Capítulo I1 ESPAÇOS DA SAUDADE Enredos da tradição Reterritorialização tradicionalista "Mas há horas que marcam fundo... / Feitas, em cada um de nós / De eternidades de segundos, / Cuja saudade extingue a voz. / E a vida vai tecendo laços/ Quase impossíveis de romper / Tudo o que amamos são pedaços/ Vivos do nosso próprio se. 1 A saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si. A saudade também pode ser um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que perdeu historicamente a sua posição, que viu os símbolos de seu poder esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história. A região Nordeste, que surge na "paisagem imaginária" do país, no final da primeira década deste século, substituindo a antiga divisão regional do país entre Norte e Sul, fui fundada na saudade e na tradição. Este livro trata da história da produção deste objeto. Como surgiu um Nordeste adequado para os estudos na academia, para exposição no museu, para o programa de televisão, para ser tema de romances, pinturas, filmes, peças teatrais, discursos políticos, medidas econômicas? Como se produziu este recorte espacial, seus sentidos e significados? E, principalmente, porque sua fundação se deu sob o signo da saudade, da tradição e que conseqüências políticas advieram deste fato? O Nordeste não é um fato inerte na natureza. Não está dado desde sempre. Os recortes geográficos, as regiões são fatos humanos, são pedaços de história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio. à tona e escorreu sobre este território. O Nordeste é uma especialidade fundada historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença. Não se pode confundir, no entanto, este processo fragmentário com um processo ordenado, crescente, perpassado pela visão evolucionista da história que, partindo de um resultado final, passa a inscrever, no passado. sinais ou pegadas, que já prenunciavam este ponto final. Essa foi exatamente uma das estratégias utilizadas pejo discurso regionalista nordestino para legitimar o recorte espacial que fazia. .Antes que a unidade significativa chamada Nordeste se constituísse perante nossos olhos, foi necessário que inúmeras práticas e discursos "nordestinizadores" aflorassem de forma dispersa e fossem agrupados posteriormente. O que vamos acompanhar aqui é este processo de tecelagem de um novo tecido espacial, à medida que as mudanças históricas esgarçaram as antigas espacialidades. Existe uma realidade múltipla de vidas, histórias, práticas e costumes no que hoje chamamos Nordeste. É o apagamento desta multiplicidade, no entanto, que permitiu se pensar esta unidade imagético-discursiva. Por isso, o que me interessa aqui não é este Nordeste "real", ou questionar a correspondência entre representação e realidade, mas sim a produção dessa constelação de regularidades práticas e discursivas que institui, faz ver e possibilita dizer esta região até hoje. Na produção discursiva sobre o Nordeste, este é menos um lugar que um topos, um conjunto de referências, um coleção de características, um arquivo de imagens e textos. Ele parece ser uma citação, ter origem no fragmento de um texto, um extrato de imaginação anterior, uma imagem que sempre se repete Nordeste, um feixe de recorrências. A origem do Nordeste, portanto, longe de ser um processo linear e ascendente, em que " identidade está desde o início assegurada e preservada", é um começo histórico no qual se encontra ~ia entre as práticas e os discursos; é um disparate. Essa figuração de uma origem linear e pacífica para o Nordeste se faz preciso para negar que ele é algo que se inventa no presente. Visa negá-Io como objeto político-cultural, colocando-o como objeto "natural", "neutro" ou "histórico" desde sempre. O Nordeste surge como reação às estratégias de nacionalização que esse dispositivo da nacionalidade e essa formação discursiva nacional-popular põem em funcionamento; por isso não expressa mais os simples interesses particularistas dos indivíduos, das famílias ou dos grupos oligárquicos estaduais. Ele é uma nova região nascida de um novo tipo de regionalismo, embora assentada no discurso da tradição e numa posição nostálgica em relação ao passado. O Nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se mão de topos, de símbolos, de tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação. Unem-se forças em tomo de um novo recorte do espaço nacional, surgido com as grandes obras, contra as secas. Traçam-se novas fronteiras que servissem de trincheira para a defesa da dominação ameaçada. Descobrem-se iguais no calor da batalha. Juntam-se para fechar os limites de seu espaço contra a ameaça das forças invasoras que vêm do exterior. "Descobrem-se "região" contra a "nação". 3 A necessidade de reterritorialização leva a um exaustivo levantamento da natureza, bem como da história econômica e social da área, ao lado de todo um esforço de elaboração de uma memória social, cultural e artística que pudesse servir de base para sua instituição como região. Se o problema era fundar uma imagem e um texto original para o Nordeste e se o sublunar oferecia uma multiplicidade e uma riqueza em contrastes, o importante era construir uma dada forma de ver e de dizer, era ordenar uma visibilidade e uma dizibilidade que se tomassem códigos fixos de leitura, era ordenar um feixe de olhares que demarcassem contornos, tonalidades e sombreados estáticos. Toda a pesquisa em (torno da idéia de Nordeste, inicialmente será realizada no sentido de localizar estes elementos garantidores da identidade, da semelhança, homogeneidade do espaço da fixação deste olhar e deste falar "nordestino" e o Nordeste. De Norte a Nordeste O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público federal. O Nordeste é em grande medida, filho das secas produto imagético-discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito deste fenômeno, desde que a grande seca de 1877 veio colocá-la como o problema mais importante desta área Estes discursos, bem como todas as proí1icas que este fenômeno suscita, paulatinamente instituem-no como um recorte espacial específico, no país. 4 É a seca que chama atenção dos veículos de comunicação, especialmente dos jornais do Sul do país, para a existência do Norte e de seus "problemas". Ela é, sem dúvida, o primeiro traço definidor do Norte e o que o diferencia do Sul, notadamente, num momento em que o meio é considerado, ao lado da raça, como fatores determinantes da organização social. Nessas ocasiões, a população do Sul é chamada a contribuir em campanhas de arrecadação e são abertas subscrições pelos jornais, em que são publicadas as listas de nomes dos "beneméritos". Essa talvez seja uma das poucas formas de contato entre populações tão distanciadas, sem maior comunicação, dadas as deficiências nos meios de transporte. Oswald de Andrade, ao visitar o Recife. em 1925, fala da ignorância dos sulistas em relação àquela cidade, embora fosse uma das maiores do país. As primeiras imagens do Norte para a maioria dos sulistas eram aquelas trazidas pelos jornais sobre seu "flagelo" e suas vítimas. Era por meio de espetáculos, jogos, festas feitas para arrecadar fundos para as vítimas do flagelo que os sulistas ouviam falar de seus "irmãos do Norte". 5 O que se nota, no início da década de vinte, é que os termos Norte e Nordeste ainda são usados como sinônimos, mostrando ser esse um momento de transição, em que a própria idéia de Nordeste não havia ainda se institucionalizado, cristalizado-se: "Realizou-se hoje à noite, no Hélio Cinema, um espetáculo infantil em benefício das vítimas da seca do Nordeste brasileiro ...diretores da Sociedade Harmonia e organizadores do grande baile em benefício das vítimas da seca do Norte ... da festa, que constituiu um verdadeiro acontecimento social e estava muito brilhante" .6 Em 1920, a separação Norte e Nordeste ainda estão se processsando; só neste momento começa a surgir nos discursos a separação entre a área amazônica e a área "ocidental" do Norte, provocada principalmente pela preocupação com a migração de "nordestinos" para a extração da borracha e o perigo que isto acarreta para o suprimento de trabalhadores para as lavouras tradicionais do Nordeste: "A política brasileira aplicada ao Norte do Brasil é a negação formal da civilização, é completa e fundamentalmente errada em tudo e só serviu para plantar a desolação e o deserto na Amazônia, e abandono e a miséria social das populações do Nordeste..." 7 A superação da visão provinciana de espaço a que estavam presas as oligarquias dos Estados do Norte é a grande tarefa política e cultural colocada pela necessidade de institucionalização do Nordeste. A visão restrita de espaço, como aquele sobre o qual se exerce o mando pessoal ou oligárquico, vai ter de se ampliar para unir forças contra o processo de subordinação crescente sofrido por' estes grupos. Seus interesses particulares, antes identificados como os interesses de seu Estado, passam agora a ser pensados como interesses de um todo maior: o interesse regional; um recorte espacial, onde todos os sujeitos se inclinariam na mesma direção. 8 O Sul é o espaço-obstáculo, o espaço-outro contra O qual se pensa a identidade do Nordeste. O Nordeste nasce do reconhecimento de uma derrota, é fruto do fechamento imagético-discursivo de um espaço subalterno na rede de poderes, por aqueles que já não podem aspirar ao domínio do espaço nacional. A exclusão das províncias do Norte do Congresso Agrícola, realizado no Rio de Janeiro, em 1878, talvez seja o primeiro momento em que os discursos dos representantes das oligarquias desta área tematizam a diferença de tratamento e de situação econômica e política entre "Norte" e "Sul". A crise na produção açucareira, a seca e a venda de grande número de escravos para o "Sul" tornam o Congresso Agrícola de Recife, organizado como resposta ao anterior, um fórum de duras críticas atuação discriminatória do Estado Imperial em relação a este espaço no que tangia a investimentos, política fiscal, construção de obras públicas e política de mão-de-obra. 9 A seca de 1877-79, a primeira a ter grande repercussão nacional pela imprensa e a atingir setores médios dos proprietários de terra, trouxe um volume considerável de recursos para as "vítimas do flagelo" e fez com que as bancadas "nortistas" no Parlamento descobrissem a poderosa arma que tinham nas mãos, para reclamar tratamento igual ao dado ao "Sul", A seca toma-se a partir daí o problema de todas as províncias e, depois, dos Estados do Norte. 10 As bancadas nortistas conseguem incluir, já na Constituição de 1891, o artigo 5°, que obrigava a União a destinar verbas especiais para o socorro de áreas, vítimas de flagelos naturais, abrangendo aí as secas, Esta institucionalização das secas consegue, progressivamente, abrir maiores espaços no aparelho de Estado para os grupos dominantes do "Norte", Isto fica claro com a criação do IOCS, em 1909, Esta instituição, destinada ao "combate às secas", toma-se o lócus institucional da produção de um discurso regionalista que ganha tons cada vez mais inflamados, à medida que o Estado republicano, sob o domínio das oligarquias paulista e mineira, as beneficia no que se refere às políticas públicas.1I Com a criação do IFOCS, no governo Epitácio Pessoa, os intelectuais e políticos ligados a este órgão, como Guimarães Duque e João Palhano, tentam eliminar os sentidos díspares que se referiam àquele espaço, que nasciam da luta pela sua efetivação. Eles tentam construir uma imagem e um texto único, homogêneo para a região, acabando com os "vários Nordestes que entupiam as livrarias, uns sinceros, outros não". 12. O Nordeste devia ser visto e lido numa só direção para que seu efeito de verdade fosse eficiente politicamente. No Congresso de Produtores de Açúcar, realizado em 1920, em Recife, o discurso de denúncia dos "privilégios do Sul, principalmente do café" adquire tons separatistas. Às voltas com uma enorme crise de mercado e com um processo de modernização da produção, empreendidos em grande parte em detrimento dos produtores tradicionais. com recursos apenas do governo estadual, os promotores deste Congresso buscam unificar seus discursos e falam em nome de um espaço único, sob o signo da discriminação e da vitimização. Esboça-se todo o eixo de confronto entre Nordeste e São Paulo que vai direcionar as discussões, a partir daí, em torno da questão da nação, da região e da identidade nacional. Neste mesmo ano, em nome do combate a esta política discriminatória, as bancadas dos Estados nortistas no Congresso Nacional (vão formar o chamado Bloco do Norte, que se propõe a unificar tas reivindicações de seus Estados). 13 O cangaço e o seu combate é outro motivo da veiculação crescente de um discurso solidário entre os parlamentares nortistas no Congresso. O combate ao cangaceiro, que não respeitava as fronteiras estaduais, vai exigir também a crescente atuação conjunta do aparelho repressivo dos Estados. O Nordeste é, pois, uma região, que se constrói também no medo contra a revolta do pobre, no medo da perda de poder para a "turba de facínoras que empestavarn o sertão". A sensação de fragilidade que tomava conta dos produtores tradicionais de açúcar e algodão trazia também o medo da perda de domínio sobre o seu próprio espaço e, por seu turno, levou a uma crescente preocupação de unir esforços, para combater as revoltas das camadas populares, advindas também das próprias mudanças na sociabilidade tradicional. Não só o cangaço, como também as revoltas messiânicas são fatores de construção de um espaço fechado de poder, uma região capaz de garantir a manutenção da mesma hierarquia de poderes, bem como a dominação tradicional. Na verdade, o "intelectual regional", "o representante do Nordeste", começa a ser forjado quando filhos dos grupos dominantes nos Estados convergiam para Recife, por este ser, além de centro comercial e exportador, centro médico, cultural e educacional de uma vasta área do "Norte". A Faculdade de Direito do Recife e o Seminário de Olinda eram os locais destinados à formação superior, bachaleresca das várias gerações destes filhos de abastados rurais. Desde o século XIX, estas instituições se constituíam em lugares privilegiados para a produção de um discurso regionalista e para a sedimentação de uma visão de mundo comum. Eram os lugares onde se formavam os intelectuais tradicionais da área, com exceção apenas daqueles que podiam estudar no exterior. Era aí que figuras influentes em nível nacional, bem como os futuros dirigentes dos Estados e localidades se conheciam, sedimentavam amizades, trocavam idéias acerca de política, de economia, de cultura e de artes. Estas instituições funcionavam como centro intelectual de aglutinação, em torno de temas políticos e econômicos, que ultrapassavam os, limites de suas províncias ou Estados, notadamente a partir do momento em que o declínio traz a sensação de marginalização em âmbito naciona1. Os aspirantes a ocupar cargos de direção em seus espaços se solidarizavam na indignação com a discriminação do governo central e se preocupavam com a própria incerteza de seus futuros, devido à crise que solapava as bases tradicionais de suas riquezas e poderio. 14 Recife era também o centro jornalístico de uma vasta área que ia de Alagoas até o Maranhão, como pôde constatar Gilberto Freyre, ao pesquisar os anúncios publicados no Diário de Pernambuco, ao longo do século XIX e início do século XX. Ele usa a área de influência deste jornal para definir os limites do que seria a região Nordeste. José Lins do Rego chega a afirmar que o Diário teria servido para iniciar muitos filhos de senhor de engenho nas primeiras letras. Com o passar do tempo, este jornal toma-se o principal veículo de disseminação das reivindicações dos Estados do Norte, bem como vai se constituir num divulgador das formulações• em defesa de um novo recorte regional: o Nordeste. 15 Vai ser nas páginas do Diário de Pernambuco que Gilberto Freyre publicará a sua série de cem artigos numerados, enviados dos Estados Unidos, onde começa a delinear o que chama de pensamento regionalista e tradicionalista. Esse jornal também publica as novelas de Mário Sett, como Senhora de Engenho, ponto de partida para Freyre pensar na elaboração de um romance regionalista e tradicionalista. Foi em 1925, por ocasião da comemoração do centenário desse jornal, que se produziu a primeira tentativa de dar ao recorte espacial Nordeste, mais do que uma definição geográfica, natural, econômica ou política. O Livro do Nordeste, elaborado sob a influência direta de Gilberto Freyre, dará a este recorte regional um conteúdo cultural e artístico, com o resgate do que seriam as suas tradições, a sua memória, a sua história. Para José Lins, foi aí que "o Nordeste se descobriu como pátria". No editorial de abertura de O Livro do Nordeste, Freyre afirma ser esse um "inquérito da vida nordestina; a vida de cinco de seus Estados, cujos destinos se confundem num só e cujas raízes se entrelaçam nos últimos cem anos", período de vida não só do jornal, como da própria Faculdade de Direito.16 O Livro do Nordeste, de certa forma, antecipa o que iria ocorrer no Congresso Regionalista do Recife, ern 1926. Embora indefinido entre um encontro artístico-cultural e um encontro político, o Congresso serviu, segundo Joaquim lnojosa, "para unir cearenses, norte-riograndenses, paraibanos, pernambucanos, alagoanos, sergipanos, em torno de um patriotismo regional", estimulando "o amor ao torrão natal de cujo salubre entusiasmo, de cujo grande ardor se faz a estrutura das grandes pátrias". O Congresso teria em vista salvar o "espírito nordestino" da destruição lenta, mas inevitável, que ameaçava o Rio de Janeiro e São Paulo. Era o meio de sal var o Nordeste da invasão estrangeira, do cosmopolitismo que destruía o "espírito" paulista e carioca, evitando a perda de suas características brasileiras. 17 Este Congresso será organizado pelo Centro Regionalista do Nordeste, fundado em 1924, que se propunha a "colaborar com todos os movimentos políticos que visassem ao desenvolvimento moral e material do Nordeste e defender os interesses do Nordeste em solidariedade". Dizia o programa do Centro que a unidade do Nordeste já estava claramente definida, embora assumisse também,como uma de suas tarefas, acabar com os particularismos provincianos para criar a comunhão regional. Perante o governo e os outros Estados, era fundamental que esta unidade do Nordeste se apresentasse, realizando movimentos em busca de lima melhoria material e moral. O Centro devia funcionar como uma instituição capaz de congregar os "elementos de vida e cultura nordestinas, organizando conferências, excursões, exposições de arte, uma biblioteca com a produção dos intelectuais da região no passado e no presente e editar a revista O Nordeste". 18 A explosão do Movimento Autonomista em Pernambuco, a criação do Centro Regionalista e o combate violento ao messianismo posterior à realização do Congresso Regionalista levam ao surgimento, na imprensa paulista, por exemplo, de inúmeras críticas ao separatismo nordestino. Esta imprensa preocupa-se, sobretudo com as críticas levantadas contra uma República "que não sabia conter os desmandos para-imperiais dos Estados grandes e ricos" e o fato de estes movimentos defenderem que "os Estados brasileiros só deviam se"r governados por homens radicados em suas terras e não por políticos profissionais que moravam no Rio de Janeiro e desdenhavam os Estados". A radicalização do regionalismo nordestino pode ser constatada pela participação de elementos de classe média e até líderes operários no Movimento Autonomista de Pernambuco. Em O Moleque Ricardo, José Lins reproduz as cenas que assistiu como estudante na Faculdade de Direito do Recife, a justaposição de reivindicações políticas de classe com reivindicações regionalistas. 19 Essa série de eventos e práticas dispersas fazem emergir e se institucionalizar a idéia de Nordeste, inclusive entre as camadas populares. Essa idéia vai sendo lapidada até se constituir na mais bem acabada produção regional do país, que serve de trincheira para reivindicações conquistas de benesses econômicas e cargos no aparelho de Estado, desproporcionais à importância econômica e à força política que esta região possui. Mesmo o movimento de trinta será apoiado pelo discurso regional nordestino, corno forma de pôr fim à Primeira República, e com ela a hegemonia de São Paulo, estando as forças sociais aí dominantes em condição de barganhar a montagem de um pacto de poder que lhes assegura a manutenção de importantes espaços políticos. Ao mesmo tempo, a política rnodernizante, industrializante e nacionalista do Estado no pós-trinta, só faz aprofundar as distâncias entre essa área e o Sul do país e subordiná-la cada vez mais, obrigando-a a aceitar uma posição subalterna na estrutura do poder. São criadas políticas compensatórias, como o DNOCS e o IAA, instituições destinadas a falar em nome deste espaço e a distribuir migalhas que caem do céu do Estado Indo parar nos bolsos dos grandes proprietários de terra e empresários, funcionando como incentivos a uma obsolescência tecnológica e uma crescente falta de investimentos produtivos. Isto torna o Nordeste a região mais praticamente vive de esmolas institucionalizadas através de subsídios, empréstimos que não são pagos, recursos para o combate à seca que são desviados e isenções fiscais. O que podemos concluir é que o Nordeste será gestado em práticas que já cartografavam lentamente o espaço regional como: 1) combate à seca; 2) o combate violento ao messianismo e ao cangaço; 3) os conchavas políticos das elites políticas para a manutenção de privilégios etc. Mas o Nordeste também surge de uma série de práticas discursivas que vão afirmando uma sensibilidadee produzindo um conjunto de saberes de marcado caráter regional. - A invenção do Nordeste Imprimindo a região "O Nordeste o que tem feito até hoje é se coser com suas próprias linhas".20 Essa frase, atribuída a Agamenon Magalhães, pode muito bem expressar o processo de que vamos tratar, ou seja, o da invenção imagético-discursiva do Nordeste. Para legitimar o recorte Nordeste, o primeiro trabalho feito pelo movimento cultural iniciado com o Congresso Regionalista de 1926, denominado de regionalista e tradicionalista, foi o de instituir uma origem para a região. Esta história regional retrospectiva busca dar à região um estatuto, ao mesmo tempo universal e histórico. Ela seria restituição de uma verdade num desenvolvimento histórico contínuo, em que as únicas descontinuidades seriam de ordem negativa: esquecimento, ilusão, ocultação. A região é inscrita no passado como uma promessa não realizada, ou não percebida; como um conjunto de indícios que já denunciavam sua existência ou a prenunciavam. Olha-se para o passado e alinha-se uma série de fatos, para demonstrar que a identidade regional já estava lá. Passa-se a falar de história do Nordeste, desde o século XVI, lançando para trás uma problemática regional e um recorte espacial, dado ao saber só no início do século XX. Gilberto Freyre, por exemplo, atribui à influência holandesa no século XVII um dos fatores de diferenciação do Nordeste. Esta área teria se diferenciado até do ponto de vista cultural do restante do país, a partir do momento em que Recife se constituiu em centro administrativo de uma área equivalente ao atual Nordeste, além de centro financeiro, comercial e intelectual judaico-holandês. Este mesmo autor atribui à administração portuguesa a formação de uma "consciência regional" mais forte do que uma consciência nacional, que, caso existisse, poria em perigo o domínio do colonizador. Faz assim, de Uma maneira ou de outra, recuar ao período colonial a consciência regional, a própria existência do Nordeste e, ao mesmo tempo, coloca-a como um dos fatores de formação da própria consciência nacional. Para ele, a região teria nascido antes da nação. 21 O próprio regionalismo é visto como um elemento da nacionalidade brasileira, desde seus primórdios, quando as enormes distâncias autonomizam "focos genéticos de povoamento" e a rivalidade entre as regiões teriam seguido, lado a lado, a animosidade contra a metrópole. As regiões, no Brasil, se definiriam, então, por histórias diferentes, grupos espirituais típicos: com usos, heróis e tradições convergentes. É fundamental notar que, se Gilberto Freyre, ao traçar a história da transição que levaria ao Nordeste de 1925, coloca a seca de um século atrás como um dos marcos, o faz mais por suas "conseqüências morais e sociais". Embora as secas, como a mestiçagem, continuem a fazer parte de qua1qmer história da região, não são mais os fatores naturais que definem que dão identidade, que são na origem da região. São os fatos históricos e, principalmente, os de ordem cultural que marcariam sua origem e desenvolvimento como "consciência". E a fundação da Faculdade de Direito, é a atuação do Diário de Pernambuco, é a invasão holandesa e a Insurreição Pernambucana, as revoltas de 1817, 1824 e 1848, que são colocadas como origem desta identidade regional. A legitimação do recorte regional já não se dá com argumentos naturalistas, mas com argumentos históricos. 22 A busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva à necessidade de inventar uma tradição. Inventando tradições tenta-se estabelecer um equilíbrio entre a nova ordem e a anterior; busca-se conciliar a nova territorialidade com antigos territórios sociais e existenciais. A manutenção de tradições é na verdade, sua invenção para novos fins, ou seja, a garantia da perpetuação de privilégios e lugares sociais ameaçados. 23 O medo de não ter espaços numa nova ordem, de perder a memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvair, é que leva à ênfase na tradição, na construção deste Nordeste. Essa tradição procura ser uma baliza que oriente a atuação dos homens numa sociedade em transformação e impeça o máximo possível à descontinuidade histórica. Ao optar pela tradição, pela defesa de um passado em crise, este discurso regionalista nordestino fez a opção pela miséria, pela paralisia, mantendo parte dos privilégios dos grupos ligados ao latifúndio tradicional, à custa de um processo de retardamento cada vez maior de seu espaço, seja em que aspecto nos detenhamos. 24 Vai se operar nestes discursos com um arquivo de clichês e estereótipos de decodificação fácil e imediata, de preconceitos populares ou aristocráticos, além de "conhecimentos" produzidos pelos estudos em torno da região. Usar-se-á, sobretudo o recurso à memória individual ou coletiva, como aquela que emite a tranqüilidade de uma realidade sem rupturas, de um discurso que opera por analogias, assegurando a sobrevivência de um passado que se vê condenado pela história. A procura por uma identidade regional nasce da reação a dois processos de universalização que se cruzam: globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, que atribuem um sentido a existências cada vez mais sem significado. O "Nordeste tradicional" é um produto da modernidade que só é possível pensar neste momento. A perda é o processo pelo quais estes indivíduos tomam consciência da necessidade de construir algo que está se acabando. O fim do caráter regional da estrutura econômica, política e social do país e a crise dos códigos culturais desse espaço fazem pensar e descobrir uma região. Um lugar criado de lirismo e saudade. Retrato fantasioso de um lugar que não existe mais, uma fábula espacial. Não é à toa que as pretensas tradições nordestinas são sempre buscadas em fragmentos de um passado rural e pré-capitalista; são buscadas em padrões de sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não escravistas. Uma verdadeira idealização do popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas sempre como mais próximas da verdade da terra. 25 A obra de Luís da Câmara Cascudo se destaca quanto a essa idealização do elemento popular. Câmara Cascudo, em seus trabalhos, adota a visão estática, museológica do elemento folclórico. Seus estudos, longe de fazer uma análise histórica ou sociológica do dado folclórico, que se constituem em verdadeiras coletâneas de materiais referentes à sociedade rural patriarcal e pré-capitalista do Nordeste, vendo o folclore como um elemento decisivo na defesa da autenticidade regional, contra os fluxos culturais cosmopolitas. Embora se apresenta como defensores do material folclórico, são paradoxalmente estes folcloristas com seus maiores inimigos e detratores, ao marginaliza-lo, impedindo a criatividade em seu interior, cobrando sua permanência ao longo do tempo, o que significa reivindicar sua obsolência. Para estes estudiosos, o folclore serviria para revelar a essência da região, por ser ele uma sobrevivência emocional. Seria ele uma constelação de elementos pré-lógicos que preexistiam a toda cultura no seu esforço de afirmação conceitual. O folclore seria o repositório de uma inconsciente regional recalcando, uma estrutura ancestral, permitindo o conhecimento espectral de nossa cultura regional. O folclore seria expressão da mentalidade popular esta, por sua vez, da mentalidade regional. 26 Nesse discurso, a idéia de popular se confunde com as de tradicional e anti-moderno, fazendo com que a elaboração imagético-discursiva Nordeste tenha enorme poder de impregnação nas camadas populares, já que estas facilmente se reconhecem em sua visibilidade e dizibilidade. O que esta construção de uma cultura regional institui é a própria idéia de urna solidariedade e de uma longevidade entre códigos culturais populares e códigos tradicionais dominantes. O povo só seria reativo ao elemento moderno. O folclore seria um elemento de integração do povo nesse todo regional. Ele facilitaria a absorção dessa identidade regional pelas camadas que se buscava integrar à nova sociedade em gestação. O folclore apresenta, pois, neste discurso tradicionalista, uma função disciplinadora, de educação, de fornação de uma sensibilidade, baseada na perpetuação de costumes, hábitos e concepções, construindo novos códigos sociais, capazes de eliminar o trauma, o conflito trazido pela sociabilidade moderna. O uso do elemento folclórico permitiria criar novas formas que, no entanto, ressoavam antigas maneiras de ver, dizer, agir, sentir, contribuindo para a invenção de tradições. Construir o novo, negando a sua novidade, atribuindo-o uma pretensa continuidade, como estavam fazendo com a própria região. Ele seria esse elo entre o passado e o presente. Ele permitiria "perpetuar estados de espírito". 27 Esta construção do Nordeste será feita por vários intelectuais e artistas em épocas também as mais variadas. Ela aparece desde Gilberto Freyre e a "escola tradicionalista de Recife", da qual participam autores como José Lins do Rego e Ascenso Ferreira, nas décadas de vinte e trinta, passando pela música de Luiz Gonzaga, Zé Dantas e Humberto Teixeira, a partir da década de quarenta, até a obra teatral de Ariano Suassuna, iniciada na década de cinqüenta. Pintores como Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, o poeta Manuel Bandeira, os romancistas Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, embora guardem enormes diferenças entre si, possuem em comum esta visão do Nordeste e dela são construtores. Visibilidade e dizibilidade regional Os artistas e intelectuais tradicionalistas vão apoiar a visibilidade e a dizibilidade regional no trabalho com a memória. É, na verdade, uma tarefa de organização do próprio presente, este presente que parece deles escapar, deles prescindir. É como se, no passado, seus ancestrais governassem a si e aos outros, a sua própria história e a dos outros, e eles agora se vissem perdendo este governo fossem governados por outros; não conseguissem sequer governar a si mesmos. A busca por arrumar discursiva e artisticamente estas lembranças é a forma que encontram para organizar suas próprias vidas. Pensar em uma nova identidade para seu espaço era pensar em uma nova identidade para si próprios. Quanto mais a história fazia este grupo social se aproximar de seu desaparecimento, mais se tornava perigosa. No momento em que a história se aproxima desses confins, ela só pode deter-se, sob pena de, pondo fim a este grupo social à sua história, pôr fim a si própria. Por isso, como todo grupo social em crise, esta elite tradicional tenta deter sua morte, detendo a história. Lutar contra a história é lutar contra a finitude, e é justamente a memória a única garantia contra a morte, contra a finitude. O discurso tradicionalista toma a história como o lugar da produção da memória, como discurso da reminiscência e do reconhecimento. Ele faz dela um meio de os sujeitos do presente se reconhecer nos fatos do passado, de reconhecerem uma região já presente no passado, precisando apenas ser anunciada. Ele faz da história o processo de afirmação de uma identidade, da continuidade e da tradição, e toma o lugar de sujeitos reveladores desta verdade eterna, mas encoberta. A história, em seu caráter disruptivo, é apagada e, em seu lugar, é pensada uma identidade regional a - histórica feita de estereótipos imagéticos e enunciativos de caráter moral, em que a política é sempre vista como desestabilizadora e o espaço é visto como estável, apolítico e natural, segmentado apenas em duas dimensões: o interno e o externo. Interno que se defende contra um externo que o buscaria descaracterizar. Um interno de onde se retiram ou minimizam as contradições. A volta para "dentro de si" do Nordeste, para buscar a sua identidade, o seu caráter, a sua alma, a sua verdade, dá-se à medida que o dispositivo da nacionalidade e a formação discursiva nacional-popular colocam como necessidade o apagamento das diferenças regionais e a sua "integração no nacional" manter viva esta dominação alcançada. A memória espacial é na verdade a memória de uma dominação em crise. A região surge assim como uma "dobra espacial", como um espaço fechado às mudanças que vêm de fora. O Nordeste se voltaria para si como forma de se defender do seu outro, o espaço industrial e urbano que se desenvolvia notadamente no Sul do país. O Nordeste é uma rugosidade do espaço nacional, que surge a partir de uma aliança de forças, que busca barrar o processo de integração nacional, feita a partir do Centro-Sul. O Nordeste dos "regionalistas e tradicionalistas" é uma região formada por imagens depressivas, de decadentes, corno as presentes nas obras de José Lins do Rego. Imagens evocatrvas de um passado de tradição que estava se perdendo, como nestes versos de Bandeira: "Saí menino de minha terra Passei trinta anos longe dela De vez em quando me diziam Sua terra está completamente mudada Tem avenidas, tem arranha-céus ... É hoje uma bonita cidade! Meu coração ficava pequenino. Revi afinal o meu Recife Está de fato completamente mudado Tem avenidas, tem arranha-céus É hoje uma bonita cidade. Diabo leve quem pôs bonita a minha terra. 28 A produção sociológica de Gilberto Freyre, bem corno a dos chamados "romancistas de trinta" , têm no trabalho com a memória a principal matéria. Estes últimos vão tentar construir o Nordeste pela rememoração de suas infâncias , em que predominavam formas de relações sociais agora ameaçadas. Eles resgatam a própria narrativa como manifestação cultural tradicional e popular, ameaçada pelo mundo moderno e a tornam como expressão do regional. Enquanto em São Paulo os modernistas procuravam romper com a narrativa tradicional, assumindo a própria crise do romance no mundo moderno, no Nordeste o movimento regionalista e tradicionalista volta-se para resgatar as narrativas populares, a memória como único lugar de vida para este homem moderno dilacerado entre máquinas, a narrativa como o lugar de reencontro do homem consigo mesmo, de um espaço com sua identidade ameaçada. Como numa épica, estes romances querem garantir a continuidade do que foi narrado, querem garantir a reprodução, por meio de gerações deste mundo desentranhado e suspenso na memória: o mundo "regional". 29 Uma região que se constrói pela memória implica uma convivência entre a idéia de sobrevivência e a de vácuo. O passado aparece em toda a sua alegria de redescoberta, para, ao mesmo tempo, provocar a consciência triste do seu passar, do seu fim. Esta máquina de rememoração, que é o romance de trinta, é também a máquina de destruição, de ascensão à consciência de um tempo perdido. A ênfase na memória por parte dos tradicionalistas nasce dessa vontade de prolongar o passado para o presente e, quem sabe, fazer dele também o futuro. Eles abominam a história, por ela estabelecer uma cisão entre as temporalidades. A descoberta da historicidade de todas as coisas e, portanto, o seu caráter passageiro e mutável é que provoca este sentimento de angústia. 30 Essa memória espacial, esteticamente resgatada, inspiraria a criação de um futuro melhor, liberto dos arrivismo, artificialismos e utilitarismos burgueses. Um espaço regional, feito para permanecer no tempo; construído com o agenciamento de monumentos, paisagens, tipos humanos, relações sociais, símbolos e imagens que pontilham este território estriado pelo poder. É na memória que se juntam fragmentos de história, lembranças pessoais, de catástrofes, de fatos épicos que desenham o rosto da região. Um espaço sem claros, preenchido completamente por estes textos, imagens e sons que lhe dão espessura. Espaço onde nada é provisório, onde tudo parece sólido como a casa-grande de pedra e os móveis de mogno e jacarandá; onde tudo parece tranqüilo, vagaroso como o balançar na rede ou na cadeira, região da permanência, do ritmo lento, da sedimentação cultural, da família, afetiva e infantil. Essa visibilidade afetiva e infantil da região se expressa com destaque na poesia de Ascenso Ferreira, embora quanto à forma seja um dos primeiros artistas a trilhar os caminhos do modernismo em Pernambuco. Sua visão do Nordeste, segundo ele próprio, "foi se desenhando em contato com os passantes do Rancho de seu tio, onde trabalhava, onde homens de diferentes lugares se encontravam, trazendo toadas de engenho, toadas do senão, coco, sapateados, ponteios de viola, histórias de mal-assombrados, caçadas, pescarias., viagens, narrações etc ...." Esse material de sua vivência de Fronteira (assim se chamava a casa comercial de seu tio), entre o campo e a cidade, essa gama de materiais populares e folclóricos será agenciada, à medida que a obra de Gilberto Freyre lhe "desperta o amor pelas coisas de nossa tradição rural". À forna de expressão modernista alia materiais de expressão tradicionais para constituir aquilo que seria "uma poesia, expressão da verdade regional". 31 Para Ascenso, a região Nordeste seria o lugar de uma sociabilidade brasileira, atemporal, ameaçada de ser destruída pela "civilização estrangeira". Sua poesia queria contribuir para a preservação dessa alma "ora brincalhona, ora pungente do Nordeste, das festas, dos engenhos e do sertão". Tanto em sua poesia como na pintura de Cícero Dias, não há nenhuma intenção de reivindicação social. Eles querem apenas "compreender a totalidade da vida nordestina, exprimindo sua essência pura, sua alma não maculada pela modernidade". 32 Compreender a "alma de sua terra'', descobrir sua identidade também era a preocupação de José Lins do Rego. Para ele, organizar a memória pessoal era organizar a memória regional. A descoberta da "psicologia regional" era a descoberta da própria região, que passava também pela descoberta de si, de sua identidade como pessoa e como intelectual. O Nordeste é essa imagem espacial interiorizada na sua infância no engenho Santa Rosa, território dos Carlos de Melo e dos Ricardos. Um espaço melancólico e cheio de sombras; um espaço de saudades. 33 A intenção inicial de escrever a memória de seu avô, como contribuição para que as novas gerações não esquecessem estes homens que haviam feito a glória de uma época na região, transforma-se numa série de romances que surgem sob a influência direta do amigo Gilberto Freyre e da dizibilidade memorialística da região. É a pretensão de ser espontâneo, de ser verdadeiro que torna o seu trabalho com a memória um trabalho não crítico, nem problematizador. Ele pretende não estar sendo parcial, quando, na verdade, seus romances expressam uma forma de ver a realidade, um olhar de menino de engenho. É a partir da varanda da casa-grande, como fazia seu avô, que ele olha para a "sua terra", para o Nordeste. 34 A preocupação em entender• a alma da terra, a sua espiritualidade, assentada no sobrenatural, na transcendência e na religiosidade atravessa também toda a obra do poeta Jorge de Lima. Assumindo sua condição de poeta "católico", Jorge busca captar o que seriam as fontes negras da memória e do inconsciente de um catolicismo nordestino, sertanejo, em que o sagrado se mistura com a natureza e com os vínculos sociais concretos. Um Nordeste de alma negra, mística, espiritual e oprimida, em busca da redenção em Deus. Nordeste onde a mistura de sangue confundiu espíritos e papéis sociais: "Há no meu sangue: três moças fugidas, dois cangaceiros um pai de terreiro, dois malandros, um maquinista dois estourados. Nasceu uma índia. uma brasileira, uma de olhos azuis uma primeira comunhão."35 RacheI de Queiroz se preocupa com a dicotomia entre tempo e espaço. Para ela. o tempo, diferentemente do espaço, não tinha estabilidade, não se podia ir e voltar nele. O que se passa no tempo some, anda para longe e não volta nunca. É com profundo pesar que ela constata ser o passado uma substância solúvel, que se dilui dentro da vida, escorre pelos buracos do tempo - águas passadas. Para RacheI, a dimensão do tempo é aflitiva para o homem, pois seus únicos marcos são as lembranças, cujas testemunhas são as pessoas que também passam, também se transformam. O homem não tem sobre o tempo nenhum comando, apenas sofre o tempo, sem defesa. O tempo anda no homem, mas este não anda nele. O tempo nos gasta como lixa, nos deforma, nos diminui e nos acrescenta. Os olhos de trinta anos desaparecem, a forma de ver também. Razão por que o espaço é repositório da memória, das marcas do tempo; é a dimensão que, segundo ela, deve proteger o homem dessa sensação de vertigem. O espaço seria a dimensão conservadora da vida. 36 Até nas músicas de Luiz Gonzaga esta consciência do caráter dilacerador do tempo, essa visão moderna da temporalidade, cede lugar, várias vezes, a uma visão cíclica, que advém da própria imagem da região estar muito próxima da natureza. Um Nordeste onde o tempo descreve um círculo entre a seca e o inverno. Tempo do qual participam não só o homem, mas os animais, as plantas, até os minerais. Uma região dividida entre momentos de tristeza e de alegria, mesmo para quem dela sai, o migrante, o Nordeste aparece como este espaço fixo da saudade. O Nordeste parece estar sempre no passado, na memória; evocado como o espaço para o qual se quer voltar; um espaço que permaneceria o mesmo. Os lugares, os amores. a família, os animais de estimação, o roçado ficam como que suspensos no tempo a esperarem que um dia este migrante volte e reencontre tudo como deixou. Nordeste, sertão, espaço sem história, infenso às mudanças. Sertão onde a fogueira ainda esquenta o coração, sem rádio e sem notícia das terras civilizadas: "Ai quem me dera eu voltar Pros braços do meu xodó Saudade assim faz roer E amarga qui nem jiló Mas ninguém pode dizer Qui mi viu triste a chorar Saudade o meu remédio é cantar ...". 37 Tanto o trabalho teatral como o literário de Ariano Suassuna também se voltam para a construção do Nordeste como um espaço tradicional. Um Nordeste construído a partir de uma visão sacramental da memória, onde "uma aristocracia rude e as pessoas simples conviviam com o temporal e o atemporal, num mesmo plano de interesses particulares e imediatos". Para Suassuna, o tempo é uma dimensão da morte, que, ao lado da fome, da sede, das doenças, da nudez, do sofrimento, do acaso, do infortúnio e da necessidade, destruía a região que buscava preservar em seu trabalho. Nordeste que tinha como maior insígnia, como brasão, a morte. Uma morte sel vagem, mãe de todos. 38 O Nordeste de Ariano, ao contrário do freyreano, é o Nordeste sertanejo, do "reino encantado do sertão". Sua obra se volta para afirmar este espaço como o verdadeiro Nordeste, onde também existia "nobreza", não existiam "só profetas broncos e desequilibrados e cangaceiros sujos e cruéis". Nobreza comparável à que floresceu na civilização do açúcar, mas "sem as cavilações e as afetações dos ioiôs e sínhazinhas". Um "reino" bruto, despojado e pobre, com quem o autor se identifica e a partir do qual produz a sua obra, motivo de sua existência, motivo de sua epopéia e a de seus heróis pobres e extraviados. 39 Na sua luta contra a história, Ariano constrói o Nordeste como o reino dos mitos, do domínio do atemporal, do sagrado, da indiferenciação entre natureza e sociedade. Lançando mão do gênero epopéico, das estruturas narrativas míticas e, principalmente, das estruturas narrativas e do realismo mágico da literatura de cordel, Ariano inventa seu Nordeste, "reino embandeirado, épico e sagrado". Um espaço sertanejo, inventado a partir da vivência do autor na cidade, do agenciamento de lembranças e reminiscências de infância e de uma grande quantidade de matérias de expressão populares. Um espaço ainda não desencantado, não dessacralizado, um reino dos mistérios, onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe dá sentido. Um Nordeste que se liga diretamente ao passado medieval da Península Ibérica. Um Nordeste barroco. anti-renascentista, antimoderno. A dizibilidade do Nordeste, a linguagem para expressá-lo deve ser buscada, pois, em formas teatrais ibéricas medievais, bem como nas formas populares, na tradição popular que guardaria muitas destas formas "arcaicas". A obra de Ariano reafirma o uso das formas narrativas do cordel como forma de dizer esta região do país. Forma adequada para se "representar" um espaço onde não existiriam fronteiras entre o real e o imaginário, entre o sentimental e o antipoético; entre o divino e o pagão; entre o trágico e o cômico; entre a loucura e a razão. 40 Embora com obras muito diferentes, estes autores e artistas têm em comum o fato de serem construtores de um Nordeste, cujas visibilidade e dizibilidade estão centradas na memória, na reação ao ( moderno, na busca do passado como dimensão temporal; assinalada; positivamente em sua relação com o presente. Este Nordeste é uma máquina imagético-discursiva que combate a autonomia, a inventividade e apóia a rotina e a submissão, mesmo que essa rotina não seja o objetivo explicito, consciente de seus autores, ela é uma maquinaria discursiva que tenta evitar que os homens se apropriem de sua história, que a façam, mas sim que vivam uma história pronta, já feita pelos outros, pelos antigos; que se ache "natural" viver sempre da mesma forma as mesmas injustiças, misérias e discriminações. Se o passado é melhor que o presente e ele é a melhor promessa de futuro, caberia a todos se baterem pela volta dos antigos territórios esfacelados pela história. Regionalismo tradicionalista e modernismo o movimento Regionalista e Tradicionalista de Recife teve início, oficialmente:, com a fundação do Centro Regionalista do Nordeste, em 1924, congregando não apenas intelectuais ligados às artes e à cultura, mas, principalmente, àqueles voltados para as questões políticas locais e nacionais. Sua afirmação, no entanto, como um movimento de caráter cultural e artístico, destinado a resgatar e preservar as tradições nordestinas, só se dá com o Congresso Regionalista de Recife, ocorrido em 1926, sob a inspiração direta de Gilberto Freyre. O regionalismo freyreano era um regionalismo de novo tipo, fruto da reorganização dos saberes, operada pela emergência da formação discursiva nacional-popular. Seu regionalismo não é mera justificativa ideológica de um lugar social ameaçado, e sim nova forma de ver, de conhecer e de dizer a realidade, só possível com a emergência da.nação, como o grande problema a ser respondido. O regionalismo é redefinido de simples representação pitoresca do dado local em forma de arte, de luta política em nome de uma província, de um Estado, para um novo discurso em que esses dois aspectos surgem articulados e superados. A produção cultural supera a visão exótica e procura dar ao regional uma formulação cultural que lhe permita, por sua vez, se posicionar politicamente de uma nova forma. O intelectual tradicionalista assume agora uma postura bovarista em relação ao seu espaço regional. Ele se vê como aquele capaz de amalgamar não só as imagens e os discursos de seu espaço, como também suas forças, fundando um bloco unitário, cultural, estética e politicamente. O regionalismo anterior à década de vinte não tinha radicação no discurso sociológico. A região sociologicamente instituída ainda não tinha surgido. A região passa a ser pensada como um problema social e cultural, com a emergência de uma nova formação discursiva. Gilberto Freyre e sua definição sociológica da região só se tomam possíveis neste momento. 41 Um Nordeste impressionista, onde as formas da região emergem e são inventadas entre o passado turvo e a confusão presente. Uma região social e culturalmente elaborada. Uma poética espacial, que reduz à semelhança de tipos e realidades características a diversidade espaço-sócio-cultural. Freyre procura estabelece uma verdade de conjunto, trazendo a luz o que considera seus traços mais característicos (desde o fidalgo dono de terras até a mulher do povo que faz renda). Ele encena o seu drama, síntese dramática da estrutura social inteira, síntese da cultura e natureza regional, síntese da personalidade do homem deste meio. Uma região não mais recorte naturalista, nem apenas recorte sociológico, e sim uma região qualitativa, com fisionomia, ritmo e harmonia. Uma região que, para se ver e dizer, precisaria arte. Região como expressão cultural, não apenas como reflexo do meio, da raça ou das relações sociais de produção. Região como "um ente cultural, uma personalidade, um ethos". 42 Esse novo regionalismo é definido por José Lins do Rego como a busca da unidade do todo, a partir da observação profunda de suas partes fragmentadas. Ele surge das práticas políticas que levaram à descoberta da região como uma arma contra a excessiva centralização política e econômica, uma reação aos processos centralizadores do desenvolvimento capitalista. Afirma-se a diversidade, embora de forma reacionária, à medida que ela reivindica a volta ao passado, ou à paralisia da história, não uma diferença criativa, inventiva, mas uma diferença conservadora. 43 José Lins, tratando de afirmar a novidade do movimento e do regionalismo freyreano, afirma não ser este a simples extravagância de linguagem ou traje, nem o caipirismo de Monteiro Lobato, nem um saudosismo de superfície. Ele seria, no plano político, contrário ao estadualismo; no plano artístico, seria uma "sondagem da alma do povo, nas fontes do folclore". Seria um regionalismo orgânico, revelador e vitalizador do "caráter brasileiro", que fortalecia a unidade brasileira, formando um povo que não seria uma massa uniforme e sem cor. 44 O Regionalismo Tradicionalista não tem quanto à forma, a linguagem, a mesma preocupação com a pesquisa expressa pejos modernistas. José Uns justificava esta simplicidade expressiva como fruto da busca de uma comunicação mais direta com o público. Ele critica, principalmente. o que considera o "artificialismo da linguagem" de Mário e Oswald de Andrade, a vontade de brilhar que dificultava a produção "de algo permanente em termos de literatura pelos modernistas". Oswald, ácido crítico do romance nordestino, notadamente de José Lins, considerava este um retrocesso, exatamente, no que tocava à pesquisa de novas formas de expressão literárias. 45 Freyre acusa os modernistas de abandonarem a pesquisa histórica, sociológica e antropológica, de não se preocuparem com a caracterização histórico-social do país. Isso, evidentemente, não corresponde a verdade, porque, longe de terem "'desprezado as tradições brasileiras", de "terem desprezo pelas coisas do passado brasileiro, como a arte colonial", como fala Freyre, os modernistas estiveram sempre preocupados com a questão da tradição, mas percebendo-a de forma diversa, como uma tradição ainda por ser sistematizada, uma tradição primitivista a ser reelaborada com o dado moderno e não apenas preservada como dado museológico e folclórico como queria o sociólogo pernambucano. 46 O pensamento freyreano radica a nacionalidade na tradição e, por isso, considera o movimento modernista desnacionalizador, à medida que este não se radicaria na "tradição nacional". José Lins, que tem seu pensamento crítico intimamente ligado às formulações freyreanas, fazendo no campo literário o mesmo trabalho de "invenção do Nordeste" que Freyre realizou no campo sociológico, considerava que o modernismo fez muito barulho, agradou a ricos e esnobes, derrubou ídolos, para construir outros ídolos, fórmulas e preconceitos, mas não passou de "uma camada de mundanismo parisiense". O romance modernista "arrevesado e feito para eruditos" se diferenciava do romance nordestino, "romance vigoroso, que vinha da terra, da alma do povo e que era simples como esse. Ulna produção que ligava o moderno ao eterno, um canto triste". 41 Tanto José Lins como Gilberto Freyre tentam afirmar a autenticidade e a autonomia do movimento regionalista e tradicionalista, relação ao modernismo paulista. Denunciam o caráter centralizador que o marco Semana de Arte Moderna ocupava na história da cultura brasileira, pois tudo o que se produzia de novo no país, a partir desta Semana era a ela atribuída. José Lins sempre negou que o seu romance tenha sofrido qualquer influência dela, sempre creditou seu trabalho ao seu convívio com Freyre e o seu pensamento. Ele considerava, pois, profundamente artificial este centralismo do modernismo, porque o próprio caráter de "agitação transitória" que este teve não poderia dar a ele tal repercussão. Considerava aquele movimento "uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventou para divertir seus sócios milionários". Fora talvez o despeito de um filho de milionário arruinado, o que se pode perceber nestas afirmações é o caráter de "confronto regional que adquiriu a luta entre estes dois movimentos". Regionalismo que, embora fosse assumido apenas pelos "nordestinos", estava presente claramente em todas as críticas modernistas ao romance nordestino, ou aos "Búfalos do Nordeste" como queria Oswald. 48 Para Freyre, o Nordeste voltaria a ser uma região criadora, desde que recuperasse suas tradições e praticasse o verdadeiro regionalismo, não o estadualismo. É clara a intenção do autor em unificar o discurso regional em torno de Pernambuco. O regionalismo, segundo ele, era uma reação ao processo de estandardização da vida, patrocinado pelo imperialismo, e resistência à visão de superioridade cultural que este carrega. Partindo da questão da cultura nacional, justifica o regionalismo como uma atitude contra a colonização cultural do país. O nacionalismo ou o internacionalismo que acompanhava o processo de modernização do país, de sua subordinação a padrões burgueses, era, para ele, descaracterizador de sua identidade cultural. Como a influência cultural se dava no âmbito regional, era aí que a defesa contra o colonialismo cultural se devia fazer, e não no âmbito nacional, já que este seria uma artificialidade política e não uma realidade cultural. 49 Freyre chama de modernistas todos os intelectuais e as práticas culturais que tendem a transformar o Brasil numa área subeuropéia de cultura e ocidentalizar seus costumes. Fazendo uma distinção entre os termos moderno e modernista. Freyre considera o seu regionalismo moderno, mas não modernista, no sentido de uma reificação de um instante da modernidade. Para ele, moderno era apenas mudança de forma, embora defendesse a manutenção dos mesmos conteúdos. A cultura brasileira devia integrar não apenas o elemento europeu, mas o extra-europeu, como já fizera Portugal, um povo não apenas mestiço na raça, mas na cultura; um povo ponte entre o Ocidente e o Oriente, a África e a América. 50 O Nordeste seria esta região não especificamente européia; como estava se tornando São Paulo, e, por isso, era a região verdadeiramente brasileira. Portanto, também do Nordeste estaria saindo o movimento de renovação das letras e das artes brasileiras. Um movimento com condições "ecológicas" próprias. As tradições desenvolvidas à sombra das casas-grandes, das senzalas, das igrejas, dos sobrados, dos mocambos, dos contatos "afetivos" de brancos com negros e índios eram o substrato verdadeiramente nacional de nossa cultura. 51 Veja se que a região, no regionalismo tradicionalista afirma-se também a partir da questão da nacionalidade e da integração das camadas populares à cultura nacional, como área capaz de fornecer matérias e formas de expressão para produção de uma cultura não colonizada, assim como a nação era pensada pelos modernistas. Longe de ficar procurando que movimento foi precursor da nacionalidade no campo cultural, ou qual deles influenciou o outro, discussão bizantina, deve-se atentar para o fato de serem movimentos integrados a um mesmo campo de visibilidade e divisibilidade, aos mesmos códigos de sensibilidade quanto ao espaço nacional e quanto à função da cultura e da arte. Eles tentam responder às mesmas problemáticas que emergem no campo cultural. A luta que se trava, por exemplo, entre Joaquim lnojosa e Gilberto Freyre em tomo da paternidade da forma moderna nas artes pernambucanas e da prevalência do modernismo ou do regionalismo tradicionalista como movimento renovador das artes nacionais é profundamente inócua e provinciana. 52 Freyre realmente tenta, em obras posteriores à década de quarenta, trazer para si o mérito de ter chamado atenção para uma necessidade de renovação das artes nacionais, ainda antes de 1920. Inojosa levanta toda a produção freyreana até o final desta década para provar que Freyre sempre foi um ferrenho crítico do modernismo e que só após a vitória deste movimento ele tentava se assenhorar de parte deste mérito. Toda a crítica de Inojosa é parcial, porque se faz no sentido de provar a sua central idade no movimento no Nordeste. Freyre não atribui nenhuma importância ao proselitismo de Inojosa a favor do modernismo e considera o seu movimento regionalista e tradicionalista, a seu modo, modernista, já que, segundo ele, trouxera da Europa e dos Estados Unidos a forma nova. Inojosa, por sua vez, chega a afirmar a própria inexistência do movimento regionalista e tradicionalista, denunciando o fato de o Manifesto regionalista de 1926 ter sido, na verdade, escrito e publicado em 1952, e o fato de que nunca fora lido no encerramento do Congresso Regionalista, como afirmava Freyre, no prefácio ao Manifesto. 53 Na década de quarenta, quando o modernismo já é um movimento plenamente vitorioso, e ao mesmo tempo coisa do passado, em que as questões regionais que se cruzavam com estes movimentos haviam sido superadas pelo pacto estado-novista, a luta pelo espólio modernista no Nordeste se acirra. Um festival de personalismo, de vaidades em torno da construção de uma memória do modernismo, tendo como centro o espaço regional. 54 Joaquim Inojosa foi realmente o primeiro intelectual a repercutir o movimento modernista paulista em Pernambuco por meio do artigo "O Que é Futurismo", publicado no jornal A Tarde, de 30 de outubro de 1922. Ele entrara em contato com alguns modernistas ao visitar São Paulo, após participar, no Rio de Janeiro, do I Congresso Internacional de Estudantes, que fazia parte das comemorações do centenário da Independência, passando a representar a revista Klaxon em Pernambuco e "a pregar o novo credo entre os gentios". lnojosa era articulista do Jornal do Comércio, que pertencia à família Pessoa de Queiroz e um dos críticos do Movimento Republicano ou Movimento Autonomista, que reagia à tentativa de intervenção do governo Epitácio Pessoa no Estado, por ter sido derrotado pela oligarquia chefiada por Manoel Barba. Do outro lado do front, José Lins do Rego funda o jornal panfletário Dom Casmurro, que tinha como tarefa desbancar a oligarquia Pessoa e apoiar o movimento de "autonomia" pernambucano. Vê-se, pois, como os movimentos culturais se cruzam, inclusive com questões políticas nacionais e locais. Os modernistas vão estar inicialmente ligados a uma posição política favorável à intervenção "moralizadora" do governo federal no Estado. Não é por outro motivo que o regionalismo tradicionalista tem como antecessor a fundação do Centro Regionalista, cuja preocupação era com a "autonomia, o fortalecimento, e defesa da região contra a excessiva centralização política, além do favorecimento econômico a outras áreas". 55 Joaquim Inojosa funda, em 1923, a Revista Mauricéia, lembrando o título da poesia de Mário de Andrade. Nela começam a ser publicados trabalhos de novos adeptos do movimento, como os poetas Austro-Costa e Joaquim Cardoso, que faziam de Recife "objeto• do canto novo". A prédica de Inojosa chega à Paraíba por meio de uma carta que ele escreve para a revista Era Nova, depois transformada em uma plaquete de grande sucesso chamada A Arte Moderna. Neste Estado, José Américo de Almeida, embora faça críticas ao texto de Inojosa, recebe-o com entusiasmo. José Américo é, às vezes, equivocadamente apontado como introdutor da forma nova no Nordeste, seja por seu relatório A Paraíba e seus problemas, seja por seu livro de estréia Reflexões de uma Cabra. 56 lnojosa é autor ainda da plaquete Brasil Brasileiro, onde dirige uma crítica frontal aos tradicionalistas, dizendo da necessidade de se criar um Brasil preocupado com o contemporâneo e não se deter na contemplação das glórias passadas. Defende ainda a necessidade de uma cultura nacionalista, diante da quebra da solidariedade entre as nações, trazida pela guerra. 57 Gilberto Freyre, assim que chega ao país, escreve um artigo no Diário de Pernambuco, de 22 de abril de 1923, onde critica o modernismo em nome do tradicionalismo. Tanto o Congresso Regionalista de 1926 quanto o Congresso Afro-Brasileiro de 1928, por ele organizados, têm grande repercussão, não só no âmbito da província, mas também nacional. Os jornais de São Paulo dão enorme cobertura, embora com notória má vontade. Isso desmente o argumento do historiador do modernismo e crítico paulista Wilson Martins, que no afã de reafirmar o centralismo do modernismo na cultura brasileira, diante das crescentes críticas de Freyre, chega a afirmar que este movimento não teve nenhuma repercussão, além das fronteiras provincianas, antes que, na década de quarenta, Freyre tenha a ele se referido. 58 Freyre já fazia o elogio da tradição, desde os artigos que enviou dos Estados Unidos, cujo título era "Da Outra América", entre 1918 e 1922, sobre a vida cultural de Pernambuco. Foi nos Estados Unidos: que ele entrou em contato com a obra regionalista de Lafcádio Hearn que, ao lado das integralistas portugueses e o regionalista francês Maurras, exercerá profunda influência em sua obra, tão importante quanto a influência de Franz Boas e dos irmãos Joaquim e Vicente do Rego Monteiro, pintores modernistas com quem ele tem oportunidade de entrar em contato, quando viaja a Paris, em 1922. Outro autor que Freyre admirava era Mário Sette, autor dos livros Senhora de Engenho (1921) e Palanquim Dourado (1923), ao qual Freyre elogia pelo seu "espírito regionalista", em artigo publicado no Diário de Pernambuco, em 22 de abril de 1923. lnojosa, empenhado em retirar qualquer pioneirismo às formulações freyreanas, atribui a Mário Sette a fundação da visão regionalista e tradicionalista na literatura nordestina. 59 Os regionalistas e tradicionalistas se diferenciavam dos modernistas por tomar o passado como um simples espetáculo, negando o fato de que a seleção de uma dada tradição obedece a um ponto de vista político. Essa dubiedade entre uma forma moderna e conteúdos tradicionais, a crítica à ética e sociabilidade burguesas,no entanto, não é privilégio apenas do regionalismo tradicionalista, ela está presente também nas correntes mais conservadoras do modernismo paulista. Tomar, pois, estes movimentos como antitéticos é assumir a imagem que cada movimento quis construir para si, em oposição ao outro, e embarcar nas posturas regionalistas que fizeram emergir estes discursos, além das próprias disputas que envolveram modernistas e regionalistas pela hegemonia cultural, não só em nível nacional, mas também da própria região. São movimentos culturais que defendem a dominação de espaços regionais diferentes, embora ocorram num mesmo campo discursivo. Daí girarem em torno dos mesmos temas, conceitos, estratégias e problemáticas. 60 A instituição sociológica do Nordeste À medida que o saber naturalista, de base evolucionista e biológica, entra em crise, é o saber sociológico, preocupado com as questões sociais e culturais, que vai assumindo um papel de suma importância na definição de uma identidade para o brasileiro e para o Brasil, bem como na definição de suas regiões e de seus tipos regionais. A expansão imperialista e a Primeira Guerra levam a uma grande preocupação com as pesquisas em tomo das sociedades "exóticas", estranhas, não-européias. O problema da aculturação e da identidade cultural passa a ser estudado não só pela sociologia, como também pela etnografia e pela antropologia. Quer-se entender a psicologia desses povos e "as leis" que regem suas sociedades e culturas. 61 É dentro deste contexto que surgem as formulações culturalistas de Franz Boas, crítico ácido do naturalismo gobineano. Boas levanta, principalmente, a questão da visão etnocentrista dos estudos europeus sobre outras sociedades não-européias e não-brancas. Ele critica as formulações biopsicológicas e antropogeográficas que pretendiam encontrar características gerais de um povo, fundamentando-se na predominância de uma dada raça ou na influência do meio. Ele traz para o campo da sociologia o relativismo cultural. Gilberto Freyre é, reconhecidamente, um discípulo das formulações de Franz Boas no Brasil, embora sua sociologia seja bem menos relativista do que a do seu mestre. Para ele, havia característica gerais nos povos que nasciam das interações entre raça e ambiente, que se não eram determinantes como dados naturais, eram indicadores de relações sociais e culturais. Para Freyre a sociedade brasileira se caracterizava, por exemplo, não só pela miscigenação racial, mas também pela miscigenação cultural que daí adveio. É exatamente no campo cultural que ele buscará compreender nossa identidade como nação e a contribuição do regional nessa formação da nacionalidade. 62 Para Freyre, o ponto de vista regional devia nortear os estudos de sociologia e história, porque a noção de região é aproximada à de meio ou local, hábitat, um espaço da natureza sem o qual era impossível pensar a sociedade. A região é vista como a unidade última do espaço. Um espaço genético, fundante de qualquer atividade humana. Como ele mesmo define sua sociologia como uma sociologia genética, a região vai surgir, ao lado da tradição, como pontos de partida para qualquer trabalho de interpretação de nossa sociedade. Seu trabalho seria a extensão ou ampliação de uma memória ou de uma experiência pessoal, bem como da memória e experiência de um dado grupo e de um dado espaço. 63 Sua sociologia seria um esforço de pensar nossa diferença em relação ao processo civilizatório do Ocidente, buscando nos dados "autenticamente regionais, tradicionais e tropicais" os nossos processos singularizadores e, ao mesmo tempo, integradores de uma nova civilização que surgia à revelia da decadente civilização européia. Freyre opõe o trópico à Europa e busca internamente ao país aqueles processos sociais e aquele espaço que prenunciam esse processo de singularização. É com estas preocupações que a idéia de região e, mais especificamente, a idéia de região Nordeste vai ser tomada como base para a formulação de sua sociologia. Como um pensamento de transição, o de Freyre dialoga o tempo inteiro com o saber anterior, dele se afastando em muitos pontos, mas também reproduzindo vários de seus conceitos, temos estratégias. Mesmo procurando combater o uso de noções como raça e atavismo étnico, para definir comportamentos sociais, Freyre muitas vezes se deixa contaminar por tal discurso (surgem teses como o da origem semita do impulso mercantil, demonstrado pelos jesuítas na colonização). Sua principal tese, a da superioridade do mestiço, é ainda uma leitura que tenta conciliar uma nova aparelhagem teórica com um saber anterior já estabelecido. A instituição sociológica do Nordeste, empreendida por Freyre, terá de questionar as hierarquias determinadas a partir da raça e do meio, bem como questionar a superioridade inexorável das nações e das regiões brancas sobre as mestiças. A estratégia de seu discurso é a de inverter essa formulação, dotar de positividade a mestiçagem em detrimento das raças puras, isto por que, para ele, calcar a nacionalidade brasileira numa raça pura era impossível, já que não a possuíamos. Todos eram mestiços, até mesmo o português aqui aportado. 64 Freyre inaugura, pois, todo um discurso de revalorização do mestiço, que era também a própria revalorização do seu espaço, marcado pela mestiçagem. Ele contesta a tese de que os mestiços não eram aptos ao trabalho mecânico, a novas técnicas, e tributa à educação aristocrática a pouca habilidade diante das novas exigências econômicas, tanto por parte dos "senhores como de seus subordinados". A própria obra de civilização, empreendida nos trópicos pelo português, já demonstrava a capacidade dos elementos mestiços. 65 Para Freyre, a diferenciação quanto à raça só fazia sentido à medida que expressasse uma divisão de classes ou uma diferenciação regional, já que a hierarquia das cores e das classes podia variar conforme cada região. A situação regional modificava a situação de raça e de classe desde a colônia, sendo estas configurações culturais e mentais que se sobrepunham às determinações naturais. A ênfase de Freyre se desloca da questão do conflito de raças ou de classes para o conflito regional de culturas. Embora nunca tenha negado a existência de luta de classes no Brasil, como fizera Vianna a pretexto da luta entre raças, Freyre vai tomar a resistência dos escravos, por exemplo, como uma luta mais do que de raças ou de classes; uma luta de mentalidades e culturas. Para ele, se a raça era um elemento dinâmico, a cultura era mais do que esta um fator que não permitia servir de referenciação estática para o social. Para ele, era exatamente no campo social e cultural que residiam às diferenças e antagonismos que geravam atitudes de rivalidade entre as regiões; atitudes essas advindas dos conflitos entre as fases ou os momentos de cultura e diferenças regionais de progresso técnico. O desenvolvimento industrial, bem como as diferenças ecológicas, também acentuariam estas desigualdades. 66 Aliás, Freyre é também um dos fundadores do discurso que tenta modificar a negatividade das condições ecológicas do Brasil e, principalmente, do Nordeste. Ao considerar a obra portuguesa nos trópicos, como uma importante obra civilizatória. Freyre estava invertendo o enunciado naturalista da impossibilidade do desenvolvimento civilizatório autônomo nos trópicos. Sua visão é oposta à de Paulo Prado, por exemplo, para quem o meio era responsável pela tendência de o brasileiro ser teimoso, taciturno, triste, desconfiado, anulado. Para Prado, a Tropicalidade nos condenava ao fracasso como naca, para Freyre ela nos singularizava como civilização, nos dava identidade, nos dava caráter próprio. A identidade nacional, em Freyre, aparece ligada a estes dois temas: o da mestiçagem e o da tropicalidade. Em ambos, o Nordeste deixava de ocupar uma posição de subalternidade na formação da nacionalidade, lugar reservado a ele pelo discurso naturalista, para se tomar o próprio cerne deste processo. O mito da mestiçagem transforma a construção da identidade nacional num processo de homogeneização cultural e étnica. O Brasi, assim como o Nordeste, é pensado como o local do fim do conflito, da harmonização entre raças e cultura, e para isso concorreriam as três raças formadoras da nacionalidade. A maior importância da obra freyreana reside talvez no reconhecimento da importância da participação do negro no processo de "formação da nacionalidade". Embora dê àquele um papel de coadjuvante dócil e servil, não deixa de reconhecer sua participação na economia e na cultura brasileiras, nem, em instante algum, nega o caráter violento da instituição da escravidão, seus efeitos deletérios e a resistência negra contra esta sociedade. Como para ele o berço da civilização brasileira era a sociedade açucareira nordestina, e toda ela foi assentada sobre o trabalho do negro, este teria sido um dos pilares de nossa nacionalidade e aquele espaço, um espaço negro por excelência Segundo Freyre, esta sociedade "rural e patriarcal" garantia um perfeito controle sobre a população negra e a "docilidade" das relações entre senhores e escravos. Desse modo, era nas cidades ou na produção cafeeira paulista que os conflitos entre escravos e senhores seriam constantes: nas primeiras, pelo predomínio do elemento mestiço, instável racial e socialmente, em virtude da perda das relações de acomodação entre escravos e senhores, garantidas pelas relações patriarcais. Na segunda, pelo caráter mais mercantil e mais violento do uso dos negros. 67 Trabalhando num momento em que o discurso científico não se havia separado radicalmente do discurso literário, pela reduzida divisão de trabalho intelectual no país. Freyre lança mão do uso das imagens como forma de superar, em nível de discurso, o despedaçamento, a mistura e a desordem em que a realidade do país surge a seus olhos. São imagens simbólicas e não alegóricas que buscam resolver a falta de identidade entre forma e conteúdo; entre empiria, cotidianidade e sua interpretação do nacional. 68 Essa visão plástica da realidade condiz com a sua principal postura política: a da busca da harmonização dos conflitos, da superação dos antagonismos por uma interpenetração conciliatória dos contrários. Longe de pensar numa dialética em que a síntese seja a negação da negação, ele pensa numa harmonização entre tese e antítese, buscando encontrar sempre os pontos de comunicação entre os aspectos antagônicos da realidade ou estabelecer um continuum por meio de uma lógica concreta que dissolve os antagonismos abstratos. 69 Esta procura da harmonia alia-se à procura da permanência, da manutenção da ordem, por isso o pensamento freyreano se orienta mais pelo sentido espacial do que temporal. Ele se preocupa com a repartição e constituição dos espaços, bem como com suas trans- formações. Uma abordagem "ecológica" em torno do domínio e ocupação dos espaços. Está permanentemente atento para a relação entre poder e especialidade e, principalmente, atento aos desequilíbrios na harmonia entre os elementos naturais, sociais e culturais que comporiam esta dimensão do real. 70 Por isso, a sociedade patriarcal será tomada como exemplo de sociabilidade, em que o conflito seria superado, as relações de poder estariam baseadas na relação entre pessoas, e não entre classes, grupos ou instituições sociais. Uma relação não despersonalizada como a que caracteriza a sociabilidade burguesa, sendo fundamental para a manutenção da ordem social, para evitar os enfrentamentos sociais. A cidade é mostrada como local de libertinagem, de rompimento com os padrões morais, de importação de costumes artificiais, desnacionalizadores e corrompedores dos códigos tradicionais tidos como brasileiros. 71 A modernização ou o progresso são considerados por Freyre como agentes perturbadores do equilíbrio social. O capitalismo, as relações sociais burguesas de produção e consumo, as instituições sociais e políticas burguesas, bem como sua sensibilidade e cultura são consideradas por ele como desagregadores e não formadores de nossa nacionalidade. A nação não é entendida, em Freyre, como o espaço burguês e capitalista construído em sua plenitude, mas sim como a manutenção de um espaço tradicional que garantisse um progresso dentro da antiga ordem; como um espaço que ligasse passado, presente e futuro num contínuo; como um espaço que estivesse a salvo das descontinuidades históricas, ou mesmo que garantisse a construção de uma nova ordem que se alimentasse do passado e com ele tivesse compromisso, ou seja, compromisso com quem dominava na antiga ordem. Sua ênfase se dá sempre na necessidade de uma transição ordenada entre as diferentes temporalidades, sem nenhum corte radical, uma acomodação do presente com o passado e com o futuro. A sua sociologia é, pois, uma busca de constantes histórica que atravessariam o nosso processo de formação. 72 A família patriarcal é, para Freyre, esta constante que atravessa a história do país em suas várias regiões. O latifúndio patriarcal como empreendimento econômico, como organização social e cultural, sob a chefia da "aristocracia branca", com a participação também decisiva dos negros, foi responsável pela formação da "personalidade brasileira", única. Freyre chama atenção para o fato de que dentro da diferenciação regional de colonização e da história brasileira, foi o caráter familiar o único traço de união. A família desempenhou decisivo papel civilizador, foi ela uma instituição predominante de poder e influência econômica, política e moral em nossa formação. Ela era o elemento sociológico da unidade brasileira, capaz de articular os diversos passados regionais brasileiros num "passado compreensivamente nacional, caracteristicamente luso-afro-ameríndio em seus traços principais de composição cultural e de expressão social".13 Escrevendo uma trilogia que começa com Casa Grande e Senzala (1933), passa por Sobrados e Mocambos (1936) e termina com Ordem e Progresso (1959), Freyre toma a história da produção açucareira da Zona da Mata nordestina, ou mais precisamente pernambucana, e generaliza sua análise para todo o passado colonial não só do Nordeste, como do Brasil. Ele encontra nesta sociedade não só a célula original da civilização brasileira, como, a partir dela, abstrai constantes que caracterizariam toda a sociedade brasileira. Para Freyre, foi o fim desta sociedade que deu início ao processo de desequilíbrio entre as regiões do país. Seu trabalho sociológico visa denunciar esta perda da harmonia entre as regiões do país e a necessidade de restabelecimento do equilíbrio perdido. A decadência desta sociedade teria potencializado outros fatores de diferenciação regional como as condições físicas e de solo, configuração de paisagem e de clima, diferenças culturais e de meio social, além das diferentes atividades econômicas. Para ele o regional é mais do que um recorte físico ou geográfico; ele nasce de um modo de vida, de uma cultura e de uma sociabilidade específica. 74 Para Freyre, a nação surge como um pacto harmônico entre regiões que estabelecem sua realidade, devendo garantir a preservação dos seus espaços diferenciados e da dominação que neles se exerce. A consciência da diferença está submetida, de saída, à lógica da identidade. A diferença é vista como uma situação momentânea de afastamento de uma situação de equilíbrio, de dilaceramento da identidade, que deve ser superada pela volta a uma nova identidade, em que o equilíbrio se refaça. 75 O principal livro de Freyre, quando se trata da institucionalização sociológica da região Nordeste e de sua invenção, é sem dúvida Nordeste, publicado em 1937. Em seu prefácio se explicita o objetivo político da obra que resume toda a estratégia que presidiu sempre o discurso freyreano: o de "sensibilizar os brasileiros para a situação de um conjunto espacial que começava a degradar-se socioecologicamente. Um grito contra o desvirtuamento da Federação" com a concentração de poder e investimentos em alguns Estados. 76 Ele esboça a fisionomia do Nordeste agrário, decadente, que fora o "centro da civilização brasileira". As relações do homem com a terra, com o nativo, com as águas, com as plantas, com os animais; a adaptação do português e do africano ao meio. Uma abordagem histórica que pretende instituir um processo de formação para este espaço; uma origem comum para os diferentes Estados em declínio em nível nacional. Uma região cujo perfil havia sido dado pela monocultura latifundiária e escravocrata, e ainda monossexual - o homem nobre dono do engenho, fazendo quase sozinho os benefícios de domínio sobre a terra e sobre os escravos. Uma região, pois, de perfil aquilino, aristocrático, cavalheiresco; aristocratismo às vezes sádico e mórbido. 77 O Nordeste seria uma unidade psicológica nascida da vida dos engenhos. O Nordeste visto por Freyre tinha uma paisagem enobrecida peja capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pela palmeira imperial, mas ao mesmo tempo deformada pela monocultura latifundiária e escravocrata, esterilizada em suas fontes de vida, devastada em suas matas, degradada em suas águas. Um Nordeste em que a fuga da terra pela erosão e das matas pelas queimadas parecia macular aquele que aparentava ser o único aspecto de permanência: a natureza, o espaço. Para Freyre, esta degradação física do Nordeste, era um dos indícios da própria decadência daquela sociedade tradicional. A busca do equilíbrio social, da permanência, da estabilidade passava pela própria conservação da natureza. Eram os pequenos rios em arrojo quixotesco, sem surpresas desagradáveis, constantes, fixadores, sedentarizadores, traço de ligação entre famílias abastadas. Rios amigos dos bangüezeiros, força-motriz que garantia a estabilidade deste mundo. Estes rios agora emporcalhados e maculados pelos novos senhores, os usineiros, homens desrespeitosos em relação ao espaço, à natureza e aos antigos donos, eram o símbolo desta decadência social que o espaço testemunhava. Estes homens de costas para o rio, para o passado da região, homens da modernização degradante, ameaçavam apodrecer o próprio Nordeste. Nordeste verdadeiro que Freyre quer resgatar por baixo de tanta calda fedorenta de usina, de progresso, de estrangeirices, de mudanças nas relações sociais. Contra o Nordeste, fruto podre do capitalismo, Freyre traz o odor do Nordeste, fruta de conde e torrão de açúcar. 78 Reconhecendo a diversidade interior ao próprio Nordeste ao se referir ao outro Nordeste de areias rangentes e escaldantes, Freyre tece uma unidade imagético-discursiva que toma como base o Nordeste açucareiro, já que a região de terras duras e secas seria mais propícia para servir de base a um discurso cuja estratégia fosse a denúncia das condições sociais da região. O Nordeste do açúcar serve mais prontamente para seu projeto de resgate de um passado de poder e riqueza que viesse compensar exatamente os problemas sociais e a decadência crescente dessa área do país. Terra que se deixava marcar mais facilmente pelos rastros da tradição. Terra que guardava na sua pele mole, as marcas da memória de uma "aristocracia" que precisava construir uma nova espacialidade diante das mudanças em curso. Espacialidade que não rompesse radicalmente com o passado, que mantivesse os traços possíveis de uma sociabilidade em que predominavam seus valores. Espaço que mantivesse as estrias da dominação que não deveria ser alterada. Massapê acomodatício, integrativo. Lama social que não provocasse repulsa ou conflitos. A doçura da dominação preservada, contrastando com o ranger da raiva terrível das areias e conflitos sociais do sertão. Relações sociais em que as pessoas se atolavam e apodreciam; em que só o patriarca possuía solidez; em que gerações de senhores de engenho se sucediam, tendo sempre uma massa de empobrecidos e de escravos para explorar. 79 A construção sociológica do Nordeste, por Freyre, é presidida, pois, por uma estratégia política: a defesa da conciliação, a condenação da disciplina burguesa e dos conflitos sociais que esta sociabilidade acarreta. Um Nordeste cuja dizibilidade e visibilidade buscam dissolver as contradições sociais, regionais e culturais explicitando-as, levan- do-as em conta inicialmente, para depois, sobre elas, operar no sentido estético do apagamento, da diluição. Nordeste onde a água dissolve as contradições amolece os homens. Por outro lado, uma região contra a despersonalização cultural trazida pela generalização dos fluxos da rnodernidade, da defesa do sobrado e até dos mocambos, contra os arranha-céus. Sua utopia é o surgimento de uma sociedade na qual a técnica não seja inimiga da tradição, em que técnica e arte se alienam e tradição e modernidade andem juntas, sempre sob o controle da primeira. 80 Identidade e olhar do outro A instituição sociológica e histórica do Nordeste não é feita apenas por seus intelectuais, não nasce apenas de um discurso sobre si, mas se elabora a partir de um discurso sobre e do seu outro, o Sul. O Nordeste é uma invenção não apenas nortista, mas, em grande parte, uma invenção do Sul, de seus intelectuais que disputam com os intelectuais nortistas a hegemonia no interior do discurso histórico e sociológico. Como vimos, a origem da nacionalidade é buscada na história de cada região. As lutas regionalistas atravessam a leitura da história do Brasil, que é feita para estabelecer a prevalência de uma área e de um "tipo regional", na construção da nação e de seu povo. Nessa leitura, parte-se quase sempre das questões e características atuais de cada espaço, para buscar suas raízes no passado. Produz-se toda uma mitologia em torno da origem de cada região e da nação, em torno de frutos históricos e pessoas que são afirmadas como precursores da nacionalidade, como heróis fundadores do Brasil. Estes mitos lançam mão da memória histórica de cada área, das manifestações folclóricas, das narrativas populares e da memória pessoal de seus autores. Cada região é esse conjunto de fragmentos imagéticos e enunciativos, que foram agrupados em torno de um espaço, de uma idéia inicialmente abstrata de região. 81 No Sul, a partir da década de vinte, pensa-se a identidade nacional dividida em pólos antagônicos. São Paulo, Pernambuco e Bahia são tomados como células iniciais do tecido nacional. O discurso historiográfico centra-se na história dessas três áreas, para construir a história do Brasil. Verdadeiros mitos de origem serão criados: pelos intelectuais de cada área, afirmando a diferença em relação ao seu espaço antagônico desde o início, explicando assim as profundas diferenças regionais que começavam a vir à lona, além de colocá-lo no centro do processo histórico do país. A oposição entre nomadismo e sedentaridade perpassa toda esta literatura de interpretação do Brasil das décadas de vinte e trinta. O Brasil colonial é abordado a partir de uma das duas perspectivas, dependendo da posição regional de quem fala. Se é para enfatizar São Paulo, como pólo dinâmico do Brasil colonial, da origem nacional, dá-se ênfase ao nomadismo, e o oposto ocorre se quer destacar o papel do Nordeste como célula inicial de nossa civilização, embora todos vejam com reserva o nomadismo,que predispunha o brasileiro a estar sempre a se derramar pela superfície,sem deitar raízes, sem criar algo s6Iido.82 Para Freyre, o senhor de engenho foi um dos poucos exemplos de fixação e que deu densidade à nacionalidade. O bandeirante se havia conquistado verdadeiros luxos de terras, comprometeu a saúde econômica da colônia e quase compromete a unidade política, não fosse o trabalho de manutenção da unidade nacional das forças ligadas ao latifúndio, como a Igreja, sendo o catolicismo o cimento de nossa unidade. No Nordeste, o português teria regressado ao feudalismo com seus métodos aristocráticos de colonização, com seu apego à terra, ao contrário do que teria ocorrido em São Paulo, onde os aventureiros, desapegados da terra, deram origem ao tipo bandeirante, um explorador, não um construtor. 83 Se as bandeiras alargaram as fronteiras em seu impulso nomádico, só a sedentaridade nordestina, canavieira, deu sentido a essas fronteiras, deu conteúdo ao país, construiu seu território social e politicamente, dotou o país de profundas raízes "em casas quase fortalezas onde se sentiam tão auto-suficientes que se sentiam capazes de criar seu próprio país, fixar as suas próprias fronteiras, nascido do desejo de estabilidade e permanência". Os nordestinos teriam cristalizado o país dos pães - de - açúcar. A Independência e o Império teriam se sustentado sobre esses homens, "barões de gênero de vida quase feudal, num patriarcalismo devoto temente a Deus e ao Imperador". 84 Este caráter aristocrático tão decantado por Freyre quando se refere à elite açucareira nordestina é outro ponto de discórdia entre os intelectuais "sulistas" e "nordestinos". Para Oliveira Vianna, o mesmo luxo e pompa da aristocracia pernambucana podiam ser encontrados em São Paulo. Para ele, a aristocracia paulista descendia das famílias nobres de Portugal e de alguns plebeus aqui enriquecidos. Freyre negava essa origem aristocrática dos paulistas; para ele, a população paulista descendia de portugueses humildes, mestiços com mouros e judeus. Mesmo entre intelectuais paulistas, esta tese da origem nobre não encontra apoio. Cassiano Ricardo e Alcântara Machado, por exemplo, traçam uma imagem diferente do bandeirante: "homens pobres, grosseiros de modos, vivendo quase na indigência, duros para consigo mesmos e para seus semelhantes". A riqueza do presente em São Paulo é oposta à sua pobreza no passado, o que reforça a imagem de decadência do Nordeste onde a riqueza passada contrasta com a crise do presente. 85 Para Ricardo, o tipo brasileiro nasceu exatamente da democratização biológica surgida na família patriarcal e cristã paulista. Esta democracia racial teria levado a uma tendência maior à democracia social em São Paulo, em comparação com o Nordeste, onde a família patriarcal fora aristocrática. Revertendo o enunciado freyreano, da aristocracia como uma positividade do passado nordestino, Ricardo atribui ao caráter democrático e patriarcal da família paulista a origem do individualismo entre n6s, e não o seu refreamento como queria Freyre. Ricardo usa a família patriarcal para assentar aí a origem do "espírito burguês" no país. Freyre a toma como núcleo de uma sociabilidade antiburguesa. Portanto, dependendo do projeto, de nação de cada um e do espaço que representam, a história do Brasil é lida e significada de forma diferenciada. 86 Parte-se da situação presente da sociedade paulista, uma sociedade burguesa, projetando-se para o passado o que seriam suas raízes. O "espírito burguês" de São Paulo leria nascido na "civilização do Planalto, na vida ambiciosa dos bandeirantes". "São Paulo seguindo a indicação de sua geografia continuava setecentos metros acima do Brasil''. 87 Mesmo Roger Bastide, um intelectual francês, também pensa o Brasil por meio dessa cisão dual entre São Paulo e Nordeste. Para ele, o Nordeste se caracterizaria por ser o lugar das normas arcaicas de relações raciais, de camaradagem afetiva, do trabalho comunitário, da manutenção de uma ética pré-burguesa. Para Bastide, a obra de conciliação, de harmonização do desenvolvimento técnico, da modernização capitalista com estes padrões "comunitários de convivência" seria uma das grandes originalidades do Nordeste. Como em toda a sua obra, ele fala de contrastes, mas elogia o que considera a capacidade brasileira de harmonizar contrários. O "nordestino" merece sua admiração pela capacidade de fundir culturas, raças, de sempre borrar as fronteiras entre o passado e o presente; o arcaico e o moderno. 88 O Brasil seria um país cindido entre a inteligência do Sul, mais bem aparelhada em seus conceitos de realidade; e, de outro lado, o "nortista", fantasioso, imaginoso e sensitivo, delirante e compadecido. Razão e sentimento, dilema em que se cindia a identidade nacional, representada pela divisão entre suas duas regiões. Para Menotti del Picchia, o paulista era aventureiro, autônomo, rebelde, libérrimo, com urna feição perfeita de dominador de terras, emancipando-se da tutela longínqua e afastando-se do mar, investindo nos sertões desconhecidos. Já o sertanejo nordestino, em luta aberta com o meio, era extremamente duro, nômade e mal fixo à terra, sem capacidade orgânica para estabelecer uma civilização mais duradoura. Para Freyre, no pernambucano existiria, no entanto, este mesmo gosto do paulista pela iniciativa, pela descoberta, pela inovação, pela autocolonização. Ou seja, explicita-se a rivalidade entre Recife e São Paulo, no sentido de hegemonizarem a história do país. Sérgio Buarque critica a tese de Freyre, do caráter civilizador da atividade açucareira. Para ele, o senhor de engenho era um aventureiro que praticava agricultura de forma perdulária e tinha aversão ao trabalho produtivo. 89 São Paulo é visto na maioria das vezes como a área da cultura moderna e urbano-industrial, omitindo-se sua cultura tradicional e a realidade do campo. Já com o Nordeste se verifica o inverso. Este é quase sempre pensado como região rural, em que as cidades, mesmo sendo desde longa data algumas das maiores do país, são totalmente negligenciadas, seja na produção artística, seja na produção científica. As cidades nordestinas, quando tematizadas, parecem ter parado no período colonial, são abordadas como cidades folclóricas, alegres, cheias de luz e arquitetura barroca. Já São Paulo é vista como uma cidade que passou do burgo pobre, feio, triste e sem luz do período colonial, para a cidade moderna, rica, movimentada, multicolorida, polifônica e cheia de luminosidades contemporâneas. 90 Nos discursos dos intelectuais "sulistas", mesmo que por adoção como Bastide, o Nordeste é visto como a região "embebida em história", "em que a ânsia de possuir tudo novo, de modernizar-se, de ficar na última moda não inspira. Suas pedras cantam o passado, falam de um Brasil antigo, arquitetonicamente português". São Paulo era a realidade de artifício, de cimento, em contraposição à nordestina. "Que foi Deus que fez e não o homem". Uma seria a região da memória; a outra, o lugar da história, do passar do tempo. Uma era natureza; a outra cultura. 91 O Nordeste é visto por alguns modernistas, como Mário e Oswald de Andrade, como último reduto da cultura brasileira, entendida como cultura luso-afro-ameríndia, por não ter passado pelo processo de imigração em massa Oswald, entrando em contradição com seu cosmopolitismo cultural, praticamente reproduz o enunciado dos tradicionalistas nordestinos de que o Nordeste era a única área do país em que "a máquina capitalista ainda não picotou a renda, o crivo, o pano de costa, o que tínhamos de sagrado em autenticidade e beleza". Oswald parece ter deglutido Freyre e sofrido uma indigestão. 92 Até mesmo o historiador francês Fernand Braudel, ao trabalhar em São Paulo na década de trinta e após visitar a Bahia, escreve uma série de textos que reforçam esta visão dicotômica do Brasil,cindido entre uma área moderna e uma arcaica, uma capitalista e a outra feudal. Dizendo já se sentir um pouco paulista, seu olhar parece contaminado pela visibilidade que aquele espaço instituíra para o Nordeste. Para ele, a Bahia era uma sociedade velha, com perfume de Europa, ao passo que São Paulo lembraria Chicago e Nova York. Para Braudel, a sociedade paulista era fluida, deixando-se arrastar ao sabor dos imperativos econômicos, já que a imigração em massa fizera submergir a antiga sociedade. Enquanto isso, na Bahia, o tecido social, por ser tradicional, era muito mais cerrado, coerente, capaz de movimentos de conjunto e inibidor dos processos de mudança. 93 Mesmo fazendo observações pertinentes como a da maior resistência às mudanças na sociedade nordestina, certas afirmações de Braudel são criticáveis. Para sentir cheiro de Europa, na Bahia, é preciso que as narinas sejam muito seletivas Afirmar que a migração esuropéia deu formato americano à sociedade paulista é um disparate. Em meio a tantos europeus, não era deles que sentia o perfume, mas o de Chicago. Enquanto o Nordeste era uma região onde o passado pesava sobre o presente, São Paulo era uma área radicada totalmente no presente e plantando o futuro. Como disse _Oswald, São Paulo seria "a locomotiva Que puxava os vagões velhos e estragados da Federação". 94 Já em 1920, Amadeu Amaral denuncia a emergência de um novo surto de práticas e discursos regionalistas. Apesar de criticar preferencialmente o regionalismo separatista que surge em alguns Estados do Norte, ele admite a existência de um regionalismo paulista, embora o considere "gabola e superficial, sem maiores conseqüências". Ele atribui esta fragilidade do regionalismo em São Paulo ao fato de sua população ser quase toda composta de forasteiros. Mas esta própria consciência do acirramento do que chama de "um sentimento antipaulista" em outras áreas do país contribui para o reforço da identidade de São Paulo. 95 Mas o único regionalismo que ultrapassa as fronteiras estaduais, que conseguiu unir intelectuais e políticos de vários Estados e atraiu outros grupos regionais como os da Bahia do norte de Minas, é o nordestino. É importante, pois, acompanhar não apenas a institucionalização do Nordeste, feita pelo discurso de seus sociólogos e historiadores, ou pelo contraponto com o olhar dos intelectuais de outras áreas do país, mas também acompanhar o trabalho dos artistas e romancistas que produziram esta elaboração imagético-discursiva regional de real poder de impregnação e de reatualização. Nordeste, espaço da saudade, da tradição, foi também inventado pelo romance, pela música, pela poesia, pela pintura, pelo teatro etc.