Amigos Para Sempre ELIZABETE ARTMANN Dedico este livro a todos aqueles que intimamente, e de maneira constante, se preocupam com o bem-estar de seus amigos. "Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito..." ^ríiillon ^l Lascimenlo e G^ernanao cJÒrandl Era uma sexta-feira, noite fria de inverno em uma grande metrópole. Algumas pessoas caminhavam rapidamente pelas ruas, encolhidas em seus agasalhos e com destinos definidos. Num beco sem saída, alguns mendigos tentavam se proteger do frio com cobertores velhos, jornais, caixas de papelão. Eles se encostavam uns aos outros em busca de um pouco de calor ou tomavam aguardente para rebater a friagem. Naquele amontoado de gente, alguns espíritos, sem saber que estavam desencarnados, ali estavam atraídos pelo vício. Entre eles estava Jeremias, espírito desencarnado fazia bastante tempo e que sabia de sua situação. Só estava ali para sugar energia dos embriagados, sorvendo as emanações do álcool ingerido por eles. Jeremias repelia os socorristas que eventualmente passavam por ali na tentativa de auxiliar os que desejavam abandonar essa condição. Já estava acostumado, se é que é possível se acostumar a esse estado de coisas. Porém essa persistência já provocava malefícios. Devido à baixa vibração, ( . . . ) Jeremias começava a se transformar, deixando seu perispírito1 modificar-se. Ele não tinha consciência, mas seu corpo já estava muito torto, sua aparência já tendia para o animalesco, lembrando a de um cachorro, com o corpo inclinado para a frente e o dorso se projetando como o de um corcunda. Arrastava uma das pernas, e um dos braços permanecia paralisado, contorcido. Na verdade, era uma imagem desagradável. Estava se preparando para sorver mais um pouco das emanações alcoólicas com um dos mendigos quando num relance olhou para a entrada do beco e viu uma figura monumental, com dois metros de altura, ombros largos, casaco longo. De imediato Jeremias não o reconheceu. Fazia tempo que não o via. Mas aos poucos suas lembranças foram se aclarando. Zolthan era chefe de uma falange de espíritos obsessores.2 Jeremias já fora seu escravo, mas conseguira autorização para ficar livre em troca de pequenos trabalhos. Resmungou alguns palavrões, pois a presença do grandalhão significava trabalho pela frente e mais sacrifícios. Arrastou-se em direção ao gigante, que parecia ainda maior pelas condições em que Jeremias se encontrava. 1 - Perispírito: também chamado corpo espiritual, sobre o qual se estrutura o corpo físico. É o "corpo" do espírito, formado de material sutil essencial e de matéria da atmosfera em que ele está. À medida que o espírito evolui para mundos superiores, seu perispírito vai se tornando mais sutil, conforme a vibração e a matéria do mundo que habita (veja O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. l, questão 93, "Perispírito", Petit Editora). (N.E.) 2 - Obsessores, obsessão: a obsessão acontece quando um espírito infeliz ou maldoso impõe suas idéias a outro, exercendo sobre este o domínio de seus pensamentos e suas ações. Há várias formas de obsessão (veja O Livro dos Médiuns, segundaparte, cap. 23, "Obsessão", Petit Editora). (N.E.) 10 ETERNAMENTE AMIGOS - Mestre, quanto tempo... - disse Jeremias sem muito entusiasmo. - Pensei que não iria precisar mais de mim. Estava até me acostumando com minha "doce vida". - Pare de ironias, imprestável - disse o gigante com firmeza, conhecedor de suas forças. - Não precisou de muito tempo para você virar um traste. Como consegue ser tão imprestável? Não se olha? Não vê o que está fazendo ao seu "corpo"? Veja, parece um animal! O gigante falava enquanto dava voltas ao redor de Jeremias. Este só encolhia os ombros com desdém, como se não se importasse com sua condição. - Estou tão feio assim, mestre? Bem, por um lado é bom. Quando quiser assustar alguém, o susto será pra valer, não acha? - argumentou Jeremias zombeteiramente. - Você é um estúpido. Não precisa ficar feio para assustar os encarnados. Precisa é saber controlar seu "corpo espiritual", idiota. E, depois, assustar encarnados é coisa de criança e de retardados. Há coisas muito mais importantes para serem feitas. - Coisas importantes? Eu não tenho nada importante para fazer. - Não tinha, agora tem. Venha comigo - disse o gigante j á caminhando. Jeremias olhou para o beco querendo sorver mais energia. Ele já tinha experiência e sabia que não podia provocá-lo, pois Zolthan não perdoava nenhum deslize. Viu que eleja estava longe, com seu jeito todo espalhafatoso de caminhar, e saiu em disparada atrás. 11 ELIZABETH ARTMANN - Mestre, o que vamos fazer de tão importante? perguntou ofegante quando conseguiu alcançar o gigante. - Quando chegar a hora, você saberá - respondeu rispidamente o gigante. Caminharam em silêncio em direção aos Jardins, um bairro de classe média alta de São Paulo. Jeremias não conseguia acompanhar as passadas largas do gigante e tinha de correr o tempo todo, sendo motivo de riso dos vários grupos de espírito que encontravam vagando pelo caminho. - Corre, cachorrinho, lambe o pé do seu dono - diziam alguns. O grandalhão não se importava com as frases irônicas dirigidas ao seu companheiro. A ele, ninguém dirigia a palavra. Todos abriam caminho para ele, rapidamente, tamanho o poder que sua presença impunha. Depois de caminharem muito, chegaram a uma casa enorme, onde era visível a ostentação, onde a riqueza de bens materiais estava exposta a quem quisesse ver. O grandalhão parou na frente da casa e ficou olhando-a com os olhos brilhando, como quem vê algo fantástico. Jeremias por sua vez não viu nada demais. Para ele era apenas uma casa como outra qualquer. - Quero que você fique aqui. Amanhã, alguns garotos e garotas irão fazer a brincadeira do copo3 e irão evocar 3 - Brincadeira do copo: trata-se de uma forma primitiva de consulta aos espíritos. É uma modificação da tiptologia, que, em vez de batidas correspondentes a letras, aponta as próprias letras alfabéticas numa cartolina em que estão grafadas, obtendo-se desse modo a resposta (veja O Livro dos Médiuns, segunda parte, caps. 10 e 11, "Natureza das comunicações" e "Sematologia e tiptologia", e também Copos que andam, de Vera Lúcia Mannzeck de Carvalho, ambos publicados pela Petit Editora) (N.E.) 12 ETERNAMENTE AMIGOS espírito de gente famosa. Nesta hora, quero estar presente. Quando eles chegarem, você me avisa. - Como you avisá-lo? Eu não sei como fazê-lo. - Estúpido! Se não ficasse envolvido com perdedores, já teria aprendido alguma coisa. Vai ficar mil anos nessa situação e não vai aprender nada. Não precisa fazer nada. É só pensar em mim que na hora estarei aqui. - Mestre, como consegue fazer isso? - É por isso que sou o mestre, porque sei das coisas. Não saia daqui por motivo algum. Veja quem chega e me informe depois - disse desaparecendo na escuridão. Sumiu tão rápido que Jeremias ameaçou falar alguma coisa mas teve de desistir. Voltou a resmungar e procurou um cantinho para se acomodar. Ficou um bom tempo à espreita, vendo se aparecia algum bêbado, mas não apareceu ninguém. Já era madrugada quando um carro de luxo encostou em frente do portão, que começou a abrir automaticamente. Aparentemente só o motorista estava no carro, mas havia também vários espíritos companheiros de festas, como Jeremias, que vampirizavam o motorista.4 Este é um fato pouco conhecido, mas, se não fosse assim, muitas coisas ruins deixariam de ocorrer. As pessoas pensam que, por não poderem ver, estão sozinhas em suas aventuras. Ledo engano. Existem legiões de espíritos à espreita daqueles que se comprazem com os prazeres mun- 4 - Vampirismo: ação pela qual um desencarnado se alimenta de energias ou as absorve de outro espírito, que pode ou não estar encarnado. (N.E.) 13 ELIZABETH ARTMANN danos, bebidas, sexo, arruaça etc. Infelizmente esses espíritos apreciam essas mesmas condições, mas, como não têm acesso às coisas materiais, eles se utilizam dos encarnados desavisados. Deles tiram tudo: saúde, felicidade etc. São capazes de destruir famílias inteiras. Para eles não há problema: acabou aqui, vão para ali, pois existe sempre alguém à disposição para servi-los. Jeremias tentou se aproximar, mas os espíritos de dentro do carro o repeliram com uma brutalidade assustadora. - Afaste-se, animalzinho horrível. Aqui não é lugar para você! - disse um deles saindo quase inteiramente do carro e arrancando gargalhadas dos demais. O carro entrou e o portão começou a fechar lentamente. Jeremias queria entrar, mas ficou com medo do grupo que entrou com o carro. Acabou voltando para o canto e adormeceu.5 No dia seguinte Jeremias acordou assustado com aquele grupo de espíritos que ele havia visto entrar na casa fazendo algazarra à sua volta, agredindo-o com chutes. Ele tentava se levantar, mas os espíritos não deixavam, empurrando-o de volta para o chão. - O que o animalzinho ainda está fazendo aqui? Não sabe que não pode ficar por aqui? Que este território é nosso? Quer se machucar? - disse o que parecia ser o líder, 5 - Quando os espíritos ainda estão impregnados ou vivendo as emoções e as paixões do corpo físico, eles sentem as mesmas necessidades dos encarnados (veja O Livro dos Médiuns, segunda parte, caps. 3 e 6, "Manifestações inteligentes" e "Manifestações visuais", Petit Editora). (N.E.) 14 ETERNAMENTE AMIGOS ameaçando-o com os punhos. - Nós vamos dar um passeio pela redondeza. Quando voltarmos, não queremos ver você em nosso território. Jeremias ficou num dilema horrível, não tinha muito o que fazer. Preocupava-se com a ordem de seu chefe de não sair dali. Mas, por outro lado, aqueles malvados iriam retornar e o espancariam novamente. Ficou encolhido por algum tempo, tremendo, até que olhou para o outro lado da rua e viu uma guarita aberta. Resolveu ficar lá. Com sorte os espíritos não o veriam, e o chefe não poderia reclamar, afinal ele havia apenas mudado de calçada. Passadas algumas horas, o grupo que era formado por cinco espíritos retornou. Havia o líder que se chamava Tadeu, uma jovem de nome Clóris, um rapaz magrelo que era chamado de Manteiga, mais uma garota que respondia pelo nome Beá e finalmente um senhor idoso que se chamava Mizael. Tadeu começou a procurar Jeremias. - Lá está ele, chefe - apontou Manteiga para Jeremias, que tentava se esconder dentro da guarita. - Ah, você está aí, cachorrinho - disse Tadeu, indo em direção a Jeremias. - Parece que você gosta de apanhar, hein? - É melhor você não me fazer mal porque... - Jeremias não conseguiu concluir, pois Tadeu começou a agredi-lo com chutes. - Por que não posso lhe fazer mal, cachorrinho? Responda! - gritou Tadeu raivoso. - Meu mestre me mandou ficar. Quando os garotos chegarem, é para eu chamá-lo. 15 ELIZABETH ARTMANN - E quem é esse "mestre"? - O nome dele é Zolthan. - Zolthan!!! O gigante? - perguntou Tadeu com os olhos arregalados, assustado como quem se depara com algo acima de suas forças. - Sim - respondeu Jeremias, feliz com o espanto do outro. - Zolthan virá aqui hoje? - perguntou Tadeu, mudando o torn de voz. - Será que você me desculparia pelo que lhe fiz? - Por que eu haveria de desculpá-lo? - Você irá contar a Zolthan o que aconteceu? - O que ganho se não contar? - Podemos levar você para dentro da casa. Lá tem muitas bebidas e uma mulher que não pára de beber e fumar. Jeremias adorou a proposta, afinal já estava sentindo falta do fumo e do álcool. - Então, vamos - disse Jeremias se levantando. - Espere aí. Você não prometeu ainda que não vai contar para Zolthan nossas diferenças. - Está bem, eu prometo. - Qual é o seu nome? - perguntou Tadeu já bem amigável. - Jeremias. - Ah, nome de profeta, hein? Eu sou o Tadeu e esta é minha turma. Se você quiser, pode fazer parte dela. Faz tempo que você conhece o Zolthan? - Faz muito tempo. Mas não me lembro quando o conheci. 16 ETERNAMENTE AMIGOS Chegaram à porta principal da casa e todos deram a vez para Jeremias entrar. Ele ficou parado na frente da porta sem saber o que fazer, já que ela estava fechada. - Entre, você é nosso convidado - disse Tadeu. - Como you entrar? A porta está fechada - respondeu Jeremias, confuso. A turma toda se entreolhou. Ninguém estava entendendo a dificuldade de Jeremias. Tadeu por ser mais esperto compreendeu que o seu convidado não conhecia muito o mundo espiritual, apesar de estar fazia muito tempo desencarnado. Ele tomou a dianteira e atravessou a porta com naturalidade, seguido pelos outros. - Experimente - disse Clóris, apontando para a porta. - É divertido. Jeremias aproximou-se da porta cauteloso e temeroso, encostou a mão nela e ficou surpreso quando ela atravessou a madeira. Avançou mais, sorrindo e olhando para Clóris, como se estivesse fazendo algo anormal. Saiu do outro lado todo alegre, como alguém que conquista uma façanha. O grupo aproximou-se de Jeremias. Tadeu colocou o braço em seu ombro e disse: - Cachor... desculpe. Jeremias, como você consegue ser tão tolo? Depois de tanto tempo convivendo com espíritos, como pode não saber de coisas tão triviais? Por onde você andou? Por favor, me responda. Os companheiros de Tadeu se divertiam com o modo jocoso de o chefe falar com Jeremias. 17 •L- ELIZABETH ARTMANN Jeremias não conseguia responder, mesmo porque ele também não sabia. Na verdade, ficou muito tempo escravizado. Depois, perambulou entre viciados, perdendo a noção do tempo. Mesmo para os espíritos, essa dependência é muito deletéria. Ela interrompe o aprimoramento e conseqüentemente a evolução espiritual. Jeremias se deslumbrou com o luxo da casa. Tadeu se aproximou da escada de mármore que dava para os aposentos superiores e escutou o casal da casa discutindo. Chamou Jeremias e subiram, indo até o quarto. Marcos ainda estava na cama, e sua esposa, encostada na porta do banheiro com um copo de uísque na mão. - Estou cheia de suas gandaias - gritou a mulher. - Só tem um motivo para eu não me separar de você agora, seu depravado. - Pare de me aborrecer, mulher! Estou com uma ressaca enorme e você fica gritando no meu ouvido. y - E lógico, se não tivesse bebido tanto e tivesse vindo para casa cedo, não estaria com ressaca. Já são onze horas. Está na hora de você se levantar. - Que história é essa de se separar? O que a impede? disse o marido tentando se levantar para pegar alguma coisa no criado-mudo. - Você sabe o que me impede. - Não sei, não. Será o meu dinheiro? Você tem medo de ficar na rua da amargura? - disse o marido com um sorriso cínico, ao mesmo tempo que colocava a mão na cabeça na tentativa de conter a dor. - Droga, onde está aquela droga de comprimido? 18 ETERNAMENTE AMIGOS Tadeu apontou para a mulher, olhou para Jeremias e disse: - Divirta-se. Jeremias, em verdadeira simbiose, imantou-se à mulher e começou a vampirizá-la. Judith, este era seu nome, sentiu um mal-estar imediato, começou a se contorcer ao receber a influência de Jeremias, ficou transtornada e, num ataque de ira, arremessou o copo na direção do marido. Em virtude do seu estado de embriaguez, o copo passou longe. Vendo que havia errado, Judith saiu do quarto correndo e chorando. Jeremias tentou acompanhá-la, mas não conseguiu. - Não se preocupe, teremos muitas oportunidades disse Tadeu com naturalidade. - Venha comigo. Saíram do quarto do marido e pararam em frente à porta do quarto vizinho, que era o da esposa. Tadeu fez um gesto cortês, dando a vez para Jeremias entrar. Ele sorriu, pois tinha gostado da brincadeira de atravessar portas, e entrou, acompanhado por Tadeu. Eles encontraram Judith na cama, chorando. - Posso? - perguntou Jeremias, querendo saber se podia continuar a sugar a energia da mulher. - É toda sua. Jeremias pulou na cama e novamente se aproximou da mulher, que se contorceu, recebendo de imediato a carga negativa. Ela se levantou e foi pegar mais um copo de bebida. Tomou-o num gole só, fazendo o seu obsessor praguejar. Ele queria aproveitar mais. Judith deitou-se novamente e dormiu. Corno ao dormir o espírito liberta-se do corpo físico, a 19 ELIZABETH ARTMANN mulher deu de cara com Jeremias em sua cama. Levou um susto. Se estivesse sóbria, acordaria de imediato, pensando que era um pesadelo. Ficou num canto olhando a cena deplorável: aquela figura disforme estava praticamente colada ao seu corpo, sorvendo sua energia vital, assim como as emanações do álcool. Queria reagir, mas não tinha forças. Sentou-se no ; chão e pôs-se a chorar copiosamente. Jeremias olhava para : ela e ria, parecendo criança. A tarde de sábado passou. Quando chegou a noite, Ricardinho, filho único do casal, chegou com os amigos, todos na faixa dos dezenove anos. Tadeu mandou Manteiga chamar Jeremias. - Não está na hora de chamar seu mestre? - perguntou Tadeu quando Jeremias chegou. - Eu não sei - respondeu Jeremias preguiçosamente, jogando-se em um sofá. - Ele não mandou você chamá-lo assim que a turma chegasse? - Disse, só que estou "morrendo" de preguiça. - Não é à toa que você é um espírito retardado. Jeremias ia responder quando um berro ecoou pela sala, assustando a todos. Do outro lado da sala, num dos cantos mais escuros do ambiente, estava de pé com os braços cruzados a figura assustadora de Zolthan. Ele começou a caminhar em direção ao grupo. Olhou um por um, fazendo-os se encolher. Fixou os olhos em Jeremias e o encarou com ferocidade. - Eu falei para você vigiar a casa, não para se juntar com essa cambada de imprestáveis - disse Zolthan com ETERNAMENTE AMIGOS firmeza, apesar de saber de antemão que ele acabaria se juntando ao grupo. Na verdade, já contava com a ajuda deles sem que eles soubessem. Jeremias ia responder, mas o gigante fez sinal de silêncio, pondo o dedo indicador sobre a boca. Olhou para Tadeu, que tentava fazer pose de quem tem o domínio da situação. Zolthan dirigiu-se a ele e o olhou dos pés à cabeça. Quando os olhares se encontraram, Tadeu estremeceu-se todo. Não tinha condições de encarar aquele olhar. Era como se queimasse por dentro. Teve de baixar a cabeça. Era o sinal de submissão. - Hoje darei início a minha vingança. Esperei muito tempo por ela. - Zolthan começou a falar em torn cerimonial. - Encontrei aqui quem muito procurava: Ricardinho. Ele é meu inimigo há muito tempo, é meu rival, e quero destruí-lo por completo. Quero tê-lo como escravo, e vocês todos irão me ajudar. Hoje eles irão fazer a brincadeira do copo pela primeira vez. Quando eles evocarem algum espírito, quero que respondam. Quero que os envolvam de tal maneira que eles obedeçam a vocês cegamente. Vocês não poderão arredar o pé desta casa por motivo algum, a não ser para acompanhá-los aonde forem. Deverão formar grupos e acompanhar cada integrante da família... - Eu queria ficar com a mulher - interrompeu Jeremias. Todos olharam para Jeremias, não acreditando que ele pudesse interromper seu mestre. Mas ele compreendeu logo seu erro e se encolheu todo. - Quero todos em total desequilíbrio para depois encerrarmos com o nosso ato máximo - concluiu Zolthan. 21 ELIZABETH ARTMANN Naquele instante, no salão de jogos da casa, os jovens faziam grande arruaça, ingerindo bebidas alcoólicas, tomando drogas etc. Onde não há barreiras, o rio corre solto. Onde não há senso de responsabilidade, qualquer coisa parece normal. Para aqueles jovens, não havia limites. O pai de Ricardinho, Marcos, advogado, depois de uma noite de farra, dormiu todo o dia e o emendou com a noite. Profissional competente, tinha tudo para vencer na vida, porém enveredou por caminhos mais fáceis em busca de fortuna. Entrou no serviço público e dedicou-se ao recebimento de propina, num processo vicioso de corrupção, em que a honestidade é coisa de otário e as espertezas e as malandragens são requisitos básicos para se chegar aos objetivos, não importando os meios. Com esse tipo de vida, não tinha nenhum recurso moral para educar o filho, pois havia perdido todo o referencial do bom cidadão. A esposa, por sua vez, era fraca por natureza. Aceitava o que o marido fazia com naturalidade, desde que houvesse dinheiro para satisfazer suas vaidades. Naquele ambiente, Ricardinho não tinha parâmetro para enfrentar a vida. Era um rapaz solto à própria sorte. E, como não existe sorte, seu destino era desastroso. Seus amigos, sustentando o ditado que diz que os afins se atraem, eram igualmente de famílias desestruturadas, sem referência moral básica. Eles também estavam jogados à própria sorte. O grupo era formado por três garotas e três rapazes. Eles se trancavam no salão sempre que possível e ali ficavam, sem ser incomodados. 22 ETERNAMENTE AMIGOS - Quero fazer uma experiência hoje - disse Ricardinho sentado na mesa de bilhar. - E que experiência é essa? - perguntou Míriam, uma das garotas. y - E, que tipo de experiência? - perguntou também Tavinho, aproximando-se cambaleante da mesa com uma garrafa na mão. Ricardinho continuava silencioso, fazendo mistério e rindo. - Fala logo, meu! - gritou Daniel. Cris e Beth estavam sentadas no chão e só ficaram observando. Ricardinho olhava cada um, brincando com seu mistério. - Vamos, cara, fala logo - impacientou-se Tavinho. - Ok, you falar - disse Ricardinho. - Quero conversar com os espíritos hoje. Todos ficaram boquiabertos. - Até onde sei, você não é médium - disse Miriam desafiando-o. - Não creio que você tenha coragem de fazer isso. Mesmo que pudesse, você não faria.6 - É, como você faria isso? - perguntou Tavinho. - Fiquei sabendo que é possível conversar com os espíritos e quero falar com eles. Quero me comunicar com gente famosa. you chamar o Raul Seixas para falar conosco. 6 - É sempre possível evocar os espíritos. Não é preciso ter mediunidade para evocar os espíritos, mas para fazer o copo andar é necessário ser médium de efeitos físicos. Uma vez que o mundo espiritual é uma extensão do plano físico, encontramos espíritos de todas as qualificações, e sempre há os dispostos a se divertir com os crédulos e os incautos. Evocações sérias são sempre revestidas de responsabilidade e respeito de ambos os lados. (N.E.) 23 ELIZABETH ARTMANN - Você está biruta mesmo, meu - disse Daniel, fazendo cara de incrédulo. - Vai querer mexer com coisa que não conhece? - Eu estou curiosa. Quero ver como se faz - disse Miriam. Ricardinho sorriu para ela e deu uma piscadela marota. Desceu da mesa e se dirigiu ao armário que ficava num dos cantos do salão. Abriu-o e começou a procurar alguma coisa, até que viu um rolo de papel branco. Pegou-o e voltou para a mesa. - É simples, vejam. Pego este papel aqui, escrevo todas as letras do alfabeto nele em círculo, coloco um copo no meio do círculo e chamo um espírito. Ele virá rapidinho e responderá a minhas perguntas movimentando o copo em direção às letras. - Hum! Não sei, não. Isso não é perigoso, não? perguntou Tavinho. - Que perigo pode ter isso? - desafiou Ricardinho. O que um espírito pode fazer contra a gente? Naquelas alturas, Zolthan e todo o grupo já estavam no salão. Zolthan ficava num canto, só observando e dando ordens a Tadeu e aos demais. Clóris se aproximou de Miriam a mando de Zolthan e disse em seu ouvido: "Então vamos fazer logo!". Miriam, julgando ser pensamento seu, repetiu as palavras na íntegra. - Então vamos fazer logo! Eles pegaram o rolo de papel e escreveram o alfabeto, fazendo um círculo, como Ricardinho havia falado. Havia 24 ETERNAMENTE AMIGOS um copo com uísque perto. Ricardinho tomou num gole o líquido que restava e colocou o copo no meio do círculo, com a boca para baixo. - Quem quer fazer a primeira pergunta? - desafiou Ricardinho, olhando todos. - Eu não quero - disse Miriam. Todos balançaram a cabeça negativamente. - Vocês todos são uns bananas - disse Ricardinho. - Então eu mesmo faço. - Não precisa acender uma vela? - perguntou Cris. - Para quê? - questionou Daniel. - Ah, não sei. Espíritos devem gostar de velas, eu acho. - Não precisa, não - disse Ricardinho. - E fiquem quietos que eu you começar. Todos ficaram quietos e se aproximaram da mesa onde estava o papel com o copo. - Se houver neste ambiente algum espírito de gente famosa, favor se manifestar - disse Ricardinho fazendo gesto, imitando algum tipo de ritual. Ficaram todos ansiosos observando o copo. Alguns segundos depois o copo começou a se movimentar, apontando para as letras s, em seguida i e finalmente m.1 As meninas começaram a gritar de pavor. Os rapazes ficaram com os olhos arregalados, sem fala e tremendo. Pas- 7 - Para um espírito poder movimentar um copo ou qualquer objeto material, necessita do auxílio de uma pessoa encarnada, e será mais fácil se o encarnado for médium de efeitos físicos, o qual cederá a energia animalizada que o espírito utiliza, como no caso de Ricardinho (veja O Livro dos Médiuns, segunda parte, cap. 8, "Laboratório do mundo invisível", Petit Editora). (N.E.) 25 ELIZABETH ARTMANN f saram alguns minutos e ninguém conseguia falar nada. Ricardinho tomou coragem e resolveu dar continuidade ao evento. - Quem está aí é do bem ou do mal? - perguntou ele ao copo. Tadeu deu uma gargalhada, seguido dos demais. Para eles era uma festa. Olhou para Zolthan, que continuava sério no seu canto e só fez um sinal para Tadeu responder. Então o copo começou a se movimentar novamente em direção às letras, formando as palavras "do bem". - Eu falei que não tinha perigo - disse Ricardinho com ar de vitorioso. - Então continue - incentivou Daniel. - Quem está aí? Pode dizer seu nome? - Pode me chamar de Raul - respondeu o copo. - Raul Seixas? - Se quiser, assim será. - Como posso ter certeza de que é realmente o Raul Seixas? - Certeza é luxo, poucos podem ter - respondeu o copo com uma rapidez vertiginosa. - Mas, tenha certeza, aqui está um amigo para tudo que quiser. - Mas eu posso querer coisas impossíveis - desafiou Ricardinho. Daniel deu uma cutucada com o cotovelo em Ricar- dinho e disse baixinho: -Tome cuidado! Ricardinho olhou para Daniel e fez sinal para ele ficar calmo. 26 ETERNAMENTE AMIGOS - Coisas impossíveis não existem - disse o copo. Tudo que você pedir eu posso arranjar. - Drogas? - Possível. - Grana? - Possível. - Então me arrume um pacote de droga agora. - Disse que é possível, mas existem mecanismos a serem ativados. Não fazemos milagres. - Estou sentindo que você não é de nada! - disse Ricardinho com torn zombeteiro. - Ricardinho! - disse Miriam entredentes, apavorada, cerrando os punhos. O copo ficou parado. Tadeu estava furioso com a insolência do rapaz. Jeremias e os outros riam da fúria do companheiro. Zolthan se aproximou da mesa e esperou a pergunta seguinte. - Eu acho que ele foi embora - disse Cris. - Você foi muito grosseiro com ele. - Raul, se você estiver aí ainda responda - disse Ricardinho, olhando para o copo. Mas o copo continuava parado. - Raul, você não pode ir embora por causa de uma brincadeira - disse Ricardinho ao copo. - Raul foi embora - movimentou-se o copo. - Quem está respondendo, então? - Seu pesadelo. - O que você disse? - Seu pesadelo. 27 ELIZABETH ARTMANN Ricardinho sentiu um frio na espinha. Ficou por alguns minutos pensativo. Seus companheiros ficaram em silêncio, observando-o. - Não sei quem é você - retrucou Ricardinho. - Só para você saber, a mim não está assustando. Por que não se identifica? - Você é otário - respondeu o copo. - Se não tem medo, por que o calafrio? Você sabe quem sou e sabe do que sou capaz. Não me provoque. Você está em minhas mãos! Seu medo é a minha ferramenta para destruí-lo! - Vai precisar ser mais que um copo para me destruir, imbecil - respondeu Ricardinho com ódio, esmurrando a mesa. Todos olharam com medo para Ricardinho, pois ele se transfigurara. Não era o amigo de sempre. Seu semblante estava carregado e irreconhecível. Com os dentes cerrados e os punhos fechados, esperava uma resposta do copo. Parecia um jogo de forças. O ambiente estava carregadíssimo de energias deletérias. Do outro lado, a cena se repetia. Todos olhavam para Zolthan. Ele aparentava tranqüilidade, mas no seu íntimo o ódio buscava brechas para eclodir. Ficou pensando nas últimas palavras de Ricardinho. Sua vontade era pegar o garoto pela garganta e quebrá-lo ao meio, mas não lhe era possível fazer isso. Seu ódio foi aumentando. Finalmente, utilizando o ectoplasma8 cedido por Ricardinho, que sem 8 - Ectoplasma: foi esse o nome que, em 1903, o cientista Charles Richet deu à substância fluídica de aparência densa, esbranquiçada, que emana do corpo dos médiuns de efeitos físicos, principalmente nos fenômenos de materialização. Também Willian Crookies constatou o fenômeno nas experiências com o espírito Kaüe King. (N.E.) 28 ETERNAMENTE AMIGOS saber era médium de efeitos físicos, pegou o copo e o arremessou longe, com força, fazendo-o ir se estraçalhar no barzinho do salão, quebrando outros copos. A turma saiu correndo do salão assustada com o evento. Apenas Ricardinho ficou, olhando o barzinho onde foi parar o copo. Ficou ali por alguns momentos, pensativo. - Idiota, só consegue fazer isso - disse baixinho saindo do salão. - Quero ver vocês grudados nesta peste vinte e quatro horas por dia. Não quero que dêem trégua a ele de forma alguma - disse Zolthan com ira, apontando para a porta do salão. - Quando ele estiver em nossas mãos, aí verá do que sou capaz. Vamos, grudem nele! Depois desse dia, a vida de Ricardinho se transformou radicalmente. Seus amigos se afastaram, pois não conseguiam mais ficar perto dele por causa dos espíritos que os repeliam de todas as formas. Seus pais, em virtude das constantes brigas, se evitavam e conseqüentemente o evitavam também. Ele vivia pelos cantos da casa. Parou até de ir ao colégio. A diretora, que era conhecida da família, constatando a falta do rapaz, mandou um aviso para os pais. Isso depois de duas semanas de ausência. Durante esse período, Tadeu e sua turma não desgrudaram dele, falando em seu ouvido, influenciando-o: "sou um imprestável", "minha família não presta", "todos deveriam morrer", "meu pai é um bandido, não merece viver", "minha mãe é uma alcoólatra, não fará falta a ninguém" e assim por diante. Em razão de sua fragilidade somada à mediunidade aflorada, porém sem controle e sem conhe- 29 ELIZABETE ARTMANN cimentos, Ricardinho ia assimilando aquelas declarações, que eram repetidas até a exaustão. Quando Marcos recebeu o aviso da escola, foi procurar o filho para tirar satisfação. Encontrou-o no salão de jogos, seu canto preferido. - O que está acontecendo com você? - foi logo perguntando. - Pago uma fortuna para aquela escola e você não aparece para estudar? Está achando que sou algum trouxa? Se não quiser estudar, avise logo, assim não preciso gastar minha grana com você. Já não basta a sua mãe, que só sabe gastar, agora vem você com frescura para o meu lado? you dar a você mais uma semana para se decidir e depois conversaremos novamente. Se você quer ser um imprestável para a vida toda, o problema é seu. Não you sustentar nenhum vagabundo. Entendeu? Ricardinho, que estava sentado no chão, olhou-o com desprezo. Tadeu aproveitou para atiçar ódio no rapaz. Disse em seu ouvido: "Filho de peixe, peixinho é. Se você pode ser ladrão trambiqueiro, por que eu não posso?" Ricardinho captou e repetiu: - Filho de peixe, peixinho é. Se você pode ser ladrão, trambiqueiro... Ricardinho não conseguiu terminar a frase, pois seu pai lhe deu um tremendo tapa no rosto. O rapaz acabou deitado no chão com um corte na boca, sangrando. - Nunca lhe dei liberdade para falar assim comigo. Se quer levar uma surra, é só me provocar novamente. Ricardinho levantou a cabeça só um pouquinho e olhou para seu pai.Marcos saiu do salão esbravejando. 30 ETERNAMENTE AMIGOS - Você não pode deixar barato. Tem de fazer alguma coisa - disse Tadeu ao rapaz. -Ele não deixará barato - disse Zolthan, que aparecia como sempre do nada, pois conseguia se camuflar na escuridão. - Hoje darei início a minha vingança. - Como? O que estávamos fazendo até agora não era vingança? - perguntou Tadeu. - Não, era só o preparativo. Tadeu entendeu. O ódio que Zolthan sentia levaria muitos sofrimentos para o rapaz. Ricardinho levantou-se, pegou uma garrafa de uísque e começou a se embebedar. Toda a turma de Tadeu fez revezamento para usufruir a bebedeira. Jeremias era o que mais assediava. Queria sempre passar na frente dos outros. Tarde da noite, sob influência de Zolthan, Ricardinho ingeriu uma grande quantidade de bebida e acabou tomando drogas. Dominado pelo álcool e pelo efeito da droga, foi andando sem firmeza até o quarto de seu pai e procurou na cômoda uma arma de fogo que seu genitor mantinha sempre carregada, pois tinha medo dos inúmeros inimigos conquistados. Mal sabia ele que seus piores inimigos já estavam dentro de casa. Ricardinho pegou a arma e ficou admirando por alguns segundos seu brilho. Olhou para seu pai que dormia pesado e saiu do quarto cambaleante. Zolthan não entendeu, pois toda a sua energia estava sendo empregada para fazer com que Ricardinho atirasse no próprio pai. Mas ele simplesmente deu meia-volta, saiu do quarto, sempre com a garrafa na mão, e voltou para o salão de jogos. O que estava 31 ELIZABETH ARTMANN acontecendo? Não conseguia dominar o rapaz. Por que su influência não o atingia? Ricardinho sentou-se no chão e ficou brincando cor a arma. O ambiente fora construído de forma que a acústic não permitia que o som saísse. Ricardinho começou a faze disparos no barzinho, tentando acertar as garrafas. Quand< as balas acabaram, ele se deitou no chão e desmaiou. No plano espiritual, Otavianomantinha-se em prec< pedindo a Deus e aos espíritos superiores que impedissen Zolthan de atingir seu objetivo, afinal Ricardinho era inocente Nesse instante uma luz envolveu Ricardinho, impedindo que Zolthan continuasse a manipulá-lo como um fantoche. Não era isso que Zolthan queria. Ele desejava fazei com que o garoto assassinasse seus pais, mas alguma coisa o impedia de conseguir seu intento. Parecia que havia uma força protegendo o garoto. Quando o viu desmaiado, saiu da casa raivoso e foi em direção à prefeitura. Lá se encontrou com três espíritos trevosos que faziam "plantão" naquela repartição pública. - Vocês já fizeram o que mandei? -perguntou Zolthan com voz autoritária. - Sim, está tudo resolvido. Pelo visto, seu primeiro plano não funcionou, não é? - perguntou o que parecia ser o líder, com um ar de sarcasmo. - Mande-os agora para a casa. Temos que resolver isso ainda hoje. Zolthan sabia que não seria fácil fazer com que Ricardinho executasse seu plano, por isso não facilitaria as coisas 32 ETERNAMENTE AMIGOS para ele. Ele também sabia da vida desregrada do pai dele e procurou alguém que fosse seu inimigo mortal. Encontrou um que era dono de uma casa noturna grã-fina onde funcionava um ponto-de-venda de drogas. Marcos fazia vista grossa, Oem dinheiro. Tomado pela ambição, porém, Marcos queria sempre mais e mais, e o dono, Clodoaldo, achou que seria melhor fechar a torneira. Sob a influência dos espíritos trevosos, contratou dois matadores para resolver o problema. Quando há afinidade, as coisas transcorrem naturalmente. Os três espíritos já vinham trabalhando a cabeça dos dois delinqüentes, pessoas fáceis de serem manipuladas, e a afinidade tornava isso muito mais fácil. Assim, quando Clodoaldo os chamou à boate para traçar o plano de ação, os dois já estavam sob influência dos espíritos. Em troca de uma certa soma de dinheiro, os dois deveriam entrar na casa e liquidar quem lá estivesse. Não poderiam deixar testemunhas. Naquela noite fatídica, não foi difícil para os dois delinqüentes entrarem na casa. Apesar de ter muito dinheiro e consciência do perigo que havia, Marcos era negligente quanto à segurança. Os dois rapazes entraram na casa com facilidade, forçando o portão automático. Rapidamente encontraram Marcos e a esposa e não perderam tempo. Com disparos certeiros, deixaram os dois sem vida. Procuraram pela casa e nas outras dependências. Os empregados não dormiam no local, por isso não encontraram mais ninguém. Não lhes ocorreu, em virtude do nervosismo, procurar no salão de Jogos. Saíram sem ser vistos. 33 ELIZABETE ARTMANN Os vizinhos, ao ouvirem os disparos, chamaram a polícia, que em pouco tempo estava na casa. Na revista, encontraram Ricardinho ainda inconsciente com uma arma de fogo na mão. Devido à grande quantidade de álcool .. de drogas ingerida, o rapaz já entrava em processo de coma. Os policiais o conduziram imediatamente a um hospital, para desintoxicação. Por ordem do delegado de plantão, um policial foi designado para ficar em companhia do rapaz, para que, assim que possível, ele respondesse a algumas perguntas, a fim de esclarecer o ocorrido na casa. 34 \ OIS Jaiminho estava na lanchonete da faculdade aguardando a aula seguinte e aproveitou para dar uma olhada no jornal, a fim de se inteirar das notícias. Fazia o curso de zootecnia, pois os animais eram sua vida. Foi quando sua colega Evelise chegou de mansinho por trás, tapou seus olhos com as mãos, numa brincadeira bem conhecida, e fez a clássica pergunta: - Adivinha quem é? - Se eu não conhecesse sua voz, seria bem difícil adivinhar - respondeu o amigo. - Mas tem que dizer - insistiu ela. - É a Lise - disse Jaiminho só para não contrariá-la. Cumprimentaram-s e com os tradicionais beijinhos no rosto e sentaram-se, entabulando logo a conversa. - Você não veio na primeira aula. Aconteceu alguma coisa? - perguntou o rapaz. - Problemas, mas nada muito preocupante. E você? Tudo bem? - Sim, está tudo ótimo. Estava dando uma olhada no J°rnal e me deparei com esta notícia aqui. Fiquei pensando o 35 ELIZABETH ARTMANN que poderia provocar tamanha tragédia - disse Jaiminho mostrando o jornal para a amiga. - "Importante executivo da prefeitura local e esposa assassinados enquanto dormiam. O filho único do casal é encontrado desmaiado com arma de fogo na mão." Nossa! O que você acha que pode ter acontecido? - questionou ela, espantada. - Invigilância! - respondeu o rapaz de pronto. - Entendo o que você quer dizer, mas fico pensando. se uma pessoa ou família não tem hábitos cristãos, não sabe o que significa conduta moral, não tem referência religiosa e desconhece o básico do inter-relacionamento com os espíritos. Ccomo ela pode ser invigilante? Uma pessoa ou família desse tipo não faz idéia do envolvimento que existe entre encarnados e desencarnados - filosofou Evelise, pensativa. - É, você está certa - concordou Jaiminho. - A matéria diz que o pai era um alto funcionário da prefeitura e que havia denúncias de corrupção contra ele. Alguns casos já estavam sendo investigados. Com a sua morte, virá tudo à tona, revelando um mar de lama. A mulher, por sua vez, vivia na "boa vida", sem trabalhar, sem se dedicar a algo construtivo. Com esse quadro, é fácil deduzir que o chefe da casa atraiu para o seu lar espíritos viciosos e que eles acabaram por obsedar o garoto, levando-o a cometer um duplo assassinato. - O que mais diz a matéria? - perguntou a garota. - Diz que o garoto foi submetido a exames médicos e se encontra em estado de coma, entre a vida e a morte, por 36 ETERNAMENTE AMIGOS ;ausa da bebida e das drogas ingeridas. A polícia não sabe x linda se foi ele mesmo que matou os pais. E triste ver uma àmília ser destruída dessa forma - disse Jaiminho fechando (jornal e o colocando de lado. Por alguns minutos ficaram em silêncio, pensativos, neditando sobre o assunto. Jaiminho e Evelise além de estudarem juntos faziam >arte de um grupo de estudos numa comunidade espírita. Eles : mais alguns jovens estudavam os mais diversos temas igados a questões espirituais. - Bem, já está na hora da aula. Vamos indo? - disse aiminho pegando suas coisas e sendo seguido pela sua colega. No dia seguinte, um sábado, o grupo se reuniu. Eles •ostumavam se encontrar na parte da tarde, pois muitas 'ezes o assunto era tão envolvente que a reunião se estendia ité a noite. O grupo começou a chegar por volta das duas horas, ira uma alegria só. O grupo era coeso, a amizade ali era incera, e todos se sentiam felizes com aqueles encontros, ia verdade, eles aguardavam o sábado com muita expectativa. )s abraços efusivos emanavam energias amorosas no grupo, svando paz e serenidade a todos. Depois de se cumprimenarem, Luiz, o dirigente, tomou a palavra, dando início ao ncontro daquela tarde. - Já que estamos todos aqui, em corpo e alma, felizes °mo pude notar, vamos iniciar nossa reunião. Na semana 'assada, combinamos que cada um de vocês pesquisaria urante a semana determinado assunto para hoje estudarmos 37 ELIZABETH ARTMANN e vermos o que o Espiritismo nos diz a esse respeito. Vamos gravar nossas conversas. Para isso trouxe este gravador. Assim poderemos depois separar as partes interessantes e transcrevê-las. Pensei até em enviar os resultados de nossas conversas aos jornais espíritas, para possíveis publicações. Jaiminho, faça uma prece para darmos início a nossa reunião, com o apoio dos amigos espirituais. - Deus Pai, Mestre Jesus, amigos espirituais das esferas superiores, pedimos seu auxílio para que possamos usufruir o máximo do intelecto que possuímos no momento, na expectativa de adquirirmos maiores conhecimentos e assim galgarmos mais alguns degraus em nossa evolução. Obrigado. Luiz, o líder do grupo, professor, era urna pessoa feliz, com a vida tranqüila. Sabia desde cedo que, quando plantamos coisas boas, colhemos coisas boas. Naquele momento, ele desfrutava de uma tranqüilidade pouco comum, um privilégio que poucos têm. Na escola, além de professor, era conselheiro. Era procurado para tratar dos mais variados assuntos, desde questões familiares até sentimentais. Na empresa em que trabalhava não podia ser diferente. Líder nato, era admirado pelos outros funcionários e pelos clientes, pois conseguia transmitir sua filosofia de vida, sua idéia de progresso material aliado ao progresso espiritual. Ele procurava falar sempre aos seus colegas que é muito importante envolver a empresa no mundo dos espíritos, fazer uma parceria sadia. A empresa que produz um produto útil à sociedade, que vai levar algum benefício a alguém, estará assessorada por espíritos bons, pois eles possuem interesse 38 ETERNAMENTE AMIGOS no progresso da humanidade. Por outro lado, a empresa que produz um produto que não acrescenta nada, que tem como único objetivo lucrar ou deturpar pensamentos, levando pessoas ao vício, aos pensamentos baixos, será assessorada também por espíritos, só que por espíritos inferiores. Esses espíritos irão fazer de tudo para atrapalhar a todos os que fazem parte dessa empresa, irão fazer de tudo para prejudicá-la. Por essa razão, Luiz dizia que fazer coisas úteis, auxiliar o próximo e preocupar-se com o social são atitudes sadias e bem-vistas pelos espíritos superiores, que não medirão esforços para auxiliar. - Muito bem - disse Luiz. - Antes de iniciarmos nossa reunião, gostaria de dar uma palavrinha sobre a prece. A maioria das pessoas acredita que fazer uma prece é apenas um ato religioso. Na verdade, essa idéia foi basicamente imposta pela Igreja. Jesus, porém, não criou nenhuma religião; ao contrário, era desejo dele que os seus ensinamentos constituíssem filosofia de vida e que a prece nada mais fosse que uma conversa com Deus. Pensar em Jesus é pensar em um amigo ou em um irmão maior, que zela por seus irmãos menores. Bem, vamos ver o que vocês trouxeram para estudarmos. Você, Solange, tem alguma coisa? Viu algum assunto que poderíamos analisar? - Vi, sim - disse Solange abrindo uma pasta. - Pensei que deveríamos meditar um pouco sobre essa onda de violência que envolve os estudantes americanos. Fiquei muito triste com o massacre que houve em uma escola, em que dois garotos tiraram a vida de vários colegas. 39 ELIZABETH ARTMANN - Realmente, é um assunto preocupante - disse Luiz. - Mas continuemos. E você, Tizuco, trouxe alguma coisa? - Por incrível que pareça, pensei no mesmo assunto que a Solange pensou. Acho que vimos a mesma notícia e acabamos ficando sensibilizadas por ela. - Não tem problema. E você, Soraia, tem alguma sugestão? - Tenho, sim, mas prefiro ouvir a sugestão de todos antes de dizer a minha. - Está bem. Jaiminho, tem alguma coisa? - Tenho, e só ontem pude ver. A Lise estava comigo. - Jaiminho tirou o jornal do dia anterior da mala e mostrou para Luiz. - Veja o caso desse rapaz. Não sei o que aconteceu, mas fiquei profundamente preocupado com ele. É como se eu tivesse alguma coisa a ver com o assunto, alguma ligação. Tive muita dificuldade para dormir esta noite. Não parava de pensar no garoto. Luiz leu a matéria e em seguida a passou para os demais. - Aí temos um exemplo clássico de uma forte obsessão culminando com tragédia - disse Luiz. - Como o Jaiminho está bastante envolvido com esse caso, podemos estudá-lo, se todos concordarem. Todos concordaram. - O que você tem em mente, Jaiminho? - perguntou Luiz. - Eu não sei se seria o caso, mas gostaria de fazer uma visita a esse rapaz e, se possível, tentar ajudá-lo, tentar descobrir o que há por trás de tudo isso. Tenho uma forte impressão de que eu faço parte da história dele. Só não sei como isso pode ser possível. 40 ETERNAMENTE AMIGOS - Vejam, é apenas uma suposição - disse Luiz tentando ichar uma resposta para o que estava acontecendo. - Pode ;er que você e esse rapaz tenham se conhecido ou mesmo enham sido muito próximos em outras vidas e que estejam afastados por algum tempo. Quando você leu a notícia, o elo jntre vocês despertou. - Então eles podem ter vivido juntos em outra encarlação? - perguntou Solange. - Pode ser uma alternativa. - Vamos supor que isso seja verdade, ou seja, que eles viveram realmente juntos em outra encarnação. O que os levou a se separar? - perguntou Tizuco. Todos estavam atentos, pois o assunto era muito interessante. O que faz com que dois espíritos amigos se separem e sigam caminhos tão diferentes? Se Jaiminho estava num caminho bom, freqüentava bons ambientes, era estudioso, preocupava-se com coisas sérias, como poderia seu amigo estar num caminho tão tortuoso, cheio de problemas, envolvido com espíritos vingativos, drogas e bebidas alcoólicas? - Isso exige um exame espiritual mais acurado - disse Luiz. - Vamos precisar pesquisar, conversar muito com o rapaz e, se possível, levá-lo ao centro espírita, para assistência espiritual. Somente com o tempo iremos descobrir a verdade. - Como faremos tudo isso se ele está em coma? - questionou Cláudio. - Teremos de esperar os acontecimentos - disse Luiz, inspirado. - Se for constatado que ele é o assassino, os advogados dele vão requerer privilégios por ele ser réu primário e 41 ELIZABETH ARTMANN vão alegar distúrbios mentais. Se for condenado, irá cumprir pena em um hospital psiquiátrico, e a lei dos homens se fará cumprir. Se descobrirem que ele é inocente, ficará mais fácil para ele e para nós. Eu não vejo de outra forma. Precisamos acompanhar os acontecimentos, verificar onde ele está e manter contato com o delegado. Mas digo desde já que será um trabalho difícil e de longo prazo. Segunda-feira tenho o dia livre. Tentarei descobrir onde ele está hospitalizado e procurarei pelo advogado dele, para acompanharmos de perto os acontecimentos. Algum de vocês quer ir comigo? - Eu irei - disse Jaiminho, eufórico. - Terei somente uma aula na segunda. Posso pegar a matéria depois com a Lise - disse olhando para a amiga e dando uma piscadela. Evelise fez uma careta, mas logo sorriu, concordando com o amigo. A tarde transcorreu com muita conversa, harmonia e alegria. Encerraram a reunião com uma prece e saíram todos juntos. No domingo, Luiz saiu cedo para ir ao centro espírita, pois naquele dia era sua vez de ministrar a palestra aos assistidos da casa. Aos domingos, vários voluntários atendiam famílias carentes, dando passes e tratamentos espirituais. Tudo transcorreu com muita paz, sem nenhum fato novo, a não ser o aumento de pessoas que procuravam o Centro pela primeira vez, em busca de socorro espiritual e material. Esse fato deixou Luiz levemente preocupado, pois significava que as dificuldades estavam aumentando para a população. Luiz orou uma prece e recobrou quase imediatamente a paz interior. 42 ETERNAMENTE AMIGOS Antes de deixar o Centro, passou na livraria, comprou um livro recém-lançado e despediu-se dos amigos, indo para casa. Chegando em casa, encontrou seu filho Paulinho brincando no jardim com uma pistola improvisada, fazendo de conta que atirava em alguma coisa.9 - O que está fazendo, filho? - Estou brincando de policial do futuro - respondeu o garoto com a voz arfante, pois certamente havia corrido muito. - Tenho uma novidade para você - disse Luiz fazendo ar de mistério. - Novidade? Vai contar? - perguntou o garoto curioso. - Venha cá. - Luiz chamou seu filho, agachou-se na sua frente e olhou em seus olhos claros e atentos, cheios de curiosidade. - Preste bem atenção no que you falar e pense bastante sobre o assunto, combinado? - Combinado. Agora conte a novidade. - No futuro não haverá policiais nem bandidos disse Luiz. O garoto ficou boquiaberto. Luiz levantou-se e seguiu em direção à casa, deixando Paulinho no jardim. Ao entrar, deu um beijo na esposa, que preparava o almoço. - E aí? Foi tudo bem lá no Centro? - perguntou ela. 9 - As armas de brinquedo, sendo ou não imitação das verdadeiras, representam um meio de indução à violência. O manuseio de um brinquedo como esse por crianças cujos princípios morais e espirituais ainda estão em formação acarretarão deformações perigosas no seu caráter, sobretudo se considerarmos a questão do ponto de v'sta do espírito, que no caso pode muito bem consolidar lembranças de vidas pretéritas Recomenda-se aos pais sempre apresentar explicações convincentes à criança (veja O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. 9, "Intervenção dos Espíritos no ^undo Corporal" e Terceira Parte, cap. 6, "Lei de Destruição", Petit Editora). (N.E.) 43 ELIZABETH ARTMANN - Sim, foi tudo ótimo. Só que havia muita gente procurando por auxílio - respondeu Luiz pegando o jornal para dar uma espiada nas notícias do domingo. - Parece que são gerais essas dificuldades, não é? disse Celene, a esposa. - Ontem encontrei a Izildinha e ela comentou a mesma coisa: muita gente buscando auxílio e as colaborações diminuindo. - Por enquanto dá para ir levando, mas se... - Pai, pensei naquilo que você falou, mas não entendi - disse Paulinho entrando na cozinha. - Venha cá e sente-se nesta cadeira que eu explico direitinho para você - disse Luiz amorosamente. O garoto sentou-se cruzando os bracinhos sobre a mesa e apoiou o queixo sobre eles, esperando as explicações. - No futuro - começou Luiz a explicar - não haverá policial porque não haverá bandido e, se não há bandido, não há motivo para ter policial, não é? - Como não vai ter bandido? - perguntou o garoto, incrédulo. - Acontece que no futuro as pessoas não serão egoístas como são agora. Elas respeitarão as outras pessoas, conhecidas e desconhecidas. Não haverá roubos e não faltará nada a ninguém, porque aquele que tiver demais irá dividir com aquele que tiver de menos. Não existirão pessoas más. Todos procurarão fazer o bem. Está entendendo? O garoto levantou uma das mãozinhas e fez um movimento de mais ou menos, enquanto fazia um biquinho com a boca. 44 ETERNAMENTE AMIGOS - Quer dizer que a polícia vai prender todos os ban- s didos? E por isso que não vai existir mais? - perguntou ele. - Não, não é bem assim - Luiz deu risada com a conclusão do filho. Celene acompanhava a conversa dos dois e se divertiu também com a conclusão do garoto. - No futuro - continuou Luiz - o planeta Terra terá que evoluir. Ele deixará de ser um planeta de expiação e provas e passará a ser um planeta de regeneração. - Pai, o que é expiação e regeneração? - Expiação significa consertar uma coisa que estragou ou não fez direito e regeneração é se recompor dos erros cometidos. Entendeu? -Não. Luiz olhou para Celene, que se divertia com a dificuldade do marido de esclarecer o filho. - you tentar explicar melhor. Expiação é quando você faz alguma coisa errada e depois tem que fazer de novo, até acertar. Por exemplo, se você nesta vida fizer muitas coisas erradas, ou seja, for uma pessoa má, não ajudar ninguém etc., você terá que arrumar tudo, porque senão o seu espírito não evoluirá. Assim, na próxima encarnação você voltará para tentar arrumar tudo de novo. Mas, como não somos muito espertos, arrumamos umas coisas e desarrumamos outras. Aí temos que voltar um monte de vezes para aprender. Está entendendo agora? - Mais ou menos. E os bandidos? - insistiu o garoto. - Está bem. Como estava dizendo, o planeta Terra terá evoluir. Então aquelas pessoas que não se preocupam 45 ELIZABETE ARTMANN com as outras, fazem maldades, destroem a natureza e só pensam em ganhar dinheiro serão levadas para outro planeta que está começando e irão reencarnar como gente das cavernas. No nosso planeta só ficarão aquelas pessoas que procuram auxiliar as outras e só pensam no bem. É por isso que não existirá mais bandido aqui. - Puxa, que bom! Não é, pai? - Chega de conversa que o almoço já está pronto. Paulinho, vá lavar as mãos - disse Celene colocando os tj pratos e os talheres na mesa. ] Paulinho saiu correndo em direção ao banheiro, enquanto Luiz foi auxiliar a esposa a colocar a comida na mesa. Almoçaram felizes e à tarde saíram para um passeio. i Ires 1Í /, Na segunda-feira de manhã, conforme combinado, Luiz se encontrou com Jaiminho e juntos foram até a delegacia procurar informações. Com muito custo, conseguiram conversar com o delegado, que informou onde Ricardinho estava hospitalizado. Rapidamente eles se dirigiram para lá. - Pois não? O que desejam? - perguntou a enfermeira que estava na recepção do hospital. - Viemos falar com o doutor Osvaldo sobre o rapaz que está em coma - disse Luiz. - Por acaso vocês têm hora marcada? - Não. Viemos direto da delegacia e gostaríamos muito de falar com ele. Seria possível a senhora conseguir para nós alguns minutos? - solicitou Luiz. - you ver se ele pode atendê-los. - Obrigado - disse Luiz. - Qual o grau de parentesco de vocês com o rapaz? - Nenhum - respondeu Jaiminho. - Então são amigos dele? - Também não. 47 ELIZABETH ARTMANN A enfermeira ficou olhando para os dois, afinal era algo inusitado. - Aguardem um pouco que informarei o doutor Osvaldo - disse finalmente a mulher já com o interfone na mão. Enquanto ela falava no aparelho, aproximou-se de Luiz e Jaiminho um sujeito com aspecto desleixado. - Não pude deixar de ouvir a conversa - disse ele. Vocês não são mesmo amigos do almofadinha? - Desculpe - disse Luiz. - Posso saber quem é o senhor? - Péricles, investigador da polícia. Estou de plantão vigiando o garoto. Mas vocês são ou não são amigos do almofadinha? Péricles era daquele tipo de pessoa que desperta antipatia logo no primeiro contato. Barba por fazer, camisa amarrotada saindo da calça, forte cheiro de cigarro e um jeito debochado de falar. - Asseguro-lhe que não conhecemos o garoto. Estamos aqui para ajudá-lo, e nada mais. - Ajudar? O que vocês vão ganhar com isso? - Não estamos preocupados em ganhar nada. Quem sabe ganharemos um amigo, não é? Péricles, ao ver que não teriam informação nenhuma para fornecer, deu-lhes as costas e não disse nada. Voltou para o banco e pegou o jornal que estava lendo. Luiz olhou para Jaiminho, que encolheu os ombros, estranhando a falta de educação do policial. A enfermeira, ao ver que tinham terminado a conversa, indicou o consultório do doutor Osvaldo. 48 ETERNAMENTE AMIGOS Os dois seguiram para lá e bateram na porta, que estava semi-aberta. - Entrem e sentem-se - disse um senhor que estava atrás de uma mesinha. - Em que posso servi-los? Pelo que dona Salete me informou, vocês são conhecidos do paciente em coma, não são? - Não - responderam os dois juntos. - Não? Se vocês não são parentes, amigos nem conhecidos, então por que estão interessados no caso? - Ficamos sabendo pelo jornal o que aconteceu com ele. Como somos espíritas, gostaríamos de acompanhar o caso de perto e estudar'o assunto. - Espíritas? Não sei o que vocês poderiam estudar nele - disse o médico sem muito interesse. - O senhor conhece alguma coisa sobre Espiritismo? - perguntou Luiz. - Espiritismo não é aquele negócio em que fica um monte de gente se contorcendo enquanto outros tocam tambor, fazendo trabalhos? - Não, é totalmente diferente. Ao contrário do que muita gente pensa, não fazemos rituais nem "trabalhos". Espiritismo é uma doutrina espiritualista que abrange ciência, filosofia e religião, que procura o aperfeiçoamento do ser humano a partir dos ensinamentos de espíritos elevados e também dos ensinamentos de Jesus. Nosso interesse no caso do rapaz é justamente a parte científica, pois acreditamos que existe uma forte relação entre ele e o mundo espiritual, o Principal causador da tragédia - explicou Luiz. 49 ELIZABETH ARTMANN - Interessante. Então vocês acham que ele tem parte com o demônio? - Não, porque não existem demônios. O que existem são espíritos desequilibrados, sem conhecimento, ou maus que vivem atormentando os encarnados. - Está bem. O que posso fazer por vocês? - perguntou o médico. - Gostaríamos de ter acesso a ele assim que possível, para conversarmos e tentarmos descobrir o que realmente aconteceu - disse Luiz. - Neste momento não será possível. Terão que esperar que ele se restabeleça. De qualquer maneira, teriam que aguardar a polícia fazer o interrogatório para averiguações. - Por falar nisso, como estão as investigações? - Não sei de nada. E o policial que está aí parece que sabe menos ainda. - Pela experiência do senhor, quanto tempo ele ficará assim? - perguntou Jaiminho. - Não tenho muita certeza, porque cada caso é um caso. Teremos que aguardar. - Acha que ele ficará bom? - perguntou Jaiminho. - Tem grandes chances. - Podemos procurar o senhor depois que ele se recuperar? - perguntou Luiz. -Claro! Despediram-se do médico e se retiraram do consultório. Enquanto caminhavam em direção à saída, Luiz viu um senhor conversando com a enfermeira. Ela apontava para 50 ETERNAMENTE AMIGOS eles, enquanto o senhor os observava. Luiz achou estranho e foi na direção deles. - Algum problema, enfermeira? - perguntou Luiz. - Não, é que este senhor também está procurando pelo rapaz e eu lhe disse que vocês vieram atrás do doutor Osvaldo para falar sobre o caso. Luiz olhou para o senhor com mais atenção e estendeu-lhe a mão. - Muito prazer. Meu nome é Luiz. E este é o Jaiminho. Em que posso ajudá-lo? - O prazer é todo meu. Eu me chamo Euclides e sou tio do rapaz. Moro em outra cidade e, assim que soube, vim o mais rápido possível. Mas, conforme informações da enfermeira, não é possível fazer nada no momento, a não ser aguardar. Falarei apenas com o médico. Quero que ele não meça esforços para ajudar meu sobrinho. - Eu lamento muito o ocorrido. Afinal, foi uma tragédia. - Eu também lamento. Há muito tempo não falava com meu irmão porque não aprovava a forma como ele levava a vida. Preocupava-me muito com o futuro do garoto, de quem gosto como se fosse meu filho. - Dizem que os tios são como segundo pai. Se ele se safar dessa, o senhor poderá cuidar dele, não é? - Isso é verdade, mas nessas condições é um tanto triste. - Às vezes, o mal vem para o bem - disse Luiz tentando confortar Euclides. - Não podemos ignorar os desígnios do Pai nem duvidar do que Ele nos reserva, porque Ele sabe e vê. 51 ELIZABETH ARTMANN - Senhor Luiz, o senhor me surpreende. Aparenta ser bem jovem ainda, mas parece ser uma pessoa com grande cabedal de conhecimento e experiência. - O senhor se engana. Sou uma pessoa simples. Onde o senhor está hospedado? - Luiz mudou o rumo da conversa porque sabia que elogios são armadilhas do orgulho. Além disso, sabia que não era nada daquilo. - Estou no Hotel Centúria. Sabe onde fica? - Sei, sim. Podemos voltar a conversar? Aqui está o meu cartão. - Com certeza - confirmou Euclides pegando o cartão. - Então já vamos indo. Até logo. -Até. Já fora do hospital, Jaiminho finalmente se manifestou. - Enquanto vocês conversavam, tive a impressão de que eram antigos conhecidos, por isso não interferi na conversa. - É verdade. É tão gratificante quando isso acontece, não é? E seguiram em direção ao carro de Luiz. Euclides também conseguiu alguns minutos com o doutor Osvaldo e deixou as coisas encaminhadas. Assim que Ricardinho se recuperasse, seria internado em uma clínica de desintoxicação. 52 Quatro Era noite alta. No hospital a movimentação do dia havia diminuído. Escutavam-se somente o ronco de alguns enfermos e de vez em quando o baralho de páginas do jornal que Péricles insistia em ler. Os quartos estavam superlotados. Num deles, atado a aparelhos, estava Ricardinho, ainda em coma. Seu espírito estava ao lado do leito, agachado, olhando pela janela do quarto com o olhar petrificado. Jeremias dormia tranqüilamente no corredor, pois no ambiente dos quartos onde se encontram os doentes há proteção de espíritos socorristas, que mantêm a ordem, evitando a interferência de espíritos desordeiros. Desde o fatídico dia, ele não deixara mais o rapaz. Obedecendo às ordens de Zolthan, grudou no jovem como um carrapato, tomando totalmente as rédeas da situação. Ricardinho vivia agora sob vigilância de Jeremias. Próximo a Ricardinho estava outro espírito, com semblante calmo, mas que deixava transparecer certa tristeza. Era Otaviano, o espírito protetor de Ricardinho, amigo de 53 ELIZABETH ARTMANN tantas outras encarnações. Ele sabia do gênio forte do amigo e preocupava-se, pois tudo que ele havia planejado tinha dado errado. Compromissos assumidos infelizmente eram compromissos arruinados. Recordava da época em que Ricardinho programava sua reencarnação naquela família com entusiasmo e fazia planos de auxiliar Marcos, de fazê-lo vencer na vida e alcançar o sucesso. Contudo, seu pai foi envolvido pela ilusão do dinheiro fácil, atraindo para si e para sua família entidades inferiores, que acabaram destruindo sonhos e projetos. Mas quem mais preocupava Otaviano era Zolthan, espírito vingativo e com poderes que já fora amigo de ambos. Tantas encarnações haviam se passado e agora ele surgia com essa cobrança. E, pior, cobrava da pessoa errada. Para completar, vinha com uma ferocidade assustadora. Sua mente regrediu para tempos remotos, para uma Cruzada. Estavam todos juntos, eram jovens, faziam planos para o futuro quando aquele terrível incidente que resultou em tanto ódio ocorreu. Se pelo menos tivesse conseguido na época esclarecer os fatos, não deixando o tempo passar... mas não foi possível. Esse amigo foi levado por entidades inferiores para um local onde foi mantido como escravo por muito tempo. Otaviano e seus amigos ainda tentaram ajudá-lo várias vezes, mas não obtiveram êxito. Depois de se libertar de seus algozes, Gabriel - este era o nome de Zolthan - continuou isolado. Seu ódio cego começou a levantar uma barreira entre ele e seu passado. Só tinha um objetivo: vingar-se daquele que o traiu. E assim ele 54 ETERNAMENTE AMIGOS alimentou esse desejo por vários séculos. Só que estava jogando todo o seu ódio sobre um inocente. Mergulhado em suas recordações, Otaviano aguardava Ricardinho recobrar um pouco da lucidez para tentar conversar com ele. Mas o rapaz estava transtornado, só ficava olhando as estrelas através da janela, com o olhar vago. Otaviano deu-lhe passes e Ricardinho adormeceu. Seu espírito se desdobrou com dificuldade, cambaleando, e Otaviano apressou-se em ampará-lo. Quando Ricardinho tomou ciência da situação, logo sentiu o abraço amoroso de Otaviano. Abraçou-o forte e começou a chorar feito criança. Otaviano respeitou o desabafo do amigo e manteve o abraço por longos minutos. - Desculpe, amigo - disse Ricardinho, enxugando as lágrimas do rosto. - O que é isso? Você não tem nada do que se desculpar - disse Otaviano, tranqüilizando-o. - Bondoso como sempre. Não mereço um anjo como você para me acompanhar. Sou um derrotado e estraguei tudo - disse Ricardinho baixando a cabeça, envergonhado. - É por isso que é difícil a evolução. Acertamos umas e erramos outras. - Otaviano tentou reconfortar seu amigo alisando seus cabelos loiros desarrumados. No fundo do seu íntimo sentia remorso, afinal aqueles acontecimentos com Ricardinho eram culpa sua, apesar de serem conseqüência de unia ação inconsciente e sem controle acontecida muito tempo antes. Ele, sim, tinha débitos. - Estou tão arrasado. Como you superar essa crise? 55 ELIZABETH ARTMANN - Estarei ao seu lado, sempre, auxiliando-o. Prometo para você. - Estou tão confuso. Vejo inimigos de tempos antigos vindo me cobrar coisas das quais não me recordo. Eu não sabia que ainda tinha débitos tão grandes. Pensava que tinha resolvido todo o meu passado. - Na verdade, todos temos débitos a ressarcir. No entanto, com este que o está perseguindo, você não tem nada que acertar. Você já resgatou o que tinha que resgatar. A questão é que ele ainda se sente prejudicado e não o perdoou até hoje. - Como estão os meus pais? Sinto que assumi débitos para com eles também e que terei muito trabalho pela frente. - Por que você acha que assumiu débitos com eles? Afinal, você apenas não conseguiu mantê-los no bom caminho. - Vejo imagens em que disparo contra meus pais. Isso não significa débitos? - Essas imagens não são verdadeiras. São projeções de alguém que quer prejudicá-lo. - Então não matei meus pais? - Garanto a você que não. Pode ter certeza disso. Você não precisa se preocupar. - E como estão eles? - Ainda estão perturbados, vagando. Mas acho que em breve poderemos socorrê-los. Não eram más pessoas, só se deixaram levar pelas circunstâncias. A falta de religiosidade e a invigilância proporcionam o envolvimento com espíritos inferiores. Seus pais, além de não se ligarem à ETERNAMENTE AMIGOS religiosidade, se deixaram levar pela ganância e pelos prazeres da vida. - Acho que nunca senti tanta tristeza. Sinto-me arrasado. - Não fique assim. Vamos lutar. Tem muita gente torcendo por você. - tentou animar o amigo. - Seja forte. Estarei mais próximo a você de agora em diante. Prometo. - Entendo sua preocupação, mas, quando voltar ao corpo, continuarei sendo aquele desmiolado de sempre. - Não fique preocupado. Estarei a seu lado, ajudando-o. Vamos descansar agora. Otaviano deu um passe em Ricardinho e o fez adormecer. Assim ele não sofreria influências exteriores de Gabriel. Gabriel presenciava tudo da rua. Otaviano sabia de sua presença e foi falar com ele. - Amigo, gostaria de conversar um pouco com você. Tenho muitas coisas para esclarecer. Venha, vamos conversar. Gabriel olhou-o, deu-lhe as costas e afastou-se na escuridão da noite. Otaviano ficou olhando o vazio onde ele havia desaparecido. Em sua mente veio uma questão que não conseguiu responder: "Por que será que Gabriel não me reconheceu? Pareço ser um completo estranho". Foi despertado de seus pensamentos pela voz suave e sempre meiga de Marina. - O que o amigo faz tão distraído no meio da rua? Otaviano olhou-a com carinho, mas não pôde esconder o olhar de tristeza estampado em seu semblante. Compreendendo o drama, Marina aproximou-se dele e deu-lhe um abraço fraterno e aconchegante, deixando-o com o seu silêncio. 57 ELIZABETH ARTMANN Puxou-o para um banco de jardim próximo e sentaram-se. A rua estava deserta, batia um vento frio. Ficaram ali por longos minutos em silêncio, até que Otaviano resolveu falar, sem muito interesse. - Como foi o socorro que você foi prestar? - Foi bom. A maior parte foi levada para o posto de socorro. Só alguns não conseguimos ajudar - respondeu Marina, pensativa. s - E incrível, não é? Sempre há aqueles que estão ligados à matéria e não querem ser socorridos. s - E verdade. Mas um dia será diferente... Voltou o silêncio. Cada um estava mergulhado em seus pensamentos. Marina pensava no acidente de ônibus em que todos os ocupantes haviam desencarnado. Um grupo de espíritos socorristas, incluindo ela, estivera lá para auxiliar no desligamento dos corpos. Mas ela também estava curiosa pelo caso de Ricardinho. Porém, continha-se em perguntar, pois achava que constrangeria o amigo. Preferiu ficar em silêncio. Otaviano, por sua vez, pensava em Gabriel, em como seria difícil fazê-lo esquecer essa vingança. Mas teria que tentar de tudo até conseguir. Olhou para Marina e encontrou seus lindos olhos com ar de expectativa. - Você quer saber sobre Ricardinho, não é? - Se você quiser falar... - respondeu ela com carinho. Otaviano contou tudo a ela, em detalhes, inclusive sua preocupação com Gabriel. - Se você quiser, posso pedir na colônia autorização para ficar e ajudar você neste momento tão difícil - disse a garota. - Não vai atrapalhar seu trabalho e seus estudos? 58 ETERNAMENTE AMIGOS - No trabalho, posso arrumar um substituto. Os estudos podem esperar. Afinal, para que serve a eternidade, não é? O mais importante no momento é o auxílio ao próximo que temos a oportunidade de fazer... eu acho - concluiu Marina hesitante com esse dilema que surgiu à sua frente. - Pode ser. Mas deixando o estudo para depois você estará adiando sua evolução. - Você está me deixando mais confusa ainda. Já não sei ao certo se é mais importante ajudar ou estudar, e você vem me falar de evolução. - Não posso ajudá-la a solucionar esse dilema agora. Temos que consultar alguém mais experiente que possa nos esclarecer. Enquanto isso, se você quiser me ajudar, eu ficaria "eternamente grato". - O que você tem em mente? - perguntou Marina. - Estou pensando em ir falar com Gabriel. - Não acha perigoso? Não temos experiência suficiente para esse tipo de confronto. Não estamos preparados para isso - argumentou a amiga. - Sei disso, mas devo fazer esse esforço para ajudar Ricardinho. Afinal, eu sou responsável pelo que aconteceu. Ele não pode sofrer por minha culpa. - Se Gabriel era seu amigo, por que razão ele não quis falar com você? - É isso que eu não entendo e quero descobrir - disse Otaviano com firmeza. - Não podemos ir sozinhos. Precisamos pedir ajuda enfatizou Marina. 59 ELIZABETH ARTMANN - Certo. Vamos falar com o Umberto. Eleja participou de muitas missões de socorro. Umberto era líder de um grupo que participava dos trabalhos de um centro espírita. Era um espírito de grande envergadura moral e muito conhecimento. Estava sempre pronto a auxiliar. Quando Otaviano chegou, acompanhado de Marina, ele estava com mais alguns companheiros preparando o ambiente no centro espírita para receber e socorrer espíritos. Estavam colocando os aparelhos que seriam utilizados para coletar ectoplasma. - Olá, amigos. Que bom que vocês vieram. Estamos precisando de ajuda aqui. - Teremos imenso prazer em ajudar. Depois gostaria de pedir um favor a você. - Está bem. Depois conversaremos. Você e Marina poderiam auxiliar o Henrique a organizar a fila dos necessitados? - Claro. Depois de terminada a reunião e arrumado tudo, foram todos para o jardim que ficava nos fundos do Centro. - Pode abrir o coração agora - disse Umberto. Otaviano contou seu drama ao amigo e concluiu: - Queremos ir falar com Gabriel e gostaríamos que você nos ajudasse, acompanhando-nos. Tentar falar com espíritos revoltosos não é uma coisa comum mesmo para espíritos já bem ambientados na espiritualidade, como era o caso de Otaviano e Marina. Gabriel ficava num lugar em que impera o que há de mais baixo no 60 ETERNAMENTE AMIGOS que concerne a relacionamento humano, e não é qualquer um que pode ir lá sem o devido preparo e autorização. É necessário também muito equilíbrio moral, e isso os dois tinham. Somando esse equilíbrio com a proteção de Umberto, eles não correriam tanto perigo. Umberto já tinha conhecimento dos fatos e sabia que Gabriel estava se vingando da pessoa errada, que o culpado pelo que havia ocorrido era justamente aquele que estava à sua frente. Mas ele sabia também que tudo tem um porquê. Ficou pensando por alguns instantes, como se estivesse avaliando a questão. - Vocês sabem que não é seguro ir lá e que também não é recomendado - argumentou Umberto. - Sabemos disso, mas precisamos correr esse risco em benefício tanto de Ricardinho como do próprio Gabriel - disse Otaviano com convicção. - Se a Marina não quiser ir, eu entendo. - Quero ir, sim. É uma oportunidade de aprender mais sobre os trabalhos de socorro. - Está bem. Iremos na quinta-feira - disse finalmente Umberto. 61 cinco Alguns dias haviam transcorrido sem novidades. Ricardínho continuava no hospital. Havia se recuperado bem do coma e já dava sinais de melhora. Jeremias estava sempre observando-o. Não deixava o local para nada. Não que ele não quisesse sair de lá, mas Gabriel assim exigia e ele não tinha coragem de desobedecer a seu mestre. De vez em quando, Tadeu passava por lá, para verificar como estavam indo. Ia sempre com toda a turma, provocando a maior bagunça na entrada do hospital. Os espíritos que lá se encontravam sentiam-se incomodados com aqueles arruaceiros que iam provocá-los. - E aí, Jere? Nosso amigo tem se comportado? Tadeu tinha o hábito de colocar apelido nos outros. - Meu nome é Jeremias e gosto muito dele - reclamou Jeremias. - O que é isso, amigão? Está me estranhando? Sei que você se chama Jeremias, mas prefiro chamá-lo de Jere. É mais carinhoso. Além do mais, já chamei você assim outras vezes : e você não reclamou. Prefere que eu o chame de cachorrinho? • ETERNAMENTE AMIGOS A turma caiu na gargalhada. Jeremias não respondeu. Preferiu ficar quieto, encolhido no seu canto. - Para você ver como sou bonzinho, Jere - disse Tadeu se aproximando dele -, you deixar o Manteiga aqui com seu amiguinho e you levá-lo para dar uma volta na cidade. O que você acha? Os olhos de Jeremias brilharam. Fazia um bom tempo que ele não saía para assediar os viciados. - Você está falando sério? - perguntou Jeremias sem acreditar. - Alguma vez enganei você? you levá-lo a uma boate grã-fina onde rola tudo que você adora. - E se Zolthan aparecer na hora em que eu não estiver aqui? - Não se preocupe com isso. O que o seu mestre quer é que seu amiguinho nunca fique só. E ele não vai ficar só. O Manteiga vai ficar aqui no seu lugar. Zolthan não vai ficar bravo por causa de uma escapadinha. - Então vamos logo. - Jeremias levantou-se rapidinho e se dirigiu à saída. - Jere! - chamou Clóris. - Você não quer sair por aqui como nós? - ela apontou para a parede. Jeremias se divertiu novamente, como acontecera na casa de Ricardinho. Desta vez, no entanto, atravessou a parede.10 10 - Não há obstáculo que o espírito não possa transpor (veja O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. 4, "Pluralidade das existências"). O espírito, porém, precisa libertar-se de suas concepções da vida física para dominar, por exemplo, a invisibilidade °u a intangibilidade (veja O Livro dos Médiuns, segunda parte, caps. 7 e 8, "Biocorporeidade e transfiguração" e "Laboratório do mundo invisível", Petit Editora. (N.E.) 63 l ELIZABETH ARTMANN Um espírito havia observado tudo e, quando o grupo saiu, desaparecendo pela parede, resmungou consigo mesmo: "Esses demônios vêm perturbar o sossego. Ainda bem que eles não mexem comigo. Até parece que não me vêem". Na verdade, aquele espírito julgava estar encarnado ainda e, quando via o grupo de Tadeu, se encolhia todo, escondendo-se. Tadeu o via, mas não tinha interesse por ele. Conforme o combinado, Tadeu levou Jeremias até a casa noturna grã-fina, aquela cujo dono era Clodoaldo, o sujeito que resolveu matar Marcos para "fechar a torneira". Na boate, havia muitos espíritos vampirizando as pessoas que fumavam e bebiam em demasia. Algumas até consumiam drogas discretamente em um canto escuro do ambiente. Em razão de trabalhar para Gabriel, ao negociar com os três espíritos que acompanhavam os assassinos de Marcos, Tadeu conseguiu permissão deles para que Jeremias e os outros "encostassem" em um dos freqüentadores. Jeremias se aproximou rápido da vítima, um senhor de meia-idade que estava cercado de mulheres. Encostaram no homem para sugar a nicotina e o álcool que ele ingeria. Pouco tempo depois, o homem começou a mudar. Sua aparente alegria foi se transformando num claro mau humor. Ele começou a agredir as moças, chamando a atenção dos seguranças da boate. Não demorou muito e a situação ficou insustentável. Ele passou a agredir outras pessoas a sua volta. Jeremias não sabia se controlar. Os outros espíritos, para tirar o máximo proveito do encarnado, controlavam suas investidas, deixando suas vítimas apenas alegres, incentivando-as a ingerir muita bebida 64 ETERNAMENTE AMIGOS alcoólica. Jeremias, porém, não tinha controle e, sem ter consciência, descarregava todo o seu mau fluido no encarnado. Por isso, o homem começou a ficar irritado. Os seguranças, a pedido de Clodoaldo, que já estava irritado, pegaram o homem e o jogaram para fora da boate. Os espíritos que haviam permitido a Jeremias "encostar" foram tomar satisfação com Tadeu. - Era isso que você queria? - perguntou um deles com raiva. - Nossa festa acabou por causa de vocês - disse outro, bravo. - Calma, amigos, eu não... - Tadeu não conseguiu completar porque o terceiro, o maior de todos e o que tinha a cara mais feia, foi para cima dele. Os companheiros de Tadeu, antevendo os acontecimentos, haviam saído rapidamente da boate. Dentro só haviam ficado ele e Jeremias, que ficou sem saber o que fazer. Quando o grandalhão foi na direção de Tadeu, este saiu correndo para a rua. Jeremias ficou paralisado, olhando para aquela figura enorme a sua frente. - Não bata em mim porque senão chamo meu mestre! - Jeremias apelou para a arma que funcionou com Tadeu, tentando intimidar o grupo. - E nós temos por acaso medo de algum mestre, seu traste? - disse o grandalhão esmurrando a cabeça de Jeremias, fazendo-o cair no chão. Os outros espíritos começaram a chutá-lo, enquanto ele gritava: -Zolthan! Zolthan! Zolthan! Zolthan! - Não adianta chamar seu mestre, imprestável. Aqui ele não vai ajudá-lo. 65 ELIZABETE ARTMANN Gabriel não apareceu mesmo para auxiliá-lo. Depois de bater bastante em Jeremias, os espíritos o pegaram e o jogaram para fora da boate. Tadeu e seus companheiros foram ajudá-lo. Todos voltaram para o hospital em silêncio. Eles largaram Jeremias lá e foram embora. Gabriel bem que ouviu os chamados de Jeremias, mas estava mergulhado na solidão. Estava em seu refúgio, nas regiões inferiores da crosta, que antecedem as regiões abismais. Estava em sua fortaleza. Na verdade, era um grande salão com tochas nas paredes e uma enorme cadeira, que ficava no centro do salão, sobre uma plataforma. Era lá que permanecia a maior parte do tempo. Com o olhar vago, olhando para o vazio, remoía seu ódio. Mas a imagem de Otaviano não saía de sua cabeça. Quem era aquela pessoa que lhe dirigiu a palavra com tanta naturalidade, sem demonstrar nenhum medo? Lá no fundo, no subconsciente, ela parecia muito familiar. Era como se fosse um conhecido de outras épocas. Mas havia aquela maldita barreira que o impedia de voltar ao passado para se lembrar. Estava preso no presente. - Mestre Zolthan - disse baixinho um dos auxiliares de Gabriel, tentando não incomodá-lo. - Quem ousa perturbar meu sossego? - gritou Gabriel. - Senhor, perdoe-me, mas tem pessoas de luz aqui querendo falar com o mestre. Eu não tenho condições de mandá-las embora. - O que esses intrometidos querem comigo? Só falta quererem me doutrinar- deu uma risadinha sem muita vontade. - Mande-os entrar e chame alguns guardas por precaução. - Sim, mestre. 66 ETERNAMENTE AMIGOS O auxiliar saiu, e logo em seguida Otaviano entrou no amplo salão, em meio à penumbra. Umberto e Marina com mais dois espíritos ficaram do lado de fora, acompanhados de perto pelos guardiões. Otaviano e Gabriel ficaram por algum tempo se olhando. Gabriel buscava na memória aquele rosto, mas não conseguia ultrapassar a barreira imposta por ele mesmo e fortalecida pelos longos anos de isolamento. Por fim, falou em torn zombeteiro: - Você é mesmo um atrevido, hein? Outro dia não lhe dei atenção, mas assim mesmo veio me incomodar aqui. Afinal, o que pretende? - Agradeço muitíssimo ao amigo por ter me recebido. Meu coração está em pedaços, pois tenho uma dívida com você e com outro amigo. Se ambos não me perdoarem, eu you entender. Há muito tempo eu o procuro para esclarecer um mal-entendido ocorrido num passado distante, mas só agora surgiu uma oportunidade de eu lhe falar, de eu lhe implorar para que me escute. Só assim poderei aliviar este peso que carrego há tanto tempo... - O que é isso? Algum espetáculo? - interrompeu Gabriel. - Você é por acaso um palhaço contador de história? Se for, eu não tenho tempo a perder, e pode sair. - Não, Gabriel, não sou contador de história. Esta história é verdadeira e é sobre nós. Por favor, escute. - Gabriel?!! Você é louco! Meu nome é Zolthan! disse Gabriel gritando e gesticulando. - O meu amigo se chamava Gabriel. Era um valoroso companheiro e poderá voltar a ser. Por favor, consulte sua consciência. 67 ELIZABETH ARTMANN - Guardas, coloquem este maluco para fora! - Eu you embora, mas antes deixe-me dizer que Ricardinho é inocente. Ele não tem culpa do que lhe aconteceu Ele é seu amigo de... - Otaviano não conseguiu concluir Os guardiões fecharam o portão do salão na sua cara. Ele poderia continuar, mas não queria forçar uma situação. Tinha condições de dominar os guardas, mas no momento não era recomendável. Preferiu esperar outra oportunidade. 68 seis Finalmente chegou o dia em que Euclides poderia conversar com seu sobrinho Ricardinho. Conforme o doutor Osvaldo havia dito, a conversa não poderia demorar muito. O médico conseguiu convencer o delegado responsável pela investigação de que seria boa aquela conversa, para fortalecer o garoto, mesmo porque a polícia não poderia evitá-la, já que não havia nenhuma prova conclusiva contra o rapaz e assim ela não poderia indiciá-lo no crime ocorrido nem mantê-lo sob vigilância. - E aí, rapaz? Como está? - perguntou Euclides entrando no quarto. - Tio Euclides, preciso de sua ajuda. - Pois é, garoto, aqui estou eu. Seu pai me proibia de falar com você, dizia que eu era má influência. - Meu pai, o grande doutor Marcos - Ricardinho falava ainda com dificuldade e também com muita tristeza, esforçando-se para não chorar. Euclides abraçou-o, e então ele não conseguiu evitar, começou a chorar copiosamente. 69 ELIZABETE ARTMANN - Que desgraça, não, tio? - disse Ricardmho quando conseguiu parar de chorar. - Sempre alertei seu pai para os negócios que ele fazia e a forma como ele os fazia. Mas ele vivia se vangloriando, dizendo que era muito esperto e que nunca iria acontecer nada com ele. Durante toda a conversa, Gabriel ficou observando-os de longe. Já não estava tão eufórico como antes. As palavras de Otaviano haviam causado efeito. "Será verdade o que aquele sujeito falou?", pensava ele. "Se Ricardinho não é o culpado, quem é?" Jeremias e os outros ficaram ao seu lado. Tadeu estra- nhou o distanciamento e a falta de interesse de Gabriel. Quando estava prestes a vencer a luta, parecia ter perdido o interesse. Mas não tinha coragem de perguntar o que estava acontecendo. Assim que o tio se despediu, prometendo voltar no outro dia, Gabriel virou-se e sumiu, deixando todos sem saber o que fazer. Tadeu e seus amigos deixaram o hospital e caminharam silenciosa e lentamente pela rua, sem destino. Depois de andarem muito, Clóris aproximou-se de Tadeu e disse raivosa: - Qual é, cara? Não estou a fim de ficar zanzando por aí. Quero achar um canto. Tadeu estava irritado. Olhou para Jeremias, que ficava sempre para trás, e disse: - Parece que seu mestre não precisa mais de nós, não é, Jere? Usou, abusou, foi embora e nem agradeceu. Acho ETERNAMENTE AMIGOS bom você cuidar da sua vida. Não quero vê-lo mais perto de mim. Vá, se manda. Jeremias olhou para Clóris e para Beá pedindo ajuda, mas elas se mantiveram firmes, olhando indiferentes para ele, fazendo-o entender que não poderiam mais ficar juntos. Ele se virou e saiu se arrastando, cabisbaixo. Não tinha para onde ir. Aquele pouco tempo de convívio fez com que ele ficasse dependente do grupo. Caminhou um pouquinho pensando no que faria. Foi então que lembrou de Ricardinho. Resolveu ir para junto dele. Jeremias voltou para o hospital. Ricardinho continuava na cama. Dormia profundamente. Jeremias deitou-se numa maça que estava no corredor e dormiu também. Ao deixar o quarto de Ricardinho, Euclides encontrou o investigador encarregado do caso dando instruções a Péricles. Aproximou-se e apresentou-se. - Bom dia, doutor Geraldo. Sou tio do rapaz que estava em coma. Gostaria de saber em que pé estão as investigações. - Prazer, senhor Euclides. Temos conhecimento um do outro mas não tivemos oportunidade de conversar, não é? - É verdade. O senhor tem alguma informação? - Quanto ao seu sobrinho, pode ficar tranqüilo. Ele já está definitivamente fora do rol de suspeitos. No mesmo dia em que aconteceu o incidente, mandei fazer exames balísticos nos projéteis que encontramos no salão de jogos e naqueles que mataram seu irmão e sua cunhada. Descobrimos que eles vieram de armas diferentes. Mas as investigações continuam. Não vamos sossegar até sabermos quem cometeu o delito. 71 ELIZABETH ARTMANN - Mas o senhor não tem pistas do assassino ainda? - Temos alguma coisa, sim, e estamos trabalhando nisso. Não posso adiantar-lhe nada por razões óbvias. Quanto ao seu sobrinho, vamos ter que conversar com ele para sabermos a origem da droga que era consumida na casa. Mas já tenho idéia de onde ela vinha. - Acha que meu sobrinho terá problemas com a Polícia por causa da droga? - Acredito que não. Mas manterei o senhor informado. - Agradeço sua atenção. Despediram-se. Jaiminho e Luiz entraram em contato com Euclides e se informaram dos acontecimentos. Ficaram sabendo para onde Ricardinho seria transferido. Luiz não perdeu tempo. Procurou saber logo se havia entre os médicos algum que era espírita ou pelo menos simpatizante do Espiritismo. Em virtude das providências espirituais - e não da sorte, que não existe -, Luiz não encontrou um médico, mas a equipe inteira, formada por dois médicos e três enfermeiras. A equipe, além de fazer seu trabalho com base nos conhecimentos da Doutrina, fazia reuniões espíritas regulares na clínica, a fim de auxiliar os internados e dar sustentação aos trabalhos. A equipe era constituída por doutor Miguel, doutor Paulo e pelas enfermeiras Sílvia, Fátima e Sandra. Certa manhã, o telefone da clínica tocou e uma das funcionárias atendeu: - Alô? Centro de Recuperação Humberto Siqueira às suas ordens. 72 ETERNAMENTE AMIGOS - Gostaria de falar com o doutor Miguel - disse a voz do outro lado da linha. - Um momento que you transferir. - Obrigado. O telefone do doutor Miguel começou a tocar, e ele logo atendeu. - Alô? Pois não? Doutor Miguel falando. - Doutor Miguel, aqui quem fala é Luiz Alves. Fiquei sabendo que o senhor está cuidando daquele rapaz encaminhado pelo senhor Euclides. É verdade? - Qual o seu interesse nele? - E que faço parte de um grupo de estudos espírita e um dos integrantes ficou muito abalado com a história do rapaz. Ele gostaria de ajudá-lo, pois sente que há uma relação entre ele e o rapaz. Não sei se o senhor entende o que estou falando, mas gostaríamos de fazer uma visita ao rapaz, se nos conceder autorização. - Eu entendo perfeitamente, Luiz, porque sou espírita também. Porém, acho que é muito cedo para tentarmos qualquer coisa com o paciente. Ele ainda está muito abalado. Precisamos esperar alguns dias. Estamos dispensando muita atenção a ele, mas acreditamos que ele está tendo auxílio espiritual também. Uma das enfermeiras é sensitiva e percebe a presença de um bom espírito ao lado dele quase todo dia. Seria bom você vir até aqui com seu amigo para conversarmos e marcarmos alguma coisa para daqui a uma semana. O que você acha? - Ficaremos muito agradecidos. Quando podemos ir? 73 ELIZABETH ARTMANN - Teremos uma reunião na quinta-feira, às oito horas da noite. Se vocês quiserem participar, serão bem-vindos. - Obrigado, doutor Miguel. O senhor foi muito gentil. - Não há de que, Luiz. Então, até quinta. Eufórico, Luiz desligou o telefone, pois não poderia ter sido melhor. Ele ligou imediatamente para Jaiminho, deu a notícia e falou da reunião. Otaviano passou a ficar mais tempo com Ricardinho. Às vezes, Marina aparecia para lhe fazer companhia. - Você já viu Gabriel nas imediações? - perguntou Otaviano. - Sim. Confesso que é uma figura assustadora. - Você reparou alguma coisa de diferente nele? - Não. Tinha alguma coisa que deveria reparar? - Sim. Ele não estava tão provocativo como das outras vezes. - Então você acha que ele está mudando? - Não sei. Ainda é muito cedo para saber. Precisaria ter mais um contato com ele. - E ele? - perguntou Marina apontando para Jeremias, que ficava em frente ao quarto de Ricardinho indolente, alheio ao que ocorria a sua volta. - Parece estar alheio a tudo. - Ele fazia parte do grupo que obsedou Ricardinho a mando de Gabriel. Ao que parece, Gabriel perdeu o interesse pela vingança e o grupo se dispersou. Isso em parte é bom, pois eles ainda não apareceram aqui na clínica. Só ficou esse aí, talvez por falta de lugar para onde ir. - Já tentou falar com ele? - perguntou Marina. 74 ETERNAMENTE AMIGOS - Sim, mas ele só fala em bebida alcoólica e não dá atenção ao que falo. Como não está atrapalhando em nada, s estou deixando-o ficar. E melhor que ele ficar lá fora, à mercê de outros desequilibrados. Aos pouquinhos you tentando conversar com ele. Também you tentar levá-lo à reunião espírita que o doutor Miguel realiza aqui na clínica. Talvez ajude em alguma coisa. - Foi muito bom Ricardinho ter sido mandado para cá, não foi? Com essas pessoas maravilhosas que trabalham aqui, a vida dele não será tão angustiante. - É verdade. Podemos ver o grande trabalho da espiritualidade superior nos ajudando. E nós nem ao menos conseguimos perceber sua grandiosidade - disse Otaviano de tal forma que parecia estar falando para si mesmo. - Você está muito circunspecto hoje, filosofando. O que está acontecendo? - Tenho pensado muito no fato que gerou toda essa tragédia. Fico pensando que o tempo realmente é muito relativo. O incidente aconteceu, pelo tempo da matéria, há muitos anos. Na verdade, há vários séculos. Mas parece que foi ontem, de tão claro que está em minha memória. - Você fica aí viajando no tempo e eu fico aqui, sem entender nada. Quando é que vai me contar o que aconteceu? Otaviano sorriu com a curiosidade da amiga, mas relembrar aqueles fatos era para ele extremamente doloroso. Haviam sido épocas duras. - Desculpe, querida - disse com carinho. - Prometo que em breve lhe conto toda a história. 75 ELIZABETH ARTMANN - Promessa é dívida. O acontecimento fica retido na memória porque precisa ser resolvido. Quando resolver. ele desaparecerá, e você se lembrará disso como coisa do passado mesmo. Por enquanto, faz parte de sua existência. - Seria muito bom me livrar desse peso. - Seria interessante Gabriel participar desse momento. - No dia, o mentalizarei, convidando-o a vir. Espero que sua teimosia não fale mais alto e ele compareça. - Você disse que eram muito amigos. É verdade? perguntou Marina. - Sim, éramos um grupo de quatro. Ele, eu, Ricardinho e Jaiminho. Fizemos naquela encarnação um pacto que não funcionou. Juramos ser amigos para sempre... Marina ficou esperando que o amigo continuasse a história, mas ele ficou olhando para o vazio através da janela e não disse mais nada. No seu rosto, rolaram lágrimas. Ela não quis forçar. Esperou pacientemente que ele retornasse do passado. Ele, mais que ninguém, sentia no íntimo o peso de um erro que atrapalhou a evolução de alguém. Tinha uma dívida enorme para pagar. Aceitaria qualquer coisa que Gabriel lhe cobrasse. Faria de tudo para recuperar o tempo perdido e o amigo. Finalmente chegou a quinta-feira. Luiz havia combinado com Jaiminho de encontrá-lo na faculdade e de lá irem para a clínica. Na reunião do sábado anterior, o grupo todo manifestou interesse em ir. Mas, como era a primeira vez que iam participar, Luiz achou que seria melhor irem só os dois. 76 ETERNAMENTE AMIGOS Só que, ao chegar à faculdade, lá estava Jaiminho em companhia de Evelise. Antes que Luiz falasse alguma coisa, ela se adiantou: - Desculpe, Luiz, mas não queria perder essa reunião de forma alguma. - Não tem problema. Seria mau se fossem todos disse ele. - A que horas é a reunião? - perguntou Jaiminho. - Às oito horas. - Então temos bastante tempo. Podemos ir tranqüilos. Entraram no carro e seguiram para a clínica. Naquele momento, Otaviano se recolhia no salão da clínica que servia de centro espírita para fazer sua prece. Era um salão pequeno e simples, com uma mesa central e várias cadeiras em volta. Enquanto Otaviano fazia sua prece, os trabalhadores da espiritualidade preparavam o ambiente, eliminando os resquícios negativos que ainda persistiam no ar. Eles faziam a higienização em silêncio. Todos se mantinham em prece. Otaviano mentalizou a figura de Gabriel, enviando-lhe vibrações ternas, convidando-o a participar da reunião. Gabriel estava como sempre em seu refúgio. Tinha perdido o interesse pelos seus domínios, e seus prisioneiros, ao perceberem que não havia mais repressão, pouco a pouco foram abandonando a região. Sentado em sua cadeira enorme, olhava para o vazio, mergulhado na escuridão. Sua mente martirizava-o com os acontecimentos recentes. No entanto, não vinham respostas para suas indagações. Quem era aquele Otaviano que não saía de seu pensamento? Seria verdade que 77 ELIZABETH ARTMANN Ricardinho era inocente? Seus pensamentos iam e vinham quando de repente sentiu uma brisa agradável atingir todo o seu corpo e uma sensação maravilhosa invadir o seu ser. Em sua mente, veio a imagem de Otaviano, sorrindo, abraçado a Ricardinho. Gabriel levou um susto e saltou da cadeira. Olhou em volta e viu que estava sozinho. Parecia um sonho. Mas estava acordado. Fazia tempo que não dormia. O que estava acontecendo? Seria feitiçaria? Sentiu vontade de visitar Ricardinho. Já não sentia o ódio de outrora. Só queria vê-lo. Saiu de seu refúgio e foi em direção à clínica. Lá encontrou Ricardinho, que dormia profundamente. Mas seu espírito estava desperto, sentado na cama, olhando através da janela. Enquanto isso, Luiz, Jaiminho e Evelise chegavam à clínica e eram recebidos pelo doutor Miguel, que os aguardava na recepção. - Vejo que veio mais alguém - disse ele se referindo a Evelise. - Espero que não haja problema - disse Luiz. - De forma alguma. Você deve ser o Jaiminho. E você? Como se chama? - perguntou estendendo a mão para Evelise. - Meu nome é Evelise. - Muito prazer em conhecê-la - disse doutor Miguel sorrindo. - Vamos entrando. No salão já estavam o doutor Paulo e as enfermeiras Sílvia, Fátima e Sandra. Feitas as apresentações, todos se sentaram e começaram a meditar, pois faltavam poucos minutos para o início da reunião. 78 ETERNAMENTE AMIGOS Ricardinho sentiu a presença de Gabriel e virou-se devagarinho para olhá-lo. Ficaram se olhando por algum tempo sem que nenhum dos dois tomasse a iniciativa de falar. Finalmente, depois de alguns minutos se olhando, Ricardinho disse, vacilante: - Eu conheço você de algum... lugar, mas não me lembro de onde... Você... poderia me dizer? Gabriel não respondeu. Sem entender a razão, sentiu pena do garoto e ao mesmo tempo remorso. Saiu do quarto sem dizer nada e foi em direção ao salão, que já estava cheio. Entrou e todos o receberam com sorrisos amáveis, mas ele se manteve carrancudo. Otaviano queria se aproximar dele para agradecer sua presença, mas teve receio porque Gabriel poderia não gostar. Se isso acontecesse, perderia uma oportunidade valiosa. Otaviano saiu do salão e foi buscar Ricardinho. Gabriel começou a olhar a todos, um por um. Quando chegou em Jaiminho, parou por alguns instantes e pensou: "Mais um que me é familiar. Que droga está acontecendo comigo? you ficar um pouco aqui para ver o que vai acontecer." Doutor Miguel deu início à reunião. - Sílvia, faça uma prece para iniciarmos a reunião pediu ele. A enfermeira Sílvia fez a prece, solicitando a assistência dos espíritos de luz no trabalho que seria realizado naquele momento. Doutor Miguel agradeceu e passou a palavra ao doutor Paulo, que passou a ler um trecho do livro O Evangelho 79 ELIZABETH ARTMANN Segundo o Espiritismo, capítulo 10, "Perdoai para que Deus vos perdoe". Em seguida, comentaram o trecho lido. A enfermeira Fátima era médium de incorporação e desde o início da reunião mantinha-se em meditação, preparando-se para que os espíritos falassem por meio dela. Quando terminaram de comentar o trecho do Evangelho, um espírito que se mantivera afastado do grupo, quase despercebido, aproximou-se de Fátima e começou a falar. - Queridos irmãos, muita paz a todos. Muitos de nós, devido às mais diferentes razões, permanecem na penumbra da ignorância, desperdiçando um tempo precioso e atrasando a oportunidade de vislumbrar as maravilhas que o Pai nos reservou. A rebeldia, combinada com ódio e temperada com vingança, é um prato que, ao ser ingerido, destrói nosso organismo espiritual, promovendo desvirtuamento de nossos sentidos, e às vezes de nossa mente, criando empecilhos de proporções gigantescas, impedindo-nos de ver a verdade, a luz, a paz e conseqüentemente a nossa felicidade. O espírito fez uma pausa e o silêncio tomou conta do salão. Gabriel acompanhava com atenção as palavras daquele espírito, que até pouco tempo antes não lhe era visível e agora o deslumbrava com suas palavras. O espírito olhou-o e sorriu de forma tão sublime e carinhosa que ele sentiu uma vibração amorosa e quente, como um abraço. Pela primeira vez, depois de tanto tempo sentiu-se envergonhado. Baixou a cabeça e compreendeu sua insignificância. O espírito continuou sua palestra. 80 ETERNAMENTE AMIGOS - Bem-aventurados aqueles que reconhecem seus erros. Bem-aventurados aqueles que reconhecem sua pequenez perante o universo. Bem-aventurados aqueles que têm humildade dentro de si. Porque eles se superarão e alcançarão os reinos celestiais. Fiquem em paz. O ambiente estava saturado de energia positiva. Otaviano acompanhava tudo e não pôde deixar de sentir compaixão por Gabriel. O espírito que falara, sabendo do motivo da reunião, incentivou Otaviano a falar também por meio da mediunidade de Fátima. Ele agradeceu e se aproximou, dizendo: - Prezados irmãos, paz em Jesus. Estamos felizes por participar dessa reunião. Sou um devedor de longa data. Tenho uma dívida enorme para com um amigo cuja confiança traí num momento de inconsciência. Não fiz isso porque quis. Fui forçado pelas circunstâncias. Gostaria que ele me perdoasse para livrar-me desse peso. Mas antes será preciso que ele se recorde do que ocorreu. Fui a razão do seu sofrimento nas regiões umbralinas por muito tempo. Sei que apenas o arrependimento não seria suficiente para compensar o que causei. Mas assim mesmo peço o seu perdão. Enquanto falava, Otaviano olhava para Gabriel, que não compreendia o que ele estava falando porque não se lembrava de nada. Ainda o considerava um estranho. Gabriel deu meia-volta e saiu do salão. Otaviano agradeceu a oportunidade de poder falar e se afastou muito triste de Fátima. Rafael, o espírito que falara antes, o consolou com palavras de incentivo. Luiz, que era vidente, acompanhou todo o acontecimento, mas não conseguiu entender o que estava ocorrendo. 81 ELIZABETH ARTMANN Rafael, percebendo sua dificuldade e seu questionamento mental, achou melhor esclarecê-lo, bem como aos demais que se encontravam na reunião, e aproximou-se novamente de Fátima. - Irmãos, nem sempre nossas primeiras tentativas de reconciliação são coroadas de êxito, mas a vitória cabe àquele que persiste na luta. Entendemos suas dúvidas. Por essa razão, tentaremos esclarecê-los em poucas palavras. "Nesta sala encontravam-se reunidos quatro amigos que estiveram juntos em tempos remotos em nosso planeta. Em determinada momento, houve um equívoco e Gabriel foi traído. No entanto a traição não foi consciente. Envolvido por mentes ardilosas, Gabriel por sua vez foi mantido em cativeiro no umbral por muito tempo. Mesmo depois de ficar livre de seus algozes, continuou revoltoso e assim permanece até os dias de hoje. Ele acredita que o causador de sua infelicidade foi Ricardinho. Daí sua vingança. Devido ao longo tempo alimentando seu ódio, construiu inconscientemente uma barreira entre ele e seu passado. Por essa razão, não compreende o pedido de perdão de seu amigo Otaviano, o responsável por seu drama na época. Jaiminho, o quarto, é o único que se encontra isolado dessa trama, mas era o mais próximo de Gabriel e poderá traze-lo à razão. Todo esse drama ocorreu justamente como conseqüência da Lei de Causa e Efeito. Judith e Marcos tinham débitos com Gabriel por erros cometidos em tempos remotos e que não tinham sido resolvidos. Com esses acontecimentos, tanto Ricardinho quanto seus pais já não tinham mais nenhuma pendência com 82 ETERNAMENTE AMIGOS Gabriel. A justiça divina para esses espíritos se cumpriu. Essa é a história resumida. Vamos orar para que consigamos derrubar essa barreira e trazer Gabriel de volta para a luz. Fiquem em paz." Doutor Miguel pediu para Sandra fazer a prece final e deu por encerrada a reunião daquela noite. Um fato interessante ocorreu durante a reunião. En- quanto Rafael e Otaviano falavam, Marina e mais dois espíritos aproveitaram que Jeremias continuava abobalhado para dar-lhe passe, fazendo-o dormir, e o levar para um posto de socorro, onde o manteriam dormindo por algum tempo e aos poucos iriam desintoxicando seu perispírito. Quando Jeremias se recuperasse, poderia continuar lá ou não, dependendo apenas do seu livre-arbítrio. O grupo foi para uma sala ao lado onde permaneceu numa conversação agradável. - Como é fazer esse trabalho em uma clínica, doutor Miguel? - perguntou Luiz. - Aqui não temos muitos problemas, mas temos notícias de outras clínicas onde a dificuldade é muito grande. Graças a Deus, temos o apoio da diretoria, que confia em nosso trabalho e entendeu nossas reivindicações e explicações, proporcionando condições favoráveis a esse trabalho. - Eles compreendem que loucura tem envolvimento espiritual na maioria dos casos? - perguntou Jaiminho. - No princípio foi difícil demonstrar a eles essa realidade, mas, aos poucos, demonstramos e, fazendo comparações, conseguimos mostrar o nosso ponto de vista. ii 83 ELIZABETH ARTMANN " - O mestre Léon Denis dizia, já no começo do séculc) passado, que alguns loucos por problemas espirituais são na verdade espíritos à frente do nosso tempo, bem mais evoluídos, e que todos nós possuímos os mesmos dons e que por isso passaríamos por essas mesmas experiências, mas de maneira organizada. O senhor concorda com isso?-perguntou Luiz. - E quem poderia contradizer Léon Denis, uma mente tão brilhante? Tanto é verdade que ele criou até um nome para esse tipo de paciente: os progenerados.11 - O doutor Bezerra de Menezes12 também estudou muito essa questão de envolvimento espiritual que leva as pessoas à loucura. Como ele conseguia fazer diagnósticos naquela época, isto é, no começo do século dezenove, para detectar com segurança quando o paciente era ou não portador de alguma lesão cerebral? - perguntou Jaiminho. - Olha o garoto falando como médico! Você está estudando medicina? - perguntou doutor Miguel. - Não, eu faço zootecnia. -Ah, que maravilha! Trabalhar com animais! O doutor Bezerra de Menezes, além de ter sido um excelente médico, 11 -Progenerados: Léon Denis ressalta que nos sensitivos, histéricos e neuróticos afloram dores do espírito que todos possuímos, mas que neles se revelam sem barreiras, num tempo e num momento que faz com que os consideremos animais, fora dos padrões ou "degenerados". Assim vemos essas pessoas falarem sozinhas e descreverem situações e ambientes que só elas vêem, por estarem num estágio evolutivo pelo qual todos deveremos passar, porém de forma organizada. Léon Denis chamava essas pessoas de "progenerados", ou seja, que ainda se gerará (coleção Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, cap. 4, "A personalidade integral", Petit Editora). (N.E.) 12 - Adolpho Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831-1900): médico, escritor, pesquisador, político, administrador, dirigente e orador espírita. Entre outras obras, é autor de A loucura sob um novo prisma (Rio de Janeiro: FEB). (N.E.) 84 ETERNAMENTE AMIGOS é um espírito muito evoluído. Mesmo com instrumentação precária ele conseguia diagnosticar com segurança. - Ele tinha assessoria dos espíritos? - Eu tenho certeza. Naquele instante, a enfermeira Sandra entrou na sala e informou o doutor Miguel que Ricardinho estava acordado e bem-disposto. Luiz aproveitou a oportunidade para buscar conhecê-lo. - Podemos conversar um pouco com ele, doutor? perguntou. - É claro. Vamos lá. Foram para o quarto de Ricardinho e o encontraram animado, conversando com a enfermeira Fátima. - Alô, rapaz. Tem visita para você - disse o doutor Miguel. - Este é o Luiz e este é o Jaiminho, Eles têm acompanhado os acontecimentos e gostariam de bater um papo com você. - Com muito prazer - disse estendendo a mão para Luiz e Jaiminho. - Meu tio já me falou de vocês. Estava curioso para conhecê-los. - Pois é, finalmente podemos conversar - disse Luiz. - O Jaiminho é que nos chamou a atenção para o seu caso, quando viu a notícia no jornal. Pelo que ouvimos hoje na reunião, vocês já se conhecem de outras encarnações. Você acredita em reencarnação? - Acredito. Só não tive oportunidade de estudar o assunto. 85 ELIZABETH ARTMANN - E em mediunidade? - perguntou Jaiminho. - É a mesma coisa: acredito, mas não sei como funciona. - Pelo que o seu tio disse, você tem uma mediunidade muito aflorada, não é? - perguntou doutor Miguel. - Certa vez disse a meu tio que via espíritos em meu quarto e pela casa. Cheguei a ver objetos se moverem sozinhos. Infelizmente meu tio não pôde me ajudar porque ele desconhecia também esses assuntos. Mas recomendou que eu lesse alguns livros, coisa que nunca fiz. Deixei o caso de lado. Acredito que foi esse meu maior erro. Se tivesse estudado e entendido o que estava ocorrendo comigo, muitas coisas ruins não teriam acontecido, principalmente o que houve com meus pais. - Mas agora, se você quiser, poderá estudar e desenvolver sua mediunidade com segurança - disse Jaiminho. - E isso é possível? - estranhou Ricardinho. - É lógico que é possível. - Tenho alguns livros aqui na clínica. you deixá-los com você para já ir se inteirando do assunto - disse doutor Miguel, querendo incentivar. - Depois, se você quiser, posso levá-lo a um centro espírita e então você pode começar um curso. O que você acha? - disse Jaiminho com entusiasmo. - Ah, eu acho ótimo. Luiz só ficou observando a conversa animada dos dois. Mas, vendo que já era tarde, resolveu interferir. - Está na hora de ir embora. Amanhã vai ser um dia puxado - disse ele. 86 ETERNAMENTE AMIGOS Despediram-se, agradecendo a oportunidade de participar da reunião e, prometendo voltar o mais breve possível, foram para o carro. No trajeto, foram conversando sobre o que havia ocorrido. - Que maravilha esse espírito, não é? - disse Jaiminho sentado no banco de trás do carro. - Só não entendi por que ele disse que eu poderia ser o mediador dessa história. Afinal, acabei de entrar nela. - Sua intuição estava certa. Não ouviu o que ele falou? - esclareceu Luiz. - Que vocês formavam um grupo de amigos? A espiritualidade deu um jeito de colocá-los em contato. - Mas como é que eu, um simples e ignorante encarnado, you me intrometer na briga de espíritos? - Primeiramente você não deve esquecer que eles são seus amigos e, depois, é necessário ter fé e confiança. Jaiminho encostou-se no banco e começou a meditar sobre o assunto. 87 sele Como Rafael havia dito, Jaiminho seria o rnais indicado para tentar trazer Gabriel de volta à razão. Para isso, eles teriam que procurá-lo, e Jaiminho teria que ir junto. Otaviano, Marina e Umberto chegaram à conclusão de que sábado à noite era ideal para procurarem Gabriel. Teriam somente que preparar Jaiminho para o evento. Assim, foram todos para a casa de Luiz. Já era tarde e ele já se preparava para dormir. A casa de Luiz tinha uma luz azulada que envolvia as casas vizinhas e era vista de longe. Essa é a característica de uma casa harmonizada, onde reina a paz e o equilíbrio. Nas segundas-feiras, Luiz, Celene e o filhinho faziam o Evangelho no Lar,13 momento em que recebiam os benfeitores espirituais v f e partilhavam o pão espiritual. As vezes, alguns espíritos, cansados de perambular por ali, aceitavam o convite dos 13 - Evangelho no Lar: reunião familiar em que se estuda o Evangelho e se revive o ensinamento do Cristo, que a realizou pela primeira vez na casa de Pedro. Na nossa edição de O Evangelho Segundo o Espiritismo (Petit Editora), fizemos constar nas páginas finais um roteiro para ajudar aqueles que queiram realizar essa prática cristã. (N.E.) 88 ETERNAMENTE AMIGOS espíritos socorristas e seguiam para as colônias, dando fim à ociosidade e retomando sua trajetória rumo à perfeição. O grupo esperou Luiz adormecer, o que não demorou muito, pois aquele que está em paz com a vida dorme o sono dos justos. Luiz deixou o corpo com naturalidade. Ele já sabia que estava sendo esperado. Desceu para a sala e foi recebido com alegria pelo grupo. Cumprimentaram-se e Otaviano tomou a palavra: - Estamos querendo ir sábado à noite procurar por Gabriel e queremos levar o Jaiminho. Mas para isso precisamos que você o prepare, para que ele esteja em condições de ir. -Tudo bem, deixem o Jaiminho comigo. Tenho certeza que até sábado ele estará ótimo. Gostaria de ir também. Posso? - perguntou Luiz. - Sabemos que você não está acostumado a fazer esse tipo de socorro. Por outro lado, já está preparado. Então não vejo problema nenhum - disse Umberto. - Então está marcado. Sábado passaremos aqui e na casa de Jaiminho - disse Otaviano. Despediram-se e Luiz seguiu para o seu trabalho habitual no Centro, aonde ia todas as noites. O trabalho na espiritualidade não pára nunca. No dia seguinte, Luiz lembrou da recomendação para preparar Jaiminho. Ligou para ele e combinou de encontrá-lo na faculdade. Quando Luiz chegou, Jaiminho já o esperava. Cumprimentaram-se como de costume, com muita alegria. - Estranhei sua urgência em me encontrar. Aconteceu alguma coisa? - perguntou Jaiminho. 89 ELIZABETE ARTMANN - Não, mas vai acontecer. Lembra daquela reunião lá na clínica? Então, esta noite tive um encontro com aquele seu amigo, o Otaviano. Ele me disse que vão procurar Gabriel a fim de tentar esclarecê-lo sobre o que houve, e querem que você vá junto. Para que tudo dê certo, você precisa se preparar. Evite comidas pesadas e qualquer tipo de descontrole emocional. É muito importante também que você vá amanhã ao centro espírita, para receber um passe. - you me encontrar com meus amigos? Que maravilha! E você? Não pode ir também? - Eu irei. Você acha que iria perder essa oportunidade? Despediram-se. No outro dia, Jaiminho seguiu à risca as recomendações de Luiz. Porém, a ansiedade era difícil de ser controlada. Na hora de dormir, Otaviano lhe deu um passe, fazendo com que ele se acalmasse. Dormiu e algum tempo depois se desprendeu do corpo. Era a primeira vez que se conscientizava de que estava se desdobrando. Fazia muito tempo que ele desejava isso. Quando se sentiu totalmente liberto, começou a observar à sua volta. Estava flutuando no quarto e olhava tudo com interesse, pois agora via as coisas com os olhos do espírito. Tudo era diferente, parecia mais amplo, com mais detalhes. Nem precisava de luz para ver as mínimas coisas. Deslumbrava-se. Desejou ficar de pé normalmente. Foi só desejar e já caminhava. Conhecedor das coisas espirituais, por ser um estudioso da Doutrina Espírita e um leitor voraz de livros espíritas, quis fazer de imediato suas experiências. Primeiro 90 ETERNAMENTE AMIGOS experimentou pegar alguma coisa, apesar de saber de antemão que não ia conseguir. Analisou o cordão de prata que o ligava ao corpo. Observou as luzes que emanavam de alguns livros da estante e pôde notar que o Evangelho era o que mais emitia luz. Ficou deslumbrado, e sua mente caridosa emitiu um pensamento de gratidão ao Pai Maior, por permitir aquela experiência. Estava distraído, olhando os livros, quando ouviu o chamado dos amigos. Desceu as escadas e encontrou todos à sua espera. Pediu desculpas por ter demorado. - Não precisa se desculpar - disse Luiz. - Sabemos que é a primeira vez que você tem consciência do desdobramento, mas sabíamos que você iria apreciar isso. Jaiminho olhou para todos com curiosidade: Umberto, Marina, Luiz e por último Otaviano. Não pôde evitar. Correu e abraçou Otaviano, sendo correspondido pelo amigo que não via fazia muito tempo. Ficaram por um tempo num abraço fraterno. É maravilhoso quando dois espíritos praticamente livres das mazelas da vida se encontram, como aconteceu com aqueles dois. Eles demonstram o verdadeiro amor que deve existir entre os seres, um amor isento de qualquer tipo de preconceito. São almas ou espíritos afins, que buscam a evolução incessantemente, sem perda de tempo. - Está bem, amigos - disse Umberto. - Vocês poderão matar a saudade no caminho. Temos que ser rápidos porque não sabemos o que iremos encontrar. Vamos indo. Saíram, e Jaiminho entabulou uma conversa animada com Otaviano, querendo saber tudo. 91 ELIZABETE ARTMANN O destino era o refúgio de Gabriel. Lá chegando, encontraram tudo abandonado, já em ruínas, desfazendo-se. No plano espiritual, as construções mantêm-se somente enquanto os responsáveis por elas as ocupam, pois são mantidas pela força do pensamento. Quando deixam de ser usadas, elas começam a se desintegrar, por falta de sustentação. Gabriel não estava lá. Procuraram-no por toda parte e nada. Saíram e tomaram um caminho que descia para as regiões mais trevosas. O caminho começou a ficar mais difícil, com árvores retorcidas e um mau cheiro que não era possível definir. O chão começou a ficar lamacento e já se ouviam gritos ao longe. Caminharam mais um pouco e encontraram uma clareira onde estavam alguns espíritos em estado deplorável. Umberto analisou todos e observou um mais ou menos lúcido. Fez-se visível, se aproximou e de forma carinhosa falou com ele. Até então, eles não estavam visíveis àqueles espíritos, para não chamarem a atenção e não correrem riscos desnecessários. - Amigo, poderia me dar uma informação? O espírito olhou para ele sem muito interesse e disse: - Dou qualquer informação que você quiser. Essa foi e será sempre minha profissão! Mas vai ter que pagar. - Pagarei. O que o amigo deseja? - Quero sair desse buraco. Não agüento mais ficar aqui com essa gente nojenta. - Isso não é problema. Pedirei a uns amigos para virem aqui pegá-lo. Está bem assim? - O que é? Está de gozação? Ninguém pode mandar em nada aqui. 92 ETERNAMENTE AMIGOS - O Cordeiro14 pode. Com o auxílio Dele, tudo podemos. - É, o Cordeiro pode. Gostaria tanto de ver o Cordeiro! - Quem sabe um dia, não é? - Você promete então que manda alguém? - Prometo. - O que você quer saber? - Estamos procurando Zolthan. Você sabe onde ele está? - Aquele demônio! Quero que ele queime no inferno, o desgraçado. Estou nesta situação por causa dele. - Amigo, você disse que queria ver o Cordeiro um dia. Para vê-lo, precisa se livrar desde já desse ódio. Zolthan é um sofredor e precisa de ajuda, assim como você. - Desculpe-me. - E então? Você sabe onde ele está? - Sei. Está lá na gruta. - Onde fica isso? - É só seguir a trilha. Mas, se eu fosse você, não iria lá, não. Lá, só tem demônios. - Obrigado, mas não se preocupe. - Não esqueça de mandar seus amigos. Umberto acenou despedindo-se dele e voltou a ficar invisível. Pediria ao posto de socorro que mandasse uma equipe para buscar aquele espírito. Como ele demonstrou interesse em sair dali, era uma oportunidade de ajudá-lo. O caminho era realmente horrível. O cheiro e a gritaria aumentavam cada vez mais. Depois de caminharem bastante, 14 - Jesus. (N.E.) 93 ELEABETH ARTMANN puderam ver uma enorme gruta. Lá de dentro saíam clarões de fogo, como se o local estivesse em chamas. Quando chegaram na entrada, puderam ver melhor. Os clarões eram resultado de enormes fogueiras com os espíritos em volta em grande algazarra. Pareciam loucos e estavam todos num estado deplorável. Alguns pareciam animais tão grotesca era a aparência. Começaram a procurar por Gabriel no meio daquele turbilhão de estropiados. - Permaneçam em prece - recomendou Umberto. Otaviano mantinha um braço no ombro de Jaiminho, mantendo-o calmo. Para Jaiminho, era um aprendizado que nenhum livro, por melhor que fosse, poderia transmitir. Depois de procurar bastante, viram Gabriel num canto, afastado da algazarra. Estava sentado no chão, apenas olhando à sua volta. O grupo se fez visível e se aproximou dele. Gabriel olhou, fazendo de conta que não era com ele, mas, como o grupo ficou ali por perto, ele se aprumou, tentando manter sua postura. Não havia reconhecido quem tinha chegado. Só quando se aproximaram mais é que pôde ver quem eram. Levantou-se, porque seu tamanho lhe dava uma aparente vantagem e encarou os visitantes com ar de poucos amigos. Umberto se aproximou com segurança e com seu jeito franco disse tranqüilamente: - Se o amigo não se importar, gostaríamos muito de conversar com você. - Me importar? É lógico que me importo. Por que vocês não me deixam em paz? Eu saí de onde estava para ninguém 94 ETERNAMENTE AMIGOS me perturbar e vocês vêm até aqui me atormentar. Eu não quero conversa com ninguém, principalmente com vocês! Gabriel tentou sair, mas Jaiminho, impulsionado por alguma força interna, se adiantou e gritou, com um dos braços estendidos: -Gabriel! Gabriel parou. Parecia que um sino tocara em sua cabeça. Virou-se devagar e olhou com firmeza para Jaiminho. Em meio a uma névoa, veio a sua mente aquele grito ecoando, não o mesmo, mas outro que ouvira muito tempo antes. Lembrou-se vagamente de um amigo que gritava sempre por ele daquela forma. Vacilou por alguns instantes, querendo se aproximar de Jaiminho, mas retrocedeu, gritando: - Demônios, vocês estão me hipnotizando! Vocês querem me escravizar novamente, por isso se transformam em amigos do Cordeiro, para me ludibriar. Mas não vão conseguir! E saiu correndo em direção ao fundo da gruta. Jaiminho gritou novamente. Gabriel parou e olhou, mas continuou a correr. - Entendo sua frustração, amigo - disse Otaviano a Jaiminho. - Mas teremos outras oportunidades. É preciso apenas não desanimar. Tomaram o caminho de volta. Gabriel, ao deixar o grupo, dirigiu-se para as profundezas da caverna, queria afastar-se da algazarra. Enquanto caminhava, o grito de Jaiminho ecoava em seu íntimo. Achou um canto bem recuado na fenda de uma rocha. Deitou-se e começou a pensar nos acontecimentos. Fazia muito 95 ELIZABETH ARTMANN tempo andava solitário, mas agora a solidão parecia bem maior. Sentia um vazio enorme. Seria por causa daquelas pessoas? Por que razão não conversava com elas? Por que essa revolta, esse medo de se envolver? Muitas questões martelavam sua cabeça. Por que aquele grito mexeu tanto com seu íntimo? Passou a recordar de quando encontrou Ricardinho e o reconheceu em seu novo corpo. Havia muito tempo o procurava para se vingar. Vingou-se, mas não se sentia realizado. Ao contrário, sentia remorso pelo que havia feito. Destruiu uma família e não obteve nem prazer nem vantagem. Por que Otaviano insistia em dizer que era o culpado? Tentava se lembrar, mas não conseguia. As imagens eram vagas. Às vezes vinham flashes. Conseguia se lembrar de muitos cavaleiros, de muita gente maltrapilha caminhando por vales sem fim. Lembrava-se de ter passado muita fome, de não ter o que comer ou beber. Cenas horríveis vinham à sua mente, cenas em que ele rasgava as veias da montaria para beber seu sangue! Parecia castigo! Via espadas e lanças num morticínio sem fim. Gritos e mais gritos vinham a sua mente. Alguns pedindo por piedade, outros gritando com ódio. O que significava tudo aquilo? Por que ele não entendia as razões daquelas lembranças? Ficou ali por um bom tempo, pensando naquelas imagens. Por fim resolveu: da próxima vez que eles o procurassem, não se afastaria. Prometeu a si mesmo que, antes de qualquer coisa, iria escutar o que eles queriam lhe dizer. 96 • oito Marina estava no posto de socorro cuidando de Jeremias, que fazia dias dormia e, em virtude do tratamento que os trabalhadores lhe ministravam, apresentava uma aparência bem melhor. Marina, caridosa, espírito devotado que era, mantinha-se à beira do leito, transmitindo vibrações amorosas àquele ser que praticamente tinha parado no tempo. Sem que ela percebesse, um espírito aproximou-se e ficou do outro lado do leito. Os olhares se encontraram. Marina sorriu carinhosamente e perguntou: - Você o conhece? - referindo-se a Jeremias. - Não... - respondeu o espírito com certa dificuldade para se comunicar, como se procurasse as palavras à sua volta. - Mas tenho observado... como ele mudou desde que chegou aqui. Parecia um animal. Como vocês... ha... fizeram isso? - Na verdade, não fizemos muita coisa. Só ministramos fluidos energizantes para reequilibrar seu perispírito. O resto ele mesmo fez. Mas não sabemos ainda se ele vai querer ficar. Você gostaria de me ajudar a convencê-lo a ficar aqui? 97 ELIZABETE ARTMANN - Claro. Gosta... na muito. Mas nem sei se... - ele parou para procurar as palavras no ar - you ficar também. - Como? Você não gosta daqui? - Adoro muito este lugar, mas acho muito... quieto demais. Não estou acostumado. E estas pessoas... não me deixam fazer nada. É muito quieto aqui. Marina ficou observando o espírito. Não conseguia identificar seu sexo naquele momento. Uma hora parecia ser homem; em outro momento os movimentos eram bastante femininos. A aparência era incrivelmente andrógina. Tinha traços tanto de homem como de mulher. Transmitia um ar meio abobalhado, como se estivesse alienado do que ocorria a sua volta. Marina sorriu e pediu carinhosamente: - Independentemente de você ficar aqui ou não, não quer me ajudar a convencer nosso amigo Jeremias a ficar? - Não acredito que ele vá... querer ficar. - Mas não podemos deixar de tentar, não é? -Podemos tentar, mas... acho que vai ser... ha... perda de tempo. - Pelo que sei, eleja perdeu muito tempo. Precisamos convencê-lo a retomar a caminhada para a evolução - Marina falava aquelas palavras com o intuito de tentar convencer também aquele com quem conversava. -Não entendo... esse negócio de evolução que vocês... tanto falam e não sei o que isso significa. Sei que vocês são diferentes, mas acho... que Deus já criou vocês assim. - Então você acredita em Deus? 98 ETERNAMENTE AMIGOS - Sim, é lógico! - disse o espírito com entusiasmo, deixando seus olhos brilharem. - E você acredita que sou melhor que você? - Acredito... você é um anjo. - E se eu lhe dissesse que, se você quiser, pode ser igual a mim? - Eu diria que você estava... brincando comigo. - Pois eu lhe garanto que, se você realmente quiser, pode ser igual a qualquer trabalhador que está por aqui e constantemente galgar degraus rumo à evolução. - Você está sonhando. Não existe isso. Nunca vi alguma coisa parecida. E como eu poderia... ser igual a Tomás? - Você gostaria de ver? O espírito ficou parado por alguns instantes, olhando para Marina com o olhar perplexo, carregado de tristeza, sem acreditar no que ouvia. Em seguida, sentou-se em uma cadeira que estava ao seu lado, olhou para fora através da janela. Continuava pensativo. Por fim, baixou a cabeça e começou a chorar. Na sua mente começou a descortinar a possibilidade de ser como Marina, tão linda, tão meiga. Por outro lado, se via naquela situação miserável, perdido no tempo, e não conseguia compreender como poderia ser igual a ela. Marina deu a volta na cama e baixou-se na frente dele. Segurou sua cabeça e deu um beijo carinhoso em seu rosto. Sem que ela pudesse evitar, duas lágrimas correram por sua face alva. O espírito a viu chorando e estranhou. -Não sabia que anjos... choravam... - Qual é o seu nome? 99 EUZABEIH AlOMANN - Florence. - Florence, querido - disse Marina segurando as mãos do espírito -, eu não sou um anjo. Sou uma trabalhadora da espiritualidade e meu trabalho é ajudar espíritos como você a reencontrar o caminho da evolução. you lhe mostrar uma coisa, para que entenda que somos todos iguais perante o Criador. Não sou melhor que você nem que Jeremias. Não sou melhor que ninguém. Somos irmãos em caminhada evolutiva rumo ao Pai, que nos criou simples e ignorantes. Venha comigo. Marina pegou na mão de Florence e o puxou para fora da enfermaria, entrando em outro pavilhão. Chegaram a um salão amplo onde havia enormes prateleiras cheias de livros. Marina foi até um balcão, pegou um livro enorme e começou a mostrar a Florence as ilustrações. Entre elas havia ilustrações de madre Teresa de Calcutá, irmã Dulce, padre Donizeti, frei Eustáquio, frei Geraldo, frei Damião, doutor Bezerra, Florence de Natingale, Helen Keller, Francisco Cândido Xavier, Allan Kardec, Gandhi e muitos outros. Era uma espécie de enciclopédia sobre a história de grandes missionários da humanidade. Florence olhava as figuras admirado, com os olhos arregalados. Olhava uma por uma com ar de criança. Marina o observava e por fim perguntou: - Você acha que essas pessoas são melhores que você? - É lógico. Elas são santas! - E se eu dissesse que elas não são santas e que nós podemos ser iguais a elas? 100 ETERNAMENTE AMIGOS - Se você disser isso... eu direi que você é louca! Que não é boa da cabeça - o espírito riu de sua piada. - Então, veja este. - Marina apontou para uma figura de Allan Kardec. - Este homem viveu na França e foi responsável por uma obra monumental, que é a Codificação Espírita. Com base nos ensinamentos de espíritos avançados na evolução, aprendemos que nascemos simples e ignorantes, sem ao menos ter certeza se existimos ou não. Com o tempo, vamos adquirindo consciência e aprendendo coisas que nos auxiliam na evolução. Todos, sem exceção, fazem essa trajetória e, um dia, seremos iguais a este homem. - Marina abriu o livro onde se contava a história de Jesus. Florence não falava nada. Ficou um bom tempo olhando a ilustração de Jesus. Por fim, falou com a voz embargada de emoção: - Não posso acreditar que... poderei ser igual a Ele um dia. Ele é tão... tão... - Tão majestoso, não é? -Sim. - Gostaria de lhe contar mais uma coisa para ajudar você a entender. - Sim. O que é? - Todos eles, sem exceção, já estiveram em condições mais ou menos parecidas com a sua. Florence olhou boquiaberto para Marina, com um olhar de espanto. - É por isso que digo que você pode e vai chegar lá. Basta começar. Basta querer - concluiu Marina. 101 ELIZABETE ARTMANN - Preciso pensar nisso... É muita coisa nova para minha cabeça. Gostaria de descansar um pouco. - Tudo bem. Vamos voltar à enfermaria. Na enfermaria, Florence foi direto para o seu leito. Não quis conversar mais. Marina compreendeu e o deixou sozinho. Deu mais uma olhada em Jeremias. Como ele ainda dormia tranqüilo, foi ao encontro de Otaviano. - Olá, amigo - disse ela sorridente. - Olá, amiga. Por onde tem andado? Pensei que tivesse desistido de me ajudar. - Se você pensou realmente isso, então você é um tonto - disse ela em torn de brincadeira. Otaviano riu. - Como estão os planos? - perguntou ela. - Estamos combinando de nos encontrar na próxima reunião aqui na clínica, e vamos chamar novamente Gabriel. Vamos tentar mais uma vez convencê-lo a escutar o que temos para dizer. - Ótimo. you orar para que tudo dê certo. - Como está o Jeremias? - Está bem melhor. Estamos mantendo-o adormecido, e é interessante como o aspecto dele já melhorou bastante. - Você tem dado bastante ajuda a ele, não é? - Faço o que posso. E o Ricardinho? Como está? - Temos conversado quando ele se desdobra. Está preocupado é com os pais. Não se preocupa com Gabriel. - É porque ele sabe que você está empenhado em auxiliá-lo - disse Marina com convicção. 102 ETERNAMENTE AMIGOS - Pode ser. Agora ele está mais animado. Depois que conheceu Jaiminho pessoalmente e leu alguns livros, resolveu, assim que receber alta da clínica, ir com o amigo até o centro espírita e começar o curso. Acho que depois que terminar os cursos, será um excelente trabalhador, pois sua mediunidade já está aflorada. - Seria ótimo, não é? - Seria maravilhoso. - Você vai comigo até o centro espírita em que o Umberto trabalha? - Marina mudou de assunto. - Vamos, sim. Saíram os dois, deixando Ricardinho dormindo tranqüilo tanto no corpo quanto em espírito. Rapidamente estavam no centro espírita. Ajudaram nos trabalhos da casa e no final saíram do local, a fim de conversar. - Estive pensando... - disse Umberto. - Em vez de levar Gabriel à clínica, deveríamos traze-lo para cá. Aqui o ambiente é mais propício para fazer uma regressão ao passado e mostrar a ele o que aconteceu. Além disso, aqui ele estará mais amparado pela espiritualidade. - Eu acho ótimo - concordou Otaviano. - Então precisamos avisar nossos amigos, para que estejam presentes também. - Falarei com Luiz para que avise os outros. - Então está combinado - finalizou Umberto. Otaviano e Marina seguiram para o centro espírita em que Luiz trabalhava todas as noites, dando assistência aos espíritos que lá chegavam pedindo por socorro. Aquele Centro funcionava como um pronto-socorro da espiritualidade. 103 ELIZABETH ARTMANN Otaviano informou Luiz da nova situação e ele concordou imediatamente. No outro dia, Luiz informou Jaiminho e em seguida telefonou para o doutor Miguel, transmitindo-lhe o que havia sido combinado na noite anterior. Doutor Miguel, pessoa equilibrada, achou muito boa a idéia e pediu o endereço do Centro. E assim ficou tudo acertado. 104 nove Finalmente chegou o dia: uma quarta-feira em que aconteceria a reunião no centro espírita. Otaviano, Marina, Umberto e todos os trabalhadores espirituais já estavam lá desde a manhã, preparando o ambiente. No transcorrer do dia, Otaviano enviou pensamentos e vibrações a Gabriel, convidando-o a estar presente na hora da reunião. Quando o relógio bateu sete horas, as pessoas começaram a chegar. O presidente do Centro, Francisco, médium vidente de grande experiência, fazia questão de receber as pessoas na entrada com um sorriso. Ele já sabia o que iria acontecer porque Umberto já o havia informado. Os primeiros a chegar foram Luiz, Jaiminho, Evelise, Tizuco, Solange, Soraia e Cláudio. Celene também estava junto. Ela havia deixado Paulinho com a mãe de Luiz. Em seguida, chegaram doutor Miguel, doutor Paulo, Fátima, Sílvia e Sandra. O Centro não era grande. Cabiam no máximo cem pessoas no salão. No lugar, havia uma vibração muito boa, todos os que lá entravam se sentiam muito bem. Como 105 ELIZABETH ARTMANN se tratava de um trabalho de desobsessão, o Centro não era aberto ao público. A reunião era só para essas pessoas. Francisco convidou alguns trabalhadores da casa e mais dois médiuns para esse trabalho específico. Pediu que todos se sentassem à mesa e ficassem em silêncio para a preparação. Doutor Miguel o informou que Fátima era uma excelente médium de incorporação e que poderia receber o espírito Gabriel. Francisco agradeceu e pediu que Fátima ficasse próxima a ele, para facilitar o diálogo. Todos se acomodaram e ficaram em silêncio e em prece. Otaviano convidou Gabriel em pensamento. Gabriel, que já vinha recebendo chamadas durante todo o dia, estava decidido a atender ao convite. Permanecera o dia todo muito ansioso e desde cedo se encontrava nas imediações do Centro, só esperando a hora de se aproximar. Quando sentiu o chamado de Otaviano, teve vontade de correr para o local, mas ao mesmo tempo ficou horrorizado com a idéia de ultrapassar a barreira que ele mesmo havia construído. O que haveria por detrás dela? Estava envolto em seus pensamentos quando uma figura luminosa se aproximou carinhosamente e lhe disse: - Estamos aguardando-o no Centro. Você é nosso convidado. Venha. Gabriel não conseguiu reconhecê-lo, pois não via seu rosto. Mas a presença daquele ser de luz o convenceu a encarar o que tinha pela frente. Acompanhou o espírito de luz e adentraram no salão, onde estavam todos em prece. Otaviano sorriu para ele, mas ele não retribuiu. Estava bastante perplexo ante o ambiente. A reunião já havia 106 ETERNAMENTE AMIGOS começado. Na hora certa, Umberto o convidou a ficar próximo de Fátima. A médium de imediato sentiu um arrepio e sua fisionomia mudou totalmente. Ficou carrancuda e com o semblante pesado. - Fale, irmão. Diga o que o aflige e tentaremos ajudá-lo - disse Francisco. - Ajudar-me? - respondeu Gabriel por meio da médium, que tinha mudado inclusive seu torn de voz, emitindo sons graves. - Não sei como. Nem sei por que vim aqui. Na verdade, nunca vi tanta bagunça e estou mais curioso do que outra coisa. - Está curioso para ver o seu passado? - O meu passado não me interessa. - Não tem vontade de avançar no progresso do seu espírito, de abandonar essa vida de ociosidade e trabalhar para sua própria melhoria? - Para mim você está falando grego. Não sei do que você está falando. - Não quer saber o que aconteceu lá atrás, o que fez você parar no tempo? - Já disse, o que aconteceu é passado, e ele não interessa nem a mim nem a você. Se não tiver nada mais importante para me dizer, you embora. Enquanto eles conversavam, Rafael, o espírito que foi buscar Gabriel, envolvia-o com sua vibração, fazendo-o diminuir sua resistência e relembrar o passado. - Por favor - disse tranqüilamente Francisco -, fique conosco e tente rememorar pelo menos o que aconteceu nos 107 ELIZABETH ARTMANN últimos dias: o seu encontro com o garoto, sua revolta, seu desejo de vingança. - Sim... Estou lembrando... Mas também estou arrependido. Não devia ter feito aquilo. Sinto que cometi uma grande injustiça... Mais uma... Não sei por que vocês se preocupam comigo. Não sirvo para nada. Tenho vergonha de estar aqui. - Não sinta vergonha. Você está entre amigos. Vamos voltar ao passado e ver por que tudo isso aconteceu. Gabriel ficou em silêncio por alguns minutos. Estava envolvido em uma força magnética que Rafael projetava nele, uma força que o induzia a voltar ao passado. Por fim começou a falar. - Estou vendo... uma planície e um grupo de pessoas colhendo trigo. Vejo três rapazes e you na direção deles. Estou montado em um cavalo e vestido de soldado. - Quem é você? - Meu nome... - parou por alguns instantes com dificuldade para dizer. - Sou Gabriel. - O que você faz? - Sou soldado do senhor daquelas terras. - Sabe dizer qual é o ano? - Creio que é mil e duzentos e... não sei. - E o lugar? Sabe onde está? - ...No norte da Itália. - Conte-nos o que você está vendo. - Vejo meus amigos. - Amigos? Quem são eles? 108 ETERNAMENTE AMIGOS Gabriel ficou em silêncio. - Se você não quiser falar agora, não precisa. Podemos avançar um pouco mais. - Não. São os amigos que me traíram e me abandonaram, fazendo-me morrer como um bandido. - Isso foi há muito tempo. - E o que você sabe sobre o tempo? - Sei que somos imortais e que para o espírito não há tempo nem espaço. Mas, para desfrutar dessas prerrogativas, é necessário vencer a matéria. Coisa que nós ainda estamos longe de conseguir. - Por que você diz "nós"? Por que você me inclui nas suas limitações? Você não sabe, mas já posso estar em dois lugares praticamente ao mesmo tempo. - Gabriel tentava manter sua autoconfiança. - Você falou certo: "praticamente", porque ainda não consegue estar em dois lugares simultaneamente, capacidade apenas de espíritos que já venceram a matéria. Concorda comigo? Silêncio. - Fale-me de seus amigos. O que aconteceu? - pediu o dirigente. Gabriel continuou em silêncio. Parecia que estava organizando os pensamentos, buscando lembranças que durante muito tempo haviam sido esquecidas. Por fim disse: -Éramos muito unidos. Antes de seguirmos com aquela Cruzada, fizemos um pacto. - Que tipo de pacto? 109 ELIZABETH ARTMANN - Prometemos ser amigos para sempre, que um protegeria o outro. - O que fez abalar essa amizade? - Certa noite, quando acampados, saímos para procurar comida. Estávamos com muita fome. Saímos escondidos para não sermos vistos pelos cavaleiros. Encontramos uma pequena aldeia e nos apresentamos como viajantes para obter alimento. Comemos e bebemos muito. Até que um dos aldeões nos delatou, dizendo que éramos da Cruzada. Foi então que todos vieram para cima de nós. Lutamos muito. Meus amigos fugiram, deixando-me ferido. Vaguei muito tempo sem rumo. Por fim, desmaiei. Quando acordei, estava em um casebre. Pessoas muito pobres cuidavam de mim com desvelo. Apesar da pobreza, eram pessoas muito cultas. Parecia uma comunidade. Havia outros casebres. Enquanto me recuperava dos ferimentos, fui me acostumando com aquelas pessoas. Elas falavam coisas que me fizeram questionar o que tinha aprendido. Para mim, a Igreja era tudo. Por ela, eu mataria todos os hereges. Mas, afinal, quem eram os hereges? Aquelas pessoas pareciam anjos, de uma bondade que jamais havia presenciado antes. Nunca também havia ouvido falar de Jesus daquela maneira. Não havia pompa, não havia a arrogância dos bispos, dos papas. Não havia suntuosidade. Era algo novo, algo que nunca tinha visto. As Escrituras eram estudadas com respeito e recolhimento, uma característica das pessoas tementes a Deus. "Fiquei por lá. Daí não queria mais voltar para aquela loucura que era a Cruzada. Aquele bando de assassinos. 110 ETERNAMENTE AMIGOS Queria me redimir e dar um rumo novo a minha vida. E aquelas pessoas preenchiam por completo meus anseios. "Porém, certa manhã, estava dormindo ainda e Minam, um anjo de pessoa, me trazia um pedaço de pão quando adentraram no casebre dois cavaleiros com suas armaduras brilhantes. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, deceparam a cabeça de Miriam e me arrastaram para fora. Os outros casebres já estavam em chamas e seus ocupantes todos mortos. Quando o comandante chegou, os cavaleiros me apontaram, dizendo: '"Aí está o traidor e desertor.' '"O bispo irá julgá-lo', disse o comandante. "Enquanto aguardava o bispo que iria me julgar, alguém me falou que meus amigos haviam me delatado e que um deles, Ricardo, como me fora sugerido, informou os cavaleiros que eu estava vivendo com hereges e havia me tornado um deles. Por fim, fui condenado à fogueira e, enquanto sentia as dores pelo corpo causadas pelas queimaduras, decidi que me vingaria, custasse o que custasse. Demorou, mas foi o que fiz." Acabou a narrativa. O salão ficou em silêncio. - Você nunca soube o que ocorreu de verdade, não é? perguntou Francisco carinhosamente, quebrando o silêncio. - O que tinha que saber? - A verdade. Quando vocês se separaram na aldeia em que foram atacados, os seus amigos foram presos e, como você, foram acusados de serem desertores, condenados e mortos. Otaviano, delirando ainda em função dos ferimentos, 111 ELIZABETH ARTMANN contou onde você poderia estar. Mas o fez inconscientemente, sem desejar o seu mal. Foi envolvido maldosamente pelos seus carrascos. Fraco pelos ferimentos, foi forçado a tomar uma erva que o obrigava a falar tudo que lhe vinha à mente. Nunca houve traição por parte de seus amigos. Os cavaleiros tiveram muita dificuldade para achar você. Estavam quase desistindo quando encontraram a aldeia em que você estava vivendo. Seus amigos mantiveram-se fiéis até o último momento. - Sinto que você diz a verdade. Não tenho palavras para descrever minha vergonha. Perdi tanto tempo! Agora entendo por que não tive prazer em prejudicar Ricardinho. Em vez disso, só senti tristeza e remorso. - Não precisa ter vergonha. Seus amigos estão aqui para ajudá-lo. Você não sentiu prazer porque no fundo sabia que isso não o levaria a lugar nenhum. A vingança nunca traz benefício, só prejuízos. Agora você compreende, não é? -Sim. - Agora que você venceu a barreira, posso chamá-lo de Gabriel? - Gabriel! Este nome me traz tantas lembranças boas! - Então vamos retomar a caminhada rumo ao progresso? - Como farei isso se assumi débitos, principalmente com Ricardinho? - Afinal, para que servem os amigos? Não é para perdoar? - disse Francisco fraternalmente. - Você acha que ele vai me perdoar? - Não só acho como tenho certeza. Então, Gabriel, vai ficar conosco? 112 ETERNAMENTE AMIGOS -Sim... sim... Logo que respondeu, Gabriel caiu num sono profundo, induzido pelos passes magnéticos de Rafael. Os amigos espirituais que estavam ali o ampararam Q o conduziram para o posto de socorro. No centro espírita estavam todos felizes. Finalmente aquele espírito revoltoso havia cedido. A persistência e o amor haviam vencido. Agora todos respiravam aliviados. Otaviano sentia-se mais leve, porque agora teria condições de dialogar com seu amigo, o que havia muito não fazia. Poderia esclarecer tudo e deixar as coisas mais claras. Poderia pedir perdão pelo mal que causou a ele, um mal que o arrebatou para as profundezas do abismo. Felizmente tudo estava voltando ao normal. Aos poucos, as pessoas iam deixando o Centro e seguindo para casa. Jaiminho sentia uma felicidade que não sabia de onde vinha. Seu espírito, que possuía uma compreensão mais ampla, sentia no éter a grandeza do acontecimento. Por isso a felicidade, mesmo não compreendendo. Otaviano seguiu para a clínica acompanhado de Marina, a fim de dar a boa notícia a Ricardinho. Seu corpo estava adormecido pelo efeito dos remédios, mas seu espírito estava próximo, no quarto. Por se sentir ainda perturbado, não tinha coragem de sair. Ficava ali, próximo à janela, observando o movimento da rua. Sentiu a aproximação dos amigos e sorriu feliz. - Como foi a reunião? - perguntou. - Foi muito boa. Gabriel finalmente cedeu e já está no posto de socorro, em tratamento. Brevemente poderemos conversar com ele. E você? Como está? 113 ELIZABETH ARTMANN - Não tenho coragem de sair do quarto. Mas estou a cada dia melhor. Devo muito a você pela sua dedicação. - Você não me deve nada. Eu é que lhe devo, e espero que me ajude quando precisar. - E essa moça bonita que parou de estudar só para me ajudar? - disse Ricardinho dirigindo a palavra a Marina. - Meus estudos podem ser retomados a qualquer momento. Um pedido de ajuda não pode ser ignorado respondeu ela. - Quando você for ver Gabriel, não se esqueça de mim - disse Ricardinho a Otaviano. x - E lógico que não me esquecerei. Vamos esperar um pouco até que ele se recomponha. Então lhe faremos uma surpresa. Vamos você, eu e o Jaiminho. - Jaiminho! Como está ele? - Está muito bem. - Foi o único que passou longe desse drama, graças a Deus. Também, ele merece. Foi sempre o mais tranqüilo do grupo - filosofou Ricardinho. - Você tem razão. - Gostaria de descansar um pouco, se os amigos não se importarem - disse Ricardinho com ar abatido. - De forma alguma. Vamos indo porque temos trabalho ainda. Otaviano e Marina se separaram. Marina retornou para o posto de socorro, onde Jeremias, o novo amigo Florence e agora Gabriel estavam sendo socorridos. Chegando, teve uma surpresa. Encontrou Jeremias sentado na cama tomando sopa em companhia de Florence. 114 ETERNAMENTE AMIGOS Este se desdobrava em atenções com o pequeno Jeremias. Segurava o prato com extrema atenção, como alguém que quer fazer alguma coisa além do necessário, se sentir útil. Quando viu Marina se aproximando, se apressou em se desculpar. - Desculpe... dona Marina. Eu estava... por perto e como ele disse que es... tava com fome trouxe um pouco de... sopa para ele. Não fique zangada comigo, por favor. - Florence, querido, não estou zangada com você. Ao contrário, estou é muito feliz com o que vi. E assim mesmo que encontramos os nossos caminhos. Gostaria muito que você continuasse assim. Servir compete aos espíritos elevados. Compreende o que estou dizendo? - Não sou espírito elevado. Só senti vontade de ajudar. Marina sorriu e perguntou a Jeremias, que terminava a sopa com auxílio de Florence. - Estava boa a sopa, meu amigo? - Nunca tinha tomado uma sopa tão deliciosa, dona Marina. - Quando quiser mais, é só pedir. Naquele instante chegou Tomás, o enfermeiro responsável por aquele setor da enfermaria. Como já conhecia Marina, deu-lhe um abraço carinhoso e a puxou para um canto do quarto, comentando: - Temos um novo hóspede - disse ele se referindo a Gabriel. - Como é triste ver esses espíritos que chegam aqui num estado lastimável. É difícil acreditar que um espírito possa ficar tanto tempo perdido! 115 ELIZABETH ARTMANN - Mas podemos ver também como a bondade de Deus é grande - disse Marina. - Um espírito pode sempre retomar sua caminhada e resgatar seus débitos. - Sim. Isso me lembra uma parábola de Jesus, a do filho pródigo. - É verdade. Mas fiquei curiosa quanto ao caso de Florence. Você sabe a história dele? - Sim, é outro que chegou aqui num estado deplorável. Agora já está bem melhor. Lembro-me muito bem quando ele aqui chegou acompanhado do seu espírito protetor, que me contou sobre sua encarnação mais recente. "Em sua última encarnação, ele viveu em uma sociedade em que não havia tolerância e o preconceito era devastador. Ele, que nasceu como homem,15 mas carregava uma grande dose de feminilidade, não conseguiu superar essa prova e deixou-se levar pelas correntezas da paixão, envolvendo-se com pessoas do alto prelado da Igreja. Mas sempre no submundo da clandestinidade e da promiscuidade. Naquele ambiente, não havia como ter amigos ou amar alguém. Assim, foi vítima da truculência dos sacerdotes inescrupulosos, quando começou a se tornar indiscreto, e passou a ser persona non grata no círculo de convivência. Sua educação era desprovida de verdades, carregada de preconceitos, e para piorar diziam-lhe que ele era uma aberração da natureza, pois não se encaixava em nenhum dos sexos. Com isso, sua personalidade começou a se deformar. Num julgamento arbitrário para 15 - Para mais esclarecimentos sobre o assunto veja em O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap 4, questões 200-202, "Sexo nos Espíritos", Petit Editora (NE) 116 ETERNAMENTE AMIGOS eliminar pessoas indesejáveis, incluíram-no num processo em que eram acusadas pessoas consideradas hereges ou que praticavam algum ato não aprovado pela Igreja. "Era uma oportunidade e tanto de se livrarem de Florence. Afinal, praticamente todos os processados eram condenados à morte em praça pública. Depois de desencarnar, foi para o umbral odiando aqueles que o haviam matado e considerando-se vítima da justiça divina. Continuou seu drama porque era repelido em qualquer parte que fosse. Ficou sozinho muito tempo, amargurando sua situação. Acabou fixando-se em uma caverna, em estado de prostração. Graças a alguns socorristas que passavam por ali, ele foi achado e, como não encontraram nenhuma resistência de sua parte, o trouxeram para cá. Como você pode ver, é apenas um espírito sem conhecimento que está temporariamente fora de sintonia. Mas parece que você já deu seu toque mágico nele, não é?" - Na verdade, só mostrei a ele que não devemos ficar parados, que nosso objetivo é avançar sempre, em direção à perfeição. - E conseguiu. Hoje, quando ele acordou, veio conversar comigo. Fez-me uma série de perguntas e pelo visto você virou uma espécie de ídolo para ele, pelo jeito que ele fala de você! - Então nós somos seu ídolo, porque ele falou muito de você também. - É um espírito muito carente. Não estava acostumado a receber tanta atenção. - Você sabe me dizer se está programado para ele reencarnar? - perguntou Marina. 117 ELIZABETH ARTMANN - Sim. Para evitar que ele vá embora daqui e volte a ser o que era, solicitei na colônia um programa reencarnatório de forma compulsória em uma família de bons costumes morais, para que ele receba muito carinho e proteção. Trata-se de uma família espírita que você até conhece: o Luiz, a Celene e o garoto Paulinho. Gostaria mesmo de convencê-lo da necessidade de reencarnar, para evitar o compulsório, que não é o ideal. Já tentei falar com ele sobre o assunto, mas por enquanto ele repudia a idéia. Fica apavorado só de lembrar pelo que passou na última encarnação. - Se você não se importar, gostaria de tentar. - Seria muito bom. - Então vamos lá - disse Marina dirigindo-se aos dois espíritos. - Florence, quer conversar um pouco comigo? - Sim... - respondeu com dificuldade. - Gosto muito de... falar com você. - Fico feliz com isso. Vamos ao jardim? - Vamos. Saíram, despedindo-se de Jeremias e Tomás. Já no jardim do posto de socorro, procuraram um banco e se sentaram. Florence não tirava os olhos de Marina. Seu olhar era um misto de ternura e admiração. - Você me deixa encabulada quando me olha assim disse Marina sorrindo. - Desculpe... não é por mal. - Você fez uma boa amizade com Jeremias, não é? Você ainda acha que ele não vai ficar conosco? - Ele é... um espírito muito interessante. Tem muitas histórias... acho que vai ficar, sim. 118 ETERNAMENTE AMIGOS - E você? Ainda tem aqueles desejos? Já pensou no que eu lhe disse? - Não quero ir embora. Se me deixarem... gostaria de ficar com vocês. - Isso é você quem decide. Para isso existe o livrearbítrio. Você é dono de suas ações, você faz o que quiser. Só procuramos mostrar o caminho. É você quem escolhe. - Se eu posso escolher, então fico com vocês. - Você não imagina como isso me deixa feliz. - Eu não entendo... como minha decisão pode... deixar vocês felizes. Eu... sou tão insignificante! - Você se engana. Não há ninguém insignificante. Somos todos especiais. E você, neste instante, é muito especial para nós. Sua decisão de ficar é motivo de júbilo. Posso dar um abraço em você? - perguntou Marina com a voz embargada de emoção. Florence não conseguiu responder, pois estava muito emocionado também. Estendeu os braços e os dois ficaram ali, por longo tempo, abraçados. Lágrimas escorreram pelo rosto de ambos. Depois que se recompuseram, Marina começou a pensar como iria tocar no assunto da reencarnação. Não poderia entrar no assunto de qualquer maneira, pois poderia espantar o seu amigo. Resolveu voltar à questão da evolução. - Você entendeu aquela nossa conversa sobre evolução? - Entendi um pouco, Tomás me explicou mais alguma... coisa e disse que é necessário reencarnar para continuar a evoluir, mas não... quero reencarnar. 119 ELIZABETH ARTMANN - Por quê? - Tenho medo. - Medo de quê? - Não sei, talvez de errar novamente ou de encontrar gente ruim, como encontrei da outra vez. - Tomás não falou que você vai reencaraar em uma família boa, que vai lhe ajudar muito? - Falou... mas assim mesmo tenho medo. - E se eu dissesse que, se não reencarnar, você estará perdendo uma excelente oportunidade de avançar? Florence não respondeu. Ficou olhando para as flores a sua volta com o semblante apreensivo, quase às lágrimas. Dentro de si havia um conflito. Sabia que era necessário reencarnar e já estava convencido disso. Por outro lado, sentia-se inseguro. Marina aguardava tranqüila, alisando os cabelos cacheados dele. Não podia de forma alguma forçar uma decisão. - Como é a família que vai me receber? - perguntou ele finalmente. - É uma família maravilhosa, formada por Luiz, Celene, a esposa, e Paulinho, que será seu irmãozinho. - Eles já sabem disso? - Ainda não. Só saberão quando você concordar. - Ficarei feliz... de fazer parte dessa família. Se depender de... mim, pode informá-los. - Está vendo como é fácil fazer os outros felizes e você também? Vamos fazer o seguinte: you comunicar sua decisão a Tomás e ele avisará a família. Depois conversaremos novamente. Está bom assim? 120 ETERNAMENTE AMIGOS Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente, sorrindo. Levantaram-se e retornaram para a enfermaria. Marina aproveitou para dar uma olhada em Gabriel, que estava num leito próximo. Ela o encontrou acordado, com o olhar perdido, olhando pela janela. Um vento suave entrava e fazia a leve cortina esvoaçar no espaço, em movimentos graciosos. Marina se aproximou da cama e ficou observando Gabriel sem interromper seus pensamentos. Mas ele percebeu a presença dela e virou-se, olhando-a com ar circunspeto. Marina sorriu para ele, mas ele não retribuiu o sorriso. - Gostaria de agradecer pela atenção que vocês estão me dando - disse ele, sério. s - A mim você não precisa agradecer. E uma oportunidade que tenho de servir e não a perderia de forma alguma disse Marina com carinho. - Peço desculpas pela minha ignorância, mas o que você ganha me ajudando? Não consigo entender isso. Tomás é um espírito com grande conhecimento. Me espanta vê-lo aqui se desdobrando para ajudar esses espíritos imprestáveis como eu sem levar nada em troca. - Compreendo seu ponto de vista, mas o que fazemos não é em vão. Alguma coisa nós sempre ganhamos. E posso dizer que seu ponto de vista está distorcido devido ao longo tempo que esteve afastado da luz. Logo você compreenderá que aqui fazemos tudo por amor. - Amor? - Sim, muito amor. Ficamos felizes ao ver os amigos vencerem suas barreiras e galgarem degraus em direção do Pai. 121 ELIZABETH ARTMANN - Há tempos não sei o que é amor. - Tem certeza disso? - Por que você me pergunta? -No centro espírita, por alguns instantes, vimos saírem de você lampejos de luz característicos de quem tem amor ainda. Você não sentiu? -Não sei. Senti alívio. Lembrei-me dos meus amigos, dos bons tempos. Mas não me lembro de ter sentido amor. Na verdade, nem sei como é isso. - Não precisa saber, precisa sentir. Tenho certeza absoluta que você sentiu amor naquela noite quando pensou em seus amigos. - Pode ser. Mas fico feliz em ter os meus amigos de volta. - E quem são os seus amigos? - Ah, você não sabe? É o Otaviano, o Ricardinho, o Jaiminho... - Por que parou? - Porque sou um estúpido mesmo! Ainda estou carregado de egoísmo. É por isso que não consigo ver coisas tão óbvias! - exclamou Gabriel. -Explique-se. Não estou entendendo suas observações. Gabriel pegou nas mãos de Marina e a olhou com emoção. - Começo a entender o que é amor - disse ele com um entusiasmo juvenil. - Não tenho mais apenas três amigos. Agora tenho muito mais! Você, que se dedica com tanto desvelo, atenção, carinho e amor à recuperação desses espíritos que 122 ETERNAMENTE AMIGOS para cá vêm, o Tomás, por quem só tenho admiração, e todo aquele pessoal do centro espírita. É impressionante como aumentou meu número de amigos! E não consigo esquecer daquele que foi me buscar na rua. Transmitia algo tão maravilhoso... nunca senti nada igual. Meu Deus, como perdi tempo! Marina só o observava, sorrindo. Era muito bom ver um espírito que até pouco tempo antes só se dedicava ao mal se revelar apenas como alguém em desequilíbrio, precisando de ajuda. E, quando se aceita a ajuda, tudo fica mais fácil. - O que devo fazer para recuperar esse tempo perdido? - perguntou ele. - Simples, não deve perder mais tempo. - E como faço isso? - Primeiro procure ficar tranqüilo e se recuperar. Depois as coisas acontecerão naturalmente. Continuaram a conversar animadamente. 123 dez Era sábado e, como de costume, o grupo da mocidade estava reunido para estudos. Todos já estavam a par dos acontecimentos, graças ao relato minucioso feito por Evelise. Luiz conversava reservadamente, em um canto, com Jaiminho. - Sua intuição funcionou direitinho, não é, quando viu aquela notícia no jornal? - disse Luiz. x - E verdade. Foi como se batesse um sino dentro de minha cabeça. Você sabe alguma novidade do Gabriel? - Sim, ele está se recuperando muito bem no posto de socorro e em breve será encaminhado a uma colônia. - Acha que terei oportunidade de vê-lo antes de ele ir para uma colônia? - Por que está preocupado? - Se ele for para uma colônia, não vai ficar mais difícil para eu vê-lo? - Deixe-me aproveitar e esclarecer isso para o grupo também. Vamos começar nossa reunião? - disse Luiz ao grupo. Com todos já acomodados, ele pediu a Jaiminho que fizesse a prece. 124 ETERNAMENTE AMIGOS Depois da prece, Luiz deu início à reunião. - O Jaiminho me fez uma pergunta muito interessante e you aproveitar para esclarecer a todos. Ele queria saber se temos liberdade de ir às colônias enquanto estamos encarnados. Os que têm bons sentimentos e conhecimento das questões espirituais, sabendo se comportar, podem ir até lá. Isso é importante para todo o nosso grupo. Algumas pessoas pensam que os encarnados não podem entrar nas colônias, mas é importante esclarecer que todo aquele que está imbuído no trabalho do bem, que trabalha em benefício de outros, tem permissão para ir às colônias durante o sono quando desdobrado. Essas idas têm inúmeras finalidades, para estudos, para ajudar em alguma tarefa, para conhecer, para encontrar resposta para algum problema de difícil solução e assim por diante. É claro que essas visitas não ficam nítidas em nossa memória quando acordamos. Às vezes, parecem até sonhos, mas elas acontecem muitas vezes. Nós é que não nos lembramos. - Gabriel terá alguma atividade na colônia? - perguntou Evelise. - Provavelmente sim. Tudo vai depender dele. Ele pode trabalhar e estudar. Pode ainda solicitar logo a reencarnação. Por incrível que pareça, ele pode até, se quiser, voltar para o umbral. - Pode mesmo?! - estranhou Soraia. - É claro. Veja, ele ficou muito tempo no umbral. E não foram anos, foram séculos. Como já estava acostumado com aquele modo de existência, terá alguma dificuldade para 125 ELIZABETH ARTMANN se adaptar à vida nova. Penso até que ele terá que ter uma assistência mais constante, com auxílio direto dos amigos. - Tem alguém com ele? - perguntou Jaiminho. - Tem, sim, pode ficar tranqüilo. Quando queremos nos modificar sinceramente, tem sempre algum espírito protetor para nos acompanhar. Assim a reunião transcorreu tranqüila pelo resto da tarde. Quando terminou, Jaiminho quis saber mais. - Você acha que you poder ver o Gabriel e me lembrar depois? - Quem decide isso são os mentores. Se acharem que você deve lembrar, então você lembrará. - Gostaria muito de ir vê-lo. - Eu sei. Otaviano, que escutava a conversa em companhia de Marina, soprou uma mensagem para Luiz. - Tenho uma boa notícia para você - disse Luiz a Jaiminho. - Otaviano está conosco e me disse que estão programando uma visita a Gabriel. Você irá e Ricardinho também. - Maravilhoso! - exclamou Jaiminho. Despediram-se e seguiram felizes para casa. À noite, Otaviano esperou Luiz adormecer para comunicar-lhe, a pedido de Tomás, que ele e Celene teriam uma filha. Passava da meia-noite quando Luiz se projetou e ajudou Celene a sair do corpo. Na sala encontraram-se com Otaviano. - Amigos - começou ele -, quero informar que vocês foram escolhidos para receber um espírito como filha. 126 ETERNAMENTE AMIGOS - Se fomos escolhidos, só podemos dar graças por merecer essa honra - respondeu Luiz. - Porém - disse Otaviano -, ela viverá somente até os quinze anos. É o tempo que esse espírito necessita para se reequilibrar. Vocês concordam assim mesmo? - É lógico que concordamos! - respondeu Celene com entusiasmo. - Vamos poder conhecê-la antes do nascimento? perguntou Luiz. - Acredito que sim. Mas aguardem. Eu os informarei - concluiu Otaviano. Então passaram a programar a visita para o dia seguinte. Otaviano ficou encarregado de acompanhar Ricardinho. Marina acompanharia Jaiminho. Naquela noite, Jaiminho foi dormir cedo, graças aos passes que Marina aplicou nele. Jaiminho saiu do corpo e encontrou a garota na sala, sorridente como sempre. - Que surpresa é essa? - perguntou ele. - Você não queria visitar o Gabriel? Pois iremos hoje. - Vai mais alguém? - Sim, vamos encontrar o Otaviano e o Ricardinho. -Ricardinho...? -Sim. Encontraram-se conforme o combinado no centro espírita em que Luiz trabalhava e lá estavam os três, Otaviano, Jaiminho e Ricardinho. Após os abraços costumeiros, e o abraço demorado entre Ricardinho e Jaiminho, para matar a saudade, seguiram para o posto de socorro. Chegando, Marina 127 ELIZABETH ARTMANN pediu que esperassem do lado de fora e foi preparar a surpresa. Aproximou-se do leito de Gabriel, que estava lendo um livro. Quando viu Marina se aproximar, Gabriel colocou o livro na mesinha ao lado. - Já estava impaciente com sua ausência - disse ele. Você me acostumou mal com sua companhia e agora estou dependente de você. - Mas logo não estará mais. O livro que está lendo o tornará independente. - Realmente é uma leitura fascinante. Não fazia idéia do que é a realidade espiritual. É até estranho estar falando assim, afinal sou um espírito e devia conhecer essas coisas. - Fique tranqüilo que isso não é privilégio seu. Existem milhões de espíritos que desconhecem a própria condição de espíritos. - Esse é um privilégio que eu não queria mesmo. - Só que agora você terá um privilégio do qual vai gostar muito. - E que privilégio é esse? s - E uma surpresa para você. - Surpresa? - É. Veja. - Marina apontou para a porta enquanto os visitantes iam entrando. - Não acredito! É miragem? - Não, é verdade. O grupo se acercou do leito e Gabriel não sabia o que fazer. Por fim, Otaviano se aproximou e o abraçou. Em seguida, Jaiminho abraçou os dois e Ricardinho completou o abraço, ficando os quatro abraçados. 128 ETERNAMENTE AMIGOS Era maravilhoso ver o grupo se reencontrar depois de tanto tempo. A amizade verdadeira persistia, apesar dos desencontros e das tragédias que os envolveram. Agora teriam tempo para conversar e esclarecer o engano que causou tanta tristeza. Poderiam trilhar juntos o caminho da luz. Marina e Tomás elevaram o pensamento e fizeram uma prece de agradecimento pelos esforços despendidos. Raios luminosos envolviam o grupo. A felicidade era tão grande que foi impossível evitar as lágrimas. 129 onze Os dias seguintes transcorreram sem novidades. Os amigos voltaram a se encontrar mais vezes e conseguiram esclarecer tudo o que havia acontecido. Otaviano contou em detalhes seu drama quando estava em poder dos cavaleiros e as torturas pelas quais passou. Gabriel compreendeu e perdoou seu amigo. Nunca a Lei de Causa e Efeito é burlada. De alguma forma ela tem que ser cumprida. Marina foi até o leito de Gabriel e, como sempre, encontrou-o concentrado na leitura de um livro. - Olá, como o amigo tem passado? - perguntou ela. - Tenho passado muito bem e, para ser sincero, já estou me sentindo meio inútil... fico aqui sem fazer nada, só ocupando o tempo de vocês. s - E justamente sobre isso que vim falar. Se for de seu desejo, poderá seguir para uma colônia, onde poderá trabalhar e estudar. Gabriel ficou olhando para ela com ar de preocupação. - E então? O que me diz? - perguntou Marina carinhosamente. 130 ETERNAMENTE AMIGOS - Gostaria muito de ir para uma colônia, mas nos últimos dias tenho ouvido um chamado não sei de onde, como se alguém pedisse socorro para mim. E, enquanto não atender a esse chamado, não irei para uma colônia. - Entendo sua preocupação, mas atender a chamados de socorro nas regiões umbralinas é trabalho da equipe de socorristas. Você ainda não está preparado para executar essa tarefa. - Você se esqueceu que estive durante séculos nessa região? Conheço o lugar como poucos. Não teria dificuldade em prestar esse socorro. - Apenas por curiosidade, como o chamado chega até você? - Simplesmente sinto que alguém está me chamando. s E como uma voz soando na minha cabeça. - Sim, mas por qual nome o chamam? - Zolthan. - Compreendo então por que você quer ir. Mas seria interessante que você fosse acompanhado por uma equipe de socorri stas. - Seria ótimo. - Então pedirei para Umberto nos acompanhar. Gabriel concordou e Marina ficou de falar com Umberto. Marina em seguida foi conversar com Florence. Ela o encontrou em um animado diálogo com Jeremias. - Olá, amigos. Como vão? - Estamos muito... bem, dona Marina - disse Florence com seu jeito peculiar de falar. 131 ELIZABETH ARTMANN - Quero informar que já estão prontos para seguir para uma colônia. Você, Florence, irá se preparar para a reencarnação e você, Jeremias, se desejar, poderá estudar e trabalhar. Ambos ficaram em silêncio. Já tinham se acostumado com aquele lugar e a idéia de deixá-lo era triste para eles, mesmo sabendo que iriam para um lugar melhor. Marina não quis criar constrangimentos forçando algum comentário e se despediu. Foi à procura de Umberto. Ela o encontrou como sempre no centro espírita. - Umberto, vamos precisar mais uma vez de sua ajuda - disse Marina, que contou a ele o desejo de Gabriel. - E ele está pronto para ir? - Sim. Quando você marcar, iremos. - Está bem. Vamos aproveitar amanhã que não haverá trabalho na Casa. - Ótimo, comunicarei ao Gabriel. Marina voltou para o posto de socorro e comunicou ao Gabriel. Procurou por Otaviano e pediu que ele fosse também. Na noite seguinte, estavam todos reunidos no posto de socorro e prontos para seguir em direção aos chamados que Gabriel ouvia. Umberto aproximou-se dele e disse: - Mentalize os chamados e vamos na direção de onde vêm. Gabriel concentrou-se e começou a andar. Todos o seguiram. Caminharam muito, entrando em regiões trevosas. Os chamados iam cada vez ficando mais claros. Finalmente puderam ver ao longe uma clareira com uma fogueira e muitos espíritos em volta. Foram se aproxi- 132 ETERNAMENTE AMIGOS mando e puderam ver também alguns espíritos amarrados com correntes em troncos de árvores ressecados e retorcidos. Aproximaram-se mais e os espíritos que estavam em volta da fogueira vieram na direção deles. - Alto lá. Quem vem aí? - perguntou um espírito que parecia soldado e demonstrava trejeitos ameaçadores. Os outros começaram a se juntar com os mesmos modos. - Viemos em paz. Não queremos criar confusão respondeu Umberto com tranqüilidade. - Aqui não tem nada para vocês - disse o que parecia soldado. Gabriel, que se mantinha afastado do grupo, quase imperceptível, ao notar que o espírito era violento e que começara a ficar exaltado, aproximou-se. Um daqueles que estavam amarrados era Beá. Ela estava muito fraca, mas, ao levantar a cabeça para ver o que estava acontecendo e deparar com aquela figura gigantesca e familiar, murmurou, quase sem voz: -Zolthan! Todos olharam para ela e em seguida para Gabriel. - Zolthan? - estranhou um dos espíritos que estava junto àquele que parecia soldado. - Zolthan é muito diferente desse aí. Não só Beá estava amarrada, mas também todo o grupo do qual ela fazia parte. Tadeu olhou para Gabriel. Apesar de ele estar diferente, reconheceu-o. - É ele, sim - gritou. O espírito que parecia soldado não conhecia Zolthan pessoalmente, só pela fama. Ele se afastou receoso. 133 EUZABETH ARTMANN Gabriel aproximou-se de Beá e abaixou-se na sua frente, dizendo carinhosamente: - Era você que me chamava, não era? - É você, mesmo, Zolthan? Está tão diferente! - Zolthan não existe mais. Meu nome é Gabriel. - Você vai nos ajudar? - perguntou Beá entre lágrimas. - Não tenho mais ninguém a quem pedir ajuda. - you ajudá-la. Se os outros quiserem, os ajudarei também. - Esses espíritos não nos deixarão sair daqui de forma alguma - disse Tadeu. - Eles nos amarraram com essas correntes grossas e vão nos manter como escravos. Estamos aqui há muito tempo sem poder sair. - Beá, você quer vir conosco? - perguntou Gabriel. - Sim - respondeu ela. Gabriel colocou a mão na corrente que amarrava Beá dissolvendo-a como se fosse feita de fumaça.16 Beá esfregou os pulsos e em seguida, de forma impulsiva, deu um abraço em Gabriel. Ele correspondeu meio acanhado ao abraço e ela se entregou ao choro. Depois de alguns instantes, se recompôs, olhou para os olhos de Gabriel, que lhe transmitiam paz, e disse emocionada: 16 -Essas correntes são fluídicas. Trata-se de um processo de indução mental em que espíritos impõem a outros, ainda atrasados e muito ligados às vibrações físicas, algemas, correntes, celas prisionais ou sofrimentos morais dos mais variados matizes. Rigorosamente, devemos nos lembrar de que os espíritos vivem em afinidade com o que pensam. Por isso, podem sentir-se num inferno, num pântano, acorrentados (veja O Livro dos Espíritos, segunda parte, cap. l, questão 100, "Escala Lspínta" e quarta parte, cap. 2, questão 1012, "Paraíso, Inferno e Purgatório", Peüt Editora). (N.E.) 134 ETERNAMENTE AMIGOS - Você não pode ter sido Zolthan. Está tão diferente! Sinto-me muito bem junto a você. - Muitas coisas aconteceram e eu entendi que há muito o que aprender, que desperdicei muito tempo e que chegou a hora de recuperar esse tempo perdido. - Você vai ajudar os outros? - Sim, se eles quiserem ser ajudados. Beá olhou um por um e todos concordaram. Até Tadeu, com toda a sua teimosia, compreendeu que precisava de ajuda e concordou. Gabriel tocava as correntes e estas desapareciam sob os olhares perplexos dos espíritos que os mantinham prisioneiros. Eles não podiam fazer nada. Quando estavam todos livres, saíram daquele lugar. No caminho, já bem distante, Umberto parou, pediu que ficassem o mais próximo possível e disse: - Vocês estão livres por agora desses espíritos, mas isso não significa que ficarão livres para sempre. Poderão voltar a ser apanhados. Gabriel poderia ter seguido o caminho dele, mas preferiu vir ajudar vocês. Agora são livres para decidir o que fazer. Podem continuar aqui ou podem vir conosco, para um posto de socorro e depois para uma colônia. - Eu estou cansada dessa situação. Gostaria de tentar algo melhor - disse Beá. - Vejo pelo que fizeram com Gabriel que é um lugar muito bom e vai me ajudar muito. Quero ir com vocês. Umberto olhou para os outros. Todos concordaram em ir para o posto de socorro e assim seguiram em frente. 135 ELIZABETH ARTMANN Mais um grupo estava livre das trevas e caminhava em direção à luz e conseqüentemente à evolução, já que retornaria para sua trajetória momentaneamente esquecida. No posto de socorro, após acomodar os recém-chegados, Marina foi conversar com Gabriel. - Como se sente estando do lado de quem ajuda? - É uma sensação muito estranha, diferente, difícil de definir. Mas é muito boa. - Agora você já pode seguir o seu caminho porque não tem mais nada que o prenda aqui, não é? - É verdade, agora já posso ir para uma colônia. Realmente não tem mais nada que me prenda à crosta. - Prepare-se então porque virão alguns companheiros da colônia para acompanhar você, Florence e Jeremias. - Já estou sentindo saudades de você e de meus amigos. Por sinal, eu queria saber se vamos nos ver ainda, se voltarei a ver meus amigos. - É lógico que sim. Sempre faremos visitas a você. Não se preocupe. Agora preciso ir. Otaviano está me esperando. - Dê um abraço nele por mim. - Darei, sim. Até logo. Antes de sair do posto de socorro, Marina foi ver Florence e Jeremias. Como sempre, eles estavam juntos. - Amigos, fiquem preparados. Em breve virão alguns companheiros da colônia para acompanhar vocês até lá. Está bem? - Está, sim, dona Marina - disse Jeremias. - Não me chame assim, Jeremias. Sou simplesmente Marina. 136 ETERNAMENTE AMIGOS Florence riu e Jeremias ficou encabulado. - Tenho que ir agora, mas voltarei para me despedir de vocês. Florence correu para abraçar Marina e começou a chorar. - Não fique assim, amigo. you visitar vocês na colônia. - Promete? - É lógico que prometo. Fiquem em paz. Marina foi ao encontro de Otaviano, que fazia companhia a Ricardinho na clínica. Ricardinho estava acordado e bem-disposto. Junto a ele estavam Euclides, Jaiminho, Luiz e o delegado. Marina, depois de cumprimentar Otaviano, prestou atenção no que o delegado estava falando. - Pois é, senhor Euclides, nosso assunto com seu sobrinho já está encerrado. Ele não tem antecedente criminal e a droga era fornecida por amigos, que já foram identificados. Estamos observando essas pessoas, para que nos levem aos verdadeiros traficantes. - E sobre os assassinatos? O senhor sabe de alguma coisa? - perguntou Euclides. - Sim. Na prefeitura, seu irmão não gozava de prestígio. Ao contrário, conquistou muitos inimigos. Um deles é um fiscal que nos deu toda a história. Ele nos contou sobre uma certa boate que era protegida pelo doutor Marcos. Fizemos algumas averiguações, montamos vigilância no local e finalmente conseguimos pegar em flagrante o dono da boate recebendo uma grande quantidade de droga. Com ele, 137 ELIZABETE ARTMANN prendemos mais três indivíduos, e um deles deu com a língua nos dentes sem ao menos ser pressionado. Confessou ter entrado na casa com um dos outros e matado o casal. - Mas por que eles fizeram isso? Foi assalto? - perguntou Jaiminho. - Não, pelo que deu para apurar, o doutor Marcos recebia dinheiro do dono da boate para encobrir os negócios sujos. Só que o doutor Marcos começou a querer muito dinheiro e por isso o dono da boate resolveu eliminá-lo. Para não deixar testemunhas, eliminaram também a mulher. - Isso significa que quando estiver bom, ou seja, quando tiver alta aqui da clínica, posso ir embora com meu tio? perguntou Ricardinho ao delegado. - Isso mesmo, você está liberado. Se precisarmos de mais alguma informação, temos o endereço do seu tio. - Você vai mudar da cidade? - perguntou Jaiminho, preocupado. - Não, é só força de expressão. Não combinamos que você iria me levar no centro espírita? Quero terminar o curso aqui mesmo e compreender esse assunto sobre mediunidade. Marina, vendo que o assunto havia mudado, voltou-se para o amigo e disse: - Parece que as coisas estão se encaixando. r - E verdade, mas preciso de sua ajuda de novo. Vamos procurar os pais de Ricardinho? - perguntou Otaviano. - Irei com o maior prazer. Quando? - Hoje mesmo. E assim os dois dirigiram-se às regiões que antecedem o umbral à procura de Marcos e Judith. Trata-se de uma 138 ETERNAMENTE AMIGOS região neutra, onde há um grande número de espíritos que, não sendo totalmente maus, não são atraídos pela energia negativa que caracteriza o umbral. Eles ficam ora nessa faixa, ora na crosta, pois se sentem bem no meio de encarnados. Encontraram primeiro Marcos. Estava com um grupo de obsessores e não deu atenção aos socorristas. Quando falaram que foram ali a pedido de Ricardinho, ele soltou uma gargalhada: - Aquele pirralho está com dor na consciência por eu ter morrido? Por não ter cumprido o prometido? - Tem certeza que não quer ir conosco, Marcos? perguntou Otaviano. - Me deixem em paz. Vão atazanar outro. Tenho mais que fazer - disse Marcos saindo com o grupo em direção à cidade. Umberto, Otaviano e Marina ficaram olhando o grupo se afastar fazendo algazarra. Continuaram sem fazer comentários porque era sempre triste deparar com aquele tipo de situação. Depois de andarem bastante, encontraram Judith. Estava próxima a um grupo de espíritos, mas não estava com eles, parecia ser rechaçada. Mantinha-se a certa distância, com receio de se aproximar. Estava levemente desorientada. Quando viu os socorristas se aproximando, foi ao encontro deles. - Amigos, finalmente vocês chegaram. Preciso ir para casa me arrumar. Meu marido vai chegar a qualquer momento e eu não sei para que lado fica minha casa. Vocês podem me ajudar? Marina se aproximou dela e disse carinhosamente: 139 ELIZABETH ARTMANN - Judith, querida, podemos levar você para um lugar muito bonito. Você poderá tomar banho e pôr uma roupa limpa. Quer ir conosco? - Quero, sim. Mas e o meu marido? - Não se preocupe com ele. Seu marido está preocupado com outras coisas. Venha conosco. Voltaram para o posto de socorro. Acomodaram Judith e deram a ela medicamentos para que adormecesse. Assim começaria seu tratamento. O grupo de socorristas veio e levou Gabriel, Florence e Jeremias para a colônia. Antes de Florence iniciar os preparativos para a reencarnação, foi providenciado um encontro entre ele, Luiz e Celene. Foi um encontro emocionante. Algum tempo depois nasceu uma bela menina naquela família. A criança foi motivo de grande alegria. Já era final de ano. O Natal estava próximo. Numa noite clara, os amigos Gabriel, Otaviano, Ricardinho e Jaiminho voltaram a se encontrar, depois de muito tempo. Gabriel reuniu os seus amigos de outrora e, num só abraço, eles disseram juntos, numa só voz: - Agora é para valer, eternamente amigos! 140 Allan Í o Evangelho livro dos Espíritos /U l A N, K-A R ° E Ç o 4 Livro dos O Evangelho Segundo o Espiritismo O livro espírita mais vendido agora disponível em moderna tradução: linguagem acessível a todos, leitura fácil e agradável, notas explicativas. Disponível em três versões: • Brochura (edição normal) • Espiral (prático, facilita seu estudo) • Bolso (fácil de carregar) O Livro dos Espíritos Agora, estudar o Espiritismo ficou muito mais fácil. Nova e moderna tradução, linguagem simples e atualizada, fácil leitura, notas explicativas. Disponível em três versões: • Brochura (edição normal) • Espiral (prático, facilita seu estudo) • Bolso (é fácil de carregar) O Livro dos Médiuns Guia indispensável para entender os fenômenos mediúnicos, sua prática e desenvolvimento, tradução atualizada. 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