São máquinas que fazem muito barulho, deitam muito fumo e se batem com força num homem, matam-no. -- Máquinas? -- estranhou a Flor. -- E eles é que fizeram? E dizem que é para andar mais depressa? Porquê? Para que é que eles precisam de andar mais depressa, se tudo tem uma hora certa para acontecer?! E tu dizes que matam?! Então, eles fazem uma coisa para matar outros homens? São doidos!!! -- Eles não inventaram só uma coisa para se matarem uns aos outros. Inventaram muitas. As fábricas que destroem a vida nos rios também estragam a água e sem água os homens vão acabar por morrer. Também matam a vida no mar e como é lá que vão buscar peixes para comer, vão perder esse alimento. Com outras máquinas, que também inventaram, cortam as árvores e, nos lugares onde as plantas já desapareceram, começam a aparecer os desertos, quer dizer, sítios onde não se vai poder viver. Lá não há água, o calor é muito, durante o dia, e o frio é muito, durante a noite. -- Posso entrar na conversa? -- e sem esperar a resposta, um coelhinho todo branco, acrescentou: -- E o fumo? Venho a fugir de um lugar onde há fábricas. O ar está tão cheio de fumo que eu quase não conseguia respirar. E só tenho o pelo assim branquinho porque me lavei no Regato. Ele não gostou muito que eu o sujasse, mas como era pouca coisa, lá me deixou. Sim, que eu não sou como os homens: primeiro pedi licença. -- Se os Homens não sabem falar connosco, como podem pedir autorização ao regato, ao rio ou ao mar para se lavarem lá? -- a estranheza da minúscula Flor era sincera. -- É verdade. Mas eles têm inteligência e por isso têm que pensar no que devem fazer ou não. Deviam pedir licença à Natureza. -- Vocês já disseram muitas coisas interessantes, mas ainda não falaram à Flor das bombas. -- Bombas é outra coisa esquisita que os Homens fizeram? -- Sim, Flor. -- respondeu o Mocho, num piar triste. -- É mais um dos inventos do Homem. Sabes como é o barulho de um trovão? Elas fazem esse barulho, mais ou menos. -- Se é só isso... -- Não é. Fazem barulho, queimam tudo e deitam casas ao chão. Enfim, destroem tudo. Mas, como são inteligentes, inventaram uma bomba de neutrões, que é uma bomba que mata as pessoas, os homens, percebes? Também mata os animais, as plantas e só ficam inteiras as casas. -- É verdade? São inteligentes? Então, se tudo morre, para que é que eles querem as casas? -- É verdade! São mesmo «inteligentes». -- E... não há Homens bons? -- Para dizer a verdade, não sei. -- redarguiu o Mocho. -- Eu também não. -- acrescentou o Pintassilgo. -- Homens bons? -- interrogou, meio irónico, o Coelhinho, sacudindo a branca orelha felpuda. -- Talvez haja. -- disse o Mocho, após um prolongado silêncio. -- Talvez haja, mas devem ser tão poucos que não é fácil encontrá-los. A Flor olhou em torno de si. Contemplou as águas do Regato que, além de mudas, lhe pareciam paradas. Mirou as árvores, umas floridas, outras carregadas de frutos e outras ainda com as suas folhas protectoras e todas pareciam em profunda meditação, como ela própria. Observou a passarada e reparou que haviam deixado de chilrear. Mirou o Coelhinho branco, de orelhas arrebitadas e focinhito no ar, como se estivesse a escutar alguma coisa. O Esquilo, cauda alçada, parou as patitas com uma avelã a escassos centímetros dos dentes saídos. -- Então, -- monologou a Florzinha -- o mundo não é só isto bom que me rodeia? Há quem faça mal sem pensar nos outros, há seres que matam só por matar. Afinal, valerá a pena viver neste mundo? Se ao menos nós todos pudessemos ensinar aos Homens que a Natureza tem leis e destruí-la pode fazer acabar a vida. Mas isso não é possível. Valerá a pena viver num mundo onde há seres que matam com as motas, com os carros, com os fumos, com as porcarias que deitam para as águas, com as armas, com as máquinas que inventam? Por mim já decidi: enquanto o Homem deixar eu, insignificante e pequena, perdida à beira de um regato, dar- -lhe-ei um pouco de oxigénio para que ele possa não matar. Lisboa, 14/8/1988 CAP II Homens, "Papagaios", "Macacos" e outros seres Tal como uns dias antes, naquela manhã o Sol acordou cedo. Era verão e por isso gostava de madrugar, como os homens que, quando chegam a uma certa idade preferem dormir pouco, para aproveitar ao máximo o que lhes resta da vida. Também ele queria usufruir, não do resto da sua vida, que essa ainda seria longa, mas da companhia das coisas amigas que tinha. Com um raio fez uma carícia a uma das nuvens que, teimosa como sempre, não deixava que ele chegasse à Terra. Feliz por ter sido a primeira contemplada do dia, a nuvem afastou-se e lá o viu passar contente. A Flor, já não adolescente, olhou-o e as suas faces foram beijadas por ele. As petalazinhas, de um branco alegre/triste, pareceram ganhar um novo brilho. Olhando em redor, procurou os seus amigos dos últimos dias. Viu o Pintassilgo ainda a dormir, observou que o Mocho se preparava para ir para o seu ninho e reparou que o Coelhinho, com o pelo todo branco, se divertia, brincando com as águas límpidas do Regatozinho. Acenou-lhe e ele agitou uma das orelhas e o rabo, num movimento combinado e brincalhão. Decididamente, ela gostava daquele bicharoco. Distraída, não ouviu um ruído quase inaudível de uns saltos pequenos. -- Olá Florzinha branca. Estás tão entretida e deliciada com o Coelhinho branco e com o Sol que nem me ouviste chegar. -- Olá Pardal, bom dia. Desculpa. Na verdade eu estava entretida. Se não estou em erro, foste tu que levaste um tiro há uns dias. Pelo que vejo já estás melhor. Nem sabes como me alegro. -- Que bom ouvir o que dizes. A alegria dos nossos amigos pelo nosso bem estar é meia cura, podes crer. Obrigado. E ternamente deu-lhe um beijo com muita cautela, não fosse o bico magoá-la. -- Por que agradeces, Pardal? É assim tão importante e raro? -- Importante e raro também, principalmente entre os Homens. Aliás, já falámos qualquer coisa acerca disso. -- O quê? Então, ainda há mais coisas tristes para me contares? -- A minha intenção não era estragar o teu dia, mas... a conversa é como as cerejas: puxa-se uma e vêm outras penduradas. -- Não sei o que sã cerejas, mas, se me explicares o que queres dizer com a tua frase, talvez perceba onde queres chegar. Mestre Papagaio, recém-chegado à reunião, alisou as penas verdes brilhantes e pediu licença ao Pardal para responder. -- Cerejas são frutos que nascem dois a dois, ou três a três no mesmo pé e por isso, quando os homens vão comê-las, puxam umas e as outras vêm penduradas. Às vezes, as crianças, quer dizer, os filhos dos Homens, fazem uns enfeites com elas e chamam-lhes brincos e depois de brincarem um pouquito comem-nas. Agora que já sabes o que são cerejas, se quiseres que te conte mais coisas estou à tua disposição. -- Gostava de saber uma coisa que me intriga: as outras aves cantam, mas tu usas uma forma de conversar que é diferente! -- Imito a fala dos Homens. -- a voz do Papagaio era um misto de tristeza e de vaidade. -- Talvez seja o único que faz isso, mas quase nunca sei o que digo nessa linguagem. Como vês, é triste falar por falar. O mais chato é que é por isso que, quando o Homem fala sem saber o que diz, os outros dizem que ele é um papagaio. Da mesma maneira eles chamam macacos àqueles que fazem coisas sem saberem o que estão a fazer. -- Pelo que dizes, há homens que dizem e fazem coisas sem saber!? Que coisa esquisita. -- Lembras-te do que eu te disse das bombas, Florzinha? -- perguntou o Pintassilgo que acordara entretanto. -- Pois bem. É esquisito, sim senhora. Não quero ofender mestre Papagaio, mas repara: como sabes, às vezes chove muito e outras vezes, pelo contrário, não há chuva. Se fosses uma flor idosa, sabias que há inundações quando chove muito, mas pode haver secas se ela for em pequena quantidade. Inundação quer dizer que a água dos rios aumenta muito e depois espalha-se pelos terrenos em volta e destroem tudo. -- Os rios fazem isso? -- Fazem, mas não têm culpa e os homens também não. E é verdade, destroem tudo. -- Então, as flores de lá, os animais e os homens de lá podem morrer? É terrível. -- Pois é, Florzinha, é terrível. Morrem plantas, animais e homens. Depois, outros homens, que vivem longe dos sítios onde houve as inundações, dizem que é preciso ajudar, que é preciso mandar alimentos e roupas para os que ficaram sem abrigos, e que é necessário voltar a semear... -- Mas isso é bom. Não percebo por que é que dizes que eles são papagaios, só por dizerem que é preciso ajudar. -- É mesmo por eles só dizerem. -- É isso mesmo! -- reforçou mestre Papagaio. -- Eles só dizem. A maior parte das vezes, algum tempo depois já não se lembram do que disseram e do que fizeram e se alguém os lembra, dizem que não prometeram nada, que foi engano... -- Espera aí! -- a Flor interrompeu-o indignada. -- Eles mentem? -- Mentem sim, mas dizem que não. -- respondeu o Pintassilgo, meio divertido com o sentimento da Flor. -- Como dizem que não se lembram de ter prometido pensam que não mentem. -- E são os homens todos que fazem isso? -- É verdade que não são todos, mas é uma grande parte. Alguns, então, são especialistas. Chamam-lhes políticos. -- Políticos?! Que são políticos, Mocho? Adoptando um ar doutoral, o Mocho pigarreou e disse: -- A política é a ciência, a técnica, a arte de dirigir uma nação, um estado. Bem, são ideias lá dos homens, são formas de eles se organizarem. Os políticos deveriam ser responsáveis por que cada nação, cada estado, enfim, todo o mundo vivesse na melhor ordem. O problema é que, quando querem ocupar esses lugares, eles prometem tudo a toda a gente, mas não cumprem mais o que prometeram, quando chegam ao que queriam. Falam por falar, como os papagaios. O mais grave é que eles não são papagaios e portanto fazem as coisas com má intenção. -- E não há políticos sérios que façam o que prometem? -- Há sim, Flor. -- redarguiu o Mocho. -- Mas são tão poucos que é mais fácil encontrares um cão vadio sem pulgas. -- Então... queres dizer que político e mentiroso é a mesma coisa? -- É quase isso. Salvo raras excepções, não são papagaios, são mais do que isso: são aldrabões. Até há quem pergunte se "A verdade será mentira?" e outros perguntam "Que sociedade é a dos homens?". -- Pelo que vocês me contam têm razão em fazer essas perguntas. -- Outra forma de os Homens serem papagaios ainda é mais engraçada. -- o Pintassilgo mudou de galho, aproximando-se da Flor, como que a protegê-la do calor do sol. -- A seca, quer dizer, a falta de água, também faz morrer as plantas, os animais e as pessoas. Nessas alturas aparecem uns senhores, daqueles que governam os estados, as nações e as igrejas. -- Igrejas? É outra invenção do Homem? -- Igrejas são grupos grandes, muito grandes, de pessoas que se juntam para praticar e defender uma religião.. Bem, religião é... é um conjunto de ideias sobre o modo como o Mundo apareceu e como tudo acontece. Dizem que foi um Ser Superior que fez tudo isto e por isso adoram-no. Dizem que é bom, inteligente e que vela por todos; quer que os seus fieis sejam iguais a Ele, justos, bons, humildes, quer que eles pratiquem a caridade, ajudem os mais fracos, etc., etc.. -- Assim como vocês me ajudam, quando me tapam do Sol? E como ajudaram o Pardal, quando ele foi ferido? -- Assim mesmo -- assentiu o Pintassilgo. E prosseguiu: -- Ora bem. Esses tais senhores aparecem a dizer a todos os Homens que é preciso mandar auxílio aos que estão com fome, aconselham-nos a oferecer coisas para se comprarem alimentos para os esfomeados. Dizem para se fazer festas, porque se pode juntar dinheiro, que é outra coisa que os Homens inventaram e que serve para se comprarem coisas. Depois dos tais senhores darem esses conselhos, não dão nada do que é deles e logo que acabam os discursos, que fazem durante as festas, comem desalmadamente, como se a fome dos outros lhes abrisse o apetite. -- E não abre? -- inquiriu ironicamente o Coelhinho que se mantivera calado até àquele momento. -- Com certeza é para terem mais força para papaguearem mais e para terem mais pena dos outros. Ah! Ah! Ah! A Flor olhou espantada para os seu amigos. Incrédula, deixou descair as pétalas e perguntou num fiozinho de voz: -- As igrejas também? Com um deus assim não fazem nada para lhe agradar? -- Que eu me lembre de ter ouvido falar na rádio e na televisão, os chefes de algumas igrejas costumam pedir para se mandarem auxílios, mas parece que as organizações que eles dirigem não mandam nada. -- É porque eles não têm nada para mandar, com certeza. -- insistiu a Florzinha. -- Ter, ter, eles têm, mas se mandassem tudo para os outros, eles ficavam sem o luxo em que vivem. -- interveio o Coelhinho. -- São pobres, dizes bem, Flor. Não têm a nossa riqueza. Eles têm ouro, criados, luxo, enfim, muitas coisas que não sabes o que são, mas são homens e vivem como os outros homens. Não têm a nossa liberdade de brincar com o sol, de falar com um regato, de tagarelar com um coelho maluco como eu, de perceber que não são papagaios; não têm a possibilidade de ser amigos de um pintassilgo ou de um mocho e de os ter como amigos. -- E os políticos também? -- Também, sentenciou o Mocho. São homens, falsos amigos, egoístas, mentirosos; fazem parte daquela espécie que mata pelo prazer de matar, destroem por querer. Prefiro ser Mocho, Amigo de todos vós e de vos ter como Amigos. -- A amizade é aquilo que nos une aqui, à beira deste Regato? -- Sim, Flor. A amizade é o que nos permite que nos unamos, sofrendo todos se um de nós sofre, alegrando-nos todos se um de nós se alegra, ajudando-nos todos se um de nós precisa. -- Obrigada por essas palavras, Mocho. Sou e serei vossa Amiga. Já percebi. Para mim, a amizade não é só o esperar a ajuda dos outros; a amizade é esperar que os outros recorram a nós quando precisam. -- Penso como tu. -- foi quase um coro. A Florzinha com as suas pétalas de um branco alegre/triste empertigou-se com uma nova força, interrogou-se e interrogou: -- Deus dos Homens, se é verdade que existes, não podias fazer com que eles fossem como os meus amigos? Lisboa, 9-10/1988 CAP III "Deus dos Homens, não os deixes fazerem-me mal" Os dias sucediam-se calmos, sossegados, sem que nada viesse perturbar a doce tranquilidade daquele lugar escondido. Àquela hora da tarde, uma tarde de Verão, não muito quente, mas que, apesar disso fazia desejar uma aragem, ligeira que fosse, para um completo bem estar depois de uma soneca, o Coelho roía uma cenoura que encontrara, ninguém sabia onde , enquanto a passarada se entretinha com alegres cantorias e chilreios, que aqui e ali, intervalados por elegantes vôos, pretendiam significar que se estava em plena época do acasalamento de algumas espécies. A brisa que se fazia, embalava com suavidade a Florzinha que, sem se importar com isso, ia abanando as pequeninas pétalas brancas. Feliz, lá no alto, o Sol continuava a sua caminhada para mais um ocaso e estava quase a despedir-se. De repente, a Florzinha apercebeu-se que a passarada se calava e que alguns dos seus amigos se preparavam para levantar vôo. Pouco depois era o Coelho, orelhas espetadas e rabo eriçado, que interrompia a refeição. Intrigada, perguntou: -- Que se passa, Coelhinho? Por que se calaram os nossos amigos e tu deixaste de comer? -- Deixa-me ouvir, por favor. Se não estiver enganado, já te doou a resposta. -- e prosseguiu minutos depois, preparando-se para partir: -- Não me enganei. Vou andando para a minha toca, porque vêm aí os homens. Depois venho cá. -- Os Homens!? E vão-me deixar sozinha? Tenho... sinto... -- Como és pequena, talvez não te façam mal. A mim eram capazes de me matar, quase de certeza. Eles gostam muito da minha carne. Até já. Até já e felicidades. De certeza que compreendes que não posso fazer nada por ti. -- Compreendo sim. Foge depressa para a tua toca. -- e murmurou em voz sumida: -- Deus dos Homens, não os deixes fazerem-me mal. As suas petalazinhas abanavam mais que antes e com a agitação uma delas enrolou-se um pouco, dando um aspecto diferente à Flor. Esperou impaciente e logo depois viu surgir , vindo pela beira do ribeiro, dois seres como nunca vira. Eram os Homens, estava certa. -- Que estranho. Então, os Homens não são todos iguais? -- monologou, enquanto tentava ver algum dos pássaros seus amigos. O Pardal lá estava, escondido e muito quieto, entre a folhagem. -- Os pardais são todos mais ou menos iguais; os mochos também; parece que os coelhos também não são muito diferentes... mas os homens... Um é muito grande, o outro é muito pequeno; um tem a cabeça quase sem pelos, e são cinzentos, e o mais pequeno tem muitos pelos e são da cor do sol. As pernas do pequeno não têm penas nem pelos, mas o grande não. É mesmo verdade que são esquisitos. Bem, deixa-me estar quieta porque eles estão a vir para aqui. Espera! Parecem o mestre Papagaio! Será que eles sabem o que é que estão a dizer? Avô e neto detiveram-se junto à água fresca e límpida e o garoto perguntou: -- Não podemos parar aqui para descansar um bocadinho, Avô? Posso beber água? Esta parece que é fresca. -- É uma boa ideia. Sentemo-nos à sombra daquela árvore. Este lugar é muito bonito e calmo. Já estou. Ainda bem que o descobrimos. A criança chapinhava no ribeiro e os calções que vestia estavam já ensopados. -- Não molhes a roupa, pois não estamos perto de casa e embora estando calor, não quero que te seque no corpo. Podes constipar-te e a mamã zanga-se contigo. Senta aqui. Aos saltinhos, como se fosse um pardalito irrequieto, o menino aproximou-se do avô, que o acariciou. -- E se a gente levasse qualquer coisa para a mamã, ela zanga-se à mesma? Olhe, Avô, ali aquela flor. Vou arrancá-la para a mamã. Ia a levantar-se, mas firme e suavemente o avô deteve- o. -- Não faças isso. Sabes que a tua mãe gosta de flores, mas nas árvores ou nos campos. Lá em casa só quer das de plástico. -- Mas esta é tão bonita que a mamã ia gostar. -- Talvez, mas não a arranques. Se ela aí está, é por uma razão importante. A Florzinha sentiu algo desconhecido que, mais tarde, soube ser terror. Agradeceu ao deus e ao homem grande, o avô. -- Há uma razão importante para a flor estar ali. -- Qual é, Avô? -- Olha bem à tua volta. Aquele regato tem uma missão a cumprir, aquelas árvores também têm uma tarefa e até aquele passarinho, aquele pardal, ali, é preciso. -- É verdade, é verdade! É preciso para se comer. -- Não. Estás enganado. É preciso, mas para outras coisas. A Florzinha branca estava estupefacta. Afinal, aquele Avô não era como os seus amigos lhe tinham dito. Ele gostava do regato, das árvores, dos pardais e até das flores. -- Ouve, meu filho. Aquela água serve para muita coisa. Há pouco, serviu para tu beberes. As árvores, embora não sejam como nós, como os cães ou como os pássaros, também são seres vivos e por isso precisam de água, tanto como tu. Se a não tivessem, morreriam e a Terra seria um deserto. -- E isso era mau? Por que é que a Terra ficava um deserto? O que é um deserto? -- Deserto é uma terra onde não há seres vivos quase nenhuns, porque não há água. Se lá houvesse árvores, haveria água porque elas também transpiram e essa transpiração vai para o ar. Depois formam-se nuvens e quando chegam a uma zona de frio, lá no céu, transformam-se em chuva. Essa chuva, por sua vez, mete-se pela terra dentro ou corre à superfície. Essa água é usada pelos homens, para beber, para as suas fábricas e para muitas outras coisas. As árvores e as outras plantas bebem-na através das raízes e como é nela que estão misturados os alimentos, se a terra estiver seca elas morrem. Percebes agora por que é que morre tanta gente à fome, quando há secas? -- Percebo, agora percebo. E aquela flor também precisa de água? -- Claro que sim. Ela é pequenina, mas ajuda a haver chuva. -- Mas é tão pequenina! Olhe, Avô, ela está torta. Posso ir endireitá-la? -- Podes sim, mas não a maltrates. Endireita-lhe a pétala... isso, e vem para aqui. Vês aquela abelha? Senta-te aqui e observa. A criança alisou a pétala da florzinha e com medo da abelha sentou-se rapidamente. -- Não tenhas medo, que a abelha não te faz mal. Ela anda à procura de comida, com certeza. Vê-la, a voar por cima da flor? Agora vai pousar em cima dela. -- Para quê, Avô? -- Gostas de mel? Gostas, já sei. A abelha vai sugar o pólen, que é aquele pó amarelado que ali vês, e depois vai transformá-lo em mel. Tu já sabes que o mel é um alimento muito rico e até serve para remédio, quando estás constipado, lembras- te? -- Lembro, lembro, é tão bom. Ó Avô! Já percebi que a água é importante, que as árvores também e as abelhas também. E o pardal, por que é que é importante? -- Vou contar-te uma história. Uma vez um rei tinha um pomar com muitas cerejeiras. Mandou anunciar que pagaria certo dinheiro por cada pardal que lhe levassem morto. Esses passarinhos comiam-lhe quase todas as cerejas desse pomar e por isso, milhares de pardais foram mortos. Muito contente o rei pensou que nesse ano ia ter muitas cerejas, fruto que apreciava bastante, mas enganou-se: as cerejas estragaram-se todas porque os insectos puseram os ovos nas folhas e nas flores das cerejeiras, ou picaram os frutos. -- Por que é que isso aconteceu? -- Porque não havia pardais. Eram os passarinhos que não deixavam os insectos estragar tudo. -- Mas continua a haver insectos e pardais. -- É verdade. Há insectos que servem de alimento a outros seres vivos, como por exemplo os pássaros; estes servem de alimento a outros seres vivos maiores e assim por diante; é a isso que se dá o nome de cadeia alimentar. E, quando num lugar qualquer há animais a menos ou a mais, as coisas podem complicar--se. Por exemplo, num aquário podes ver que as fêmeas comem peixinhos, quando eles estão a nascer. Não é por serem más, podes crer: é porque elas sabem que naquele espaço e naquelas condições poderão desaparecer todos os seres da sua espécie, se houver mais que um certo número deles. É por isso que a quantidade dos novos seres tem de ser controlado. Na selva cada leão é rei de uma região e, se algum outro macho lá entra, ele ataca-o; se perder terá de abandonar essa região. -- É engraçado. E é sempre assim, quer dizer, tudo tem de estar certo, como Deus fez? -- Sim, tudo tem de estar certo. A Natureza tem leis e o que ela faz está certo e se alguém, ou alguma coisa, mudar esse trabalho tudo poderá ser perigoso. -- Então é por isso que falam tanto contra os homens que queimam as árvores, que sujam os rios, que fazem os carros que deitam aquele fumo todo. É porque eles podem estragar a nossa Terra? -- É sim, é porque eles podem estragar toda a Terra, o planeta em que vivemos. A Natureza é equilibrada, quer dizer, nada está feito ao acaso e chama-se a isso o equilíbrio ecológico. -- Que é ecológico? -- A ecologia é uma ciência que estuda as relações entre os seres vivos e o ambiente que os rodeia, isto é, aquilo que acontece num certo local. -- É um bocadinho complicado, mas parece que percebi. Ora veja lá: não devemos estragar a água para não haver desertos, não devemos estragar as árvores porque ajudam a haver água... -- E o oxigénio para respirares, também. -- interrompeu o avô, começando a levantar-se. -- Não devemos matar os pássaros só para os comer e não devemos estragar as flores porque elas são precisas para as abelhas. Isto tudo é porque a Natureza fez tudo certo, fez o tal equilíbrio eco... eco... ecoquê? -- Ecológico. -- esclareceu o avô. -- Eco... eco... eco... Isso que o Avô diz. O avô, já de pé, soltou alegre gargalhada. A criança irrequieta e viva, nos seus nove ou dez anos, partir a correr, rindo também. Reinstalou-se o silêncio e aos poucos foram reaparecendo os fugitivos. A Florzinha tremia, mas não era de frio nem de medo, era de alegria e de ansiedade por poder aos amigos a conversa que ouvira. Afinal, talvez eles estivessem enganados, talvez houvesse muitos Avôs, muitos Netos e Mamãs como aqueles. -- Ouviste, Pardal, o que eles disseram? -- Ouvi, ouvi e gostei, mas... -- Mas, o quê? -- interrompeu a Florzinha. -- Se todos os Avôs fossem assim e os Netos também, não podia ser tudo melhor? A propósito, o que é um Avô, um Neto e uma Mamã? E o que é isso de eco... eco... que aborrecimento, esqueci-me do nome. O Pardal desatou a piar, como se estivesse a rir, enquanto a Florzinha agitava todo o corpo, num gesto misto de divertimento e alegria, porque valera a pena o susto. Assim estava quando o Coelho branco, todo cheio de terra, se chegou ao pé dela a roer uma cenoura. Lisboa, 2/10/88 CAP IV O diabo sabe... por ser velho O Verão chegava ao fim e talvez por isso a singela Florzinha branca sentia um não sei quê. Alguns dos seus companheiros tinham desaparecido sem que ela soubesse o que lhes acontecera. Além disso, a recordação daqueles homens, Avô e Neto, não a abandonava e sentia-se triste. Afinal, tinham-lhe dito tão mal dos Homens, mas aqueles dois, pelo contrário, não lhe pareceram nada do que lhe haviam contado. Quando regressariam? Estava mergulhada nestas cogitações, quando toda a vizinhança se agitou. Prestou atenção e não tardou a saber a razão de tamanho reboliço. Ouviu vozes: eram os homens. E desta vez não eram só o Avô e o Neto. Vinham outros homens. -- Que coisa estranha. -- monologou -- O Avô e o Neto vêm com outros Homens, mas são diferentes. Pensei que fossem todos iguais. Espera! Um deles tem os pelos da cabeça grandes e tem o corpo coberto de maneira diferente e tem duas coisas salientes, quase lá em cima. Seria um Homem? O grupo aproximava-se e reparou que o Neto olhava para si. Logo a seguir separou-se e chegando-se a ela começou a alisar-lhe as pétalas, enquanto dizia com uma voz que lhe soou bem: -- Como estás linda. Mas pareces triste, minha florzinha. -- e para o grupo: -- Avô, Mãe! Olhem a minha florzinha branca. -- "Mãe? Que será isso de mãe?" -- admirou-se a Flor. O estranho visitante, aquele que lhe despertara a atenção, exclamou, sorrindo: -- Estou a ver. Na verdade é muito bonita e é por isso que lhe tens tanto amor. Sim senhor, merece o teu carinho. -- "Afinal -- disse a Florzinha de si para si -- aquela voz de que gostei tanto era de amor e carinho. Se eu pudesse, também lhe respondia com amor e carinho". Reparou que outro dos Homens se parecia com o Homem/mãe e trazia na boca uma coisa que fumegava. Horrorizada viu que era fogo, talvez uma brasa. -- Ouve, Ana. Toma cuidado com esse cigarro. Sabes que podes provocar um incêndio. Além disso... -- Além disso, além disso... incêndio... Bolas, avô! Parece um daqueles gajos da televisão a pregar sermões à malta. Que é que tem contra o tabaco? Um cigarrito não faz mal a ninguém. O avô olhou a mãe da rapariga, mirou a paisagem que o rodeava, encarou Ana e, sem se agastar, respondeu suavemente: -- Tens razão, minha querida. Um cigarrito não faz mal a ninguém. O pior é que, quando vocês começam a fumar, não gastam só um cigarrito: fumam dois, três, vinte ou trinta e depois?... -- Ora, ora, conversa de velho. -- É isso mesmo, Ana: conversa de velho. Mas... sabes por que é que o diabo sabe muito? A rapariga olhou-o intrigada e abanou a cabeça negativamente. Nunca tinha pensado em tal. -- O diabo sabe muito, não por ser diabo, mas por ser velho.. Sim, velho como eu. -- acariciou-a e continuou: -- Sei que não é fácil falar convosco, os jovens e os fumadores. Parece que ficam surdos quando começam a fumar. -- É verdade? Não está a gozar, pois não? -- interrogou, meio a brincar, meio zangada. -- De forma nenhuma. Digo isto porque, apesar de falar com muitos de vós, nunca me ouvem. Fixou o olhar nas águas límpidas do regato e depois, mais longamente, numa núvem azulada que lhe pairava sobre a cabeça. A Florzinha seguia a conversa, muito interessada, e por entre a folhagem topou o Mocho e o Pintassilgo. Abanou as pétalas e eles corresponderam com um abanicar de asas. -- Sabes, Ana? O tabaco e outras plantas, por si, não são seres que provoquem consequências funestas, mas a acção dos homens e o modo como eles as utilizam é que deixam muito a desejar. O homem é ambicioso e geralmente, na ânsia de ganhar muito, não olha a meios; mesmo que muitos sejam prejudicados, eles não se preocupam. A Flor branca estremeceu. -- "Já ouvi uma coisa parecida. Então, o que os meus amigos Pintassilgo, Pardal, Mocho e Coelho me diziam era verdade? Mas estes, até gostam de mim! Talvez não sejam todos maus.". -- Ó Avô! Afinal, o que é que tem contra o tabaco? -- Embora não seja muito correcto, respondo-te com algumas perguntas. Gostas da tua Avó? Sabes por que não está aqui? Sabes quando começou a fumar? -- Sei isso tudo, mas não me vão fazer acreditar que foi do tabaco. -- É claro que não foi só, mas também foi e muito em especial. Podes crer que o cigarro teve o papel mais importante em tudo isso. -- Porquê? -- Bem. Não é nenhuma novidade para ti que o nosso corpo é constituído por células, que se agrupam em tecidos, que formam órgãos; conjuntos desses órgãos constituem aparelhos como o digestivo, o respiratório ou o circulatório, por exemplo. Agora repara: o aparelho respiratório permite-te levar o oxigénio até ao sangue, que serve para alimentar e purificar os milhões de células que formam o teu corpo. Ora, ao fumares, em lugar do oxigénio, os teus pulmões vão receber outros gases e por isso acabas por vir a ter um mau funcionamento de outros tecidos e órgãos. É claro que tu não te apercebes do que está a acontecer, porque esse processo é lento. Além disso, os brônquios, aqueles canais que vão da garganta... bem, um pouquinho mais abaixo, na verdade, os teus brônquios, dizia eu, estão preparados para receber ar a uma determinada temperatura. Mas o fumo do cigarro passa por eles e chega aos pulmões a temperaturas muito elevadas. Por isso, todo o revestimento interior desses canais deixa de estar em bom estado e ao fim de algum tempo começam as tosses e a especturação; depois vêm os ataques de bronquite e isto, no mínimo. Em muitas pessoas a situação agrava-se e chega à formação de câncros, tanto na boca, como na garganta como nos pulmões. -- Pois é, mas a Avó teve uma trombose, não foi um câncro. -- respondeu com ar quase triumfante a rapariga. -- É verdade que sim, Ana, é verdade que foi uma trombose. -- interrompeu-se para chamar o neto que chapinhava alegremente na água fresca. Este abeirou-se da irmã, deu-lhe um beliscão e fugiu para junto do Avô. -- Está quieto fedelho. Levas um estalo, não tarda nada. -- Deixa lá Ana, o teu irmão só está a brincar. -- interveio outro dos Homens. -- E podes crer que é bom ter irmãos e que brinquem connosco. -- Está bem, pai, mas ele só tem brincadeiras parvas. -- E com nove anos, que brincadeiras queres tu que ele tenha? E tu, meu pirralho, não voltes a beliscar a mana. Podes magoá-la e além disso ela não gosta. Sanado o pequeno incidente, o Avô voltou a falar: -- Como sabes, minha filha, no fumo que engoles há uma certa quantidade de um produto chamado nicotina. Essa nicotina vai passando para o sangue, através dos pulmões, e lentamente vai-se depositando nas paredes dos vasos sanguíneos. Juntamente com outras impurezas começa a engrossar as paredes das veias, artérias e capilares, fazendo com que eles percam a elasticidade. Sim, as paredes desses vasos são de um tecido muito flexível e elástico. Imagina dois tubos: um de plástico maleável e de parede mais ou menos espessas e outro de plástico duro e de parede menos grossa. Mete uma esfera no primeiro tubo, mas de modo a que fique muito justa; liga o tubo a uma torneira e abre-a com força e vais ver que a esfera acaba por sair do outro lado, mesmo que lhe apareça um obstáculo. Se repetires a experiência com o outro tubo, vais ver que a esfera pára se encontrar um obstáculo na parede do tubo, embora seja pequeno e por isso não sai do outro lado, mesmo que a torneira esteja toda aberta. -- E então? Não estou a perceber nada. -- É o que eu digo: começam a fumar e ficam "surdos", não ouvem nada. Repara que estou a falar de coisas que já estudaste e de outras que os teus dezassete anos te deveriam ter ensinado. Só estou a falar assim porque o teu irmão é muito novo e tem de perceber a nossa conversa. -- E estou a perceber tudo, Avô. -- disse o garoto alvoroçado. -- No tubo duro a bola não sai porque o tubo está entupido, não é Avô? E o tubo não pode rebentar? -- É isso mesmo, Daniel. A tua irmã também está a compreender, mas está a fazer de conta que não. Mas adiante. E o que acontece depois, sabes? Quer dizer, o que acontece, por exemplo, se esse tubo servir para regar as flores e se a esfera não passar? -- Olha. As flores não bebem água e morrem à sede. -- Exactamente. Não recebem água e podem morrer por falta de alimento. -- Que tem tudo isso a ver com o tabaco e com a Avó? -- Ana não desarmava. -- A tua Avó fumou tanto que os vasos sanguíneos se transformaram no tal tubo rígido. Depois, a má alimentação e outras faltas de cuidado com a saúde ajudaram também. Um dia, soltou-se uma partícula de gordura da parede dum dos vasos, foi percorrendo parte do corpo, mergulhada no sangue. É a essas partículas que as pessoas chamam trombo. Parou num vaso qualquer no cérebro e como esse vaso não tinha elasticidade e o coração não conseguiu dar força suficiente ao sangue, as células que deixaram de receber alimento morreram como as flores do exemplo. Como é o cérebro que comanda a fala e outras tarefas do ser humano, a tua Avó deixou de falar, de andar, de ver e está como sabes. Como vês, "só um cigarrito" pode fazer muito mal a uma pessoa. Aliás, é por isso que já me ouviste dizer que o cigarro faz bem, mas ao produtor do tabaco, ao fabricante, ao vendedor, ao médico, aos laboratórios de medicamentos e aos donos das agências funerárias; aos outros faz mal à saúde e aos bolsos. -- Está bem, está bem. Quando morrer, morri! -- A tua Avó também dizia o mesmo, mas o pior é quando não se morre logo, como lhe aconteceu. Parece-te que ela se sente feliz? -- Parece-me que não, que sofre muito. Mas tenho tempo de pensar nisso quando for mais velha. -- Não, não! Deves pensar é agora. Ouve, gostas de crianças? -- Claro que sim, adoro. -- Se é assim, por que não deixas de lado o tabaco até teres os teus filhos? -- Não estou a pensar tê-los já. -- com gestos seguros e estudados tirou um cigarro do maço e acendeu-o. -- Nessa altura penso nisso. Os médicos dizem que, se fumarmos só cinco ou seis cigarros, isso não faz mal. -- Os médicos não. Alguns inconscientes com o curso de medicina sim, dizem-no. Mas como não hão-de o dizer, se fumam desalmadamente e até parecem chaminés. -- O Avô tem razão em tudo o que disse, mas tem que reconhecer que fumar dá um ar de personalidade, um aspecto de adulto. -- Ora, ora. A personalidade não tem nada a ver com o cigarro, mas sim com a inteligência e mostrar-te-ás tanto mais inteligente e com personalidade quanto mais evitares os disparates e, podes crer, fumar é um deles. Quanto ao aspecto de adulto, tê-lo-ás muito mais, se souberes cumprir as tuas obrigações, se souberes invocar correctamente os teus direitos e se souberes dar valor às coisas boas e combater as más. A rapariga não respondeu e manteve-se pensativa durante um bom bocado. Levantou-se, chegou-se ao velho, abraçou- o e disse com meiguice: -- Eu sei que tem razão. Sou uma estúpida, mas não quero que se zangue comigo. Não prometo nada, para não faltar. -- Não me zango e tu não és estúpida. Só não queria é que mais tarde sofresses por erros que cometes e para os quais os teus pais não te querem alertar, mas tinham a obrigação. Na verdade, eles são os verdadeiros culpados. É claro que sei que não o fazem por mal. Deixam-te à vontade, porque é moda e eles consideram-se uns pais modernos. Mas acho que se pode ser moderno sem se fazerem disparates. Levantou-se, sacudiu as calças e começando a andar devagar, devagarinho com o neto pela mão, disse: -- Vou andando para junto da tua Avó. Fiquem um pouco mais, se quiserem. O silêncio instalou-se. Marido e mulher olharam alternadamente o velho e a criança, que se iam perdendo de vista por entre o arvoredo, e a filha, absorta, cigarro a arder lentamente no meio dos dedos. Nada diziam, pelo menos, em voz alta. A Florzinha não percebera muito bem o que se passara. O Papagaio, que sabia e percebia muitas coisas dos Homens, lho explicaria quando aparecesse. De qualquer maneira, gostara das carícias de Daniel, gostara da conversa co Velho e continuava a ter medo do fumo e do cigarro. Afinal, se o cigarro matava os homens, não poderia matá-la a ela, uma insignificante flor? Por ela, tentaria produzir cada vez mais oxigénio, para ajudar a combater o fumo dos cigarros. Era só, o que poderia fazer. Lisboa, 30 de Novembro de 1988 CAP V Para ver... é preciso ter alma Muito embora o chilrear da passarada já se fizesse ouvir há bastante tempo, a verdade é que a Florzinha branca não conseguia ver o Sol. Que estaria a acontecer, que tudo voltava a mergulhar na sombra e no silêncio? Admirada e talvez um pouco assustada, resolveu esperar. Decorrido algum tempo, que lhe pareceu uma eternidade, renasceu o dia com todos os seus ruídos próprios. Olhou em redor. Lá vinha o amigo Coelho branco agarrado a uma cenoura tão grande que parecia maior que ele. -- Olá Florzinha. Pareces assustada. Aconteceu alguma coisa? -- Olá. Se aconteceu alguma coisa, isso queria eu saber. Estava à espera que o Sol aparecesse todo, mas ele escondeu-se outra vez e, como nunca vi nada parecido, estou intrigada. É isso, estou intrigada, não estou assustada. Tu sabes o que se passou? -- Eu não, não sei. O que te posso dizer é que o Pardal, o Macaco e o Pintassilgo também estão meio atrapalhados. Estão à espera que apareça o Mocho. Como ele sabe tudo, talvez nos possa tranquilizar a todos. Vamos esperar também. A Florzinha olhou para o Regato, que calmamente continuava o seu rumorejar, saltitando de quando em quando, levantando gotinhas da sua água cristalina. O Sol lá no alto, espreitando por detrás de uma núvem, parecia querer saudá-la. Mestre Mocho chegou finalmente. Ele e os seus companheiros habituais. A agitação da Flor manifestou-se então com um abanar de pétalas. A curiosidade fora crescendo e agora ela não queria perder mais tempo. - Então, Mocho, sabes dizer-me o que é que aconteceu? -- Sim, sim, já sei. Aliás, foi para descobrir isso que me atrasei. Descansem que não foi nada de grave. Apenas houve um... um... Ó diabo, esqueci-me do nome, mas não faz mal. Daqui a pouco já me lembro outra vez. -- Então, se não foi nada de perigoso, por que é que o Sol fugiu? Ele não é mais forte que todos nós? E ele também fugiu. -- O Macaco tem razão, o Sol também fugiu. -- Eu explico-te, Pintassilgo, e a vocês também. -- apurou a garganta e passou a explicar: -- O Sol não fugiu nem se escondeu com medo. A Lua é que foi a culpada. -- A Lua!? -- espantaram-se todos. -- Sim, a Lua, mas ela não é responsável. Vocês sabem que o Sol nos ilumina com a sua luz e aquece toda a Terra. Como o Sol é uma estrela está parado, mas à sua volta giram os planetas como a Terra e a Lua, por exemplo. A Terra e outros planetas, que vou chamar principais, têm perto de si uns outros que andam à sua volta. -- O quê, da mesma maneira que a Terra gira à volta do Sol? E que eu posso correr à volta da Flor? -- Exactamente, Coelho. Esses planetas são menos importantes e chamam-se satélites. -- Ouve lá, Mocho. Então, se esses satélites andam a girar à volta dos principais, também não têm de girar à volta do Sol? -- É assim mesmo como dizes: giram à volta dos principais e ao mesmo tempo vão dando voltas ao Sol. -- Que coisa engraçada! Até devem ficar com tonturas. Se eu alguma vez ia pensar uma coisa dessas. -- o pardal calou- se por momentos e de repente algo lhe pareceu errado, no que o Mocho dissera: -- Espera lá, por favor. Tu dizes que a Terra anda à volta do Sol? Mas, se nos pusermos a olhar para ele, não é o Sol que parece que está parado? -- O que dizes parece a verdade, mas não é. O Sol está parado e como tu estás na Terra, que está sempre a girar, tu também estás a girar à volta do Sol. Como estás parado na Terra, tens a impressão que é ele que está em movimento. Experimenta empoleirar-te no Coelho e passar por nós muito depressa. Nós ficamos aqui quietos, da mesma maneira que tu estás parado em cima do Coelho. Vai-te parecer que estás no mesmo sítio e que nós estamos a deslocar-nos. Isso chama-se movimento aparente, quer dizer: parece que o Sol anda, mas é tudo por causa da viagem que a Terra faz sem parar. A Flor seguia a explicação muito atenta, mas o que queria saber, na verdade, era da outra história. Por isso interrompeu o diálogo: -- É muito importante isso, que estás a explicar, mas o que eu quero saber é o que é que aconteceu esta manhã. -- Está bem, vou continuar. Todos se calaram e prestaram atenção. O Regato, colaborante, começou a fazer menos barulho. -- Com a Lua anda à volta da Terra e a acompanha à volta do Sol, às vezes sucede uma coisa como a de hoje: a Lua fica direitinha entre eles e por isso há uma parte da Terra de onde não se pode ver o Sol. Saltou do ramo onde estava e chamou o Coelho para junto da Flor; depois apontou um lugar ao Pardal e os três amigos ficaram em linha. O Mocho interrogou então: -- Consegues ver o Pardal, Florzinha? E tu, Pardal,, consegues ver a Flor? -- O Coelho não deixa. -- responderam ambos. -- Ora, aí está. Imaginem que o Pardal é a Terra, a Flor o Sol e o Coelho a Lua. Quando calhar o Coelho, quer dizer a Lua, ficar no sítio onde está agora, a Terra, isto é o Pardal, não vê o Sol, que é a Flor. A isso chama-se um... eclipse. É isso! É um eclipse, já me lembrei. Eu não vos dizia? -- e os olhos brilhavam-lhe de alegria. O Regato fez-se ouvir, as petalazinhas alvas da Flor agitaram-se vivamente, o Macaco deu uma cambalhota e fez uma gaifona, as aves bateram as asas com força e o Coelho engasgou- se com um pedaço de cenoura. Acalmadas a agitação e a curiosidade, o Pintassilgo inquiriu, depois de ter deixado passar uns momentos, como se tivesse estado a pensar acerca da oportunidade da questão: -- E, se por acaso a Lua parasse nessa posição, nunca mais era dia? -- Penso -- respondeu o Mocho -- que isso nunca vai acontecer. A Natureza é uma coisa muito perfeita e nada acontece que possa estragar essa perfeição. Quer dizer: nada acontece, a não ser que alguém ou alguma coisa obrigue a isso. -- Alguém, mas quem? E por que é que a Natureza é assim tão perfeita? -- as perguntas vinham de todos. -- A Natureza é tão perfeita porque foi assim que foi organizada, mas não sei, Macaco; ninguém sabe ao certo. Os Homens dizem que foi um Ser, a que dão vários nomes. Uns chamam- no Deus, outros dizem que é Alá, outros afirmam que o nome é Jeová, e por aí fora. De qualquer forma e seja qual for o nome, a verdade é que temos de aceitar que é um ser superior e cada um que pense o que quiser. Só é pena que, quando os Homens discutem esse assunto, não respeitem as ideias uns dos outros, mas eles é que sabem. -- deteve-se por instantes. -- Voltemos à tua dúvida. Se, por acaso, acontecesse a Lua ficar sempre na mesma posição entre a Terra e o Sol, toda a zona que ficasse à sombra acabava por arrefecer e talvez aí desaparecesse a vida, quer dizer, talvez aí morressem os animais e os vegetais; ou talvez tivessem de fugir, os que pudessem. Há bocado, quando o Sol desapareceu, vocês não notaram que tinha arrefecido um pouco? E também não acontece o mesmo durante a noite? -- É verdade. Nunca tinha pensado nisso. -- murmurou o Coelho, entre duas dentadas numa nova cenoura. -- Eu também não. -- acrescentou baixinho a Florzinha. -- E, se isso acontecesse, eu morria de frio. Eu e as minhas irmãs que não podemos fugir. Lá em cima, muito alto, o Sol ouvia interessado a conversa dos amigos, na Terra. Sabia tudo o que o Mocho ensinava aos companheiros e tinha vontade de intervir, Mas como fazê-lo? Não tinha possibilidades disso. Era um astro de outra espécie, um ser diferente dos planetas que aquecia e iluminava. Sorriu e os habitantes da Terra sentiram muito calor. Que magia, a de um sorriso. -- Disseste que alguém podia fazer a Terra ficar sem o calor e sem a luz do Sol? Como é que isso seria possível? O Pardal mudou de ramo, depois de interrogar. -- Bem, fazer com que a Lua ficasse sempre na mesma posição, não me parece que seja possível. Mas o Homem é capaz de fazer ainda pior. De há uns anos a esta parte ele tem andado a tentar descobrir tudo acerca do espaço e manda para lá foguetões e satélites artificiais, quer dizer, que ele fabrica. É claro que são máquinas perfeitíssimas, ou seja, muito perfeitas, e por isso não é fácil acontecer nada; mas o pior é que algumas delas já se desintegraram, quer dizer, já se partiram todas , e vieram cair na Terra em bocados bastante pequenos. Ora, se uma máquina dessas atingisse a Lua a uma velocidade muito grande e fizesse mudar o andamento desse satélite da Terra, mesmo um bocadinho só, aconteceria uma desgraça. É claro que... -- E isso vai acontecer? -- interrompeu assustado o Pintassilgo. -- É claro que isso ainda não é provável, mas como o Homem está sempre a inventar coisas mais poderosas, se não tiver cautela, não se sabe o que poderá acontecer um dia. O silêncio instalou-se à beira do Regato. Mestre Mocho saltou do ramo, foi até junto da água e calmamente bebeu dela. A Flor, olhando os companheiros, pensava: -- "Será que o Homem só pensa no mal? Não deve ser assim. Aquele Avô parecia tão bom. Com certeza o Homem faz as coisas por bem, mas é distraído e depois faz disparates. Mas deve haver alguns homens que fazem coisas dessas por mal. Sim, se eles fazem as armas, as tais máquinas para fazer a guerra, também podem pensar em qualquer coisa que bata na Lua e depois tudo fique descontrolado." -- e, virando as pétalas para o céu, pediu: -- Ó Deus dos Homens... desculpa se não sei o teu nome. Ó Deus dos Homens, não deixes eles inventarem uma máquina que empurre a Lua, para nós não sofrermos todos. Foi chamada à realidade pelo chilrear da passarada e pelo barulho dos animais que começavam a fugir. -- Vêm aí os Homens. -- esclareceu o Coelho. -- Vou até à minha toca e aproveito para tirar uma soneca. Até logo Flor. Meio assustada, a Florzinha esperou. Lá vinham o Homem/avô e o Homem/neto. Mas... que esquisito era o seu companheiro. Os que já conhecia tinham dois braços e os dedos eram todos quase do mesmo tamanho, mas aquele que vinha com eles tinha uma coisa parecida com um dedo e que chegava até ao chão. Além disso, o Avô e o Neto tinham uma cara diferente do outro Homem: este trazia duas rodas escuras na cara, presas a dois bocados de pau que iam para trás das orelhas, segundo lhe parecia. -- "Que Homem esquisito. Será de outra raça? Afinal, nós, as flores, também não somos todas iguais. Vou esperar.". O Homem/neto aproximava-se a correr. -- Avô, Avô, aqui está a minha florzinha branca. -- acariciou-a e pediu: -- Ó Avô, traga aqui o Primo para ele ver... Pois é, já me esquecia que o Primo não pode ver. -- Ele não a vê Daniel, é verdade, mas pode senti-la, o que é muito mais importante. Vi uma vez um filme que acabava com uma frase que nunca esquecerei: «Ninguém vê com os olhos, todos vêem com a mente». Para ver, não é só preciso ter olhos, é preciso ter alma. Lisboa, 18-20 de Agosto de 1989