O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS Dimitki Dimoulis Este livro foi digitalisado e corrijido por Alberto Morgado, em junho de 2006, destinando-se para o uso esclusivo de pessoas portadoras de deficiência visual O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS Introdução prática às relações entre direito, moral e justiça Dimitki Dimoulis 2. edição revista e atualizada com a tradução de texto de Lon L. Fulliir, parte da obra The morality of law (revised edition, New Haven and London, Yale University Press, 1969, p. 245 a 253) O 1964 by Yale University (c) 1969 by Yale University, revised edition y."n(v7o-2003. 345 desta edição: 2005 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. Diretor Responsável: Carlos HenRiQu de Carvalho Filho Visite o nosso site: www.rt.com.br Serviço de Atendimento ao Consumidor: Tel. 0800-702-2433 (ligação gratuita, tie segunda a sexta-feira, das 8 às 17 horas) e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt.com.br Rua do Bosque, 820 Barra Funda Tel.(0xx! 1)3613-8400 Fax (Oxxl 1) 3613-8450 CEP 01136-000 - São Paulo, SP, Brasil TODOS OS DIREITOS Ri-SF-RVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização eou a recuperação lotai ou parcial, bem como a inclusão de qualquer pane desta obra ein qualquer sistema ile processamento de dados. Hssas proibições aplicam-se também as características gráficas da obra e à sua editoração. A violação cios direitos autorais 6 punível como crime (art. IK-t e parágrafos, do Código 1enal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a I lüda Lei 9.610. de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). Impresso no Brasil (08-2005) ISBN 85-203-2774-5 SUMARIO APRESENTAÇÃO Dimitri Dimoulis 7 1.Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos 7 . 2.Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a "justiça de transição" 10 ; 3.Direito positivo ou direito justo? 14 ; NOTA EXPLICATIVA-Dimitri Dimoulis 23 Primeira Parti; O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS - Lon L. Fuli.hu 27 ; Primeiro Deputado 33 Segundo Deputado 35 . Terceiro Deputado 37 Quarto Deputado 41. Quinto Deputado 43 Segunda Parti; CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE O CASO DOS DENUNciANTES INVEJOSOS - Dimitri Dimoulis r. 47 Opinião do Prol. Goldenage 51 Opinião do Prof. Wcnclelin 59 6 O CASO DOS DeNUNCIANTeS INVEJOSOS ; Opinião da Profa. Sling - 65 Opinião do Prof. Satcnc 71 Opinião da Profa. Bcrnadolti 79 BIBLIOGRAFIA 87 APRESENTAÇÃO 1.Lon Fuller: dos Exploradores de Cavernas aos Denunciantes Invejosos Lon Luvois Fuller (1902-1978) nasceu em Hereford no Estado do Texas.2 Estudou economia e direito em Stanford e atuou como professor de teoria geral do direito, inicialmente nas Faculdades de Direito de Oregon, Illinois e Duke e, a partir de 1940, na renomada Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, onde trabalhou ate 1972. Fuller publicou muitas obras de direito Civil, de filosofia e de teoria do direito. Deve, porém, sua fama a um breve ensaio intitulado O caso dos exploradores de cavernas. Esse trabalho, publicado pela primeira vez em 1949, foi lido e comentado por estudantes e professores de direito em todo o mundo, tendo sido inclusive traduzido para vários idiomas. A tradução para o português, publicada pela primeira vez em 1976, obteve um considerável sucesso editorial.3 " Pela leitura crítica do presente volume e pelas preciosas sugestões agradeço à professora Ana Lucia Sabadell e ao professor Theodomiro Dias Neto. : -Sobre a vida e a atuação acadêmica de Lon Fuller, cf. SUMMERS, Robert. Lon L Fuller. Stanford: Stanford University Press, 1984. p. 3-13. " PULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Fabris, 1999. Nova tradução em: FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo: Lcud, 2003. 8 No referido ensaio, Fuller apresenta um caso imaginário. Cinco cientistas ficam presos em uma caverna sem alimentos suficientes para sobreviver até que o resgate desobstrua a entrada. Quatro entre eles decidem matar o quinto colega para que possam se alimentar, sendo esta a única possibilidade para salvar as próprias vidas. Será que eles devem ser punidos por homicídio doloso? A história lembra mais o roteiro de um filme do que um sóbrio estudo de filosofia do direito. Na realidade, Fuller não querdivertirnem apavoraro leitor. Seu objetivoéprovocaruma discussão sobre o que éjusto e injusto, ou seja, uma discussão sobre o que é direito. O autor não oferece uma resposta definitiva. Limita-se a expor várias opiniões sobre uma possível condenação dos quatro exploradores e nos convida a refletir sobre o caso, discutindo estas opiniões. Lon Fuller publicou em 1964 sua mais profunda e original obra, intitulada The morality of law (A moralidade do direito). Essa publicação causou um grande interesse, tendo sido comentada pelos mais importantes filósofos do direito e reeditada diversas vezes. Nessa obra encontramos uma inovadora análise das relações entre o direito e a moral. Fuller adotou uma posição moralista, propondo a definição e aplicação do direito positivo à luz dos imperativos morais. Fuller destacou-se, assim, como um " Utilizamos a 29. reimpressão da segunda edição da obra: FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969. Sobre os posicionamentos teóricos de Fullercf. SUMMERS, Robert. Lon L Fuller. Stanford: Stanford University Press, 1984; ALDAY, Rafael Escudero. Positivismoy moral interna de! derecho. Madrid: Centro de estúdios políticos y constitiipionnles, 2000. 9 dos principais contestadores do filósofo do direito Herbert Lionel Adolphus Hart (1907-1992) que sustentava, no mesmo período, as posições do positivismo jurídico, 5 Em A moralidade do direito Fuller incluiu um texto intitulado O problema do Denunciante Invejoso. O autor informa que utilizou esse texto como material de apoio em seus cursos de teoria do direito e também como introdução à problemáticajurídica, distribuindo esse mesmo texto entre os alunos de primeiro ano da Faculdade de Direito de Harvard, onde ele ministrava a disciplina de introdução ao direito.6 Fuller apresenta nesse texto um caso que é bastante diferente do caso dos Exploradores de Cavernas. Durante uma ditadura, muitas pessoas denunciaram seus inimigos sabendo que os tribunais do país, aplicando a legislação da época, pronunciariam a pena de morte para delitos que, objetivamente, não eram graves. A pós a queda do regi me ditatorial, os denunci antes, que Fuller chama de "invejosos", foram objeto de execração popular. Muitas pessoas exigiram uma punição, mesmo se, formalmente, os denunciantes não cometeram nenhum delito, tendo simplesmente levado a conhecimento das autoridades fatos puníveis segundo a legislação em vigor. (5) 16) HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; Essays injurispntdencaand philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. A polêmica entre Hart e Fuller iniciou-se com a publicação do seguinte texto: HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the separation of law and morals. Harvard Law Review, v. 71, n. 4, 1958. p. 593-629. A resposta de Fuller encontra-se em: FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to law. A reply to professor Hart. Harvard Law Review, v. 71,n.4, 1958. p. 630-672. FULLER, Lon L. The morality of law. New Haven: Yale University Press, 1969. p. vii. mg!?- - -.: í3TSfK!m"~. 10 2.Punir ou perdoar os crimes de uma ditadura? Sobre a "justiça de transição" : O caso dos Denunciantes Invejosos é imaginário. Foi pensado por Fuller que possuía um "talento mitopoético", como observou Herbert Hart.7 Mesmo assim, Fuller elaborou o caso com base na experiência das ditaduras do século XX e, principalmente, do regime nazista na Alemanha. 8 Essas ditaduras se apresentavam formalmente como Estados de Direito, possuindo uma Constituição e um sistema de leis não muito diferentes daquelas dos países democráticos. Os regimes democráticos que sucederam às ditaduras enfrentaram o dilema que aponta Lon Fuller no caso dos Denunciantes Invejosos: perdoar ou punir os crimes, os excessos e as injustiças ocorridas durante as ditaduras? Temos aqui um problema conhecido como "justiça de transição" (transitional justice). Dependendo do país e do momento histórico, tal problema foi tratado de variadas formas. 9 HART, Herbert Lionel Adolphus. Essays hi jurisprudence and philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983. p. 363. Cf. a análise dso casos similares que foram levados a julgamento na Alemanha após a queda do nazismo em: MERTENS, Thomas. Radbruch and Hart on the grudge informer: a reconsideration. Ratio juris, v. 15,n.2,2002. p. 186-205. Ver a extensa apresentação das soluções dadas em vários países em: KR1TZ, Neil (Org.). Transitional justice: how emerging democracies reckon with former regimes. Washington: United States Institute for Peace Press, 1995. 3 v. Cf. ELSTER, Jon. Closing the books. Transitional justice in historical perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2004;TEITEL, Ruti. Transitional justice. Oxford: Oxford University Press, 2000; MINOW, Martha. Between vengeance and forgiveness: facing history after genocide and mass violence. Boston: Beacon Press, 1999; AMBOS, Kai. Impunidady "fr"-iw"ít;-VT !( -(! APRF.SU.NTAÇAO II Em alguns países os responsáveis decidiram "esquecer" o passado, colocando "um ponto final". Foi assim concedida uma ampla anistia, ou seja, um perdão geral aos responsáveis e aos colaboradores dos regimes ditatoriais. Esse foi o caminho seguido em alguns países da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil. Em outros países foi decidido processar os golpistas e os responsáveis pelos males causados durante as ditaduras. Quem foi acusado como colaborador do regime se defendeu, alegando que simplesmente aplicava o direito em vigore acatava ordens dadas por seus superiores. Partindo desta lógica, não pode (, ser punido quem cumpre com as suas obrigações legais e muito menos pode ser exigido que alguém resista às leis de uma ditadura, expondo-se a perseguições. Esse argumento deveria levara absolvição de todos, considerando como únicos culpados o restrito grupo dos chefes da ditadura dos quais emanavam todas as ordens! A problemática foi tratada na Alemanha em uma ampla jurisprudência após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945. A maioria dos tribunais alemães descartou o argumento da legalidade do regime nazista com dois argumentos. Em primeiro lugar, foi considerado que as normas jurídicas que con trariam o sentimento de humanidade e de justiça não possuem validade jurídica. Em segundo lugar, foi considerado que as graves violações dos direitos humanos, e principalmente os crimes de guerra eos crimes contra a humanidade (exemplos: genocídio; perseguição por motivos religiosos, étnicos, políticos ou de orientação sexual; guerra de agressão imperialista), devem ser dereclm penal internacional. Buenos Aires: Ad hoe, 1999; SMITH, Gary; MARGALIT, Avishai (Orgs.). Amnestic oder die Politik der uiimcnint; in der Demokratic. Frankfurt: Sulirkamp, 1997. 12 OCAS()DO.SOI:.NUNCIANTI-S1NVI-JÜ.SOS punidos por tribunais nacionais e internacionais. Mas para isso foi necessário criar uma legislação penal retroativa, que violou o princípio da legalidade, provocando críticas e reações. 10 Uma situação em parte semelhante verificou-se após a queda do regime socialista da Alemanha Oriental em 1989 e a incorporação daquele país na Alemanha Ocidental. Os tribunais ocidentais decidiram sobre centenas de casos de responsáveis políticos, militares, juizes e outros funcionários e colaboradores do regime socialista, acusados de terem provocado a morte, privado a liberdade ou causado graves prejuízos materiais e morais a opositores políticos. O caso mais notório foi aquele dos "atiradores do Muro" (Mauerscl)iitzen). Tratava-se de soldados responsáveis pela guarda do Muro de Berlim que separava a parte ocidental da parte oriental da cidade. Os soldados do Muro recebiam ordem de atirar contra qualquer pessoa que tentasse passar, sem autorização, para o setor ocidental da cidade de Berlim. Dezenas de pessoas morreram ou foram feridas na tentativa de atravessar "ilegalmente" esta fronteira. Processados após a anexação da Alemanha socialista, os soldados defenderam sua inocência alegando que: primeiro, 11111 GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribuna! de Nuremberg. 1945- 1946. Rio de Janeiro: Renovar, 2001; NINO, Carlos Santiago. Radical evil on trial. New Haven: Yale University Press, 1998; RATNER, Steven; ABRAMS, Jason. Aceountability for human rights atrocities in international law. Beyond the Nuremberg Legacy. Oxford: Oxford University Press, 200 Í; 11ANKEL, Gerd; STUBY, (icihartl. Stragericliie gegen Mcnschheitsverbreclien. Zuni Viilkersirafreclil 50 Jahre nucli den Niirnberger Prozessen. 1 kmiburg: Hamburger Edition, 1995; REDACTION KR1TISCHE JUSTIZ (Org.). Die juristische Aufarbeitung des Unrechts-Staats. Baden-Baden: Nomos, 1998. p. 265-322 e 383-687. 13 executavam ordens de seus superiores; segundo, a obrigação de atirar contra quem tentasse fugir do país era prevista em lei; terceiro, eventual descumprimento dos deveres militares lhes exporia a duras punições. Mesmo assim, muitos tribunais da Alemanha Ocidental, incluindo o próprio Tribunal Constitucional Federal, consideraram que as leis e as ordens dadas nesse sentido eram nulas por serem manifestadamente injustas e por violarem tratados internacionais assinados pela Alemanha socialista e garantindo o direito à vida e à livre circulação de seus cidadãos. Houve assim condenações de soldados e funcionários do regime socialista. Esses casos reanimaram o debate acerca da postura do aplicador do direito perante "leis injustas" e provocaram novas polêmicas entre os estudiosos. Alguns aplaudiram a postura dos tribunais alemães por terem posto a justiça acima do direito em vigor. Outros se mostraram mais céticos, considerando que seria preferível perdoar. Como podia o soldado que acatavaordens legais pensar que após uma mudança de regime teria sido punido por ter obedecido às leis de seu país? Outros, finalmente, formularam duras críticas contra essa jurisprudência. Sustentaram que, quando há mudança de regime, os atuais donos do poder querem simplesmente se vingar de seus adversários derrotados e aplicam uma "justiça do vencedor" (Siege rjustiz) com o pretexto de que só eles criam e aplicam o verdadeiro direito, o direito justo." Sobre as posições sustentadas na doutrina e na jurisprudência alemã acerca da questão d.: ALEXY, Robert. Maiierscliiitzcn. Zuni Verlüiltnis vou Reclit, Moral mui Strajbarkeit. Hamburg: Joachim Jungius-Gesellschaftder Wissenschaften, 1993; ALEXY, Robert. Derecho injusto, retroactividad y principio de legalidad penal. Lali - 14 O texto de Fuller discute a rica e complexa temática da "justiça de transição" e pode ser de grande utilidade para os estudantes de direito. com efeito, o problema dos Denunciantes Invejosos permite refletir sobre uma questão de particular importância, analisada nas aulas de introdução ao estudo do direito e, com maior profundidade, nos cursos de filosofia e de história do direito. Trata-se da relação entre direito, justiça e moral. 3., Direito positivo ou direito justo? Em torno da definição da justiça e da moral se desenvolvem intermináveis controvérsias. 13 Mesmo assim, a maioria dos doctrina del Tribunal Constitucional Federal alemán sobre los homicídios cometidos por los centinclas del muro de Berlin. Do.xa, 23 197-230,2000; J AKOBS, Günthcr. Crímcncs dei Estado - ilegalidad cn cl Estado. Penas para los homicídios cn Ia fronlcra de Ia cx República democrática alemana? Do.xa, 17-18445-467, 1995; JAKOBS, Günthcr. Supcración dei pasado mediante cl derecho penal? Acerca de Ia capacidad de rendimiento dei derecho penal trás una factura del régimen político. Anuário de derecho penal y ciênciaspeiuiles, 2137- 158, 1994; NEUMANN, Ulfrid. Positivismo jurídico, realismo jurídico y moralismo jurídico cn cl debate sobre "delincucncia estatal" cn Ia antigua RDA. Do.xa, 17-18435-444, 1995; SEIDEL, Knut. ReclUspliilosophisclwAspekteder"Mauerschützcn"-Prozcssc.Bcrv. Dunckcr I lumblot, 1999; MARXEN, Klaus e WERLE, Gerhard (Orgs.). Die sfrafrechtliche Aufarbeitung von DDR-Unrechí: Einc Bilanz. Berlin: Walter de Gruytcr, 1999. No Brasil foi realizado um limitado debate sobre a validade de leis criadas pela ditadura militar e, em particular, da Lei 6.683 de 28.08.1979 que concedeu anistia para todos os crimes de natureza política cometidos durante a ditadura. Cf. os artigos de Fábio Konder Comparato, José Carlos Dias e Hélio Bicudo em: TELES, Janaína (Org.J. Mortos e desaparecidos políticos. Reparação ou impunidade? São Paulo: Humanitas, 2001. p. 55-63, 65-67,69-72,77-79, 85-87. Cl", as referências em DIMOUL1S, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2003. p. 97-109, 120-143. (12) doutrinadorcs modernas considera que a questão da justiça se confunde com a questão da moral. A moral estabelece os comportamentos "justos", ou seja, os comportamentos adequados e aceitos em determinada sociedade. Nesse sentido, a moral impõe aos membros da sociedade determinados padrões de comportamento, seguindo o critério do justo. Por sua vez, a pessoa que é moralmente correta deve fazer o justo adotando regras de comportamento conforme o ideal da justiça social. Em palavras mais simples, a moral se identifica com a justiça porque nunca aquilo que é imoral pode ser considerado justo, nem aquilo que é visto como in jus to pode ser considerado como moralmente correto. Dessa maneira, um dos principais problemas da teoria e da filosofia do direito envolve as relações entre o comportamento legalmente imposto (ou permitido) e o comportamento que é considerado moralmente justo. O que deve acontecer quando uma norma jurídica se revela injusta, ou seja, quando essa norma contraria as opiniões da sociedade sobre o correto e o adequado? O que deve fazer o intérprete do direito quando as normas em vigor levam a resultados injustos ou inaceitáveis? O que deve ocorrer quando o direito do passado passa a ser considerado como injusto ou imoral? Deve ser punido quem criou e aplicou esse direito tido como injusto? Muitas vezes constatamos um forte descompasso entre os mandamentos do legislador e a solução que é considerada justa pelo intérprete do direito ou pela maioria da população. DAUCHY. 1icrrc. Moral. In: ARNAUD, Anclré-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e de .sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 506-508; JESTAZ, Philippe. Le droit. Paris: Dalloz,2002. p. 33; KOLIJ-R, Peter. TheoricdesRcehts. Eine Einfühnmy,, Wien: Bolilau, 1997. p. 255-316. 16 Em primeiro lugar, esse descompasso pode ser devido a insuficiências do legislador. Isso ocorre quando o regulamento genérico não se ajusta a um caso concreto 15 ou quando a evolução social tornou insatisfatório o próprio regulamento. 16 Em segundo lugar, o descompasso entre o legalmente imposto e aquilo que é considerado justo pode ser devido a uma legislação que protege os interesses políticos e econômicos de determinados grupos sociais, prejudicando a maioria da população. 17 Finalmente, esse descompasso pode ser devido ao exercício do poder por governos autoritários que oprimem os direitos fundamentais da maioria. Esse é o caso das ditaduras do século XX, que causaram injustiças e discriminações por meio de leis e decisões administrativas.11 Os problemas não terminam por aqui. Mesmo quando as decisões do legislador parecem justas e adequadas, encontramos " exemplo: o legislador pune o furto mesmo quando o valor da coisa é pequeno (art. 155, § 2.°, do Código Penal). Devemos considerar que comete esse crime mesmo quem furta um objeto de valor ínfimo, por exemplo, um chiclete? "" lixemplo: oart. 124 do Código Penal, em vigor desde 1940, pune o aborto mesmo quando for realizado a pedido de uma gestante que enfrenta sérios problemas psicológicos, financeiros etc. e não pode criar o filho. em nossos dias, as autoridades do Estado praticamente deixaram de perseguir quem realiza aborto em tais condições. "7 O mais conhecido exemplo é a legislação tributária, criticada por distribuir os impostos de forma injusta, essa crítica e pertinente, já que, no Brasil, os trabalhadores assalariados assumem a maior parte da carga tributária. exemplo. o Ato Institucional 5, de 13.12.1968, que conferiu ao Presidente da República o poder de "suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos", quando isso estivesse "no interesse de preservar a Revolução" (os militares denominavam a ditadura de "Revolução"). 17 na sociedade opiniões divergentes sobre o exato conteúdo das leis. Todos concordam, por exemplo, que o homicídio é um ato de extrema gravidade e o legislador atuou corretamente quando o tipificou como crime. Não há, porém, acordo geral sobre a pena adequada. Cada vez que a mídia noticia um homicídio grave, uma parte das autoridades políticas e dos cidadãos pede uma punição muito mais dura do que aquela prevista pela lei penal, existindo, inclusive, propostas de introduzir a prisão perpétua e a pena de morte, ambas vetadas no Brasil pela Constituição Federal de 1988 (art. 5.°, XLVII). Outras pessoas sustentam, ao contrário, que as penas criminais não resolvem os problemas sociais; infligem aos condenados inúteis sofrimentos, não ressocializam e, muitas vezes, o meio carcerário simplesmente introduz o condenado no mundo do crime. Por isso, sustenta-se que, mesmo em caso de crimes graves, seria necessário aplicar penas alternativas, priorizando a reeducação dos infratores, oferecer apoio às vítimas e, sobretudo, aplicar políticas sociais para diminuir a marginalização, que em última instância, é o que propicia ações violentas e desesperadas. Constatamos, assim, que em muitos casos o sentimento de justiça encontra-se em descompasso com as previsões legais. Isso pode decepcionar quem inicia o estudo do direito, tendo o desejo de atuar para que a justiça triunfe e para que os conflitos sociais sejam resolvidos da melhor forma possível. Esse desejo de justiça é louvável, mas não pode ser realizado na vida real. Vivemos em sociedades complexas, em que se constatam contínuos conflitos entre interesses e ideologias. É impossível encontrar soluções que satisfaçam a todos: a solução que é considerada justa (e agradável) por determinadas camadas da população recebe, necessariamente, as críticas dos demais. 18 Isso não deve causar estranheza, já que as leis são editadas após negociação política e votação nas casas legislativas, existindo uma minoria que "perde" e, portanto, tem seus interesses prejudicados. O legislador deve sempre decidir. E decidir significa escolher entre opiniões contrárias, descontentando uma parte dos cidadãos. 19 Nesse sentido, sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito positivo) e as opiniões de cada pessoa ou grupo sobre ajustiça. O problema torna-se mais agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada alguns, mas se revela claramente injusta ou inadequada. O que fazer, por exemplo, quando uma ditadura priva os cidadãos de suas liberdades, quando um governo conservador cria leis que discriminam os negros ou as mulheres ou quando um governo, na tentativa de enfrentar uma verdadeira ou suposta "crise econômica", corta os benefícios sociais dos trabalhadores, aumentando a miséria? Diante desses problemas os filósofos do direito adotam duas posições principais: alguns optam pela "tese da separação" entre o direito e a moral; outros consideram que existe uma forte relação entre o direito e a moral, abraçando a "tese da conexão". 20 " O verbo "decidir" provém do latim decido, que significa cortar. Quem decide toma uma posição definitiva no conflito de interesses e de opiniões. "Dá um corte" e põe um termo às controvérsias. (20) Proponho assim a classificação das teorias jurídicas em função da posição adotada no debate sobre as relações entre direito e moral. Para uma da distinção entre positivismo e moralismo jurídico, cf. DIMOULIS, Dimitri. Moralismo, positivismo e pragmatismo na interpretação do direito constitucional. RT169 1-27, nov. 1999. Para uma análise das escolas jurídicas com base nessa distinção, cf". SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jnií- dica. Introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: RT, ; 2002. p. 21-48. AIRi:.SHNTAÇAO 19 A tese da separação encontra-se nas abordagens positivistas. O positivismo jurídico afirma que o direito é um fenômeno normativo diferente das obrigações morais. Quando o operador do direito interpreta as normas jurídicas, não deve levar em consideração as exigências morais. Deve interessar-se exclusivamente pelas normas que possuem validade dentro do sistema jurídico, fundamentando-se na Constituição e nas demais normas criadas pelas autoridades estatais. Em outras palavras, o direito em vigordeve ser aplicado de forma rígida, sem que o operador jurídico se deixe influenciar pela sua opinião pessoal ou mesmo pela opinião da maioria da sociedade sobre o correto, o justo e o adequado. Os partidários do positivismo jurídico lembram que, em cada sociedade, existem muitos sistemas de regras morais e muitas opiniões divergentes sobre ojusto e o correto. Isso significa que se o direito fosse aplicado conforme a opinião de cada intérprete, teríamos um verdadeiro caos, sendo destruída a segurança jurídica. 21 Cada um aplicaria o direito segundo sua visão subjetiva. Os positivistas pensam que, quando o direito se revela injusto ou inadequado, a solução está na sensibilização do legislador na luta política para que sejam reformadas ou abolidas as leis injustas ou inadequadas. A lese da conexão entre direito e moral caracteriza as abordagens moralistas. Seus partidários entendem que o operador do direito deve harmonizar os preceitos morais com as normas jurídicas, já que a finalidade do sistema jurídico é encontrar em A segurança jurídica é uma característica importante dos sistemas jurídicos modernos que prometem a aplicação das normas de forma coerente, evitando surpresas e descompassos na prática do direito. Cf. LUNO, Antonio-Enriquc Pércz. Im segitridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994; DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: RT, 2003. p. 128-131. 20 cada caso uma solução justa e aceita pelos membros da sociedade. Segundo essa visão, o direito não é simplesmente um conjunto de normas criadas pelo legislador, mas integra os mandamentos morais aceitos pela sociedade. A abordagem moralista chega a duas conclusões. Em primeiro lugar, sustenta que uma normajurídicaé válida somente quando respeita os princípios básicos da moral. Em caso de forte contradição entre a norma jurídica e as exigências de justiça, a norma deve ser considerada inválida. Esse é o moralismo da validade, que faz depender a validade de uma norma jurídica de seu acordo com as exigências básicas da moral. Em segundo lugar, os moralistas sustentam que o direito deve ser interpretado em conformidade com os preceitos morais. Fica a cargo do intérprete e, sobretudo, do juiz a harmonização das normas em vigor com as exigências da moral e com os ideais da justiça. Esse é o moralismo da interpretação que propõe interpretar e aplicar as normas jurídicas segundo exigências morais. Existe, também, uma terceira abordagem sobre o direito, que é conhecida como realismo jurídico2 Os realistas concordam em um ponto fundamental com o positivismo jurídico. Admitem que a aplicação do direito não constitui assunto da moral, mas depende da vontade de quem tem o poder para impor determinada decisão. Ao mesmo tempo, porém, os realistas criticam a tese positivista, segundo a qual o juiz deve -- Sobre essa visão cf. MICHAUT, Françoise. Realismo jurídico americano. In: ARNAUI), André-Jean (Org.). Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 667-670; S AB ADBLL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. Introdução a uma leitura externa do direito. São Paulo: RT, 2002. p. 3H-4º. 21 simplesmente aplicar a lei. Na opinião dos realistas, os juizes possuem um poder discricionário extremamente amplo: aplicam o direito conforme suas opiniões subjetivas; recebem influências do meio social no qual vivem e também são influenciados pela situação social e política de determinado momento histórico. Os partidários do realismo jurídico sustentam, pois, que direito é aquilo que os juizes consideram como direito, não se vinculando nem pela suposta "justiça", nem pela vontade do legislador, que muitas vezes é formulada de maneira abstrata e : obscura e impossibilita a aplicação objetiva da norma. ; Os doutrinadores e os filósofos do direito discutem com paixão sobre esses problemas existindo uma contínua polêmica entre os partidários das várias abordagens. Essas controvérsias podem parecer muito abstratas e de difícil entendimento para quem inicia o estudo do direito. Justamente aqui está o grande mérito do texto de Lon Fuller sobre os Denunciantes Invejosos que traduzimos em seguida. Em vez de se limitar a análises teóricas, Fuller apresenta um caso concreto em que a aplicação do direito positivo leva a resultados injustos. O caso dos Denunciantes Invejosos é um dos assim chamados "casos difíceis" (em inglês: liarei cases). A solução não pode ser dada pela simples aplicação de uma norma jurídica. É necessário fazer uma profunda reflexão que envolve o problema da definição do direito em suas relações com a moral e a justiça. Através de várias opiniões sobre o problema da punição dos Denunciantes Invejosos, Fuller introduz o leitor em um debate teórico e filosófico, convidando-o a elaborar sua própria solução. Esse exercício permite refletir sobre a definição, do direito, sobre suas funções na sociedade e 22 sobre os caminhos que permitem sanar possíveis injustiças, : causadas pela aplicação do direito. Para responder a essas questões não existe nenhuma "receita" pronta e certa. Cada um possui a liberdade de formar a própria opinião. DiMITRI DiMOULIS NOTA EXPLICATIVA A primeira parte do livro compreende a tradução do texto de Fuller. O autor apresenta o caso dos Denunciantes Invejosos e elabora cinco diferentes propostas de solução. Na segunda parte do livro, incluímos cinco novos pareceres sobre o mesmo caso, todos de nossa autoria. A idéia de redigir novos parceiros sobre um problema formulado por Fuller não é original. Nas últimas décadas, vários autores de língua inglesa se prestaram ao exercício de estudar o caso dos Exploradores de Cavernas, propondo novas análises. A Stanford Law Review publicou, em 1980, três novas opiniões sobre o tratamento dos Exploradores homicidas, de autoriadeAnthonyDAmato.Em 1993, sete estudiosos apresentaram na George Washington Law Review suas opiniões sobre o mesmo caso, tendo modificado alguns dos dados originais.2 Peter Suber publicou em 1998 um livro sobre o caso dos Exploradores, tendo redigido nove pareceres.3 Finalmente, " DAMATO, Anthony. The spcluncean explorers - Further proceedings. Stanford Law Review 32467-485, 1980; ver também os comentáriosdo mesmo aulorem: D AM ATO, Anthony Oig.).Analytic jurisprudence anthology. Cincinnati: Anderson, 1996. p. 21-35. 1:1 CAHN, Naomi; CALMORE, John; COOMBS, Mary; GREENE, Dwighl; MILLER, Geoffrey; PAUL, Jeremy; STEIN, Laura. The case of the speluncean explorers. Contemporary proceedings. George Washington Law Review 611.754-1.811, 1993. " SUI3ER, Peter. The case of the speluncean explorers. Nine new opinions. London: Routlcdge, 1998. p. 35-107. 24 a Harvard Law Review, que tinha publicado em 1949 o texto original de Fuller, convidou em 1999, na ocasião do qüinquagesimo aniversário desta publicação, seis juristas para redigirem novos pareceres, publicados com uma introdução de David Shapiro."1 No total, foram redigidos nos últimos anos 24 pareceres sobre o caso dos Exploradores de Cavernas, acrescidos aos cinco pareceres originais de Fuller. Curiosamente, ninguém até o presente momento fez o mesmo em relação ao caso dos Denunciantes Invejosos, não obstante o grande interesse que este estudo suscitou entre o público especializado.5 Em nossa opinião, a elaboração de novos pareceres, como os cinco que foram por nós redigidos e que se encontram na segunda parte deste livro com os nomes de cinco imaginários professores de direito, se justifica pelo mesmo motivo que levou muitos estudiosos a fazer uma "revisão criminal" do caso dos Exploradores de Cavernas. A particularidade do texto sobre os Denunciantes Invejosos é a retomada da antiga controvérsia sobre a validade e a moralidade do direito, tema este que permite a realização de uma ampla discussão. Isto é o que nós tentamos fazer, por meio da inserção de novos pareceres. 111 SHAPIRO, David; BUTLER, Paul; DERSHOWITZ, Alan; EASTERBROOK, Frank; KOZINSKI, AexSUNSTEIN, CassWEST, Robin. The case of the speluncean explorers: a fiftieth anniversary symposium. Harvard Uiw Review 1121.814-1.923, 1999. (M Duas obras didáticas em língua espanhola apresentam algumas opiniões sobre o caso dos Denunciantes Invejosos, limitando-se a reproduzir os argumentos apresentados por Fuller: NINO, Carlos Santiago. Introduceión ai análisis dei derecho. Barcelona: Ariel, 1983. p. 18-27; AT1ENZA Manuel. £7 sentido dei derecho. Barcelona: Ariel, 2003. p. 96-99. 25 Nas últimas décadas foram realizadas novas abordagens dos problemas clássicos da teoria e da filosofia do direito. Mesmo os adeptos de antigas correntes de pensamento, como o positivismo e o moralismo jurídico, enriqueceram suas argumentações, tendo publicado novos estudos e formulado novas propostas. Os nossos pareceres propõem soluções do caso dos Denunciantes Invejosos a partir de abordagens teóricas que encontramos em recentes obras de filosofia e teoria do direito, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos. Após ter lido as dez diferentes opiniões sobre o caso dos Denunciantes Invejosos, o leitor terá entendido que nada é pacífico no campo jurídico. Sempre existem controvérsias, não sendo possível encontrar uma única resposta certa nem uma solução simples e justa, como poderia pensar quem ingressa na faculdade de direito. A comparação das opiniões redigidas por Fuller com aquelas que elaboramos meio século depois indica que os estudiosos do direito fizeram progressos, oferecendo novas respostas às questões clássicas da filosofia e teoria do direito. Finalmente, para quem deseja acompanhar o debate contemporâneo, incluímos no presente volume uma lista bibliográfica, na qual o leitor encontra referências a obras das últimas décadas que estudam o problema da definição do direito em suas relações, nem sempre harmônicas, com os ideais da morale da justiça. DimitriDimoulis Primeira Parte O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS1 " Texto traduzido, por Dimitri Dimoulis, do original inglês Lon L. Fuller, The morality of law. New Haven, Yale University Press, 1969, p. 245-253 (Appendix: The problem of (he gnidgc informer). Você foi triunfalmente eleito como Ministro de Justiça de seu país, uma nação de aproximadamente vinte milhões de habitantes. Já no início de seu mandato, você enfrentou um grave problema, que será descrito em seguida. Antes de tudo deve ser apresentado o contexto no qual surgiu esse problema. Seu país teve o privilégio de viver, por muitas décadas, sob um regime pacífico, constitucional e democrático. Infelizmente, há algum tempo começaram os problemas. A vida normal foi interrompida por uma profunda crise econômica e por graves conflitos entre grupos que seguiam diferentes linhas econômicas, políticas e religiosas. O salvador da pátria apareceu na figura do chefe de um partido político ou sociedade que se autodenominava "Camisas-Púrpuras". Em uma disputa eleitoral marcada por sérios conflitos e irregularidades, esse Chefe foi eleito Presidente da República e seu partido obteve a maioria das vagas na Assembléia Nacional. O sucesso eleitoral desse partido foi devido a uma campanha com promessas insensatas e falsificações engenhosas e também à intimidação física causadapor patrulhas notumas de Camisas-Púrpuras, em decorrência das quais muitos adversários do partido não tiveram a coragem de votar. Quando os Camisas-Púrpuras chegaram ao poder não tomaram nenhuma providência no sentido de revogar a Constituição do país ou de reformar algumas partes da mesma. Deixaram igualmente intactos o Código Civil, o Código Penal e os códigos processuais. Tampouco foram tomadas providências oficiais para demitir funcionários públicos ou afastar juizes de seus cargos. Continuaram as eleições periódicas e os votos eram 30 contados de forma aparentemente honesta. Apesar disso, o país vivia sob um regime de terror. Juizes que contrariavam os desejos do governo eram agredidos e assassinados. Ao Código Penal foram dadas interpretações perniciosas para permitir o encarceramento dos adversários políticos. Foram estabelecidos regulamentos secretos, conhecidos somente entre os altos escalões da hierarquia partidária. Foram também editadas leis que criminalizavam retroativamente determinados comportamentos plenamente legais. O governo não respeitava as obrigações impostas pela Constituição, pelas antigas leis ou mesmo por suas próprias leis. Todos os partidos da oposição foram desmantelados. Milhares de opositores políticos foram assassinados, seja nas prisões, seja em ondas de repressão notuma. Foi concedida anistia geral a favor de todos os acusados "que cometeram atos para a defesa da pátria contra a subversão". Essa anistia permitiu a libertação de todos os presos que eram membros do partido dos Camisas-Púrpuras. Entre os beneficiários da anistia não estava ninguém que não fosse membro deste partido. Os Camisas-Púrpuras adotaram uma política que permitia flexibilidade na ação. Algumas vezes agiam como partido político "nas ruas". Outras vezes atuavam por meio dos aparelhos estatais que eles mesmos controlavam. A escolha do método de atuação era questão de pura conveniência. Quando, por exemplo, o restrito grupo da diretoria do partido decidiu aniquilar os ex-socialistas republicanos, membros de um partido que fez uma última e desesperada tentativa de resistência contra o novo regime, criou-se uma controvérsia sobre o método que seria mais indicado para confiscar as propriedades desse partido. 31 Uma facção dos Camisas-Púrpuras, que parecia estar sob a influencia de concepções pré-revolucionárias, queria realizar este confisco por meio de um regulamento que declarasse os bens do partido confiscados por ter este cometido ações criminais. Outros queriam alcançar o mesmo resultado, obrigando os proprietários a doarem seus bens sob a ameaça de armas. Essa facção criticou a solução do regulamento, dizendo que provocaria comentários desfavoráveis ao partido. O Chefe optou pela solução da ação direta do partido, acompanhada por um regulamento secreto que ratificou sua legalidade, confirmando os títulos de propriedade obtidos pelo emprego de violência física. Agora os Camisas-Púrpuras foram derrotados e se estabeleceu de novo um governo democrático e constitucional. O antigo regime deixou, porém, alguns problemas particularmente espinhosos. A responsabilidade de resolvê-los recai sobre você e seus colegas do governo. Um desses problemas é conhecido como caso dos Denunciantes Invejosos. Durante o regime dos Camisas-Púrpuras, muitíssimas pessoas, movidas por inveja, denunciaram seus inimigos pessoais ao partido ou a autoridades governamentais. Entre as atividades que foram objeto de denúncias estava a crítica ao governo, formulada em discussões particulares, a escuta de estações de rádio estrangeiras, o relacionamento com notórios vândalos e baderneiros, o armazenamento de saquinhos de ovos em pó em quantidade maior do que a autorizada, a omissão de informar a perda de documentos de identidade no prazo de cinco dias etc. Dada a situação do Poder Judiciário nesse período, qualquer uma dessas infrações, se fosse comprovada, poderia levar 32 à aplicação da pena de morte. Em alguns casos, as condenações à pena capital foram autorizadas por regulamentos de "emergência". Em outros casos, foram impostas sem tais regulamentos, por meio da decisão de juizes regularmente nomeados em seus cargos. Após a derrota dos Camisas-Púrpuras, formou-se um movimento de opinião que exigiu a punição dos Denunciantes Invejosos. O governo interino, que antecedeu o seu, contemporizou a decisão. No entanto, o assunto tornou-se um problema político explosivo e a decisão não pode ser mais postergada. Em decorrência disso, sua primeira iniciativa como Ministro de Justiça foi estudar o problema. Você pediu a cinco deputados para refletirem sobre o caso e apresentarem suas opiniões em uma conferência. Nessa conferência, os deputados tomaram sucessivamente a palavra, fazendo as seguintes ponderações. PRIMEIRO DEPUTADO Não tenho a menor dúvida de que nada pode ser feito em relação aos chamados Denunciantes Invejosos. As denúncias versavam sobre fatos que realmente eram ilícitos, isto é, contrários às regras estabelecidas pelo governo que, nessa época, exercia o poder do Estado. As sentenças de condenação das vítimas dessas denúncias foram pronunciadas em conformidade com os princípios legais então vigentes. Esses princípios apresentam tamanhas diferenças em relação aos nossos, que podemos considerá-los como detestáveis. Mas isso não impede reconhecer de que tais leis estavam vigentes no país. Uma das principais diferenças entre o direito daquele período e o nosso está justamente no fato de que o nosso reconhece ao juiz um poder discricionário muito menor no âmbito penal. Para nós, o respeito a essa regra (e às suas conseqüências) é muito mais importante do que o respeito à reforma introduzida pelos Camisas-Púrpuras no direito de herança, segundo a qual para a redação de testamento são necessárias duas e não mais três testemunhas. Sem dúvida alguma, a norma que reconhecia ao juiz um poder discricionário, quase ilimitado no âmbito penal, nunca foi oficialmente promulgada, tendo sido aplicada, de forma tácita, na prática. Mas o mesmo vale em relação à regra contraria-por nós aceita-que restringe muito a discricionariedade dos magistrados. 34 governo sem leis. Isso constituiria, uma contradição nos termos. A diferença e de natureza ideológica. Ninguém achaosCamisas-Púrpuras mais repugnantes do que eu. Devemos, porém, reconhecer que a fundamental diferença entre a filosofia deles e a nossa está no fato de que nós permitimos e toleramos a expressão depontos de vistadivergentes, e eles tentaram impor a todos o próprio código monolítico. Nosso sistema de governo considera que o direito é flexível, capaz de expressar e alcançar distintas finalidades. Oponto principal do nosso credo é que qualquer objetivo, devidamente incorporado nas leis ou nas decisões dos tribunais, deve ser provisoriamente aceito, mesmo por aqueles que o rejeitam categoricamente. A esses últimos deve ser dada a oportunidade de conseguir um reconhecimento legal de seus próprios objetivos, por meio de eleições ou no âmbito de um novo processo judicial. Os Camisas-Púrpuras fizeram o contrário. Simplesmente descumpriram as leis com as quais não estavam de acordo, e nem mesmo se deram ao trabalho de revogá-las. Se tentarmos, agora, fazer uma triagem entre os atos desse regime, anulando determinados julgamentos, invalidando certas leis ou considerando como produto de abuso de poder algumas condenações, estaríamos fazendo exatamente aquilo que mais rejeitamos na atuação dos Camisas-Púrpuras. Reconheço que a tarefa de realizar o programa que proponho será árdua e sofreremos fortes pressões da opinião pública. Deveremos, também, tomar as medidas cabíveis para evitar que as pessoas façam justiça com as próprias mãos. Acredito, no entanto, que o caminho que estou indicando é o único que permitirá fazer triunfar, a longo prazo, as concepções sobre direito e governo nas quais acreditamos. SEGUNDO DEPUTADO Curiosamente chego à mesma conclusão de meu colega, indo pelo caminho exatamente oposto. Na minha opinião, é absurdo considerar o regime dos Camisas-Púrpuras como governo legal. Para que um sistema jurídico possa existir não é suficiente que os policiais continuem patrulhando nas ruas e vistam uniformes, nem que a Constituição e as leis permaneçam formalmente em vigor e bem guardadas nos armários. Um sistema legal pressupõe a existência de leis que sejam conhecidas ou pelo menos possam ser conhecidas pelos seus destinatários. Pressupõe, também, uma certa uniformidade na atuação: em casos semelhantes deve ser dado um tratamento semelhante. Pressupõe, finalmente, a ausência de poderes atuando fora da lei, tal como o Partido dos Camisas-Púrpuras, que estava acima do governo e podia, a qualquer momento, interferir na administração da justiça, particularmente quando esta não funcionava de acordo com os desígnios e os caprichos desse poder. Todos esses pressupostos fazem parte do conceito do ordenamento jurídico e não têm nada a ver com as ideologias políticas e econômicas. Na minha opinião, quando os Camisas-Púrpuras conquistaram o poder, deixou de existir o direito, independentemente da definição que será dada a esse termo. Durante esse regime, ocorreu, na realidade, uma suspensão do Estado de Direito. 36 Em vez de ter um governo que respeita as leis, tivemos uma guerra de todos contra todos, feita atrás de portas fechadas, em parques obscuros, em intrigas de palácio, em conspirações nos pátios das prisões. Os atos dos assim chamados Denunciantes Invejosos nada mais eram do que uma fase dessa guerra. Se julgássemos e condenássemos tais atos como criminosos, isso seria tão inadequado quanto a tentativa de avaliar juridicamente a luta pela sobrevivência na selva ou no oceano. Devemos tentar deixar atrás de nós, tal como um pesadelo, esse capítulo da nossa história tão obscuro e fora do império da lei. Se continuarmos a agitar os ódios desse período, seremos contaminados pelo espírito destrutivo e pelo potencial infecsioso de seus miasmas. Por isso concordo plenamente com meu colega na sugestão de deixar o passado no passado. Não façamos nada em relação aos chamados Denunciantes Invejosos. Seus atos não eram nem legais nem ilegais, já que eles não viviam em um estado de Direito, e sim em um regime de anarquia e de terror. TERCEIRO DEPUTADO Considero muito suspeitos os raciocínios que se baseiam em dilemas. Não é adequado admitir que o regime dos Camisas-Púrpuras estava completamente fora da lei, nem considerar que todos os seus atos merecem ser classificados como atos de um governo respeitoso da lei. Sem dúvida alguma, os meus dois colegas apresentaram argumentos poderosos contra essas duas posições extremas, demonstrando que ambas levam à mesma conclusão absurda, ou seja, a uma conclusão moral e politicamente inaceitável. Quem reflete sobre o assunto de forma não emocional percebe claramente que durante o regime dos Camisas-Púrpuras não tínhamos uma "guerra de todos contra todos". Abaixo da superfície política continuavam a ser realizados muitos atos que fazem parte da vida humana normal: celebravam-se casamentos, bens eram vendidos, redigiam-se e executavam-se testamentos. Essa vida normal enfrentava os habituais contratempos: acidentes de automóvel, falências, testamentos nulos, panfletos difamatórios publicados na imprensa. Uma grande parte da vida normal e dos contratempos, igualmente normais, não foi afetada pela ideologia dos Camisas-Púrpuras. Os problemas jurídicos relacionados com esses assuntos eramtratados pelos tribunais daquele período de forma muito semelhante ao período anteriore ao atual. Se quiséssemos declarar como priva- 38 do de fundamento legal e nulo tudo aquilo que ocorreu sob o regime dos Camisas-Púrpuras, criaríamos um caos intolerável. Por outro lado, é impossível sustentar que os assassinatos cometidos nas ruas pelos membros desse partido, sob as ordens de seu chefe, eram atos legais, simplesmente porque o partido conseguiu controlar plenamente o governo e seu chefe tornouse Presidente da República. Se devemos condenar os atos criminosos do partido e de seus membros, seria absurdo legitimar todos os atos avalizados pela autoridade do governo, já que esse governo identificou-se completamente com o partido dos Camisas-Púrpuras. Por essa razão, devemos fazer algumas distinções, como acontece na maioria dos problemas sociais. Devemos intervir nos casos em que a filosofia dos Camisas-Púrpuras penetrou na administração da justiça, afastando-a de suas finalidades e procedimentos habituais. Na minha opinião, devemos considerar como uma das perversões da justiça o caso daquele homem que se enamorou de uma mulher casada e provocou a morte do cônjuge, denunciando-o por um delito totalmente trivial, como o fato de não informar as autoridades da perda de seus documentos de identidade dentro do prazo de cinco dias. Esse denunciante cometeu homicídio, segundo a definição do Código Penal que continuava em vigor no momento da denúncia, já que os Camisas-Púrpuras não procederam à sua ab-rogação. Esse homem causou a morte de uma pessoa que impedia a satisfação de sua paixão ilícita. Utilizou os tribunaiscomo instrumento para realizar suas intenções criminosas, sabendo que os tribunais satisfaziam com presteza qualquer ordem política que os Camisas-Púrpuras consideravam adequada em determinado momento. 39 Existem outros casos igualmente claros. Devo admitir que também há casos muito menos claros. Não podemos, porexemplo, avaliar com facilidade o caso daqueles curiosos que observavam a vida dos outros e denunciavam às autoridades qualquer coisa que lhes parecia suspeita. Alguns desses denunciantes não atuavam com a finalidade de se livrar das pessoas denunciadas, mas com o desejo de prestar serviço e agradar o partido, de diluir suspeitas contra eles (algumas vezes infundadas) ou por pura e simples subserviência ao governo. Não posso opinar sobre o tratamento de tais casos nem fazer recomendações a esse respeito. Seja como for, a existência de casos complicados e de difícil tratamento não deve servir como pretexto para impedir uma atuação imediata em casos plenamente claros, já que ambas as categorias são diferentes e inconfundíveis. QUARTO DEPUTADO Tal como meu colega desconfio muito de qualquer raciocínio em forma de dilema. Penso, porém, que sobre esses casos deve ser feita uma reflexão muito mais profunda daquela que o meu colega apresentou. A proposta de escolher determinados casos entre todos os acontecimentos durante o regime deposto encontra sérias objeçoes. Na realidade, constitui um puro e simples camiso-purpurismo. Gostamos desse direito, então podemos implementá-lo. Gostamos desse julgamento, então podemos admiti-lo. Aquele direito, porém, que não é de nosso agrado deve ser considerado como inexistente. Aquele ato governamental que reprovamos deve ser tachado de nulidade. Se adotássemos essa forma de pensamento, teríamos perante as leis e atos do governo dos Camisas-Púrpuras exatamente a mesma atitude que eles adotaram diante das leis e atos do governo que os precedeu. O resultado seria caótico, permitindo a cada juiz e a cada promotor de justiça criar sua própria lei. Em vez de pôr um fim aos abusos do regime dos Camisas-Púrpuras, meus colegas propõem, na substância, dar continuidade ao mesmo. Existe somente um caminho para lidar com esse problema de modo que seja coerente com a nossa filosofia sobre o direito e o governo. Devemos atuar em conformidade com normas jurídicas devidamente editadas. Isso significa criar umalei 42 especial voltada para o tratamento da questão. Estudemos de forma global e detalhada os vários aspectos do problema dos Denunciantes Invejosos, coletemos todos os dados importantes e esbocemos uma lei para regulamentar todos os seus desdobramentos. Dessa forma, não necessitaremos aplicar antigas leis a assuntos que elas não pretenderam tratar. Devemos estabelecer penalidades apropriadas para as infrações cometidas pelos Denunciantes Invejosos e não tratá-los indiscriminadamente como assassinos, pelo único motivo de que a vítima da denúncia foi executada após uma condenação criminal. Admito que os encarregados da preparação dessa lei enfrentarão problemas particularmente complicados. Entre outras coisas, deverá ser dada uma definição legal da "inveja" e isso não será fácil. Não devemos, porém, nos desanimar diante dessas dificuldades, abandonando a única solução que permitirá sair de um regime de dominação não fundamentado em leis, e sim na vontade de algumas pessoas. QUINTO DEPUTADO Considero que essa última proposta não carece de ironia. O meu colega deseja pôr um termo definitivo aos abusos dos Camisas-Púrpuras e propõe fazê-lo empregando um dos mais odiosos procedimentos do regime dos Camisas-Púrpuras, ou seja, a edição de leis penais retroativas. Meu colega teme que, sem possuir um regulamento específico a tentativa de validar e implementar os atos "lícitos" do regime deposto e anular ou reparar os atos "viciados" criará uma situação caótica. Parece-me que ele não entende o quanto a sua proposta de lei é um remédio perigoso para essa insegurança. Não é difícil defender de forma convincente uma legislação que ainda não foi criada. Todos concordamos que seria maravilhoso ter os fatos fixados no papel de forma clara e definitiva. O que deve, porém, constar nessa legislação? Um dos meus colegas comentou o caso da pessoa que deixou de notificar às autoridades a perda de seus documentos de identidade no prazo de cinco dias. Esse colega entende que a decisão que condenou essa pessoa à pena de morte deve ser reprovada, porque era evidentemente desproporcional à infração cometida. Devemos, porém, lembrar que naqueles momentos crescia muito o movimento clandestino de resistênciacontraos Camisas-Púrpuras e o regime enfrentava agressões contínuas por parte de pessoas com falsos documentos de identidade. 44 Avaliando a situação do ponto de vista dos Camisas-Púrpuras, percebemos que eles enfrentavam um sério problema. A única objeção que pode ser feita à solução por eles dada (além do fato de que nós não gostaríamos que eles resolvessem o problema) é que eles atuaram com um rigor maior do que aquele que pareciam exigir as circunstâncias. Como pensa o colega, tratar em sua lei o caso em discussão e outros parecidos? Queremos negar que durante o regime dos Camisas-Púrpuras existia a necessidade de preservar a ordem pública? Não preciso continuar a análise das dificuldades que provocaria a elaboração dessa proposta legislativa, pois são evidentes para quem quer refletir sobre o assunto. Gostaria de indicar agora a minha própria proposta. Um autor particularmente respeitado afirmou que a finalidade principal do direito penal é a de permitir que se manifeste o instinto humano da vingança. Há períodos históricos nos quais devemos permitir que esse instinto se exprima diretamente, sem a mediação das formas jurídicas. Acredito que vivemos em um desses períodos. Aliás, o problema dos Denunciantes Invejosos começou a se resolver na prática. É cada vez mais freqüente ler nos jornais que um destes lacaios do regime dos Camisas-Púrpuras recebeu sua justa punição emumlugardeserto. A população trata do assunto da forma que considera adequada. Decidindo deixá-la atuar e dando a mesma orientação às autoridades policiais e às promotorias, o problema será prontamente resolvido sem nenhuma intervenção oficial. Sem dúvidas, haverá certas confusões e alguns inocentes serão machucados. A vantagem é que o nosso governo e o nosso sistema jurídico não serão envolvidos no caso e, assim, evi- 45 taremos entrar em um labirinto sem saída, tentando separar o certo do errado no regime dos Camisas-Púrpuras. Qual dessas recomendações será adotada por você em sua qualidade de Ministro de Justiça? Low L. Fuller Segunda Parte CINCO NOVAS OPINIÕES SOBRE O CASO DOS DENUNCIANTES INVEJOSOS Um mês após a conferência com a participação dos cinco deputados, você, Ministro de Justiça, ainda está em dúvida, não podendo decidir sobre a melhor solução para o problema dos Denunciantes Invejosos. Discussões com funcionários do Departamento de Assuntos Legislativos de seu Ministério mostraram que as soluções propostas pelos deputados podem causar problemas jurídicos. Foi-lhe apontado que a edição de uma lei retroativa, que definiria o comportamento "denunciação por inveja", prevendo penas criminais para os Denunciantes, poderia ser declarada - inconstitucional, já que a Constituição em vigor proíbe as leis penais retroativas. A proposta de não fazer nada a respeito desses Denunciantes, além de criar problemas políticos, expõe o governo ao risco de ser processado. Os tribunais poderiam condenar o Estado a pagar altíssimas indenizações por ter deixado sem reparação a patente injustiça que sofreram as vítimas das denunciações invejosas. Diante desse impasse, você decidiu convocar uma nova conferência para ouvir, dessa vez, a opinião de alguns renomados juristas, dos quais se esperava uma adequada orientação. Duas semanas depois, no salão nobre do antigo prédio da faculdade de direito, você deu início aos trabalhos dessa conferência. Participaram do debate cinco professores de direito, que opinaram da seguinte maneira. ! OPINIÃO DO PROF. GOLDENAGE Não posso esconder uma certa mágoa pelo fato de o senhor Ministro ter convidado exclusivamente personalidades políticas na primeira conferência sobre o problema dos Denunciantes Invejosos, apesar de ser esse um problema exclusivamente jurídico. Sabemos que as pessoas não têm uma boa impressão sobre os juristas. Na Idade Média, o povo alemão dizia "advogados, cristãos malvados" (Juristen, bosc Christen) e o próprio Lutero repetiu muitas vezes essa frase. Em nossos dias, devemos ouvir críticas duras e ate piadas sobre a moralidade e a capacidade dos juizes e dos advogados. Tenho, porém, a certeza de que o senhor Ministro não excluiu os profissionais do direito por preconceito ou antipatia. A decisão inicial de consultar os políticos foi ditada por considerações práticas. Nós, juristas, temos a tarefa de estudar e aplicar o direito, mas não o criamos. As normas jurídicas são estabelecidas por aqueles que exercem o poder político. Isso é realmente estranho. Confiamos a construção de casas a arquitetos e engenheiros, pedimos ao contador para fazer a declaração do imposto de renda e quando há vazamentos chamamos o encanador. Porque as leis são feitas pelos políticos, ou seja, por pessoas sem preparação técnica para essa tarefa? Alguém pediriaconselhos médicos a um comerciante pelo simples fato de este ter sido eleito deputado federal? Por que o 52 mesmo comerciante deve ser considerado idôneo para a elaboração das leis, podendo inclusive opinar, como foi o caso dos cinco deputados, sobre o delicado problema jurídico dos Denunciantes Invejosos? Essa situação é o resultado histórico das grandes revoluções ocorridas nos séculos XVIII e XIX, quando vários povos do mundo, liderados pela classe burguesa, decidiram abolir o monopólio jurídico dos juízes e advogados, considerando que o direito deveria ser criado pelo próprio povo, por meio de seus representantes. Assim sendo, os juristas perderam a oportunidade de utilizar seus conhecimentos para elaborar as regras que organizam o convívio social. As opiniões e a experiência dos professores e dos operadores do direito parecem não valer mais nada. Devemos nos alinhar à vontade do legislador e aplicá-la sem questionamento. A última batalha foi livrada no começo do século XIX pela escola histórica do direito, liderada pelo grande jurist a alemão Savigny. Todos sabem que Savigny, em um escrito de 1814, defendeu um direito que seria baseado nos costumes e nas tradições particulares de cada povo e elaborado nas obras dos juristas e não em códigos criados pelos políticos. Savigny não conseguiu impor suas opiniões e os juristas aceitaram a denota. Ensinamos, hoje, nas nossas faculdades, o direito criado pelos políticos. Não ensinamos a técnica de redação de leis nem tratamos dos problemas de seu conteúdo. com as famosas palavras que usou em uma publicação de 1848 o Promotor de Justiça alemão Julius von Kirchmann, o operador do direito foi escravizado pelo direito imposto pelo legislador e tornou-se um verme que se nutre de madeira podre. 53 Os problemas cruciais da justiça social e os conflitos políticos em torno da elaboração das leis não despertam mais interesse nas faculdades de direito. São examinados em poucas aulas de sociologia e de filosofia do direito perante alunos desinteressados, que só querem saber quais são as últimas reformas do processo civil e quais as recentes leis sobre a biotecnologia e a proteção ambiental. Por isso, a decisão do Ministro foi certa. Ele consultou os políticos que trabalham como legisladores jáque eles decidem sobre o direito. Porque então essa consulta não foi satisfatória e o Ministro decidiu recorrer a nós, simples estudiosos do direito? A resposta é evidente. O tratamento que merecem os Denunciantes Invejosos é uma questão de aplicação do direito. As denúncias foram feitas segundo o direito em vigor e os tribunais aplicaram sanções previstas pelas leis da época. Por isso, a avaliação das referidas denunciações depende da interpretação do direito que estava em vigor naquele período. Antes de: pensar em fazer uma nova legislação, devemos examinar se o. direito em vigor permite reagir de forma adequada, satisfazendo o sentimento de justiça da maioria da população que está indignada com os Denunciantes Invejosos. ! Permitam-me fazer, inicialmente, uma leiturajurídica das, propostas dos deputados, explicando aquilo que propuseram esses senhores, leigos na ciência do direito. Em seus discursos, encontramos três propostas: a)Deixar impunes os Denunciantes Invejosos (opinião do. primeiro, do segundo e do quinto deputado). b)Criar uma legislação retroativa, definindo quem deve ser considerado como Denunciante Invejoso e quais as: sanções merecidas (opinião do quarto deputado). 54 c) Perseguir por homicídio quem fez a denúncia para se vingar ou se livrar de uma pessoa e não castigar quem denunciou por convicção política ou por simples covardia (opinião do terceiro deputado), Essas propostas são fundamentadas, por sua vez, em três diferentes argumentos jurídicos: a) Todas as leis em vigor durante o regime dos CamisasPúrpuras devem ser consideradas como válidas, já que a norma que entra em vigor de forma correta não pode ser anulada retroativamente. Para quem aceita essa posição, os Denunciantes atuaram de forma legal, seguindo o direito vigente. Esse argumento permite propor três diferentes soluções: o primeiro deputado constata o caráter legal das denunciações invejosas, propondo a ; impunidade; o quarto deputado considera que estes atos não eram puníveis quando foram cometidos, mas devem ser castigados, hoje, após a criação de uma lei retroativa; o quinto deputado propõe tolerar os linchamentos e a vingança popular, já que os atos dos Denunciantes não podem ser definidos de forma satisfatória por meio de uma lei retroativa. í b) Durante o regime dos Camisas-Púrpuras não houve direito válido, já que o regime era profundamente injusto, renegando a idéia mesma de justiça. A situação era parecida com aquela de uma selva. Punir um Denunciante Invejoso não é menos absurdo do que punir um animal selvagem porque devorou um outro (segundo deputado). Devem serconsideradas inválidas somente aquelas normas do regime dos Camisas-Púrpuras que não se conci- 55 Liam com os ideais dajustiça. Os Denunciantes aproveitaram-se de uma perversão da justiça durante esse regine por isso devemser castigados (terceiro deputado). Quais desses argumentos e soluções são corretos? Para decidir devemos tomar posição sobre um lancinante dilema. Pode existir um direito injusto? Pelo menos desde a Roma antiga o direito sempre se identificou com a justiça. Nos séculos He ii d.C os jurisconsultos romanos Ulpiano e Celso afirmavam que o termo direito (ius) provem do termo justiça (iustitia). Na opinião desses autores, o direito e a ciência que distingue o justo do injusto: ".v atejue iniu.sti scientia. Em outras palavras, o direito é a arte do bom e do equo: ius est o rs boni et aequi. Nada diferente dizia, quase quinze séculos depois, Hugo Grotius, quando, no início de seu famoso livro Direito da guerra e da paz, publicado em 1625, definia o direito como regulamentação do comportamento humano que obriga a fazer o justo. Depois vieram os iluministascos positivistas e a vinculação entre o direito e ajustiça foi negada. A nefasta influência dessas teorias fez os juizes acreditarem que sua profissão não os obrigava a encontrar e ordenar o justo, mas simplesmente executar as leis vigentes. Isso ensinava, por exemplo, o filósofo Immanuel Kant sustentando, em 1798, na obra O conflito das faculdades que o jurista deve aplicar as normas jurídicas impostas pelas autoridades políticas e não aquilo que ele mesmo considera razoável, verdadeiro e justo. Quem sustenta hoje que devemos cegamente respeitar e executar as ordens dos políticos, mesmo quando sabemos que essas ordens são injustas, cai na armadilha do iluminismo e do positivismo e desacredita ainda mais a nossa profissão. 56 Os operadores do direito não são caixas de ressonância que reproduzem a vontade do legislador. O jurista não é um ajudante de carrasco que aplica as ordens de seu mestre, nem um cínico que respeita a vontade do legislador mesmo quando esta viola os sagrados sentimentos de justiça. Sei que os meus colegas Wendelin e Bernadotti tomarão a palavra para propor mais uma vez suas teorias destruidoras da justiça. Por minha parte, obedecerei à voz da consciência. Somos membros de uma comunidade política que deseja preservar os seus valores: a liberdade, a dignidade e a igualdade. Nunca conseguiremos alcançar isso se ficarmos reféns de leis, decretos e portarias. Devemos pensare agir como cidadãos maduros e responsáveis que sabem distinguir o justo do injusto. Denunciar um homem porque não gostamos dele e queremos que seja punido é um crime hediondo no sentido originário da palavra, que provém do latimbíj7;7.ve significa "fedorento". Denunciar por inveja e um crime fedorento que merece a mais severa punição. O mesmo vale para os assim chamados juizes que se prestaram aos projetos criminosos dos Camisas-Púrpuras, condenando à pena capital os autores de inócuas contravenções, que incomodavam o sistema de terror. O direito injusto não é direito. Eis a minha posição. O direito objetiva impor a justiça, como sustentam, retomando a antiga tradição, os juristas alemães, que desde GustavRadbruch até Robert Àlexy tiraram lições da dramática história daquele país, onde o nazismo apresentou como direito as piores barbaridades e injustiças do mundo. Assim sendo, a lei injusta não é válida. Quem não aceita essa premissa não pode distinguir um Estado de Direito de um bando de criminosos. Da mesma forma, a aplicação injusta e perversa de uma lei não constitui aplicação do direito. É um ato 57 reprovável e criminoso. Adotando essa posição, vislumbro duas possibilidades para tratar juridicamente os casos de condenações injustas durante o regime dos Camisas-Púrpuras. Se a condenação ocorreu por meio da aplicação correta da legislação da época, devemos concluir que essa legislação não era "direito", mas um odioso produto de mentes criminosas. Isso aconteceu nos casos de condenações mediante regulamentos emergenciais sem o devido processo legal. Quem participou da criação ou aplicação de tais regulamentos merece ser castigado como destruidor de nossos mais valiosos bens: do sentimento de justiça e do sagrado direito ávida. Quem tornou cúmplice desses atentados ao direito e à moralidade deve ser punido como autor de uma perniciosa traição do Estado e da sociedade. Nos demais casos, as condenações injustas são devidas a uma aplicação falsa e perversa do direito. Quem denuncia seu adversário ou concorrente porque deseja sua morte e quem impõe pena para agradar o governo não aplica o direito. Ambos cometem atos de barbárie, utilizando odireito como pretexto para esconder a própria perversão. Esses criminosos devem ser punidos, descartando a desculpa "eu só apliquei a lei" que seguramente apresentarão perante o tribunal. Concluo então que os Denunciantes Invejosos, junto às autoridades estatais que deram seguimento a tais denúncias, cometeram o crime de subversão da ordem política e social. Por isso, devem sercastigados, jáque a nossa comunidade restabeleceu um sistemajurídico fundamentado na justiça. Desculpem minha veemência e emoção, mas acho que o jurista não é um subserviente da política; é um servidor da justiça. Por isso, devemos reagir imediatamente, punindo os Denunciantes Invejosos, por meio da aplicação do direito justo e eterno, gravado em nossos corações. OPINIÃO DO PROF. WENDELIN Escutando o discurso do colega Goldenage, pensei que me encontrava em uma das faculdades medievais descritas pelo historiador Jacques Lc Goff. Nelas os professores organizavam as temíveis dispuíationes sobre problemas jurídicos, debatendo com paixão perante um público de professores, bacharéis, alunos e curiosos. Por meio da retórica e da habilidade no manuseio dos argumentos, os debatedores tentavam derrotar os adversários e convencer o auditório. Naquela época os juristas se sentiam donos do direito e da verdade; resolviam as questões polêmicas, pensando que existia uma solução certa, contida nos sagrados textos jurídicos e religiosos. O colega Goldenage, apoiando-se em autores contemporâneos, como Paolo Grossi na Itália, que sentem saudades do poder do jurista medieval, sustenta que existe o justo e o injusto. Para reconhecê-los bastaria escutar a voz da consciência e, principalmente, confiar nos pareceres do jurista sábio que punirá os injustos e protegerá as vítimas. O colega omitiu de contar a parte mais interessante da história. Os juristas medievais, que se consideravam apóstolos da justiça e se sentiam todo-poderosos, foram, com toda a razão, acusados de bárbaros e inumanos pelos autores do iluminismo. Na realidade, os juristas medievais eram fiéis servidores de reis autoritários e de latifundiários vorazes, que oprimiam e exploravam o povo, mantido na superstição e na ignorância. 60 O iluminismo destruiu o mito do jurista como anjo da justiça. O problema é que o iluminismo difundiu um novo mito. Aquele que saia do legislador iluminado, escolhido pelo próprio povo para fazer leis racionais, simples e claras, que todos possam entender e aplicar automaticamente. Santa ilusão que encontramos, por exemplo, no opúsculo Dos delitos e das penas de Cesare Becsaria, publicado em 1764 e até hoje estudado nas faculdades de direito. O século XX abalou essas certezas. As ilusões da justiça e da verdade ejie não foram destruídas pelas guerras e pelas ditaduras, acabaram sendo desmontadas pelas reflexões de grandes filósofos. Estes comprovaram que não existem critérios para distinguir o verdadeiro do falso. A nossa linguagem é parecida com a areia movediça no deserto. Os significados das palavras são instáveis e múltiplos e dependem do entendimento das pessoas que se comunicam em determinado momento. Tudo é relativo e mutável. Alguns pensam que o significado dado às palavras depende do interesse dos poderosos, que denominam "verdadeiro" aquilo que lhes convém. Outros sustentam que tudo depende do aleatório, do acaso. Outros dizem, finalmente, que o entendimento das palavras é influenciado pelo papel social que a pessoa exerce em determinada situação. Não fui convidado para analisar as correntes de pensamento que sustentam a incerteza e a mutabilidade da comunicação humana. Considero, porém, que a consciência desses dados fundamentais tira a esperança de que alguém poderá encontrar um dia a verdade, separar o justo do injusto e fixar o sentido das normas jurídicas. A única verdade é que não sabemos nada; não existem certezas, fvlas o ordenamento jurídico não pode vivercom a contínua incerteza. O Poder Judiciário deve resolver os conflitos com 61 determinação e presteza para pacificara sociedade. Mesmo se os filósofos nuncaencontrarem uma resposta satisfatória àpergunta "o que é vida", os tribunais devem decidir se o aborto provocado por uma mulher deve ou não ser punido. Não podem alegar que não sabem quando começa a vida humana ou que não têm certeza se o aborto em questão foi natural ou provocado. Por tal motivo, o ordenamento jurídico confiou aos tribunais o poder de decisão. Mesmo quando todos acham que determinada decisão foi errada, esta não perde sua validade: põe um fim ao debate e corta a controvérsia. Torna-se "coisajulgada". A decisão do juiz deve ser considerada como verdade: fie.v jiulicata pro veritate aceipitur, afirmava o jurisconsulto Ulpianojá lembrado pelo colega Goldenage. Decidir sobre a "verdade" no direito é um exclusivo privilégio dos juizes. Os políticos que atuam como legisladores e nós, doutrinadores, não temos o poder de decidir sobre o que é direito. Quem fala do direito sem ser juiz parece com aqueles debatedores das emissões esportivas de domingo que discutem por horas e horas sobre pênaltis e impedimentos, sem poder alterar em nada as decisões dos árbitros. O positivismo jurídico ensinou que o direito depende da vontade do legislador, sendo aleatório e mutável. O realismo jurídico fez um passo a mais. Demonstrou que o direito realmente aplicado, o "direito em ação", não depende das palavras do legislador. Tampouco depende dos livros dos doutrinadores. Depende única e exclusivamente da vontade do juiz que dá sentido às palavras dos legisladores e dos doutrinadores, podendo mesmo invertê-las por completo. Por essa razão, as propostas formuladas nessa mesa, assim como as eventuais leis retroativas sobre os Denunciantes Invejosos, não passam de meros desejos. O poder de decisão 62 pertence aos juizes que criam o direito. Eles dirão se aquele que fez uma denúncia para se livrar de um inimigo foi um cidadão respeitoso da lei ou um criminoso que merece castigo. Nenhuma lei e nenhuma reflexão teórica serão mais poderosas do que a decisão do magistrado mais humilde. Se não existe nem verdade, nem justiça, nem certeza na aplicação do direito, se esses conceitos são propagandas enganosas dos juristas que querem enaltecer sua profissão, devemos concluir que é inútil estudar o direito? Penso que não. Estudar os regulamentos do legislador e a jurisprudência permite prever as futuras decisões e explica como decidem os juizes, quais são os elementos sociais, políticos e psicológicos que os fazem tomar determinada decisão. Em outras palavras, o direito é uma questão da prática que depende das circunstâncias, dos interesses em jogo e da personalidade de quem decide. Quanto mais estudamos esses elementos, maiores são as chances de prever as decisões do Judiciário. Além disso, me parece que os doutrinadores devem formular propostas sobre a correta aplicação do direito, já que eles possuem um valioso conhecimento técnico sobre os conceitos e os métodos de interpretação do direito que pode ajudar o Judiciário em suas decisões. Quais são os critérios para formular essas propostas? Alguns doutrinadores simplesmente querem defender os interesses de seus clientes; outros fazem propostas acreditando que falam em nome da verdade edajustiça; há também juristas que defendem as interpretações socialmente úteis. Eu sigo essa última orientação, porque considero que o direito éum instrumento para melhorar a vida social. Acredito que a proposta mais adequada é aquela que sugere deixar impunes os Denunciantes Invejosos. Vejamos o 63 porque. O regime dos Camisas-Púrpuras não era uma catástrofe natural nem um mal que, de repente, se abateu sobre a sociedade. Esse regime foi eleito pelo voto popular e gozou de um amplo apoio social. A esmagadora maioria da população o aceitou, por medo, porpassividade, por interesse ou por convicção. Não faltaram intelectuais, jornalistas e mesmo professores de direito que elogiavam o Chefe dos Camisas-Púrpuras como salvador da pátria e se apressaram em afiliar-se a este partido. Houve também adversários do regime que resistiram de várias formas, tornando-se alvo da repressão. Eu mesmo, que na época era simpatizante do partido dos socialistas republicanos, fui cassado da Universidade por "indignidade nacional". Exilei-me na França, onde vivi em situação precária, trabalhando como restaurador de livros. A profunda rejeição que sinto por esse regime é ditada por motivos pessoais e ideológicos. Mas isso não vale para a maioria da sociedade que se acomodou com o regime dos funestos ditadores. Hoje os Camisas-Púrpuras perderam o poder e são tratados como traidores e criminosos. Quem não foi linchado pelo povo e não conseguiu fugir, aguarda seu julgamento na prisão. Na época, porém, quem seguia as orientações do regime aplicava leis que não somente estavam formalmente em vigor (como disse o primeiro deputado), mas também eram consideradas legítimas pela maioria da população. A proposta de castigar quem atuou em conformidade com o direito em vigor é uma simples instigação a atos de vingança. O direito é certamente muito maleável. Qualquer norma pode ser criada e imposta. Eos juizes podem interpretá-la conforme sai a ideologia e as pressões que recebem . em cada momento Podemos também mudar o sentido das palavras, chamando hoje de ilegal aquilo que ontem era legal! 64 Considero, porém, que o legislador e o juiz devem pensar na utilidade social de suas decisões. As árvores cortadas nunca podem reflorescer e os mortos da ditadura não podem ser ressuscitados, seja qual for a punição dos responsáveis. Porque insistir então no círculo da violência e do sofrimento? No momento atual, o mais conveniente é encerrar esse triste capítulo, sinalizando o início de uma nova época, sem violência e sem atos de vingança. A vingança é sempre um ato de barbárie. O episódio dos Denunciantes Invejosos não nos deve fazer acreditar no mito da justiça, considerando o novo governo como portador da luz da verdade. Nem devemos acreditar que a aplicação do direito depende da vontade dos legisladores e dos doutrinadores. Esse episódio mostra simplesmente que o direito é um instrumento que cada grupo social utiliza para alcançar suas finalidades. Tentemos configurar o nosso direito segundo aquilo que consideramos mais conveniente, não esquecendo que, afinal de contas, tudo dependerá da decisão dos juizes. OPINIÃO DA PROFA. STING Escutei meus colegas e li os pareceres dos deputados. Todos dissertaram com erudição e paixão sobre o problema, analisando vários aspectos e desejando propor a melhor solução. Confesso que esses pareceres me causaram um profundo mal-estar. : Os deputados e os meus colegas que tomaram a palavra são homens. O mesmo vale para o Ministro, para o Chefe dos. Camisas-Púrpuras e para todos os dirigentes de sua quadrilha; que se tornou governo. Sabemos também que quase todos os: Denunciantes Invejosos eram homens. Onde estão as mulheres? Nas discussões sobre os Denunciantes Invejosos encontrei uma única referência à mulher. Trata-se daquela mulher casada, cujo admirador ou amante denunciou o marido para que este fosse preso, condenado e executado e a mulher caísse em seus braços! Muito bem! Quando dois homens querem uma mulher eles entram na disputa. Quem sai vencedor ganha a mulher-objeto como presente. Diante desse caso, os senhores deputados e professores tiveram uma única preocupação. Saber se o suposto amante deve ou não ser punido. Em outras palavras, a pergunta foi se é legal e justo aproveitar-se de uma lei para conquistar uma mulher causando a morte de seu marido. Sabemos que as nossas leis escritas não discriminam mais as mulheres. Graças às lutas das próprias mulheres o direito 66 deixou de privilegiar abertamente os homens. Utiliza uma linguagem neutra, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações ; para todos. Mas, na realidade, o direito continua exprimindo uma ideologia machista e defende os interesses dos homens que ; ! querem sujeitar as mulheres ao seu poder. O direito funciona como instrumento do poder masculino, como instrumento do " patriarcado. Esse direito masculino permite aos homens terem acesso 1 ; ao trabalho e ao corpo das mulheres. A mulher ganha menos ; do que o homem no mercado de trabalho, mesmo quando executa as mesmas tarefas. A mulher trabalha de graça em casa, arruma, prepara as refeições, cuida dos filhos, do marido, dos pais e sogros. O direito não se opõe a essas situações escandalosas e, freqüentemente, trata a mulher como objeto que pertença ao homem. já O espaço privado, onde vive a família, é protegido como asilo inviolável O povo diz, que nas brigas entre homem e mulher ninguém deve se meter. O mesmo pensam a polícia e o ! Poder Judiciário que deixam as mulheres abandonadas à violência dos homens. O homem pode estuprar, maltratar ehumilhar sua companheira, como se isso fosse seu direito. Quase nunca será punido, porque o direito protege a vida privada. Mesmo nos países onde as feministas conseguiram reformar o ) direito no sentido da proteção da mulher, os aplicadores não fazem quase nada para conter e punir a violência masculina. O homem quer, ao mesmo tempo, proteger sua propriedade. Quando alguém, na rua, estupra ou maltrata "sua" mulher, a lei protege sua propriedade "particular" e pune o agressor, que utilizou a mulher-objeto sem o acordo do "proprietário". Alguém pensou que mais de 95% dos presos são do sexo masculino? Isso acontece porque a mulher fica confinada em 67 casa, submetida ao controle e às punições dos homens. Quando se rebela é considerada "louca", sendo enviada aos psiquiatras. Mas não devemos achar isso estranho. O direito é criado por homens para garantir seus direitos e para punir aqueles que agridem a propriedade de outros. Os senhores deputados e professores parecem ter uma idéia muito nobre sobre o direito e querem encontrar a solução "justa" no caso dos Denunciantes. Mas seus pareceres são formulados do ponto de vista masculino. Vejamos o que acontece no caso do suposto amante, que foi citado como o exemplo mais repugnante de inveja assassina. Se este Denunciante ficar impune, os homens se rebelarão porque o direito não protege o marido como legítimo proprietário da esposa. Ninguém perguntou o que essa mulher queria, nem se ela foi maltratada pelo marido porque tinha um admirador. Aquilo que incomoda foi a ousadia de um homem que usou os tribunais para satisfazer suas paixões "ilícitas", como disse o quarto deputado. Se o Denunciante for punido, a ordem social será restabelecida. Quem adota esse raciocínio não percebe que pensa exatamente como o amante-denunciante. Ele usou a lei e os tribunais como instrumentos para se apoderar de uma mulher. Alguns dos deputados e dos meus colegas querem fazer o mesmo: utilizar o direito como instrumento para punir o amante, confirmando o direito de propriedade do cônjuge perante os estranhos! Considero que o ato desse Denunciante foi de um machismo repugnante. Mas a sua punição nos deixaria presos no círculo vicioso da visão masculina do direito que manda punir um homem porque violou os direitos de um outro ou porque ofendeu uma mulher lesando "legítimos" interesses do pai ou do marido. 68 Não posso entrar aqui em detalhes. Basta estudar a teoria feminista do direito, apresentada, por exemplo, nos estudos das professoras Catharine MacKinnon e Robin West, para adquirir consciência do profundo machismo do direito. Os que se manifestaram até agora consideraram a punição ou a absolvição dos Denunciantes como ato de justiça. A pergunta-chaveé saber por que eles cometeram atos execráveis. A verdadeira causa não foi a inveja ou qualquer outro sentimento. As vítimas das denúncias não morreram devido à inveja, mas porque o direito em vigor castigava com pena capital infrações de pouca ofensividade. Alguns usaram esse argumento para eximir de responsabilidade os Denunciantes, dizendo que estes simplesmente levaram ao conhecimento das autoridades condutas que contrariavam as leis em vigor. Quem argumenta dessa forma parece esquecer a existência do direito internacional. Nosso país assinou e ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966. O art. 6.°, inciso 2.", desse Pacto permite a aplicação da pena de morte só excepcionalmente e "nos casos de crimes mais graves". Ninguem pode sustentar seriamente que armazenar comida ou não informar a polícia sobre a perda da carteira de identidade sejam condutas que se classificam entre os "crimes mais graves". Assim sendo, as leis que permitiram as denunciações invejosas estão em descompasso com as normas de direito internacional, ratificadas em nosso país. Contrariam o direito internacional público e criam a responsabilidade das autoridades do Estado que as estabeleceram e as aplicaram. Tenho plena consciência dos problemas do direito internacional. Sei que os nossos tribunais ainda consideram que uma lei interna pode derrogar um tratado internacional. Sei também que o direito internacional- é, até hoje, um direito 69 muito "fraco". Na maioria dos casos não prevê sanções e, mesmo quando as prevê, quase nunca consegue aplicá-las se o Estado violador não quiser colaborar. Esses problemas de implementação não impedem, porém, reconhecer que algumas penas previstas em leis camisopurpuristas violavam tratados internacionais. Isso indica a ilegalidade da própria legislação daquele regime e permite entender que a verdadeira causa das injustiças não foi o Denunciante, mas o quadro jurídico e político, em que ele atuou. Encontramos aqui a situação que os colegas alemães denominam ilegalidade do sistema, Systenumrecht. Revela-se então altamente equivocada a tese segundo a qual a punição de indivíduos invejosos permite pacificar a sociedade e fazer justiça. O caminho indicado é, ao contrário, reexaminar esse sistema corrupto e violento que, inclusive, violou normas fundamentais do direito internacional. Por esses motivos proponho abandonar a perspectiva limitada das propostas até agora formuladas. A mudança no regime político oferece a oportunidade de refletir sobre problemas muito mais importantes. Permite fazer um estudo crítico das regras jurídicas e políticas, das ideologias e mentalidades que levaram a desvios e injustiças. Nessa pauta deve ser incluído o problema crucial do tratamento das mulheres pelo direito. O novo governo promete instaurar um regime de liberdade, pondo um termo às injustiças e à opressão. Isso não pode acontecer nos moldes do direito em vigor, que não reflete as experiências das mulheres, não satisfaz suas necessidades, nem as protege. A visão masculinado direito significa liberdade para que os homens continuem oprimindo as mulheres. Proponho levar a sério a questão das mulheres, ou seja, o problema da opressão da metade da humanidade, que continua em posição 70 De inferioridade com a ajuda do direito, mesmo após a queda da ditadura. Se o governo deseja realmente cumprir suas promessas de liberdade, não deve se preocupar tanto com a punição de uns poucos Denunciantes, que, afinal de contas, serão bodes expiatórios. Eu vislumbro duas medidas que podem ser realmente úteis. ; Em primeiro lugar, o governo deve elaborar uma declaração, condenando a utilização do direito para oprimir e explorar (seres humanos, homens e mulheres, sob o pretexto de possuir direitos. Essa declaração deve sitar como exemplo odioso o caso do Denunciante e suposto amante que indica como o ordenamento jurídico permite controlar e dominar as mulheres. Em segundo lugar, o governo, em vez de gastar energias com o detalhe dos Denunciantes Invejosos, deve convocar com urgência uma comissão de juristas, políticos e representantes da sociedade civil para realizar uma completa reforma do ordenamento jurídico. ; Essa comissão deverá expurgar o sistema jurídico das normas que garantem a dominação masculina, situação que meus Colegas procuram mascarar com as palavras "justiça" e "liberdade". Deverá, também, procurar caminhos para que a aplicação do direito possa permitir que o sexo feminino adquira sua autonomia. Agradeço a atenção e espero que a voz e as legítimas queixas das mulheres sejam finalmente ouvidas. OPINIÃO DO PROF. SATENE A professora Sling apresentou um violento requisitório contra o sexo masculino. Seduzida pela própria retórica, esqueceu de se referir a um episódio que é crucial para tratar com serenidade, ponderação e conseqüência o problema dos Denunciantes Invejosos e que também oferece um importante argumento a favor da solução que gostaria de propor. Sabemos que, muito antes da ditadura dos Camisas-Púrpuras em nosso país, a Alemanha vivenciou a barbaridade do período nazista. Após a restauração da democracia naquele país, um tribunal enfrentou o caso da esposa Denunciante. Uma mulher que tinha um relacionamento extraconjugal decidiu se livrar do marido denunciando-o por ter criticado, em conversas particulares, o governo de Hitler. O marido foi condenado à morte e após um indulto parcial foi mandado para a guerra, sendo incorporado em uma unidade militar na qual serviam criminosos em condições particularmente duras. Essa mulher utilizou-se do direito para se livrar do marido, ou seja, fez exatamente aquilo que a professora Sting considera como típico dos homens! Não vou discutir a fundamentação da análise feminista do direito. Interessa aqui avaliar a solução dada ao caso da esposa Denunciante. O tribunal alemão que julgou o caso após a queda do regime nazista decidiu que os juizes que condenaram o marido à 72 pena de morte não mereciam punição, por terem simplesmente aplicado o direito em vigor. Ao contrário, a esposa deveria ser condenada por ter causado a detenção ilegal de seu cônjuge. O tribunal considerou que essa denunciação contrariava a lei moral e o sentimento de justiça de qualquer ser humano decente. Concordo plenamente com essa última posição e penso que não interessa se o autor da denunciação é homem ou mulher, idoso ou jovem, branco ou negro. Interessa saber se seu comportamento constitui uma violação do direito. Eis o verdadeiro problema do nosso encontro. Não podemos decidir o que é "violação do direito" sem saber antes o que é o direito. Todos usamos esse termo, mas cada um entende algo diferente. A maioria dos doutrinadores entende que direito é o conjunto de normas colocadas em vigor pelo legislador. Outros consideram que o direito está contido nas decisões dos tribunais. Outros dizem que é direito aquilo que contribui para o progresso social e para a felicidade da maioria. Não faltam também os cínicos que dizem que o direito é simplesmente a violência e a ganância dos poderosos transformada em lei. Há, finalmente, juristas que vêem o direito como manifestação de mandamentos eternos e imutáveis estabelecidos por Deus ou pela razão humana. Penso que todas essas definições são errôneas. Nenhuma delas exprime aquilo que todos nós consideramos, no nosso dia-a-dia, como direito realmente válido. Seguindo os ensinamentos do professor Ronald Dvvorkin, afirmo que o direito deve ser definido como resultado de sucessivas interpretações dos princípios que fundamentam a vida social e são aceitos pela comunidade. 73 O primeiro passo da interpretação é dado pelo legislador que cria as normas jurídicas. Essas normas não são produto de uma "vontade". O legislador não faz o que ele quer, como pensam os positivistas, adotando uma posição totalmente ingênua. ; As leis decorrem da interpretação dos princípios fundamentais ; que norteiam a sociedade. Quando a Constituição proclama a soberania do povo, o respeito à dignidade humana e a liberdade, isso não deve ser considerado como uma simples vontade do poderconstituinte. Os constituintes simplesmente exprimem e adotam os princípios e os valores da democracia e da dignidade da pessoa humana que todos nós aceitamos. Por isso afirmo que as normas jurídicas decorrem de princípios e de convicções políticas fundamentais, que o legislador interpreta e fixa em suas normas. O segundo passo da interpretação é dado pelos tribunais que aplicam as normas estabelecidas pelo legislador. Essas normas são abstratas e não oferecem automaticamente uma solução. Mas o juiz não é um tirano que pode decidir a seu belprazer, como parecem dizer os realistas, adotando uma posição cínica. Para encontrar a solução adequada, os juizes devem interpretar as normas legais de acordo com os princípios e os valores que estão em sua base. Ou seja, os juizes recorrem novamente aos princípios fundamentais para encontrar a solução correta. Nessa oportunidade, os juizes podem mesmo corrigir leis que se revelam contrárias aos princípios fundamentais. Nenhum legislador consegue estabelecer de uma vez por todas a solução certa, nem pode prever todos os casos que se apresentarão no futuro. Fica a cargo do juiz concretizar, atualizar e até corrigir as normas ; Permitam-me citar um exemplo. Uma portaria do Ministro da Educação exige para a aprovação dos estudantes universitários uma freqüência mínima de75%. Este regulamento não foi feito ao acaso, nem simplesmente porque tal foi a vontade do Ministro. ; O regulamento procura conciliar os dois princípios que regem a matéria. A obrigação de presença, que é necessária para o aproveitamento do aluno, e a possibilidade de ele faltar em casos de doença, acidentes e outros imprevistos da vida familiar e profissional. O regulamento parece, à primeira vista, razoável. A experiência de sua aplicação demonstrou, "porém, que em alguns casos particulares era necessário introduzir modificações. A necessidade de garantir o aproveitamento escolar, sem ignorar os imprevistos da vida, obriga a aprovar um aluno que, apesar de ter faltado em 35% das aulas devido a uma grave doença, conseguiu uma excelente nota no exame final. Inversamente, seria justo reprovar o aluno que esgotou o número de faltas permitidas sem nenhumajustificativa válida e obteve nota mínima nos exames. ; Percebemos, assim, que a criação do direito não termina com a edição de uma norma. Os juizes resolvem casos conectos e imprevisíveis no momento da criação da norma, por meio de sua aplicação criativa, sensível e inteligente. Não vivemos no império dos caprichos do legislador. Vivemos em uma sociedade civilizada, solidária e fundamentad a em princípios que dão sentido à vida social. Cada vez que for chamado a decidir, o juiz deve seguir esses princípios. Isso ocorre quando as decisões do Judiciário satisfazem algumas exigências. 75 Em primeiro lugar, as decisões devem ser fundamentadas de forma detalhada e com argumentos racionais que possam ser aceitos pela maioria das pessoas. Em segundo lugar, as decisões devem ser coerentes com aquilo que foi anteriormente decidido em casos parecidos. Nada impede que o juiz inove. Mas, nesses casos, ele tem a obrigação de justificar a nova solução. com efeito, a interpretação do direito parece com a redação de sucessivos capítulos de uma novela por autores diferentes. Cada um escreve aquilo que considera adequado. Mas a novela não pode ser caótica. Todos devem respeitar sua trama e seu estilo, introduzindo inovações somente quando for absolutamente necessário. Em terceiro lugar, as decisões sobre um caso concreto devem ser coerentes com aquelas que o mesmo juiz tomou no passado. O juiz que hoje dá preferência ao princípio da liberdade e amanhã ao princípio da igualdade, alegando que ambos encontram-se no ordenamento jurídico, se expõe a uma contradição que invalida seu trabalho. Resumindo: interpretar o direito de forma criativa e responsável significa oferecer aos cidadãos soluções racionais, convincentes e coerentes. Significa, antes de tudo, claro sentido mais adequado às palavras utilizadas pelo legislador para fazer jus aos princípios que norteiam o convívio social. Já constatamos que o caso dos Denunciantes Invejosos não é sem precedentes na história do direito. Como indica o caso da mulher Denunciante e outros parecidos, os tribunais alemães tiveram a ocasião de condenar os autores de denunciações que se aproveitaram do delírio de uma ditadura para satisfazer instintos de ódio e vingança. O princípio moral que justifica estas condenações é claro. Ninguém pode se prevalecer de uma norma 76 em vigor para realizar um projeto criminoso, que nem o mais cruel ditador teria aprovado. No nosso caso, deve ser imposta aos Denunciantes Invejosos uma punição proporcional ao mal que causaram. Essa solução satisfaz as nossas exigências éticas e o bom senso e apresenta coerência com a condenação de Denunciantes Invejosos no passado. Fundamento legal das condenações deve ser o Código Penal que pune como crimes o homicídio, a privação da liberdade e os demais danos sofridos pelas vítimas das denunciações. Os meus colegas da área do direito penal podem explicar melhor os detalhes técnicos. A princípio não vejo nenhuma di fculdade em punir os Denunciantes Invejosos como partícipes ou mesmo como autores desses crimes. Podem ser considerados autores se aceitarmos a teoria da autoria mediata (indireta), devido ao fato de terse utilizado de outras pessoas (no caso, policiais, promotores e juizes) como instrumento para alcançar seu objetivo. Isso permite aplicar o direito, castigando quem o perverteu, executando planos criminosos. Considero, finalmente, que os casos em exame devem ser tratados de forma que diverge, em parte, da solução dada na Alemanha aos processos que envolviam denunciações. Já disse que, naqueles processos, foram absolvidos os juizes que aplicavam o direito nazista, porque foi considerado que o juiz tem sempre a obrigação constitucional de aplicar as leis em vigor. Na minha opinião, o juiz que condena pessoas com base em leis corruptas e injustas merece ser castigado tal como o próprio Denunciante. Nos dois casos aplica-se o mesmo raciocínio. Ambos atuaram de forma dolosa, lesaram o princípio da 77 dignidade humana e violaram a obrigação política e moral de não colaborar com regimes ditatoriais. ! Espero que ajusta punição dos artífices e partícipes dessas injustiças seja feita mediante umaaplicação conseqüente do Código Penal e possa marcar o início de uma nova era, que estará sob o signo dos princípios de justiça que regem a nossa comunidade. OPINIÃO DA PROFA. BERNADOTTI Os colegas Goldenagc e Satene repetiram aquilo que desde décadas sustentam em doutas publicações e brilhantes conferências. Peço venia para expressar minha plena discordância. Os colegas dizem que somos membros de uma comunidade política, tendo valores comuns nos quais devem se fundamentar as leis e as futuras decisões do Judiciário. Dessa forma, adotam a opinião do jusnaturalista francês Michel Villcy, segundo o qual o aplicador do direito não deve cumprir as ordens do Estado, mas interpretar os textos de forma que permita encontrar a solução "justa". Para falar em "justo" devemos ter valores aceitos por todos. Mas quais foram os valores comuns a brancos e negros nas sociedades escravocratas do século XIX? Onde está a comunidade de valores e interesses entre os pobres e os ricos nos países do terceiro mundo, onde, ao lado de mansões luxuosas, encontramos favelas que abrigam centenas de milhares de desesperados? Onde está a comunidade entre os homens e as mulheres, uma vez que o direito funciona como instrumento de sujeição do gênero feminino, como bem indicou a colega Sting? Os juristas raramente tratam desse problema e, às vezes, querem ocultá-lo. Um exemplo deu o professor Satcnc. Fala do justo e do correto, esquecendo as enormes diferenças de mentalidade e interesses entre pessoas e grupos. Como se isso não bastasse, o referido professor fez uma crítica superficial e equivocada à colega professora Sting, que mostrou o caráter machista do direito, ou seja, sua parcialidade. O professor Salene não quer aceitar a parcialidade do sistema jurídico que, quase sempre, toma o partido dos mais poderosos: dos brancos, dos ricos, dos homens. Na realidade, não temos nenhuma comunidade de valores e interesses. Temos exploração, violência, discriminação e opressão. Qual é o papel do direito na sociedade? Os meus colegas moralistas fecham os olhos diante da realidade ou consideram que os poderosos e opressores violam o "verdadeiro" direito. Isso não passa de um sonho. Na realidade, os opressores e exploradores simplesmente aplicam o direito em vigor. Se o direito permite pagar um salário de fome, porque deve ser punido aquele que paga esse salário? Por que então castigar pessoas invejosas que, afinal de contas, denunciaram fatos reais e porque perseguir os juizes que puniram os infratores, seguindo o direito em vigor? Eles simplesmente aplicaram o direito, tal como faz qualquer respeitada família que paga um salário mínimo à sua empregada doméstica ou especula na Bolsa de Valores. Foi dito que os Denunciantes Invejosos instrumentalizaram o direito para se vingar de inimigos pessoais. Quem utiliza esse argumento esquece que o nosso direito é um direito formal. Avalia aquilo que a pessoa faz e não examina o porquê faz. Quem pensou em matar seu concorrente e não o fez porque tinha medo da pena pode ser um indivíduo moralmente desprezível. Não deixa de ser um cidadão respeitoso da lei, já que o direito simplesmente pune o homicídio, sem se interessar pelos desejos e os pensamentos das pessoas. 81 Isso é uma característica de todos os ordenamentos jurídicos modernos que se fundamentam na separação entre o direito e a moral. O direito moderno não exige que a pessoa seja um; "bom cristão" ou um "bom pai de família", como acontecia no direito medieval que pouco distinguia entre as regras jurídicas, as obrigações morais e os mandamentos religiosos. Hoje o; Estado avalia as ações e omissões das pessoas exclusivamente com base no direito em vigor e não leva em consideração os méritos e deméritos morais de cada um. Os Denunciantes Invejosos levaram ao conhecimento das, autoridades delitos tipificados pelo direito em vigor. Não interessa juridicamente se isso foi feito por motivos "baixos", como a vingança, ou por opção política, porque o Denunciante era; camiso-purpurista e queria combater os opositores do regime. As intenções que levam alguém a fazer um ato legal não podem ser punidas com base no direito moderno que, como já afirmei, é formal e estranho a juízos de valor de cunho moral. Quem sustenta o contrário deve também propor que sejam punidos aqueles que sentem a tentação de furtar um produto de; beleza no supermercado, mas não o fazem porque percebem a camera que grava seus movimentos. Já que não devemos castigar quem respeita as normas válidas e não segue as idéias sobre o direito "justo", expostas nas obras do professor Goldenage, devemos admitir que o direito em vigor não se orienta ao justo nem aos supostos princípios fundamentais, caros ao professor Satene. Na nossa sociedade existem valores contraditórios e interesses contrários. Não se impõe a opinião mais justa e coerente; impõe-se a vontade dos poderosos, uma vez que o direito é produto de lutas políticas, de compromissos e de manipulações ideológicas. 82 Os Camisas-Púrpuras criaram e aplicaram um direito que correspondia aos seus interesses. Isso pode ser desagradável para nós. Mas o direito deles não era nem mais nem menos "direito" do que o atual. Como dizia Hans Kclsen, o direito pode ter qualquer conteúdo e até mesmo autorizar condutas moralmente repugnantes. Significa isso que estamos de mãos atadas e devemos aceitar asdecisões desse odioso regime? Penso que não. A solução oferecida por uma singela reflexão sobre os mecanismos de criação do direito. Sabemos que nos Estados modernos a Constituição é o texto normativo supremo. O fundamento da supremacia da Constituição é exclusivamente político. Basta ter a capacidade política de exercer o poder constituinte originário e impor uma nova Constituição para que o direito anterior seja completamente anulado. O movimento que derrubou a ditadura dos Camisas-Púrpuras exerceu o poder constituinte originário e criou um novo ordenamento jurídico. A atual Assembléia Nacional continua exercendo esse poder, já que ainda não resolveu as pendências do passado e continua legislando para estabelecer as bases da nova organização do Estado e da sociedade. Esse ordenamento não se vincula pelo direito anterior, já que houve uma ruptura revolucionária, impondo uma nova vontade política fundamentada em novos princípios. Os titulares do novo poder constituinte devem resolver os casos pendentes como eles consideram melhor. O problema ora enfrentado não é jurídico, como susten- tam os colegas Goldenagc e Satcne. Não discutimos aqui sobre técnicas jurídicas que permitem punir um homicídio. Estamos diante de um problema de pura conveniência política. Devemos punir os responsáveis do regime anterior, os juizes e os cidadãos que colaboraram com este? A decisão depende da Assembléia Nacional, detentora do poder constituinte originário. Penso que a punição é oportuna por dois motivos. Primeiro, porque permitirá marcar ainda mais claramente a ruptura com o passado. Segundo, porque é uma medida adequada para pacificar a sociedade, tão revoltada pelos crimes e abusos cometidos durante a ditadura. Isso deve acontecer por meio de um ato constituinte que estabelecerá as medidas cabíveis. Este ato constituinte não estará sujeito ao controle dos tribunais, como teme o senhor Ministro, já que não se trata de uma simples lei do poder legislativo, mas decorre do poder constituinte originário, que é superior a qualquer autoridade do Estado. Qual deve ser o conteúdo deste ato constituinte? Em primeiro lugar, devem ser previstas sanções para todos os colaboradores do antigo regime. Os policiais, juizes e demais funcionários que colaboraram com o regime permitindo que suas nefastas ordens fossem executadas estarão sujeitos à penalidades. Punir somente os Denunciantes Invejosos é uma hipocrisia, já que a responsabilidade deles é muito menor do que a dos funcionários públicos que se tornaram obedientes instrumentos da ditadura. Em segundo lugar, penso que o ato constituinte não deve prever sanções penais para os casos em exame. O novo poder constituinte pode, certamente, criar delitos e estabelecer penas de forma retroativa. Mas isso seria uma péssima idéia, já que as leis penais retroativas violam um princípio fundamental do direito moderno: "não haverá crimes nem penassem lei prévia". Criar leis penais retroativas significa seguir o exemplo dos Camisas-Púrpuras e perpetuar o círculo da violência que eles inauguraram. Os Denunciantes Invejosos não cometeram ilegalidades. Demonstraram falta de civismo colaborando com um regime antidemocrático. Por tal motivo, a sanção adequada deve ser de natureza claramente política. Suspendam os direitos políticos dos Denunciantes e de todos os colaboradores dos Camisas-Púrpuras por um período que dependerá da gravidade dos fatos cometidos. Essa sanção deverá receber a mais ampla publicidade, demonstrando a todos que os inimigos da democracia são indignos de ser cidadãos. Dessa forma, o novo regime mostrará seu desprezo pelos colaboradores da ditadura e oferecerá uma satisfação às vítimas. Evitando a pena criminal, dará também a todos uma lição de civismo, deixando claro que os regimes democráticos são vigilantes sem ser vingativos. Sei que muitos ouvintes ficarão com o gosto amargo da decepção. Afirmei que o direito é uma simples questão de poder. Mantenho essa tese, típica do positivismo jurídico, e considero necessário abandonar as ilusões do direito moral e justo. Mas isso não significa que devemos aceitar qualquer regime político e qualquer lei. Quando os cidadãos acham que o governo é corrupto e o sistema jurídico opressor e injusto, devem encontrar a coragem de lutar para que seja tomada, democraticamente, a decisão política de criar um novo direito, conforme os anseios e ideais da população. Após ter tomado conhecimento de todas essas opiniões, qual será sua decisão como Ministro de Justiça? Procure en- 85 tender a lógica e as conseqüências práticas de cada uma das opiniões sugeridas e indique a opção que corresponde ao seu pensamento. Não esqueça que, seja qual for a solução proposta, seus colegas de governo e a população inteira desejam ouvir sua argumentação. Só se esta for convincente, a solução contará com o apoio dos demais. Dimitri Dimoulis