Pedagogia Histórico-Crítica Primeiras aproximações Dermeval Saviani 3ª edição, Cortez, 1992 APRESENTAÇÃO As reflexões contidas neste livro procuram aproximar o leitor do significado daquela concepção educacional que desde 1984 venho denominando de pedagogia histórico-crítica. A Introdução esclarece sobre o sentido de conjunto que articula os diferentes textos que compõem a obra, tomando com referência a questão do saber objetivo, sem dúvida um elemento central na pedagogia histórico-crítica. "Sobre a natureza e especificidade da educação" decorreu de comunicação apresentada no Seminário organizado pelo INEP e realizado em Brasília (DF) em 1984. Ao texto da comunicação se incorporou, já na origem, a palestra proferida em da (PE) em 1983, cujo texto foi denominado "o papel da escola básica no processo de democratização da sociedade brasileira. "Competência política e compromisso técnico" resultou minha intervenção na polêmica suscitada pelo livro de Guiomar Namo de Mello, Magistério de 1° grau: da competência técnica ao compromisso político e objetivada na crítica de Paolo Nosella publicada no artigo "Compromisso político como horizonte da competência técnica". Embora datado de 1983, esse texto mantém-se atual sendo oportuno, ainda, para recolocar novo patamar a questão da unidade das forças progressistas no campo educacional. "A pedagogia histórico-crítica no quadro das tendências Críticas da educação brasileira" resultou de exposição feita no Seminário organizado pela ANDE e realizado em Niterói (RJ) 1985. Situa o contexto imediato do surgimento e desenvolvimento dessa corrente pedagógica no Brasil em confronto com outras tendências e esclarece as principais objeções que lhe foram formuladas. 9 "A pedagogia histórico-crítica e a educação escolar" decorreu de conferência proferida no Seminário sobre a formação em 1988. Recoloca a pedagogia histórico-crítica no quadro mais geral da História da Educação Brasileira e discute suas relações com a realidade escolar atual. Por último julgou-se oportuno acrescentar, à guisa de apêndice, o prefácio à 20á edição de Escola e Democracia. Com efeito, esse prefácio esclarece algumas questões suscitadas por aquele livro que são pertinentes para a compreensão da pedagogia histórico-crítica às quais a maioria dos leitores de Escola e Democracia acabariam não tendo acesso, uma vez que fazem uso das edições anteriores à vigésima que, obviamente, não continham ainda esses esclarecimentos. Finalmente, cabe registrar que este livro constitui uma primeira aproximação ao significado da pedagogia histórico-crítica. Isto porque está em curso o processo de elaboração dessa corrente pedagógica através da contribuição de diferentes estudiosos. De minha parte venho me dedicando a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com ritmo variável e sem prazo para sua conclusão, através da qual pretende-se rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas tendo como guia o conceito de "modo de produção". Trata-se de explicitar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente. É um estudo que não se move sob o acicate das urgências imediatas de conjuntura mas que se propõe a captar o movimento orgânico definidor do processo histórico; é, como diria Gramsci, uma tarefa "für ewig", isto é, de caráter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretende-se, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histórico-crítica de modo a viabilizar a configuração consistente do sistema educacional em seu conjunto sob o ponto de vista dessa concepção educacional. Enquanto prossegue o trabalho de elaboração acima referido, espera-se que este livro possibilite aos educadores o acesso, ainda que na forma de uma primeira aproximação, ao significado dessa importante corrente pedagógica. 10 Considerando-se, por outro lado, como se esclareceu na introdução, que este livro dá continuidade a Escola e Democracia espera-se, também, que os professores que vêm utilizando largamente essa obra nas disciplinas que ministram, encontrem neste livro uma fonte adicional que permita a eles e a seus alunos compreender o lugar e o alcance da pedagogia histórico crítica, de vez que é essa a concepção que subsiste como pano de fundo do próprio livro Escola e Democracia. Campinas, 20 de janeiro de 1991 Dermeval Saviani 11 INTRODUÇÃO: ESCOLA E SABER OBJETIVO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CRÍTICA Os estudos que compõem este livro giram em torno da pedagogia histórico- crítica. Nesse sentido, dão continuidade e llmentam as análises apresentadas no livro Escola e Democracia. Em verdade, Escola e Democracia pode ser considerado como uma introdução preliminar à pedagogia historico-crítica. Com efeito, o primeiro capítulo, "as teorias da educação e o problema da marginalidade", apresenta uma síntese das teorias da educação abrangendo as teorias não-crítigogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnias teorias crítico-reprodutivistas (teoria da escola enviolência simbólica, teoria da escola enquanto aparelho de Estado e teoria da escola dualista). Tais teorias tidas a juízo de valor colocando-se a exigência de sua com o que já se prenuncía, no ítem "para uma teoria da educação", a pedagogia hístóríco-crítica. O segundo capítulo "Escola e Democracia I - A teoria da curvatura da vara" tem um caráter preparatório para a pedagogia histórico-crítíca. Como registrei no prefácio à 20ª edição, trata-se de uma abordagem centrada mais no aspecto polêmico do que no aspecto gnosiológico. Não se trata de uma exposição iva e sistemática, mas da indicação de caminhos para a do existente e para a descoberta da verdade histórica". Empreende-se aí uma apreciação radical da pedagogia liberal burguesa sendo "a denúncia da Escola Nova apenas uma esia visando a demarcar mais precisamente o âmbito da pela burguesa de inspiração liberal e o âmbito da pedagogia Ita de inspiração marxista" (Saviani, 1988, p. 9). Vê-se, que, embora não se faça ainda a exposição da pedagogia Do-cr(tica, é ela que comanda a análise. Com efeito, a perspectiva historicizadora aí adotada constitui uma exigência metodológica inerente à concepção hìstórico-crítica. 13 Por sua vez, o terceiro capítulo de "Escola e Democracia" denominado "Escola e Democracia II - Para além da teoria da curvatura da vara" pode já ser considerado como um esboço de formulação da pedagogia histórico-crítica. Em contraponto com as pedagogias tradicional e nova expõem-se agora os pres- supostos filosóficos, a proposta pedagógico-metodológica e o significado político da pedagogia histórico-crítica. Finalmente, o quarto capítulo, "Onze teses sobre educação e política" procura caracterizar, no confronto com a prática política, a especificidade da prática educativa. Afirmei, então, que "o problema de se determinar a especificidade da educação coincide com o problema do desvendamento da natureza própria do fenômeno educativo" (Saviani, 1988, p. 92). Ora, o presente livro começa por tratar exatamente do tema relativo à natureza e especificidade da educação. Dá, pois, continuidade à reflexão com a qual se conclui "Escola e Democracia". Determina-se a natureza da educação no âmbito da categoria "trabalho não-material". Para melhor compreensão desse conceito recomenda-se a leitura do texto "Trabalhadores em educação e crise na universidade" publicado no livro "Ensino público e algumas falas sobre universidade" (Saviani, 1984, pp. 75-86), onde se esclarece a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo bem como entre produção material e não- material, distinguindo-se na produção não-material duas modalidades: aquela em que o produto se separa do produtor e aquela em que o produto não se separa do ato de produção; e é nesta segunda modalidade que se localiza a educação. Toda a reflexão se desenvolve na perspectiva histórico-crítica como o atesta a seguinte afirmação: "a natureza humana não é dada ao homem mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens". Já nesse texto avulta como central a questão do saber. Com efeito, não estaremos, por certo, forçando a análise se afirmarmos que a produção não- material coincide com a produção do saber. De fato, a produção não-material, isto é, a produção espiritual, não é outra coisa senão a forma através da quais o homem apreende o mundo expressando a visão daí decorrente 14 de distintas maneiras. Eis porque se pode falar de diferentes tipos de saber ou de conhecimento tais como: conhecimento sensível, intuitivo, afetivo, conhecimento intelectual, lógico, racional, conhecimento artístico, estético, conhecimento axiológico, conhecimento religioso e, mesmo, conhecimento prático e conhecimento teórico. Do ponto de vista da educação esses diferentes tipos de saber não interessam em si mesmos; eles interessam, sim, mas enquanto elementos que os indivíduos humana necessitam assimilar para que se tornem humanos . Isto porque o homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar; agir. Para saber pensar e sentir; querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que im educativo. Assim, o saber que diretamente interessa à educação é aquele que emerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo. Entretanto, para chegar a esse resultado a educação tem que que tomar como referência, como matéria-prima de , o saber objetivo produzido historicamente. O fenômeno acima apontado manifesta-se desde a origem pelo desenvolvimento de processos educativos inicialmente coincidentes com o próprio ato de viver os quais foram diferenciando progressivamente até atingir um caráter o cuja forma mais conspícua se revela no surda escola. Esta aparece inicialmente como manifesundária e derivada dos processos educativos mais gerais vai se transformando lentamente ao longo da História até erigir-se na forma principal e dominante de educação. Esta passagem da escola à forma dominante de educação coincide com a etapa histórica em que as relações sociais passaram a prevalecer sobre as naturais estabelecendo-se o primado do mundo da cultura (o mundo produzido pelo homem) sobre o mundo da natureza. Em conseqüência, o saber metódico, sistemático, científico, elaborado passa a predominar sobre o saber espontâneo, "natural", assistemático, resultando daí que a especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar. A etapa histórica em referência - que ainda não se esgotou corresponde ao surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista cujas contradições vão colocando de forma cada vez mais intensa a necessidade de sua superação. Eis porque no texto 15 "sobre a natureza e especificidade da educação" considerou-se legítimo tomar- se a educação escolar como exemplar. A questão do saber objetivo recebe uma determinação mais precisa no texto seguinte motivado pela polêmica em que se contrapôs a competência técnica ao compromisso político. O ponto de vista histórico-crítico permitiu aí desmontar o raciocínio positivista afastando a armadilha em que freqüentemente caem os próprios críticos do positivismo ao deixarem intacta a premissa maior que vincula a objetividade à neutralidade. Tal desmontagem tornou possível negar a neutralidade e, ao mesmo tempo, afirmar a objetividade. A neutralidade é impossível porque não existe conhecimento desinteressado. Não obstante todo conhecimento ser interessado, a objetividade é possível porque não é todo interesse que impede o conhecimento objetivo. Há interesses que não só não impedem como exigem a objetividade. Mas como diferenciá-los'? Tal tarefa resulta impossível de ser realizada no plano abstrato, isto é, no terreno puramente lógico. Para se saber quais são os interesses que impedem e quais aqueles que exigem a objetividade não há outra maneira senão abordar o problema em termos históricos. Só no terreno da História, isto é, no âmbito do desenvolvimento de situações concretas, essa questão pode ser dirimida. E é isso que a conclusão do texto "competência política e compromisso técnico" procurou evidenciar exemplificando com o desenvolvimento da sociedade burguesa. Este livro se completa com dois textos referidos diretamente à pedagogia histórico-crítica. Ambos se complementam à medida que situam essa corrente pedagógica no contexto brasileiro em confronto com as demais tendências esclarecendo as principais objeções a ela formuladas e explicitando a sua relação com a educação escolar. Em ambos esses textos também o problema do saber ocupa lugar proeminente. Com efeito, em "a pedagogia histórico-crítica no quadro das tendências críticas da educação brasileira" observa-se que todas as objeções examinadas na forma de dicotomias estão referidas ao problema do saber. E em "a pedagogia histórico-crítica e a educação escolar" reitera-se que "o saber é o objeto específico do trabalho escolar". Em suma, é possível afirmar que a tarefa a que se propõe a pedagogia histórico- crítica em relação à educação escolar implica: 16 a)Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações bem como as tendências atuais de transformação; b) Conversão do saber objetivo em saber escolar de modo a torná-lo assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares; c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção bem como as tendências de sua transformação. 17 SOBRE A NATUREZA E ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO* Sabe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assim sendo, a compreensão da natureza da educação compreensão da natureza humana. Ora, o que diferencia os homens dos demais fenômenos, o que o diferencia dos seres vivos, o que o diferencia dos outros animais'? A resposta a essas questões também já é conhecida. Com efeito,sabe-se, diferentemente dos outros animais, que se adaptam natural tendo a sua existência garantida naturalmente, o homem necessita produzir continuamente sua própria existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é feito pelo trabalho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é o trabalho. E o trabalho se instaura a partir do momento em que seu agente antecipa mentalmente a finalidade Conseqüentemente, o trabalho não é qualquer tipo de atividade, mas uma ação adequada a finalidades. E, pois, uma ação intencional. Para sobreviver o homem necessita extrair da natureza, intencionalmente, os meios de sua subsistência. Ao fazer isso ele inicia o processo de transformação da natureza, criando um mundo humano (o mundo da cultura). Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho. Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre a "Natureza e Especificidade da Educação", realizada pelo INEP, em Brasília, no dia 5 de 1984. Publicado anteriormente no Em Aberto, INEP, n-° 22,1984. 19 Assim, o processo de produção da existência humana implica, primeiramente, a garantia da sua subsistência material com a conseqüente produção, em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo nós podemos traduzir na rubrica "trabalho não-material ". Entretanto, para produzir materialmente, o homem necessita antecipar em idéias os objetivos da ação, o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Tais aspectos, na medida em que são objetos de preocupação explícita e direta, abrem a pers- pectiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica "trabalho não-materíal". Trata-se aqui da produção de idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana. Obviamente, a educação se situa nessa categoria do trabalho não-materíal. Importa. porém, distinguir, na produção não-material, duas modalidades. A primeira refere-se àquelas atividades em que o produto se separa do produtor como no caso dos livros e objetos artísticos. Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado pela autonomia entre o produto e o ato de produção. A segunda diz respeito às atividades em que o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso, não ocorre o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consumo se imbricam. É nessa segunda modalidade do trabalho não-material que se situa a educação. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se esclarece a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos). Compreendida a natureza da educação nós podemos avançar em direção à compreensão de sua especificidade. Com efeito, se a educação, pertencendo ao âmbito do trabalho não-material, 20 tem a ver com idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, tais elementos, entretanto, não lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem. Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das chamadas ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina de "ciências do espírito" por oposição “ciências da natureza”. Diferentemente, do ponto de vista da educação ou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como ciência da educação, esses elementos interessam enquanto é necessário que os homens os assimilem, tendo em vista a constituição de algo como uma segunda natureza. Portanto; o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens; e aí se incluem os próprios homens. Podemos, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é produzida sobre a base da natureza bio-física. Conte, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à dos elementos culturais que precisam ser assimila pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece de grande importância, em pedagogia, a noção de "clássico". O "clássico" não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, se constituir num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico. Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas de desenvolvimento do trabalho pedagógico), trata-se da organização dos meios (conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) através dos quais, progressivamente, cada indivíduo singular realize, na forma de segunda natureza, a humanidade historicamente. 21 Considerando, como já foi dito, que se a educação não reduz ao ensino este, sendo um aspecto da educação, participa da natureza própria do fenômeno educativo, creio ser possível ilustrar as considerações gerais acima apresentadas com o caso da educação escolar. Este exemplo me parece legitimo porque própria institucionalização do pedagógico através da escola um indício da especificidade da educação, uma vez que, se educação não fosse dotada de identidade própria seria impossível a sua institucionalização. Nesse sentido, a escola configura se numa situação privilegiada, a partir da qual podemos detectar a dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática social global. Peço, pois, licença para reapresentar aqui as considerações que fiz em Olinda, por ocasião do III Encontro Nacional do Programa Alfa (ENPA). Ali, ao tratar do papel da escola básica, parti do seguinte: a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular. Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito é ilustrativo o modo como os gregos consideravam essa questão. Em grego, temos três palavras referidas ao fenômeno do conhecimento: doxa (&ya), sofìa (&ocpí)a e episteme (érrQTli,). Doxa significa opinião, isto é, o sabe próprio do senso comum, o conhecimento espontâneo ligado diretamente à experiência cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numa longa experiência de vida. É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios e que os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente episteme significa ciência, isto é, o conhecimento metódico sistematizado. Conseqüentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jovem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho. 22 Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites não justifica a existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria na experiência de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência escolar, o que, inclusive, chegou a se cristalizar populares como: "mais vale a prática do que a gramática e “as crianças aprendem apesar da escola". E a exigência de apropriação do conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que torna necessária a existência da escola. A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência ), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem se organizar a partir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, poderemos então afirmar que é a partir do saber sistematizado que se estrutura o currículo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, é uma cultura letrada. Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber é aprender a ler e escrever. Além disso, é preciso também aprender a linguagem dos números, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade. Está aí o conteúdo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das ciências naturais e das ciências sociais e geografia humanas). A essa altura vocês podem estar afirmando: mas isso é o óbvio. Exatamente, é o óbvio. E como é freqüente acontecer com tudo o que é óbvio, ele acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas que escapam à nossas atenção. E esse esquecimento, essa ocultação, acabam por neutralizar os efeitos da escola no processo de democratização. Vejamos o problema já a partir da própria noção de currículo. De uns tempos para cá se disseminou a idéia de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola. Portanto, currículo se diferencia de programa ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é tudo o que a escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades extracurriculares. Recentemente, fui levado a corrigir essa definição acrescentando-lhe o adjetivo "nucleares". Com essa retificação a definição, provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto? Porque, se tudo o que acontece na escola é currículo, se apaga a diferença entre curricular e extracurricular 23 então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e fusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é principal, deslocando-se, em conseqüência, para o âmbito do acessório aquelas atividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais lembrar que esse fenômeno pode se facilmente observado no dia-a-dia das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro e já em março temos a semana da revolução; em seguida, a semana santa depois, a semana das mães, as festas juninas, a semana do soldado, semana do folclore, semana da pátria, jogos da primavera, semana da criança, semana do índio, semana da asa etc., e nesse momento já estamos em novembro. O ano letivo se encerra e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola; encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conhecimentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao saber elaborado. É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas, acima enumeradas, são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto tais, são extracurriculares e só têm sentido na medida em que possam enriquecer as atividades curriculares, isto é, aquelas próprias da escola, não devendo em hipótese alguma prejudicá-las ou substituí-las. Das considerações feitas, resulta importante manter a diferenciação entre atividades curriculares e extracurriculares, já que esta é uma maneira não perdermos de vista a distinção entre o que é principal eo que é secundário. Essa questão tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por exemplo, em nome desse conceito ampliado de currículo a escola se tornou um mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas, assistentes sociais etc.) e uma nova inversão se opera. De agência destinada a atender o interesse da população em ter acesso ao saber sistematizado, a escola se torna uma agência a serviço de interesses corporativistas 24 clientelistas. E se neutraliza, mais uma vez, agora por um outro caminho, o seu papel no processo de democratização. A esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que ponto essa concepção que estou expondo não configura uma proposta pedagógica tradicional? Quer-se com isso voltar à velha escola já tão exaustivamente criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alunos, o ensino ativo? Tal objeção é inevitável àqueles educadores que foram de algum modo influenciados pelo movimento da Escola Nova. E nós sabemos que tal movimento, a nível de ideário, teve grande penetração em nosso país. Para encaminhar a resposta à objeção acima formulada, parece-me útil recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita época em que no Brasil se lançava o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova ( 1932). Escreveu ele: "Deve-se entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias neste campo(..). Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na mentos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase `clássica', racional, encontrando nos fins a fonte natural para elaborar os métodos e as formas” (Gramsci, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p.124) As vezes me dá a impressão de que, passados mais de anos, continuamos ainda na fase romântica. Não ênfase clássica. E o que é fase clássica? É a fase em que ma depuração, superando-se os elementos próprios da conjuntura polêmica e recuperando-se aquilo que tem caráter ; e, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes é um clássico da filososofia, Dostoievski é um clássico da literatura universal, Machado de Assis um clássico da literatura brasileira etc. Ora, Clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os métodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola, isto é, do currículo. 25 E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de currículo (organização do conjunto das atividades nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares). Um currículo é, pois, uma escola funcionando, quer dizer, uma escola desempenhando a função que lhe é própria. Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação. Isso implica dosá-lo e seqüencíá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não-domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e seqüenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de "saber escolar". Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos de ensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em relação ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, tor- nando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia. A partir daí, a Escola Nova tendeu a considerar toda transmissão de conteúdo como mecânica e todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo como negação da liberdade. Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liberdade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos. Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes níveis e com o exercício de atividades também as mais diferentes. Assim, por exemplo, para se aprender a dirigir automóvel é preciso repetir constantemente os mesmos atos até se familiarizar com eles. Depois já não será necessária a repetição constante. De quando em quando, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiram razoável concentração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar a marcha com o carro em movimento é necessário acionar a alavanca com a mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a mão esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente, se retira o pé direito do acelerador. 26 A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao dirigir. No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não os domina, mas, ao contrário, é dominado por eles. A liberdade só será atingida quando atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de se exercer, m liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. cão, a atenção se liberta, não sendo mais necessário tematizar o ato. Nesse momento é possível não apenas dirigir livremente, mas também ser criativo no exercício dessa atividade. E se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, se completou. Por isso, é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de exercê-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. As considerações supra podem ser aplicadas em outros domínios, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc. Ora, esse fenômeno está presente também no processo de ,aprendizagem através do qual se dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilustra, de modo eloqüente, o exemplo da alfabetização. Também aqui é necessário dominar os mecanismos próprios da linguagem escrita Também aqui é preciso fixar certos automatismo, incorporá-los, isto é, torná-los parte de nosso corpo, de nosso organismo, integrá-los em nosso próprio ser. Dominadas as formas básicas, a leitura e a escrita podem fluir com segurança e desenvoltura Na medida em que vai se libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode, progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no , conteúdo, isto é, no significado daquilo que é lido ou escrito. nota-se que libertar-se, aqui, não tem o sentido de livrar-se, quer dizer, abandonar, deixar de lado os ditos aspectos mecanismos. A libertação só se dá porque tais aspectos foram apropriados, dominados e internalizados, passando, em conseqüência, a operar no interior de nossa própria estrutura orgânica. Poderse-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é uma superação no sentido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos foram ne- gados por incorporação e não por exclusão. Foram superados 27 porque negados enquanto elementos externos e afirmados como elementos internos. O processo acima descrito indica que só se aprende, de fato, quando se adquire um habitus, isto é, uma disposição permanente, ou, dito de outra forma, quando 0 objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes. A expressão "segunda natureza" me parece sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e escrever, tendemos a considerar esses atos como naturais. Nós os praticamos com tamanha naturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovidos dessas características. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do período em que éramos analfabetos. As coisas se passam como se tratasse de uma habilidade natural e espontânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise- se, não de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por um processo deliberado e sistemático. Por ai se pode perceber porque o melhor escritor não será, apenas por este fato, o melhor alfabetizador. Um grande escritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em compreender os percalços de um alfabetizando diante de obstáculos que, para ele, inexistem ou, quando muito, não passam de brincadeira de criança Para que ele se converta num bom alfabetizador será necessário aliar, ao domínio da língua, o domínio do processo pedagógico indispensável para se passar da condição de analfabeto à condição de alfabetizado. Com efeito, sendo um processo deliberado e sis- temático, ele deverá ser organizado. O currículo deverá traduzir essa organização dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários para que os esforços do alfabetizador sejam coroados de êxito. Adquirir um habitus significa criar uma situação irreversível. Para isso, porém, é preciso insistência e persistência; faz-se mister repetir muitas vezes determinados atos até que eles se fixem. Não é, pois, por acaso que a duração da escola primária é fixada em todos os países com pelo menos quatro anos. Isso indica que esse tempo é o mínimo indispensável. Pode-se chegar a conseguir decifrar a escrita, e reconhecer os códigos em um ano, assim como com algumas lições práticas será possível dirigir um automóvel. Mas do mesmo modo que a interrupção, o abandono do volante antes que se; complete a 28 aprendizagem determinará uma reversão, também isso ocorre com o aprendizado da leitura. Inversamente, completado o processo de, adquirindo o habitus, atingida a segunda natureza, a interrupção da atividade, ainda que por longo tempo, não acarreta a reversão são. Consequentemente, se é possível supor, na escola básica que a identificação e reconhecimento dos mecanismos elementares possa se dar no primeiro ano, a Fixação desses mecanismos supõe a continuidade que se estende por pelo menos mais três anos. É importante assinalar que essa continuidade se dará através do conjunto do currículo da escola elementar. A criança passará a estudar Ciências Naturais, História, Geografia, Aritmética através da linguagem escrita, isto é, lendo e escrevendo de modo sistemático. Dá-se, assim, o seu ingresso no universo letrado. Em suma, pela mediação da escola, dá-se a passagem de saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular e da cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, trata de um movimento dialético, isto é, a ação escolar permite que se acrescente novas determinações que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de forma alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação , de novas formas através das quais se pode expressar os conteúdos do saber popular. Cabe, pois, não perder de caráter derivado da cultura erudita por referência à cultura popular, cuja primazia não é destronada. Sendo uma determinação, que se acrescenta, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá, àqueles que dela se apropriam, uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto popular não lhes é estranho recíproca, porém, não é verdadeira: os membros da população marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina. que foi dito acima a respeito da escola, em que sobressai o aspecto relativo ao conhecimento elaborado (ciência), parece-me ser válido também para outras modalidades de prática pedagógica, voltadas principalmente para outros aspectos, como o desenvolvimento da valorização e simbolizarão. Em conclusão: a compreensão da natureza da educação, enquanto um trabalho não- material cujo produto não se separa do ato de produção nos permite situar a especificidade da educação como referida aos conhecimentos, idéias, conceitos, valores, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos necessários 29 à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas historicamente determinadas que se travam entre os homens. A partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estudos pedagógicos (ciência da educação) que, diferentemente das ciências da natureza (preocupadas com a identificaçã0 dos fenômenos naturais) e das ciências humanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos culturais), preocupa- se Com a identit7cação dos elementos naturais e culturais necessários à constituição da humanidade em cada ser humano e à descoberta das formas adequadas ao atendimento desse objetivo. 30 COMPE'TÊNCIA POLÍ'TICA E COMPROMISSO TÉCNICO (o pomo da discórdia e o fruto proibido)* O artigo de Paolo Nosella, "O compromisso político como horizonte da competência técnica", Educação Sociedade, 14, começa por registrar "algumas perplexidade" suscitadas leitura do livro de Guiomar Namo de Mello, Magistério de Grau: da competência técnica ao compromisso politico. De minha parte, confesso que também venho sendo tomado por alguma perplexidade em face da polêmica que o referido livro vem causando e, em especial, dada uma certa direção tomada pela polêmica. Em razão disso, já há algum tempo vinha `sentindo desejo de interferir nesse debate. A publicação do artigo do Paolo ofereceu a mim o feliz ensejo para me manifestar. Feliz porque ambos, Guiomar e paolo integram a mesma turma de Doutorado em Educação da UC-SP e ambos tiveram suas teses por mim orientadas. Cada trabalho era impiedosamente discutido no grupo e desse processo fez parte a tese da Guiomar que deu origem ao livro em pau. Ainda, por uma coincidência, ambos, Paolo e Guiomar, defederam suas teses no mesmo dia 26-06-81. Se trago a público essas informações é porque me parece ~e elas podem ajudar a desfazer uma imagem equivocada que, ~r vezes, os artigos polêmicos provocam nos leitores: a idéia que o autor da crítica desautoriza o autor criticado, colocarem campo oposto e se define como seu adversário renitente. Vejo, com satisfação que, com essa iniciativa o Paolo prosegue e mantém, agora através de um órgão de opinião pública no campo educacional, o mesmo espírito dos debates que Publicado anteriormente na Revista Educação & Sociedade, Cortez/CEDES, n°- 15, 1983. 31 travávamos no interior do grupo. Aliás, tal iniciativa já havia sido tomada antes, através desse mesmo veículo de comunicação, por Carlos Roberto Jamil Cury e Luiz Antônio Cunha que também integram aquela primeira turma de doutorado.' Ao interferir no debate, faço-o, pois, dentro do mesmo espírito que, por sinal, continua alimentando a elaboração das teses em desenvolvimento no interior do Programa de Doutorado referido. Assim como, no grupo, eu tomava posição, - desenvolvia também minhas criticas e concordava ou discordava das manifestações dos colegas, - é nessa mesma linha que apresento os comentários a seguir. Após ler o artigo do Paolo a primeira pergunta que lhe fiz foi: qual foi o móvel do texto? Esclareceu-me ele que o redigira para um debate que se travava em São Carlos com a presença da Guiomar (embora, por impedimento de viagem o próprio Paolo acabou por não poder participar do debate). Essa informação me parece importante pois, ao situar a gênese do texto, ajuda a compreender mais adequadamente o seu tom polêmico e deliberadamente provocativo. No presente artigo pretendo confrontar ambas as perspectivas (da Guiomar e do Paolo) tentando verificar o grau de divergência ou convergência existente entre elas. Para tanto, penso que o melhor método é o compreensivo isto é, procurarei me situar no interior de cada proposta de modo a captar simpaticamente o seu conteúdo. O esquema do texto será, pois, o seguinte: Na primeira parte me empenharei em evidenciar a lógica interna ao pensamento de Guiomar com o que espero afastar as críticas um tanto apressadas que se lhe têm sido endereçadas. Na segunda parte trabalharei, com o mesmo espírito, sobre o texto do Paolo. Aqui não se trata de afastar eventuais críticas apressadas uma vez que, dada a sua publicação ainda muito recente, não houve sequer tempo para que surgissem possíveis manifestações críticas de qualquer natureza. Não há, pois, críticas 1. Ver C.R.J.Cury, "A propósito de Educação e Desenvolvimento social no Brasil", Educação & Sociedade Cortez/CEDES, nº 9, bem como a resposta de L.A.Cunha, "Sobre Educação e Desenvolvimento Social no Brasil: Crítica e Autocrítica", Educação & Sociedade, nº 10. 32 apressadas a serem afastadas. Trata-se isto sim de se evitar o risco de efetuar uma critica apressada. Daí o cuidado que terei em captar, com o máximo de isenção, o conteúdo veinculado pelo artigo. Finalmente, na terceira parte espero dar uma contribuição no sentido de fazer avançar o debate extrapolando ambas as abordagens, ultrapassando polarizações e apontando em direção de uma síntese superadora. I - QUEM TEM MEDO DA COMPETÊNCIA TÉCNICA? Antes de entrar no mérito do livro Magistério de 1° Grau: da competência técnica ao compromisso político(2), creio ser de interesse situar, para os leitores, o conteúdo global da obra em questão. Isto, além de facilitar o acompanhamento de meu raciocínio àqueles leitores que porventura não tenham tido acesso ao livro de Guiomar, me parece necessário também porque tenho notado que vários dos críticos que têm engrossado a polêmica em torno desse verdadeiro pomo da discórdia, sequer se deram ao trabalho de ler o referido livro. l. A árvore do pomo da discórdia O livro está estruturado em seis capítulos. O primeiro "a teoria revisitada", é o mais extenso (ocupa pouco mais de um terço do total) e também o mais importante. Nele a autora sistematiza a perspectiva teórica que orientou o trabalho. Seu titulo é sugestivo, pois pretende indicar o caráter que assumiu no conjunto da pesquisa. Com efeito, tal capitulo surge como a expressão elaborada daquilo que servira como pano de fundo, ou melhor, como as lentes que permitiram a ela ver o que aparece Escrito nos Capítulos III, I V e V. Esses capítulos foram redigidos anteriormente, a partir dos instrumentos teóricos cuja explicitação é feita no Capítulo I. É como se, após ver determinado 2. Guiomar Namo de Mello. Magistério de 1° Grau: da competência técnica ao compromisso político. São Paulo, Cortez, 1988. 33 do objeto com o auxilio de determinadas lentes, a autora tenha tomado essas mesmas lentes e se debruçado sobre elas para desvendar a sua constituição e explicitar porque elas tornaram possível que fosse visto aquilo que se viu. Daí, o título do capítulo: "teoria revisitada". E uma retomada, a nível de uma síntese articulada, da teoria. Para explicitar a teoria, Guiomar parte do caráter mediador da escola no seio da sociedade. Procede, então, a uma critica da teoria da reprodução na versão representada pela teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica de Bourdieu-Passeron visando limpar o caminho para expor sua visão , de escola, visão essa centrada na categoria de mediação. Através de tal percurso fórmula suas principais hipótese bem como sua tese central, esclarecendo a relação recíproca entre esse arsenal conceptual e seu objeto de estudo: as representações do professor de primeiro grau a respeito de sua prática docente. Voltarei a este capítulo para evidenciar o conteúdo principal do trabalho. Por ora quero apenas situar o leitor no conjunto da obra. No Capítulo II "a teoria em atos", expõe-se o delineamento da pesquisa. Aí descreve-se o processo de observação e de construção de instrumentos, explicitando os procedimentos que indicam os atos nos quais a teoria original se expressa. O Capitulo III, "mulher e profissional em estratégia de ascensão", discute os dados a respeito da situação sócio-econômica do professor. O título sugere aquilo que acredito ser o ponto fundamental desse capitulo. Isto porque é fato sobejamente conhecido a questão da perda salarial dos professores nos últimos anos. Daí, falar-se na "proletarização da carreira docente". Os dados da pesquisa, porém, revelaram uma outra face: por referência às suas origens (profissão e escolaridade dos pais) o magistério ainda se revela um mecanismo de ascensão social. O Capitulo IV se ocupa das representações dos professores relativamente ao sucesso e fracasso dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Por isso recebeu o seguinte titulo, como os demais, bastante sugestivo: "onde a vítima se transforma em réu, ainda que muito amada". No Capítulo V, "muito amor, muita doação e pouco salário", descreve-se as representações dos professores sobre suas 34 condições de trabalho, sobre os motivos da escolha da profissão e sobre as reivindicações e formas de organização. Finalmente, o Capítulo VI é cautelosamente denominado "do senso comum à vontade política, uma das sínteses possíveis", consciente que está a autora dos vários desdobramentos que sua pesquisa pode ensejar. O conteúdo do capitulo retoma, de uma outra maneira, a tese central do livro, sugerindo que a passagem do senso comum à vontade política se dá pela mediação da competência técnica Dado que a polêmica tem girado em torno da expressão "competência técnica", seja isoladamente, seja na sua relação com o compromisso político, é por esse verdadeiro "pomo da discórdia" - que convém começar. 2. O pomo da discórdia Iniciemos, pois, explicitando o significado que tem para Guiomar a competência técnica, buscando desatar de vez esse verdadeiro nó górdio.. Indo direto ao ponto. Na página 16 a autora afirma: "Por competência profissional estou entendendo várias características que é importante indicar. Em primeiro lugar, o domínio adequado de saber escolar a ser transmitido, juntamente com a habilidade de organizar e transmitir esse sa- ber de modo a garantir que ele seja efetivamente apropriado pelo aluno. Em segundo lugar, uma visão relativamente integrada e articulada dos aspectos relevantes mais imediatos de sua própria política ou seja um entendimento das múltiplas relações entre os vários aspectos da escola, desde a organização dos métodos de aula passando por critérios de matricula e agrupamentos de classe, até o currículo e os métodos de ensino. Em terceiro lugar, uma compreensão das relações entre o preparo técnico que recebeu, a organização da escola e os resultados de sua ação. Em quarto lugar, uma compreensão mais ampla das relações entre a escola e a sociedade que passaria necessariamente pela questão de suas condições de trabalho e remuneração. ' (p. 43) Isto que aí foi denominado de competência profissional recebe ao longo do trabalho a denominação de competência técnica. Logo abaixo, na mesma página, isso fica bastante evidente: 35 "Se é que estou captando corretamente o movimento existente nisso tudo, o que vislumbro é a possibilidade de esgotar a ação docente naquilo que ela pode ter de eficiência técnica..” (P· 43) Citei propositadamente essa passagem porque ela oferece munição bem a gosto dos franco-atiradores da polêmica fácil. Pois não é que aparece ai aquela expressão ("eficiência técnica"), marca registrada da pedagogia tecnicista, bombardeada pelos críticos (inclusive por mim) das mais diferentes formas? Seria Guiomar uma nova representante da pedagogia tecnicista? A indicação do sentido de "competência profissional" acima transcrito não parece dar guarida a essa interpretação, uma vez que aquela conceituarão coloca exigências que vão até a "compreensão mais ampla das relações entre a escola e a sociedade", ultrapassando, portanto, claramente os limites da pedagogia tecnicista. Mas isso não configuraria apenas um intento de vestir o tecnicismo com uma nova roupagem? Não estaria emergindo a partir daí uma espécie de "neo-tecniçismo"? A autora, porém, é explícita na recusa do tecnicismo. No parágrafo que precede a conceituação citada, após se referir às dificuldades do professor em manejar adequadamente os recursos técnicos na sua prática pedagógica, afirma: "Isso me remete para a questão da sua competência profissional numa perspectiva não meramente tecnicista". E, algumas linhas acima, havia ela registrado: "Isso entretanto subentende o manejo competente, teórico e prático desses princípios e de todo o conhecimento organizado sobre a escola". E se alguma dúvida ainda pudesse persistir, esta passagem me parece liquidá-la de vez: "Uma analise realista da condição de muitos desses professores eliminaria qualquer suspeita de que a importância da competência técnica seria apenas tecnicismo. Há alguns que dominam mal os próprios conteúdos que deveriam transmitir, que desconhecem princípios elementares do manejo de classes de alfabetização e que, muitas vezes, sequer possuem domínio satisfatório da própria lingua materna" (p. 55). Vê-se, pois, que para Guiomar "competência técnica" tem um sentido claramente não tecnicista já que não diz respeito ao domínio de certas regras externas simplificadas e aplicáveis 36 mecanicamente a tarefas fragmentadas e rotineiras. Ao contrário, compreende o domínio teórico e prático dos princípios e conhecimentos que regem a instituição escolar. Referi-me à instituição escolar, pois se trata de uma delimitação importante. Em todo o trabalho Guiomar jamais pretende ultrapassar os limites da educação escolar. Sua tese relativa à competência téc- nica e seu significado político não pretende, pois, ter validade para a educação em geral. 3. A outra face do pomo da discórdia Falei acima no significado político da competência técnica. Entramos aqui no outro aspecto que tem alimentado as polêmicas em curso: a interpretação que tende a contrapor de modo excludente competência técnica e compromisso político ou, senão tanto, pelo menos a subordinar o compromisso políti0o à competência técnica. Nessa direção ganha corpo a leitura segundo a qual Guiomar estaria realizando a tese da neutralidade da técnica, esvaziando-a de seu sentido político. Vejamos o que pensa a autora a respeito. Ao comentar a intervenção de Marx na AIT que poderia suscitar uma interpretação tendente a subtrair da escola a dimensão política, Guiomar afirma taxativamente: "Tudo isso, longe de retirar o caráter político da escola, ao contrário o afirma e repõe na perspectiva de um momento histórico determinado.' (p. 33) Uma leitura atenta do Capitulo I permitirá verificar que, segundo Guiomar, a escola está impregnada de ponta a ponta pelo aspecto político. Ela se configura como um dos espaços em que os interesses contraditórios próprios da sociedade capitalista entram em "disputa pela apropriação do conhecimento". Mas sua acuidade de análise a leva mais além, a ver o sentido político da escola mesmo ali onde ele aparentemente não existiria, onde ele está oculto sob a aparência do estritamente técnico: Supor todavia que esses interesses, que são políticos. se manifestem de forma explicita, como se lá fossem políticos para os própria interessados, é exigir que o ser e o aparecer 37 da escola estejam em perfeita coerência entre si. A reivindicação dos dominados não se manifesta organizada e explicitamente enquanto tal. Há que lê-la na rebeldia, na passividade na agressividade e na apatia das crianças pobres, que desafiam a proposta curricular e programática da escola básica. Há que lê-la sobretudo nos índices de fracasso escolar. Por outro lado, os interesses do capital não aparecerão nunca como interesses e intenções subjetivamente explicitados do capitalista, da classe dominante ou de seus supostos sequazes: os diretores, os professores, os especialistas. Ao contrário é no seu aparecer escritamente técnico que tais interesses desempenharão sua finalidade realmente política. É na função objetivamente política de excluir as crianças pobres da escola que as limitações técnicas do currículo inadequado, dos programas mal dosados e seqüenciados, das exigências arbitrárias de avaliação, do despreparo do professor, precisam ser captadas, se quisermos ver a escola brasileira hoje tal qual é, e tal qual parece ser. E é nessa contradição entre seu ser e seu aparecer que havemos de captar também o movimento do seu vir a ser, pois essa é a sua crise atual." (p. 48. Grifos nossos) É justamente porque a competência técnica é política que se produziu a incompetência técnica dos professores impedindo-os de transmitir o saber escolar às camadas dominadas quando estas, reivindicando o acesso a esse saber por percebe-lo, ainda que de modo difuso e contraditório, como algo útil à "superação de suas dificuldades objetivas de vida" (p. 48) forçam e conseguem, embora parcialmente e de modo precário, ingressar nas escolas. Esse ponto foi percebido muito bem por Cury e registrado no Prefácio do livro: "Por essa oposição o professor foi sendo paulatinamente esvaziado dos seus instrumentos de trabalho: do conteúdo (saber) e, depois, do método (saber fazer), restando-lhe I agora, quando muito, uma técnica sem competência" (p. 2) Vale registrar, então, que a perspectiva de Guiomar coincide com a de Paolo Nosella quando este afirma: "Acreditamos firmemente que as faces `boazinha e perversa do professor, não existem por acaso e nem foram geradas por uma estratosférica alma natural do professorado, 38 mas representam o fruto e a reação do mesmo professorado a certa metodologia educacional ou seja, a certa prática escolar que, ao legitimar a divisão entre dirigentes e dirigidos ensina aos primeiros ora a ter pena e ora a condenar os se- gundos." (Nosella, 1983, p. 96) Não se trata, pois, de deslocar a responsabilidade pelo fracasso escolar que atinge as crianças das camadas trabalhadas aos professores, escamoteando o fato de que eles também ~o vítimas de uma situação social injusta e opressora. Isto não pode, porém, impedir-nos de constatar que sua condição de vítimas se expressa também, embora não somente, pela produção ; sua incompetência profissional. Em verdade, não procedendo assim incorreríamos em incoerência. Com efeito, ao criticarmos política educacional vigente pelas distorções decorrentes de w atrelamento aos interesses dominantes, não será possível ;fixar de reconhecer seus efeitos sobre a formação (deforação) dos professores. A tarefa de reverter esse estado de coisas é, como bem frisou o Paolo, uma questão política que implica a organização coletiva dos professores. Parece-me que nisto ambos estão plenanente de acordo. Guiomar apenas insiste (esta é sua tese) que reversão desse estado de coisas passa também (e não apenas) ;pela conquista de competência por parte dos professores. A passagem um tanto longa que cito a seguir me parece suficientemente esclarecedora aos leitores: "A grande questão que se coloca do ponto de vista da classe dominante é então como organizar e transmitir o conhecimento aos dominados da maneira mais inofensiva que for possível. Conseqüentemente, uma questão equivalente se coloca do ponto de vista do dominado: como reapropriar-se do conhecimento da maneira mais eficiente que for possível? Ainda que esse ponto de vista não se explicite, ele pode ser lido, desde que exista vontade política para fazer essa leitura. Basta constatar o sacrifício de cada familia individual para colocar e manter seus filhos na escola, e a prática de organização coletiva para conseguir escola. Se assumimos esse ponto de vista recoloca-se o problema do saber fazer competente, como aquele que permitiria realizar, da maneira mais satisfatória, esta escola brasileira hoje, não num sentido tecnicista ingênuo, mas num sentido político. A competência que privilegio neste trabalho portanto inclui o saber técnico, começa muito aquém deste e o ultrapassa. 39 Mas não o exclui isso é importante; ao contrário, subentende-o como mediador de sua própria superação, Considerando esses professores desta escola, começa no domínio dos próprios conteúdos que tradicionalmente constituem o currículo, ou seja, numa reapropriação satisfatoria do saber escolar. fatória do saber escolar. Inclui o domínio de técnicas e m~. todos de ensino que permitam a transformação desse saber passa pela aquisição de uma visão mais integrada da própria prática e uma reapropriação dos processos do trabalho do, docente (método, planejamento, avaliação). E projeta-se que a partir dessa base, numa visão mais critica desse ensino dessa escola e de seu conte5do, a qual não se dissocia de u0 questionamento de suas condições de trabalho e remuneração. ração, e de uma prática coletiva de organização e reivindicação." (p. 55-6) Em seguida ela acrescenta, expressando toda a vontade política que é uma das marcas distintivas de sua personalidade. "Se essa competência não existe será preciso criá-la Partindo, das condições existentes, será preciso discernir onde e como atuar junto ao professor, a fim de prepará-lo para realizar bem esta escola existente." (p. 56) Parece-me, pois, que fundamentalmente não existe oposição entre Guiomar e seus críticos. Existe, sim, uma diferente Com efeito, o horizonte político de Guiomar, seu compromisso político é o mesmo do Paolo e tantos outros entre os quais me incluo. A diferença consiste em que, com os olhos fixos no horizonte, Guiomar está empenhada na caminhada para torna-lo menos distante. Está preocupada em encontrar as formas traduzir praticamente a opção política que tem em comum com seus críticos. Está, como ela gosta de dizer, preocupada ~m travessia: como atravessar o fosso que se interpõe entre as condições atuais e o nosso projeto de sociedade? Mas nela essa preocupação não se detém num plano genérico, abstrato. E quer realizar concretamente esta caminhada. Volta- se e ~ tão para a questão escolar e se posiciona: a escola tem uma contribuição especifica a dar nessa travessia (confira p. 13 e 14).13 e 14). seu problema é: como pode a escola dar essa contribuição, como pode ela cumprir a função política que lhe é própria (na perspectiva dos interesses das camadas trabalhadoras?). Para encaminhar uma possível solução a esse problema Guiomar ousou enunciar uma tese segundo a qual a função 40 política da educação escolar se cumpre pela mediação da compêtencia técnica. Esta tese central de seu trabalho é formulada diferentes maneiras ao longo do livro. Assim, ao concluir o n em que expõe sua visão de escola centrada na categoria de mediação, ela afirma: "Essa contradição manifesta-se inteiramente à escola e cria o espaço legítimo no qual se torna possível cobrar do proclamado sua realização efetiva. Essa cobrança, e esta constitui uma das passagens críticas do raciocino que preside a presente exposição, não se explica apenas na reivindicação política, mas na exigência da competência técnica da escola para realizar bem aquilo a que se propõe: ensinar a todos os que a ela têm acesso e estender-se aos até agora excluídos. A competência técnica, o saber fazer bem, é a passagem, a mediação pela qual se realiza um dos sentidos políticos em si da educação escolar com ela, a competência e com ele, o sentido político em si que pretende trabalhar na interpretação dos dados empíricos a cerca das representações dos professores, tomando-os como uma das condições escolares." (p. 34) É, porém, após explicitar sua perspectiva teórica que ela enuncia de modo explícito sua tese: "o sentido político da prática docente, que eu valorizo, se realiza pela mediação da competência técnica e constitui condição necessária, embora não suficiente, para realização desse momento sentido político da prática docente para o pro- fessor." (P. 44) Ai estão indicadas a importância e necessidade da competência técnica e, ao mesmo tempo, a sua insuficiência. Vê-se, pois, que não cabe falar ai numa subordinação do compromisso político à competência técnica e nem mesmo de a precedência desta em relação àquele. Para entender todo o sentido da tese é fundamental levar em conta a discussão que a precede sobre o conceito de mediação. A competência técnica é mediação, isto quer dizer que ela está entre, no meio, no interior compromisso político. Ela é mediação, ou seja, é também somente) por seu intermédio, que se realiza o compromisso político. Ela é, pois, instrumento, isto quer dizer que ela não se justifica por si mesma mas tem o seu sentido, a sua razão de ser compromisso político. Portanto, ela não explica o compromisso 41 político mas se explica por ele, embora seja uma das formas por meio das quais (sempre o conceito de mediação) se explicita, se realiza o compromisso político. Em suma, a competência técnica é um momento do compromisso político (sob a condição de se entender a palavra momento como uma categoria dialética). 4. As duas faces do pomo da discórdia: Como se relacionam? E chegamos, assim, a um outro ponto que tem sido alvo de objeções: por que, então, o subtitulo do livro (da competência técnica ao compromisso político)? Ainda aqui é necessário manter presente o conteúdo da categoria de mediação. Disse acima que a competência técnica é uma das (não a única) formas através das quais se realiza o compromisso político. Isto significa que ela permite (entre outras condições) efetuar a passagem entre o horizonte político (o compromisso político pensado como uma possibilidade delineada no horizonte) e o compromisso político assumido na nossa prática profissional cotidiana. A competência técnica é, pois, necessária, embora não suficiente para efetivar na prática o compromisso político assumido teoricamente. Com efeito, como diz Vázquez, "a teoria em si (...) não transforma o mundo. Pode contribuir para a sua transformação, mas para isso tem que sair de si mesma, e, em primeiro lugar, tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar com seus atos reais e efetivos tal transformação. Entre a teoria e a atividade pratica transformadora se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação; tudo isso como passagem indispensável para de- senvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da realidade, ou antecipação ideal de sua trans- formação." ( Vázquez, p. 206-7. Grifos nossos) Conseqüentemente, é também pela mediação da competência técnica que se chega ao compromisso político efetivo, 42 concreto, prático, real Na verdade, se a técnica, em termos simples, significa a maneira considerada correta de se executar uma tarefa, a competência técnica significa o conhecimento, o domínio das formas adequadas de agir; é, pois, o saber-fazer. Nesse sentido, ao nos defrontarmos com as camadas trabalhadoras nas escolas não parece razoável supor que seria possível assumirmos o compromisso político que temos para com elas 1em sermos competentes na nossa prática educativa. com compromisso político assumido apenas a nível do discurso pode dispensar a competência técnica. Se trata, porém, de assumi-lo da prática, então não é possível prescindir dela. Sua ausência não apenas neutraliza o compromisso político mas o converte no seu contrário, já que dessa forma estaremos caindo na armadilha da estratégia acionada pela classe dominante que, quando não consegue resistir às pressões das camadas populares pelo acesso à escola, ao mesmo tempo que admite tal acesso esvazia seu conteúdo, sonegando os conhecimentos também (embora o somente) pela mediação da incompetência dos professores. Um último ponto que me parece importante é que Guiomar trabalha com a distinção, que tem passado desapercebida a seus críticos, entre sentido político em si e sentido político para si (para ele, o professor, ou para mim que analiso a prática do professor). A prática educativa do professor tem um sentido político em si que é também um sentido para mim que o capto quando analiso essa prática. Não o é, porém, necessariamente, no sentido político para ele, isto é, independentemente dele saber ou não, de coincidir ou não com o significado, ainda que político, que está na sua cabeça, a prática educativa do professor tem objetivamente um sentido político que pode ser desvelado quando se analisa essa prática como um momento de uma totalidade concreta. Nesse sentido (e apenas nesse sentido) ou seja, quando referida à consciência real de professores determinados numa sociedade e numa escola também determinadas (e não à sua consciência possível) é que se pode falar que a competência técnica precede o compromisso político. Este ponto é explicitado teoricamente no Capítulo I e retomado no Capítulo VI, desta à luz da análise empírica das representações dos professores exposta nos Capítulos III, IV e V. 43 5. Do pomo da discórdia rumo à concórdia Retomando o enunciado da tese ("o sentido político prática docente se realiza pela mediação da competência técnica e constitui condição necessária, embora não suficiente, para plena realização desse mesmo sentido político da prática docente para o professor") não me parece possível, ainda que se descorde de seu conteúdo, deixar de reconhecer que se trata uma formulação de clareza meridiana. Por que, então, o Paolo considerou uma "tese bastante confusa", citando em segui a página 146: "vejo na capacitação profissional o ponto critíca partir do qual imprimir um caráter político à prática docente para esse professor"? Para captar o sentido do enunciado transcrito por Paolo parece-me necessário recolocá-lo em seu contexto. Após a análise das representações dos professores, ao redigir o Capítulo VI, Guiomar tinha diante de si a situação concreta dos docentes de primeiro grau se debatendo com o problema do fracasso escolar das crianças pobres e tentando encontrar alternativas para evitar esse fracasso. É aí, então, que bom senso aponta para a exigência do saber fazer entender como o "domínio do conteúdo do saber e dos métodos adequados para transmitir esse conteúdo do saber escolar a crianças que não apresentam as precondições idealmente estabelecidas para sua aprendizagem." (p. 145) Mas ao adquirir competência o professor ganha também condições ,de perceber, dentro da escola, os obstáculos que se opõem à sua atuação competente. É assim que "a competência técnica inicia o processo de sua transformação em vontade política" (p. 145). Por esse caminho o professor vai desenvolvendo sua consciência real em direção à consciência possível e ganha condição, de passar do sentido político em si para o sentido político para si de sua ação pedagógica: "A vontade política permite que aquele sentido político da prática docente se explicar, cite ao professor e passe a ser, para ele também, uma forma de agir politicamente" pg. 145). E Guiomar prossegue, apoiada em Gramsci: 44 "Foi por esse caminho que consegui ler um tipo de movimento possível na prática docente, cuja direção vai do especialista ao dirigente passando da técnica-trabalho à técnica-ciência e 'd concepção humanista histórica, sem a qual se permanece especialista e não se chega a dirigente (especialista mais político)." (p. 145) Entretanto, trata-se ai de um limite de consciência possível, algo que se delineia no horizonte. Por isso salienta ela a seguir que o movimento acima descrito não configura "algo instalado ou mesmo em processo adiantado de realização" 145). Daí concluir ela que para estes professores nesta escola e existente, dentre as diferentes alternativas possíveis, aquela : ela acredita ser a melhor, dada a sua "exeqüibilidade no espaço político hoje existente na sociedade brasileira (p. 146) é a diminuição do fracasso escolar e da exclusão, por meio de estrategias técnicas adequadas para garantir o acesso ao maior numero possível de crianças nesta escola, e sua permanência nele pelo maior tempo possível" (p. 146). Esta é sua hipótese; s do que isso, é sua aposta. Agora, reconstituído o quadro em que se insere o enunciado citado por Paolo, é possível recuperá-lo no interior do urso em que foi produzido: caso essa hipótese se sustentasse, e creio que se sustentaria pois é também minha aposta, vejo na capacitação profissional o ponto critico a partir do qual imprimir um caráter político à prática docente para esse professor. Porque o sa- ber-fazer constitui uma das necessidades imediatas para sua imagem de profissional, para uma percepção mais critica e menos assistencialista do valor de seu trabalho" (p. 146). Vê-se, pois, que aquilo que parecia uma tese confusa resulta nada mais que uma tentativa de ler a realidade da prática docente e indicar uma forma de traduzir, nessa mesma prática, tido político da educação escolar. Para Guiomar, a indicação supra, além de ser apenas uma muitas alternativas possíveis, cautelosamente sequer ela :e que se trata de uma certeza. Por isso prefere a palavra a. E assim termina o seu livro: 45 "Uma aposta é mais que uma hipótese e muito menos que uma certeza. Gosto do termo porque expressa com exatidão o momento de minha subjetividade no processo de conhecimento da prática docente e justifica que este capítulo não seja a síntese mas na das muitas sínteses possíveis. Como toda aposta envolve riscos, sou levada a indagar se a solidão do trabalho teórico não me fez, como ao poeta, ver com clareza coisas que não são verdadeiras. Creio entretanto que essa é mais uma incerteza a assumir e incorporar, porque não vejo como dar uma resposta satisfatória a tal indagação, no âmbito do próprio trabalho teórico" (p. 146-7). Esta conclusão está em perfeita consonância com a Tese II de Marx sobre Feuerbach: "A questão de saber se ao pensamento humano se pode atribuir uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas uma questão prática. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a precisão do seu pensamento. A controvérsia sobre a realidade ou não realidade do pensamento, isolado da prática, é uma questão puramente escolástica" (grifos na fonte). E é na prática que Guiomar está tentando responder àquela indagação. Não temos dúvida de que esta problemática está na raiz da difícil decisão que tomou ao aceitar assumir a Secretaria da Educação do Município de São Paulo. Terá ela êxito`? Ganhará a aposta`? Não sabemos. Mas que, ao demonstrar tal grau de coerência entre seu discurso e sua prática, ela estará avançando na resposta à indagação formulada, disto não temos dúvida. 6. Quem tem medo da competência técnica? Após os comentários acima apresentados, ocorre-me perguntar: quem tem medo da competência técnica? À luz da análise feita parece óbvio que as camadas trabalhadoras não têm qualquer motivo para temer a competência técnica. Ao contrário, é a classe dominante que tem razões para temê-la, tanto assim que, no empenho em preservar seus interesses, acabou por provocar a produção da incompetência a despeito das proclamações em contrário. Também não temerão a competência técnica os intelectuais verdadeiramente empenhados em assumir, de fato, um 46 compromisso político articulado com os interesses das camadas trabalhadoras. Temem a competência técnica aqueles que, embora procurem assumir esse tipo de compromisso político, se encontram ainda sob a influência dominante das teorias educacionais que convencionei chamar de "crítico-reprodutivistas". Saviani, 1983) Tais teorias, captando de modo mecânico e unidirecional determinação da sociedade sobre a educação acabam por dissolver a especificidade da educação e, por insuficiência dialética, eliminam as contradições do interior da escola reduzindo-a a n espaço onde os interesses dominantes se impõem de forma, por assim dizer, absoluta. Por isso a competência técnica no interior das escolas é interpretada como estando sempre a serviço dos interesses dominantes. Devo ressaltar, para evitar interpretações equivocadas, já que este meu texto teve como pretexto a publicação do artigo do Paolo, que, conforme entendi, o Paolo não teme a competência técnica. O que ele teme é a velha competência técnica, aquela articulação com os interesses da burguesia. E ele aspira por na nova competência técnica que seja produto das lutas do "coletivo dos professores, politicamente organizados" e articulados com os interesses dos trabalhadores. Nesse sentido considero que o artigo do Paolo complementa e, sob alguns aspectos, talvez mesmo possa retificar o texto da Guiomar ao forçá-lo a explicitar certos pontos que tão presentes mas que não mereceram grande destaque em vista mesmo dos interlocutores principais do texto. Porque não ignora que a tese de Guiomar tinha como interlocutores diretos os educadores progressistas, identificados com posições que poderíamos classificar "de esquerda". Nesse contexto, o sentido compromisso político, sua vinculação com os interesses dominados era dado como entendido e não problemático. A estão que se punha era: como realizar esse compromisso político? Como fazê-lo progredir? Como torná-lo atuante na prática docente? É nesse sentido que emergiu como tema principal a estão da competência técnica Isto não elimina aquilo que quer o Paolo, isto é, a necessidade de "uma crítica mais profunda contra certa competência pedagógica, socializando mais a crítica e a denúncia contra concepções anacrônicas e elitistas da tecnologia educacional dominante". 47 Na linha das considerações acima indicadas cabe observar que o Paolo deixa entrever um certo temor de que posições como a da Guiomar venham a reforçar o tecnicismo pedagógico, dando um novo alento aos adeptos dessa posição que vinham perdendo espaço em função das críticas cada vez mais cerradas que lhes eram endereçadas. Algumas pessoas chegaram mesmo a comentar que, de sua parte, entendiam as posições de Guiomar. Assustavam-se, porém, com o fato de que os tradicionalistas, conservadores e reacionários faziam uma leitura do livro que recuperava o seu conteúdo em benefício de suas posições políticas no campo educacional. A esse respeito penso que é esse tipo de leitura que deve ser criticado, combatido, denunciado. Com efeito, assim como não se pode culpar Marx pela recuperação burguesa que Croce fez das categorias teóricas por ele desenvolvidas mas cabe, isto sim, combater Croce como o fez Gramsci, assim também me parece que não se trata de culpar a Guiomar e desmerecer o seu trabalho em função dessas leituras "recuperadoras". II - QUEM TEM MEDO DO COMPROMISSO POLÍTICO? Esforcei-me, na primeira parte deste artigo, em me situar no interior do discurso expresso no livro de Guiomar Namo de Mello, procurando captar, a partir de dentro, sua perspectiva, seus argumentos, suas posições. Cumpre, agora, tentar captar a perspectiva do Paolo de modo a ganharmos condições de confrontar as duas perspectivas com conhecimento de causa, tentando desvendar, objetivamente, suas discrepâncias e eventuais coincidências. Proponho-me, pois, nesta parte, a realizar sobre o artigo "O compromisso político como horizonte da competência técnica' o mesmo movimento realizado na primeira parte sobre o livro Magistério de I-° grau: da competência técnica ao compromisso político. Procurarei adentrar-me ao texto, buscando captar do interior de seu discurso, a perspectiva que o enforma E, como anteriormente, aqui também creio que, nesse processo de imersão, o método mais adequado é assumir uma atitude de simpatia, permitindo que o texto diga tudo o que quis dizer; isto 48 implica evitar provisoriamente que minhas próprias posições, minhas discordâncias, minhas ressalvas forcem o autor a dizer aquilo que ele não pretendeu dizer. Como na primeira parte, aqui também utilizarei subtítulos alegóricos. A referência, lá, ao "pomo da discórdia" era diretamente compreensível pelos leitores. Aqui utilizarei a metáfora do “fruto proibido”. E1a me parece rica de simbologia, pois, além de apontar para a perspectiva de instauração de uma or- dem que é proibida nas atuais circunstâncias, implicando, portanto, na desobediência, na quebra da ordem vigente, sugere, ainda, a imagem da "árvore da ciência do bem e do mal" significando com isso a perda da inocência, o desvendamento dos segredos (leis) 9ue atuam na sociedade. Aqui, também, começarei por apresentar sinteticamente o conteúdo global do artigo. Em seguida serão feitos os destaques de maneira homóloga ao procedimento adotado na primeira parte. 1. A árvore do fruto proibido O artigo começa por registrar uma perplexidade que se expressa no temor de que a tese de Guiomar signifique um retorno a "um novo e disfarçado tecnicismo pedagógico". Tal temor se mantém embora se reconheça na referida tese: "claras afirmações a respeito da necessidade de ainda se criticar e de- nunciar a prática escolar" existente. Isto em razão da insuficiente historicização dos conceitos trabalhados na tese. Para superar a limitação acima apontada Paolo advoga então, a necessidade de historicizar e referir os conceitos ao embate entre as classes sociais. Esta historicização implica referir a competência às diferentes concepções de cultura. Fundamentalmente, trata-se de distinguir entre a "cultura enciclopédico- burguesa" e a "cultura histórico-proletária". Cada uma tem sua própria idéia de competência. Do ponto de vista histórico as duas culturas referidas se relacionam dialeticamente, constituindo-se a segunda num momento superior que incorpora, de um novo ponto de vista, as conquistas das culturas passadas. Daí, o conceito de ortodoxia que implica o reconhecimento de que a filosofia da práxis é auto-suficiente. 49 Em síntese, o autor se posiciona resolutamente pela subordinação da competência técnica ao compromisso político definido a partir de um horizonte político que implica o rompimento com a velha competência técnica gestada no seio de um compromisso político reacionário ou conservador e a gestão de uma nova competência técnica comprometida politicamente com as forças emergentes constituídas pelas massas trabalhadoras. Como realizar isto? O caminho preconizado estabelece prioridade para a reflexão crítica e análise polêmica A partir daí, e só daí, será possível definir os novos processos técnicos que pressupõem uma explícita e coletiva nova preocupação histórica. Assim, a competência técnica fica subordinada e a serviço do "novo objetivo social que a classe trabalhadora explicitou e definiu para si' (P. Nosella, "O compromisso político como horizonte da competência técnica", Educação & Sociedade, n°- 14). A partir das premissas antes estabelecidas, Paolo sugere uma nova interpretação da "incompetência pedagógica”; esta pode ser: a) expressão coletiva de resistência; b) manifestação de esgotamento da força hegemônica da classe dominante; c) resultado de um processo de repressão e esvaziamento cultural. Sugere, também, uma nova interpretação do sentido de bom senso dos professores. Este não significaria apenas a percepção de que a aprendizagem do aluno é importante. Implicaria: a) descaso e cepticismo do professorado em relação às i proclamações do Estado e de sua equipe de técnicas; b) descaso para com a tecnologia educacional e as metodologias impostas. E uma nova interpretação da capacitação dos professores que passa a ser entendida como um saber-fazer que concretiza determinada linha política. Portanto, ela não determina o compromisso político mas é por ele determinada E ainda, uma nova interpretação da "visão assistencialista do professor". Esta não é resultado da incompetência, mas a "alma ideológica" da tecnologia educacional "competente" inculcada nos professores por "competentes" profissionais. 50 E, também, uma nova interpretação da impotência dos professores. Esta também não decorre da incompetência, mas constitui "um derradeiro gesto de resistência" à "competência" instituída como legitimadora do descalabro educacional E, por fim, sugere uma nova interpretação da "vontade que o professor manifesta em querer fazer algo na escola". (Nosella, 1983). Esta vontade, enquanto bom senso enucleado no senso comum dos professores, não poderia ser iluminada pelo apelo à competência técnica o que foi sempre o "refrão dos discursos governistas". (p. 97). Trata-se, antes. de uma vontade política que implicaria, de um lado, o aprofundamento e socialização da crítica à competência pedagógica decorrente de concepções anacrônicas e elitistas e, de outro, a tentativa de elaborar, no interior da organização político-coletiva dos professores, novas técnicas e metodologias de ensino. E o artigo se encerra com um elogio à competência dos professores brasileiros que sempre foram capazes de criar formas eficientes de educar seus alunos nas condições as mais adversas, mas que foram reprimidos sistematicamente. Por sobre as "ruínas de excelentes tecnologias educacionais forem oferecidas alternativas técnicas outras que de competente nada possuíam a não ser a capacidade de mistificar, pulverizar, iludir e desanimar sob a aparência de processos técnicos eficientes para o ensino-aprendizagem". (p. 9~ Porque sabem muito bem disso tudo é que os educadores brasileiras conferem a primazia ao compromisso político sem o que jamais terão as condições objetivas para atingirem a nova competência exigida pela concepção histórico- proletária de cultura. 2. O fruto proibido Vê-se, a partir do resumo apresentado no item anterior, que pata Paolo Nosella o compromisso político é o "ponto crítico do processo educativo". O educador que queira se colocar na perspectiva da "emergente classe trabalhadora" deve, pois, romper com a velha concepção de cultura (a enciclopédico-burguesa). 51 Isto implica desobedecer, quebrar as regras estabelecidas ousar comer do fruto da "árvore da ciência do bem e do mal" negando, assim, a inocência paradisíaca que reina na escola capitalista. Utilizo essa simbologia porque ela me parece rica na medida em que permite entender o processo de desvelamento das leis que regem a sociedade capitalista Nessa tarefa o educador não necessita começar do zero. Do seio da velha cultura emergiu a "visão cultural socialista" que, "embora dominada, é historicamente superior à burguesa e incorpora, de um novo ponto de vista, as conquistas das culturas passadas". (P. 93). E a expressão elaborada dessa nova cultura é a "filosofia da práxis". Esta é a ciência que desvenda os segredos da dominação burguesa. Já que esse ponto de vista é radicalmente novo, isto é, se constitui com uma "raiz substantivamente diferente" é apenas colocando-se nessa perspectiva que será possível imprimir uma' direção genuinamente nova para a prática educativa. Colocar-se nessa perspectiva significa assumir um "novo engajamento político" o qual constitui condição para se compreender que: "a Filosofia da práxis se basta a si mesma por possuir todas as categorias essenciais pare uma nova concepção de mundo capaz de compreender e assimilar, de um novo ponto de vista original e superior, a história passada", (p. 93) Para traduzir essa perspectiva que estabelece o primado do compromisso político, Paolo se utiliza da imagem do horizonte: "A imagem mais adequada que nos ocorre, para expressar esses conceitos, é ainda a imagem do horizonte que transcende e ao mesmo tempo consubstancia de significação todo passo específico do caminhante. O horizonte po1ítico é a síntese precária de toda pesquisa; precede e acompanha toda práxis cientifica, qualificando-a politicamente. Se o horizonte político de per si só não é ainda a capacidade de se caminhar, é, no entanto, a orientação concreta que informa toda técnica e toda instrumentação educativa." (p. 93-4) 52 3. A outra face do fruto proibido A afirmação supra, centrada na imagem do horizonte, já nos adverte de que o compromisso político, se detém a primaria, se é o ponto de partida e o ponto de chegada, a marca distintiva, a orientação concreta que informa todo o processo, não o esgota, porém. Ele "não é ainda a capacidade de se caminhar". Portanto, se Paolo subordina resolutamente a competência técnica ao compromisso político, nem por isso ele deixa de reconhecer a importância e necessidade da competência técnica. É necessário "substituir o velho arsenal de competências técnicas" por "um novo conjunto de técnicas". (P. 93) Para se chegar si, porém, é necessário um longo e paciente trabalho. Se a leitura dos dois últimos parágrafos do artigo do Paolo pode conduzir à interpretação de que o novo compromisso político já é uma conquista dos professores, cabe advertir, contudo, que tal interpretação não corresponde ao espirito do conjunto do texto. Paolo revela plena consciência de que o compromisso político é um horizonte (Goldmann diria que é a "consciência possível") que está ainda longe de ser plenamente atingido. Por isso insiste ele na necessidade de não se descuidar de, continuamente, aprofundar e ampliar a reflexão crítica pois: "um trabalho crítico e maciçamente polêmico contra a prática pedagógica que está aí, nem sequer começou de forma org~i7ada, molecular e profunda entre nós '. (p. 94) Podemos, pois, concluir que as referencias dos dois últimos parágrafos não traduzem, propriamente, uma con9~ta assegurada mas se referem, antes, ao bom senso dos professores. Ta1 bom senso necessita ser trabalhado e elevado ao nível de uma concepção elaborada, orgânica e coerente que, tornando-se hegemônica, se revele capaz de articular o coletivo dos professores. Trata-se de uma tarefa árdua, difícil: "o trabalha de reflexão crítica e de análise polêmica é um processo longo e deve-se desconfiar da pressa em superá-lo. Muitas manifestações de 'saturação' de Crítica e de polêmica, escondem um perigoso ativismo quando não uma rejeição da emergência de novas hegemonias". (p. 94) 53 A competência emerge, assim, como a outra face do compromisso político que é duramente conquistada pelo próprio aprofundamento e radicalização do momento político: ..novas competências técnicas não surgirão espontaneamente, pois são fruto de longo trabalho. Passa-se pela crítica cerrada às tecnologias historicamente geradas na esfera dos interesses das atuais classes dominantes e a incorporação de elementos valiosas da cultura passada se dará de forma original e dentro do espírito divergente e oposto'. (P~ 94) Além do mais, Paolo também descarta a tendência, por vezes freqüente, de se concentrar o compromisso político na tarefa crítico-polêmica; por isso acrescenta: "finalmente, estas novas competências técnicas deverão ser submetidas à prova da prática pois terão algum valor na medida em que alcançarem o objetivo pretendido que é o de realizar o encontro das massas trabalhadoras deste pais consigo mesmas ao reconhecerem seus direitos, seus deveres, sua história, seu futuro". (p. 94) Continuando na linha da simbologia que venho utilizando, vale dizer que, se o fruto proibido é atraente, prová-lo implica condenar-se a "ganhar o pão com o suor de seu rosto', isto é, trabalho muito Trabalho. E sob o reino do deus Capital isto significa enfrentar toda sorte de pressões e dificuldades, inclusive a repressão. E uma vez que se trata de uma ruptura radical que necessita se aprofundar cada vez mais, já não é permitido sonhar com o paraíso perdido. 4. As duas faces do fruto proibido: como se relacionam? Se o compromisso político não exclui a competência técnica cabe verificar como se articulam, no texto de Paolo, esses dois aspectos. Paolo é enfático em afirmar a primazia do compromisso político ao qual subordina, de modo insistente, a competência técnica. E isto é compreensível dada a motivação polêmica de seu texto inspirado, que foi, no temor de que a ênfase na 54 importância da competência técnica pudesse "representar, na prática, uma volta a um novo e disfarçado tecnicismo pedagógico". E como esse temor foi suscitado pela leitura do livro de Guiomar, entende-se que, ao ver realçada no referido livro a competência técnica, tenha sido ele levado a pôr o acento no compromisso político. Deve-se, porém, notar que, ao abrir seu artigo, ao mesmo tempo em que registra suas perplexidades, Paolo afirma também que tais perplexidades "poderiam encontrar resposta quando se aprofundasse o próprio conceito de competência e/ou incompetência técnica e sua relação com o horizonte político". Portanto, desde aí já está posto o problema da relação entre ambos os aspectos. A insistência no primado do aspecto político é sintetizada nesta frase: "A competência técnica, repetimos, não é jamais um momento prévio para o engajamento político, ela já é um determinado engajamento político' . Vê-se pois, que a competência não é entendida como um momento prévio ao engajamento político mas como um momento no interior do próprio compromisso político. O que caracteriza o momento da competência técnica? Como ela se define no interior do compromisso político? Qual seu papel? Evidentemente essas questões não são objeto de discussão explícita nos limites do artigo. Interessa-nos, porém, captar o espírito, a direção na qual Paolo situa tais questões. Parece que, para ele, o horizonte político determina a qualidade, o sinal (positivo ou negativo), o sentido e o conteúdo da competência técnica "Se o horizonte político de per si s6 não é ainda a capacidade de se caminhar é, no entretanto, a orientação concreta que informa toda técnica e toda instrumentação educativa". (p. 94) Entretanto como já sugere a frase acima citada ("o horizonte de per si só não é ainda a capacidade de se caminhar"), é pela competência técnica que o compromisso político se realiza. Com efeito trata-se de se chegar a um conjunto de técnicas ou a uma metodologia "que possa atuar e concretizar um novo compromisso político". (p. 93. Grifo nosso). Continuando na 55 mesma linha de acentuar o compromisso político não se perde de vista, contudo, a exigência de sua concretização. "Esse saber-fazer não pode ser um momento que precede o horizonte político, pelo contrário, ele é já uma concretização de uma determinada linha po1ítica. Todo saber-fazer contém certa visão de mundo e é um ato político no qual se concretizam certas intenções saiais gerais". (P. 96) Ora, dizer que o saber-fazer é concretização de uma linha política e que é no saber-fazer que se concretizam certas intenções sociais gerais, não significa admitir que é pela competência técnica que se realiza o compromisso político? Insinua-se, pois, também no texto do Paolo aquilo que estava explícito no livro de Guiomar: o conceito de mediação. 5. Fruto proibido e pomo da discórdia: convergência Do que foi dito acima poderíamos admitir que, em última instância, a perspectiva do Paolo converge com a de Guiomar já que também ele, no fundamental, aceitaria a tese segundo a qual a função política da educação (escolar) se cumpre também, embora não somente, pela mediação da competência técnica Com efeito se esta é concretização do compromisso político, se é pelo saber-fazer que as intenções sociais gerais se materializam e se é pela metodologia que atua o compromisso político, então, o caráter mediador da competência técnica no interior do projeto político se expressa aí de modo claro. Tudo o que o Paolo fez ao longo de todo o seu artigo foi insistir no fato de que a competência técnica não pode ser considerada "em si". Ela é sempre referida a determinada perspectiva política devendo ser aferida a partir daí e não o contrário. Daí considerar ele equivoca a bipolaridade entre competência e incompetência: "Ideologicamente a bipolaridade entre competência e incompetência técnicas mascare uma segunda mais radical bipolaridade, isto é, entre o conceito de competência pana a cultura dominante e o de competência para as classes emer- gentes. A primeira bipolaridade deixa entender que a competência técnica é uma categoria em si, universal, acima dos 56 interesses de classe, quando, pelo contrário, sabe-se que competência e/ou incompetência são qualificações atribuídas no interior de uma visão de cultura historicamente determinada, pois existe o competente e o incompetente para uma certa concepção de cultura, como existe o competente e o incompetente para uma nova concepção de cultura". (P. 91) Conseqüentemente, o ato educativo carrega sempre consigo determinado conteúdo político sendo, a própria distinção entre os aspectos técnico e político, uma abstração: "Jamais lembraremos bastante o fato de que, se os elementos técnico- edncativos, em si, podem ser considerados outros, de fato esta verdade não passa de uma abstração, já que os elementos técnicos existem sempre num determinado processo histórico e ninguém se iluda de poder assimilar esses elementos "em si", sem concretamente assimilar também a direção histórica que os produziu '. (P. 94) Ora, o conceito de mediação indica, justamente, o caráter instrumental da educação e, por conseqüência, afirmar que a educação é mediação significa admitir que o que se passa em seu interior não se explica por si mesmo mas ganha este ou aquele sentido, produz este ou aquele efeito social dependendo das forças sociais que nela atuam e com as quais ela se vincula. Há, pois, aí convergência com a afirmação de Guiomar segundo a qual a prática do professor tem sempre um sentido político em si, independentemente de que esse sentido exista para o professor, isto é, independentemente de que se tenha ou não consciência do significado político da ação educativa. Aparentemente, pois, haveria apenas uma diferença ligada ao constante uso que Paolo faz do adjetivo "novo". Ele sempre faz questão de distinguir entre o velho compromisso político e o novo; entre a velha competência técnica e a nova. Como, porém, à luz da análise que procurei fazer na primeira parte deste artigo resulta difícil identificar a posição de Guiomar com os interesses políticos dominantes alinhando-a, em conseqüência, no rol dos defensores da velha competência, a conclusão geral parece apontar na direção de uma convergência básica nas posições de ambos. 57 6. Quem tem medo do compromisso político? À luz das considerações feitas não parece difícil concluir que, na verdade, temem o compromisso político aqueles mesmos que temem a competência técnica. Isto porque, aquilo que efetivamente teme a classe dominante é a concretização do compromisso político transformador. O discurso da transfor- mação não só não é temido como tende a ser apropriado peta classe dominante. Ali3s, nós sabemos que ela própria procura tomar a iniciativa de formulação de um discurso transformador como mecanismo de manutenção/recomposição de hegemonia. Eis porque, se o discurso relativo a um compromisso político transformador pode ser tolerado, as tentativas de concretizar tal compromisso são combatidas das mais diferentes formas sem excluir a repressão violenta quando os demais recursos não se revelarem eficazes. Vê-se, pois, que assim como a defesa da competência técnica pode ser apropriada pelos conservadores e reacionários, a defesa do compromisso político também pode ser apropriada pelos que buscam esvaziar a educação escolar de sua contribuição especificamente Pedagógica para a transformação social, com o que se acaba por anular a direção transformadora de seu compromisso político. Cabe, pois, denunciar uma e outra apropriação e não identificar linearmente a competência técnica com a conservação e o compromisso político com o esvaziamento da escola. Assim como a posição da Guiomar - conforme afirmei no final da primeira parte - não pode ser identificada com a perspectiva conservadora de defesa da velha competência, assim também a posição do Paolo - espero ter deixado isto claro ao longo desta segunda parte - n~ pode ser identificada com uma perspectiva de esvaziamento da especificidade da educação escolar. Aliás, a este respeito, cabe frisar que na polêmica em curso tem estado sempre iminente o risco de uma polarização enviesada que contrapõe, de um lado, a competência técnica e, de outro, o compromisso político. Ora, não se faz política sem competência e não existe técnica sem compromisso; além disso, a política é também uma questão técnica e o compromisso sem competência é descompromisso. Tentei quebrar a referida polarização já desde o título deste artigo. A denominação 58 “competência política e compromisso técnico" teve a intenção manifesta de romper a vinculação entre técnica e competência de um lado, e política e compromisso, de outro. Se, em última instância, a perspectiva do Paolo converge com a de Guiomar, se a conclusão geral a que chegamos aponta na direção de uma concordância básica nas posições de ambos, cabe perguntar então: que sentido tem esse debate? Obviamente, a conclusão supra me parece válida exatamente nos termos em que foi expressa, isto é, como conclusão geral e em última instância. Isto porque, da forma simplificada como foi apresentada, ela corre o risco de resultar genérica, não contribuindo para fazer avançar a discussão. Com efeito, até aí simplesmente se reafirmou e se colocou no devido lugar, afastando críticas apressadas e interpretações equivocadas, aquilo que suponho ser de conhecimento geral; ou seja: tanto o Paolo como a Guiomar buscam, como educadores, assumir um compromisso político identificado com os interesses das camadas trabalhadoras. Como, no entanto, concebem esse compromisso? De que forma pretendem realizá-lo? Como interpretam o papel da escola no interior desse compromisso? Tentarei, à guisa de conclusão, encaminhar essas questões visando contribuir para fazer avançar o debate. Para isso será necessário extrapolar os textos em referência. Conclusão III - PARA ALÉM DO POMO DA DISCÓRDIA E DO FRUTO PROIBIDO Pela leitura que fiz, entendo que na raiz da divergência estão dois conceitos- chaves não suficientemente explicitados mas que funcionam como supostos que orientam tanto as próprias análises e posições como a crítica a outras análises e posições. Esses conceitos são, para Guiomar, "saber escolar" e para Nosella, "concepção histórico-proletária de cultura". Assim como Guiomar dá por entendido o saber escolar, cujo domínio é indicador de competência e cujo não domínio configura a incompetência técnica, Paolo também supõe entendido 59 o significado de "cultura histórico-proletária" e, à luz dele, formula sua crítica Mas, por que essa suposição? Ao adjetivar de escolar o saber ao qual se refere, Guiomar está com isso querendo dizer que esse saber não é outro senão aquele que constitui objeto de sistematização e transmissão através da escola e não de uma escola ideal mas desta escola nesta sociedade. Por isso considera dispensável explicitar com mais detalhes o conteúdo desse saber, uma vez que todas as pessoas que passaram de algum modo pelo processo de escolarização entenderão sem maiores dificuldades o que significa o saber escolar. Paolo também não vê necessidade de explicitar o significado da "cultura histórico-proletária" porque tal cultura está em desenvolvimento a partir das práticas, das lutas do movimento proletário e seu núcleo fundamenta! foi sistematizado e elaborado na "filosofia da práxis" cuja perspectiva necessita ser assumida se se quer articular a educação com essa concepção histórico- proletária de cultura e não apenas falar a respeito dela. E acredita que essa concepção se difundirá pela crítica e polemização sem tréguas que for capaz de mover à "cultura enciclopédico-burguesa". E da diferença acima indicada que, ao que me parece, deriva a divergência Com efeito Guiomar tem plena clareza de que, nas condições atuais, o saber escolar é dominado e controlado pela burguesia. Entende, porém, que é de interesse da classe trabalhadora dominar esse saber. No fundo, Guiomar aposta na capacidade da classe trabalhadora de, ao se apropriar do saber "burguês", inverter-lhe o sinal desarticulando-o dos interesses burgueses e colocando-o a serviço de seus interesses. Paolo pensa que isso não é suficiente. O saber burguês é nefasto aos interesses dos trabalhadores. Assim, enquanto o saber escolar for dominantemente burguês a tarefa principal do movimento proletário é proceder à crítica desse saber. Tal crítica supõe, portanto que desde o início sejamos capazes de nos colocar no ponto de vista da "cultura histórico-proletária". É daí que emergirá um novo saber escolar e, conseqüentemente, uma nova competência técnica (no campo pedagógico). 60 Mas em que se funda a crença de Guiomar? Ela admite que a escola tem a ver com o saber universal Portanto, se o saber escolar. em nossa sociedade, é dominado pela burguesia nem por isso cabe concluir que etc é intrinsecamente burguês. Daí, a conclusão: esse saber que, de si, não é burguês serve, no entanto, aos interesses burgueses de vez que a burguesia dele se apropria, coloca-o a seu serviço e o sonega das classes trabalhadoras; portanto, é fundamental a luta contra essa sonegação, uma vez que é pela apropriação do saber escolar por parte dos trabalhadores 9~ serão retirados desse saber seus caracteres burgueses e se lhe imprimirão os caracteres proletários. Paolo vê nessa maneira de entender o problema a afirmação da neutralidade científico-cultural. Tratar-se-ia de uma interpretação abstrata e a-histórica do saber; daí, a crença num saber universal. Reclama, pois, a necessidade de historicização dos conceitos. Essa historicização é fundamental e eu ousaria afirmar que ela não é feita de modo suficiente também no texto do Paolo. Penso que a partir desse ponto talvez tenhamos condições de fazer o debate avançar. Em verdade, se a afirmação da saber universal pode ser (não o é necessariamente) abstrata e a-histórica eu diria que sua negação não apenas pode como necessariamente resulta abstrata e a-histórica Isto porque tal negação significa a diluição da objetividade do saber num relativismo que não tem respaldo histórico e por isso é abstrato. Penso não ser difícil compreender que objetividade do saber não é sinônimo de neutralidade, Essa identificação foi feita com sinal positivo pelo positivismo e nós corremos o risco de cair na mesma armadilha quando a adotamos com sinal negativo. Em outros termos: o Positivismo proclamou a neutralidade do saber em nome da objetividade. E nós corremos o risco de negar a objetividade do saber a partir da constatação de sua não neutralidade. Em ambos os casos o pressuposto é a identificação entre neutralidade e objetividade. O raciocínio supra pode ser formulado através do seguinte silogismo que traduz a perspectiva positivista: Premissa maior. S[o existe o saber objetivo se existir a neutralidade; 61 Premissa menor: Ora, existe a neutralidade; Conclusão: Logo, existe o saber objetivo. A crítica cai na armadilha dessa argumentação quando mantém intacta a premissa maior limitando-se a negar a premissa menor, o que s6 é possível pela negação da conclusão. Com efeito, esse é um silogismo do tipo condicional em que a neutralidade opera como antecedente e a objetividade como conseqüente. Tal silogismo se rege basicamente por duas regras lógicas: a) posto o antecedente, põe-se o conseqüente ("modus ponens") b) disposto o conseqüente, dispõe-se o antecedente ("modus tollens"). No caso em questão tem-se, pois, que a afirmação da neutralidade acarreta necessariamente a afirmação da objetividade e a negação da objetividade acarreta necessariamente a negação da neutralidade. Já a afirmação do con- seqüente ou a negação do antecedente não permitem conclusão alguma. Compreende-se, então, porque, no afã de demonstrar a impossibilidade da neutralidade, a critica tenha se fixado na negação do saber objetivo. Em meu entender, é necessário, para desmontar o raciocínio positivista e evitar a armadilha, negar a premissa maior, isto é, demonstrar a falsidade do vínculo entre neutralidade e objetividade. Importa, pois, compreender que a questão da neutralidade (ou não neutralidade) é uma questão ideológica, isto é, diz respeito ao caráter interessado ou não do conhecimento, enquanto que a objetividade (ou não objetividade) é uma questão gnosiológica, isto é, diz respeito à correspondência ou não do conhecimento com a realidade à qual se refere. Por aí se pode perceber que não existe conhecimento desinteressado; portanto, a neutralidade é impossível. Entretanto, o caráter sempre interessado do conhecimento não significa a impossibilidade da objetividade. Com efeito, se existem interesses que se opõem à objetividade do conhecimento, há interesses que não só não se opõem como exigem essa objetividade. É nesse sentido que podemos afirmar que, na atual etapa histórica, os interesses da burguesia tendem cada vez mais a se opor à objetividade do co- nhecimento encontrando cada vez mais dificuldades de se justificar racionalmente, ao passo que os interesses proletários exigem 62 a objetividade e tendem cada vez mais a se expressar objetiva e racionalmente. É fácil de se compreender isso uma vez que a burguesia, beneficiária das condições de exploração, não tem interesse algum em desvendá-las, ao passo que o proletariado que sofre a exploração tem todo interesse em desvendar os mecanismos dessa situação que é objetiva. Esta é a razão da superioridade da cultura "histórico-proletária" à qual Paolo se referiu. Ora, se o entendimento do que foi dito acima já não é tão difícil, uma vez que se trata de uma noção que começou a se incorporar à nossa concepção de cultura por força do trabalho crítico já desenvolvido - e que necessita prosseguir - o mesmo não acontece com a noção de saber universal. Esta noção (e a disseminação do positivismo contribuiu para solapá-la) ainda se encontra presa a uma concepção metafísica. Entretanto, o ponto de vista dialético, centrado na categoria da totalidade concreta, possibilita liberá-la de sua carapaça metafísica (abstrata e a-histórica) e resgatar suas raízes históricas. Não vou, nesse momento, aprofundar essa reflexão. Apenas registro que a universalidade do saber está intimamente ligada à questão da objetividade. Com efeito, dizer que determinado conhecimento é universal significa dizer que ele é objetivo, isto é, se ele expressa as leis que regem a existência de determinado fenômeno, trata-se de algo cuja validade é universal. E isto se aplica tanto a fenômenos naturais como sociais. Assim, o conhecimento das leis que regem a natureza tem caráter universal, portanto, sua validade ultrapassa os interesses particulares de pessoas, classes, época e lugar, embora tal conhecimento seja sempre histórico, isto é, seu surgimento e desenvolvimento é condicionado historicamente. O mesmo cabe dizer do conhecimento das leis que regem, por exemplo, a sociedade capitalista. Ainda que seja contra os interesses da burguesia, tal conhecimento é válido também para ela. Feitos esses esclarecimentos podemos retomar o ponto nodal: a historicização. Com efeito, entendo que o viés positivista, vinculando a objetividade à neutralidade e descartando a universalidade do saber se vincula ao processo de desistoricização que caracteriza essa concepção. A historicização, pois, em lugar de negar a objetividade e universalidade do saber, é a forma de resgatá- las. 63 Se afirmei antes que na etapa histórica atual, os interesses burgueses se opõem ao saber objetivo, é preciso dizer que nem sempre foi assim. Na etapa em que a burguesia era classe revolucionária seus interesses coincidiam com a exigência de objetividade. Por isso ela submetia à critica a ordem então vigente, desvendando os mecanismos que a regiam, isto é, historicizando-a. ï Nesse sentido é que afirmei que o texto do Paolo carece, também ele, de historicização. Com efeito, as expressões "cultura enciclopédico-burguesa" e "cultura histórico-proletária" resultam abstratas se não forem historicizadas, isto porque, assim formuladas, podem sugerir que o enciclopedismo seja inerentemente burguês, o que não tem suporte histórico. Aliás, no próprio texto de Gramsci em que Paolo se inspira para cunhar essas expressões, tal questão fica clara At Gramsci critica o enciclopedismo para mostrar que ele não tem nada a ver com a cultura. "Mas isso não é cultura, é pedantismo... A cultura é uma coisa bem diferente", diz ele. (Gramsci, 1975, p. 24). Em seguida ilustra com o caso da Revolução Francesa mostrando a importância, a objetividade, o significado histórico-cultural do Iluminismo: "O período anterior cultural, dito Iluminismo, tão difamado pelos críticos fáceis da razão teorética, não foi apenas, ou ao menos não foi completamente aquele farfalhar de superficiais inteligências enciclopédicas que discorriam sobre tudo e sobre todos com igual imperturbabilidade ... não foi em suma só um fenômeno de intelectualismo pedante e árido... Foi uma magnífica revolução ele próprio, pela qual, como nota agudamente De Sanctis na História da literatura italiana, se formava em toda a Europa como uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa sensível em todas as suas partes às dores e às desgraças comuns e que era a melhor preparação para a revolta sangrenta depois verificada na França". (P. ?A-5) E prossegue, realçando os efeitos materiais desse fenômeno cultural e destacando sua universalidade: "Na Itália, na França, na Alemanha se discutiam as mesmas coisas, as mesmas instituições, os mesmos princípios. (...) As baionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o caminho já aplainado por um exército invisível dos livros, dos opúsculos, que eram disseminados de Paris no fim da primeira metade do século XVIII e 64 que haviam preparado homens e instituições para a renovação necessária. Mais tarde, quando os fatos da França soldaram as consciências, bastava um movimento popular em Paris para suscitar outros semelhantes em Milão, em Viena e nos mais pequenos centros. Tudo isso parece natural, espontâneo às mentes superficiais, e no entanto seria incompreensível se não se conhecessem os fatores de cultura que contribuíram para criar aqueles estados de ânimo prontos para a explosão por uma causa que acreditavam comum". (P· 25) Retira, a seguir os ensinamentos práticos dessa reflexão histórica e historicizadora: "O mesmo fenômeno se repete hoje para o socialismo. É através da critica da civilização capitalista que se forma ou está se formando a consciência unitária do proletariado e crítica quer dizer cultura, e não já evolução espontânea e naturalística (...) E não se pode obter isso se não se conhece também os outros, a sua história, o suceder-se dos esforços que eles fizeram para ser isto que são, para criar a civilização que criaram e que nós queremos substituir pela nossa. Quer dizer, ter noções de que coisa é a natureza e as suas leis para conhecer as leis que governam o espírito". (P· 25-~ A conclusão do artigo é cristalina ao situar a necessidade do proletariado dominar o saber histórico, situando-se, assim, como um elo na cadeia da história universal: ..Se é verdade que a história universal é uma cadeia dos esforças que o homem fez para libertar-se tanto dos privilégios como dos preconceitos e da idolatria, não se compreende porque o proletariado que um outro anel quer juntar a essa cadeia, não deva saber como e porque e de quem tenha sido precedido, e qual a vantagem que pode tirar desse saber" (p. 2~ Do ponto de vista cultural, a critica ao passado não significa, Pois, outra coisa senão a apropriação ativa do saber acumulado que é, assim, depurado de seus elementos anacrônicos (pelos quais serve à perpetuação desse mesmo passado enquanto cristalizado na ordem constituída) e articulado às exigências do desenvolvimento histórico. Daí, a desautorização da concepção enciclopédica de cultura que é justamente a concepção positivista segundo a qual a cultura se resume a uma coleção de noções, a uma somatória de conhecimentos. 65 Ora, assim como intelectuais do tipo de Montesquieu e Rousseau se constituíram em ideólogos da burguesia revolucionária e por isso foram capazes de fazer a crítica do Antigo Regime apontando as exigências de uma nova ordem histórica; e assim como Hegel se configurou como o ideólogo da burgue- sia triunfante, celebrando no conceito (na idéia absoluta) a consolidação do poder burguês, assim também o positivismo se caracterizou como a ideologia da burguesia conservadora Por isso ele exorcizou as contradições e a negatividade fixando-se apenas no lado positivo (daí o seu nome) da sociedade burguesa que passou a ser cultuada como a ordem e o progresso permanentes. Dessa forma, se para os ideólogos burgueses da fase revolucionária a cultura expressava as exigências do desenvolvimento histórico e para Hegel a cultura fazia a história mover-se no âmbito do espírito absoluto, para o positivismo a cultura se situa fora da história; se desistoriciza. Por isso ela é identificada com o "saber enciclopédico": uma coleção de conhecimentos que valem em si e por si, independentemente das condições em que foram produzidos e sem as quais seriam impossíveis. Essa reificação (naturalização) da cultura, Marx a expressou da seguinte forma, referindo-se aos economistas: "Os economistas têm uma maneira de proceder singular. Para eles só há duas espécies de instituições, as artificiais e as naturais. As do feudalismo são instituições artificiais; as da burguesia, naturais. Equiparam-se, assim, aos teólogos, que classificam as religiões em duas espécies. Toda religião que não for a sua é uma invenção dos homens; a sua é uma revelação de Deus. Desse modo, havia história, mas, agora, não há mais". (Marx, P. 90- 1) Paradoxalmente, portanto, é justamente a subordinação do saber objetivo aos interesses burgueses que conduziu o positivismo a proclamar a neutralidade do saber como condição de sua objetividade. Que, entretanto, para Marx o saber objetivo é possível, fica evidente na seguinte passagem referente à situação da economia política no final da primeira metade do século XlX: "A burguesia conquistara poder político, na França e na Inglaterra. Daí em diante, a luta de classes adquiria, prática e teoricamente, formas mais definidas e ameaçadoras. Soou 66 o dobre de finados da ciência econômica burguesa. Não interessava mais saber se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não; mas importava saber o que, para o capital, era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente, o que contrariava ou não a ordenação policial. Os pesquisadores desinteressados foram substituídos por espadachins mercenários, a investigação científica imparcial cedeu seu lugar á consciência deformada e às intenções perversas da apologética". (p, 40) Ao desmontar o raciocínio positivista penso ter encaminhado ao mesmo tempo a questão da historicização tanto do "saber escolar" como da "concepção de cultura". Com efeito, o saber escolar pressupõe a existência do saber objetivo (e universal). Aliás, o que se convencionou chamar de saber escolar não é outra coisa senão a organização seqüencial e gradativa do saber objetivo disponível numa etapa histórica determinada para efeitos de sua transmissão-assimilação ao longo do processo de escolarização. É essa também a posição de Gramsci. Diz ele: "A escola, mediante o que ensina, lula contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde, as quais é preciso adaptar-se para dominá-las, bem como de leis civis e estatais que são produto de uma atividade humana estabelecidas pelo homem e podem ser por ele modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo". (Gramsci, p. 130. grifos nossos) Assim entendido, longe de se opor à "concepção histórico-proletária de cultura", o saber escolar constituí o seu ponto de partida já que é ele que: "cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórico-dialética do mundo, para a compreensão do mo- vimento e do devenir, para a valorização da soma de esforços e de sacríf5cios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como síntese do passado de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. É este o fundamento da escola elementar". (P. 130-I) 67 Concordo com o Paolo quando ele afirma que se deve desconfiar da pressa em superar a reflexão crítica e a análise polêmica. Mas concordo também com Guiomar quando ela insiste na necessidade de se ultrapassar a fase meramente negativa da crítica e da denúncia. Com isso quero dizer que não é exato afirmar que o momento da crítica já passou, tendo soado a hora da ação. Penso, isto sim, que são os conteúdos tanto da crítica e da denúncia como da ação que estão mudando. Importa, pois, aprofundar esse processo de modo a se atingir um nova patamar. Importa passar da "fase romântica à fase clássica" como afirmou Gramsci a propósito da escola ativa: "Ainda se está na face romântica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase 'clássica , racional, encontrando nos fias a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as formas". (p. I24) Parafraseando Gramsci eu diria que nós estamos ainda na fase romântica da defesa do compromisso político em educação. Nessa fase os elementos da luta contra a concepção técnico-pedagógica restrita e supostamente apolítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica. É necessário passar à fase clássica, encontrando nos fins a atingir a fonte para a elaboração das formas adequadas de reali7á-los. Ora, a identificação dos fins implica imediatamente competência política e mediatamente competência técnica; a elaboração dos métodos para atingi-los implica, por sua vez, imediatamente competência técnica e mediatamente competência política. Logo, sem competência técnico-política não é possível sair da fase romântica Cabe, enfim, acumular forças, unificar as lutas visando a consolidar os avanços e tornar irreversíveis as conquistas feitas, trilhando um caminho sem retorno no processo de reapropriação, por parte das camadas trabalhadoras, do conhecimento elaborado e acumulado historicamente. Nisto Guiomar, Paolo e eu, estamos inteiramente de acordo. 68 A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NO QUADRO DAS TENDÊNCIAS CRÍTICAS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA* O crítico-reprodutivismo e seus limites A Pedagogia histórico-crítica vai tomando forma ü medida que se diferencia no bojo das concepções críticas; ela se diferencia da visão crítico-reprodutivista, uma vez que procura articular um tipo de orientação pedagógica que seja crítica sem ser reprodutivista. Esta colocação me parece importante porque boa parte dos debates que hoje se travam e das objeções que se levantam a essa tendência, acabam desconsiderando que ela está além do crítico-reprodutivismo e não aquém. As críticas formuladas pelo crítico-reprodutivismo são algo que se considera superado. Vejamos como se deu o processo. A visão crítico-reprodutivista surgiu basicamente a partir das conseqüências do movimento de maio de 68, a chamada tentativa de revolução cultural dos jovens, que teve sua manifestação mais retumbante na França, mas se espalhou por diversos países, inclusive o Brasil. Esse movimento pretendia realizar a revolução social pela revolução cultural. Se a bandeira das nossos pioneiros da educação nova era fazer a revolução social pela revolução educacional, isto é, através da escola, o movimento de 68 foi mais ambicioso, pois pretendia efetuar a revolução social, mudar as bases da sociedade pela revolução cultural (abrangia, portanto, não apenas a escola, mas todo o âmbito da cultura). Esse movimento chegou, de fato, a ameaçar a ordem constituída. No momento em que o movimento estudantil atingiu limites mais radicais, a estrutura político- institucional da * Este texto é a transcrição, com leves adaptações, da fala gravada no Seminário sobre Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, realizado em Niterói em dezembro de 1985. Publicado anteriormente na revista da ANDE, n° 11, 1986. 70 França foi abalada. De Gaulle, que estava viajando pela Europa, teve que cancelar os seus encontros e regressar à França para tentar controlar o processo. De fato, foi possível contornar a crise e a conseqüência disso foi uma exacerbação do autoritarismo tecnocrático. Com a substituição de De Gaulle, primeiro por Pompidou e depois por Giscard d'Estaing, a perspectiva tecnocrático-autoritária prevaleceu sobre os diferentes interesses da sociedade. Isso manifestou-se também no Brasil, com a crise estudantil evidenciada na tomada das escolas como expressão da tentativa de revolucionar a sociedade pela via da reforma cultural. Também aqui prevaleceu o autoritarismo tecnocrático, só que com uma especificidade: o componente militar, que não apareceu na França. Ora, as teorias crítico-reprodutivistas são elaboradas tendo presente o fracasso do movimento de maio de 68. Buscam, pois, pôr em evidência a impossibilidade de fazer uma revolução social pela revolução cultural. No fundo, os reprodutivistas raciocinam mais ou menos nos seguintes termos: tal movimento fracassou e nem podia ser diferente. Com efeito, a cultura (e, em seu bojo, a educação) é um fenômeno superestrutura; integra, pois, a instancia ideológica, sendo assim determinado pela base material. Portanto, não tem o poder de alterar a base material. Logo, era inevitável que as estruturas materiais prevalecessem sobre essas pretensões acionadas no âmbito da cultura. De fato, não parece por acaso que estas teorias tenham surgido em seguida ao movimento francês de 68. Assim, a teoria dos aparelhos ideológicos de Estado, de Althusser, é de 1969; a teoria da reprodução, isto é, a teoria da violência simbólica de Bourdieu-Passeron é de 1970, e a teoria da escola capitalista, de Baudelot-Establet é de 197l. Esta visão crítico-reprodutivista desempenhou um papel importante em nosso país, porque de alguma forma impulsionou a crítica ao regime autoritário e à pedagogia autoritária desse regime, a pedagogia tecnicista. De uma certa forma, estas teorias alimentaram as reflexões, as análises daqueles que em nosso país se colocavam na oposição à pedagogia oficial e à política :educacional dominante. Nessa fase há, pois, uma indiferenciação: a perspectiva crítica aparece como se fosse dotada de certa homogeneidade, em que não se distingue o reprodutivismo não-reprodutivismo; o próprio reprodutivismo é entendido como de inspiração marxista, de caráter dialético, e esses enfoques ficam mais ou menos misturados, imbricados. Progressivamente, 71 no entanto, foram se tornando cada vez mais evidentes os limites da teoria crítico-reprodutivista. Ela se revela capaz de fazer a crítica do existente, de explicitar os mecanismos da existente, mas não tem proposta de intervenção prática, isto é, limita-se a constatar e, mais do que isso, a constatar que é assim e não pode ser de outro modo. O problema, no entanto, que os educadores enfrentavam extrapola esse âmbito, porque a questão central era justamente como atuar de modo crítico no campo pedagógico, como ser um professor que, ao agir, desenvolve uma prática de caráter crítico. A teoria crítico-reprodutivista não pode oferecer resposta a estas questões, porque, segundo ela, é impossível que o professor desenvolva uma prática critica; a prática pedagógica situa-se sempre no âmbito da violência simbólica, da inculcação ideológica, da reprodução das relações de produção. Para cumprir essa função, é necessário que os educadores desconheçam seu papel; quanto mais eles ignoram que estão reproduzindo, tanto mais eficazmente eles reproduzem. Consequentemente, não há como ter uma atuação crítica, uma atuação contrária às determinações materiais dominantes; o professor pode até desejar isso, mas é um desejo intei- ramente inócuo, porque as forças materiais não dão margem a que ele se realize. Neste contexto, foi crescendo um clamor no sentido da busca de saídas. Este anseio é que está na base da formulação de uma proposta que superasse a visão crítico-reprodutivista. A busca de saídas teóricas Desde que comecei a trabalhar em Filosofia da Educação, procurei abordar as questões educacionais em termos dialéticos. Até então o problema da dialética na educação não se havia colocado no Brasil de forma explícita e sistemática Em um texto inédito, de 69, denominado Esboço de formulação de uma ideo- logia educacional- para o Brasil, fiz um primeiro esforço neste sentido, discutindo o problema dos objetivos da educação brasileira e dos meios para atingi-los. Essa tentativa isolada foi tomando corpo. À medida que os debates avançavam, o campo cultural foi se aguçando, a preocupação pedagógica foi se aguçando. Ao sistematizar e estruturar minha abordagem da Filosofia da Educação cheguei a um esquema classificatório que 72 envolvia quatro grandes tendências: a concepção humanista tradicional da Filosofia da Educação, a concepção humanista moderna, a concepção analítica e a concepção dialética Até esse momento eu não diferenciava a concepção crítico-reprodutivista da própria dialética. Para um curso da Universidade Federal de São Carlos, em 1976, tentei selecionar os textos mais representativos de cada tendência. Isso foi relativamente simples em relação às concepções humanistas tradicional, moderna e analítica, mas não em relação à dialética. Ficava mesmo a sensação de que não havia uma reflexão sistematizada e explícita de caráter dialético sobre a questão educacional. ática Então, que textos utilizar? O que se podia fazer era produzir eu o da próprio alguma sistematização. Nesta ocasião, ensaiei trabalhar com dois textos que me o pareciam até certo ponto representativos da concepção dialética: um de Baudelot-Establet, "A escola capitalista na França", e outro de Paulo Freire, "Ação cultural para a liberdade". Fixei-me neste texto de Paulo Freire porque nos anteriores não se configurava uma abordagem dialética da educação; há, sim, referência à dialética, mas é uma dialética idealista, uma dialética m a de consciências. Em "Ação cultural para a liberdade", ele se refere explicitamente à luta de classes, à revolução, à ação cultural como um trabalho que precede a mudança da estrutura social e à revolução cultural como um trabalho que se desenvolve após a mudança da estrutura social. Na verdade, esse texto é inspirado na experiência maoísta da Revolução Cultural chinesa. No texto "A escola capitalista na França", Baudelot-Establet afirmava, explicitamente, a primazia da categoria da contradição na análise dos problemas educacionais e a impossibilidade de entender as questões escolares fora do contexto da luta de classes. Por esta razão, o texto poderia ser classificado no interior da concepção dialética Àquela altura, já estava inteiramente claro para mim que Bourdieu e Passeron não se encaixavam na concepção dialética. Cunhei pata a sua teoria a denominação de vertente "sócio-lógica" porque no fundo o que eles pretendem fazer é uma lógica do social, quer dizer, uma teoria da educação válida para todas as épocas e todas as sociedades que existiram, existem ou venham a existir. À medida que minhas análises se aprofundaram, fui percebendo que a Teoria da Escola Capitalista de 73 Baudelot-Establet não poderia ser considerada a expressão da visão dialética. Isso está patente no fato de que os autores trabalham as contradições apenas no âmbito da sociedade; não existe uma análise da educação como um processo contraditório. Para eles, a educação escolar é unicamente um instrumento da burguesia na luta contra o proletariado. Em nenhum momento admitem que a escola possa ser um instrumento do proletariado na luta contra a burguesia Baudelot-Establet consideram a escola apenas como reprodutora das relações sociais. A transformação da estrutura social não passe pela escola. A ideologia proletária, a cultura proletária, cuja resistência, autonomia e consistência, eles admitem, surgem dos movimentos da prática e das lutas populares. Não dependem propriamente do processo de escolarização. A burguesia, segundo eles, utiliza a escola para inculcar a sua ideologia no proletariado e recalcar a ideologia proletária, ou seja, atua sobre os trabalhadores de modo a enfraquecer a visão ideológica que eles trazem de sua própria classe. Detectada a insuficiência dialética das teorias de Bourdieu-Passeron e Baudelot- Establet, assim como de Althusser, fui levado a ampliar meu esquema classificatório, introduzindo um quinto grupo de tendências pedagógicas em Filosofia da Educação - as incluídas na concepção crítico-reprodutivista Passei então a considerar cinco grandes tendências: humanista tradicional, humanista moderna, analítica, crítico-reprodutivista e dialética. O nome Diante da insatisfação com essas análises crítico-reprodutivistas, foi se avolumando a exigência de uma análise do problema educacional que desse conta de seu caráter contraditório, resultando em orientações com influxo na prática pedagógica, alterando-a e possibilitando sua articulação com os interesses populares em transformar a sociedade. Esse processo toma corpo a partir de 1977. Em 1978 há um seminário sobre a Educação Brasileira, em Campinas, onde as visões críticas estão mais ou menos indiferenciadas, e ainda não se distinguiam teóricos crítico-reprodutivistas e histórico-críticos. A denominação "tendência histórico-crítica" eu iria introduzir depois, 74 porque a denominação "dialética" também gerava algumas dificuldades: há um entendimento idealista da dialética, onde dialética é concebida como relação intersubjetiva, como dialógica. Cunhei então, a expressão "concepção histórico- crítica", onde eu procurava reter o caráter crítico de articulação com as con- dicionantes sociais que a visão reprodutivista possui, vinculado porém à dimensão histórica que o reprodutivismo perde de vista Os crítico- reprodutivistas têm dificuldade em dar conta das contradições exatamente porque elas se explicitam no movimento histórico. . Um marco: 1979 Costumo situar o ano de 1979 como um marco da configuração mais clara da concepção histórico-crítica. Em 1979 o problema de abordar dialeticamente a educação começou a ser discutido mais ampla e coletivamente. Os esforços deixaram de ser individuais, isolados, para assumirem expressão coletiva. Eu coordenava, então, a primeira turma de doutorado da PUC-SP; eram onze elementos, dentre eles o Cury, o Neidson, o Luís Antônio Cunha, a Guiomar, o Paolo Nosella, a Betty Oliveira, a Mirian Warde e o Osmar Fávero. Ao tentar formular teoricamente o fenômeno educativo, o problema central deste grupo era a superação do crítico-reprodutivismo. Esta questão teve uma formulação sistemática na tese do Cury, que foi defendida em 1979, embora publicada apenas em 1985, com o título Educação e contradição. O projeto inicial do Cury era um estudo sobre a universidade católica. Todavia, após uma exposição que fiz sobre a importância de levar em conta a categoria da contradição em educação, ele organizou e produziu um texto sobre o assunto e distribuiu para os colegas, e então o grupo considerou que ele devia centrar sua tese aquele tema, muito mais urgente que o da universidade católica. Ele topou o desafio. Quem analisou o texto, percebeu claramente que o interlocutor principal é a visão crítico-reprodutivista. Neste sentido, há um empenho em colocar a contradição como a categoria-chave e mostrar como as outras se subordinam a ela: mesmo o aspecto reprodutor da educação é contraditório e não mecânico. 75 A partir daí, estas preocupações tomam corpo e vão sendo discutidas mais amplamente, tanto pelos movimentos de professores e especialistas em educação, como pelos mestrandos e orientadores de mestrado. Começava-se a tentar descobrir formas de analisar a educação, mantendo presente a necessidade de criar alternativas, e não apenas fazer a crítica do existente. Em 1981, por exemplo, sai a tese da Guiomar que já pressupõe as análises sistematizadas no trabalho do Cury. Ela coloca o problema partindo do pressuposto de que a educação tem uma função política (que ninguém mais discute) e também de que essa função da educação é contraditória e, portanto, a classe dominante se empenha em colocar a educação a sen serviço, ao mesmo tempo em que as classes dominadas, os trabalhadores, buscam articular a escola tendo em vista os seus interesses. Colocando-nos nessa segunda perspectiva, quando a escola pode atender aos interesses dos trabalhadores? A tese central da Guiomar é que a função política da educação cumpre-se pela mediação da competência técnica. Ela considera que para realizar essa função política de forma transformadora, é necessário possuir competência pedagógica, dominar os processos internos ao trabalho pedagógico. Note-se que o interlocutor da Guiomar já não é mais a tendência crítico-reprodutivista, mas uma visão de educação que a gente poderia chamar, grosso modo, de "politicista". Segundo os "politicistas", já 9ue 8 edacação é sempre um ato pol(tico, Vabalhar a educação polfticamente é fazer política na escola - as questões pedagógicas seriam perfumarias. tergiversação, mecanismos ideológicos de dominação da burguesia. São esses, no fundo, os interlocutores da tese de Guiomar ou seja, trata-se de mostrar que para a escola cumprir sua função política é preciso que ela exerça bem sua contribuição específica. No texto dela, já surge com certa força a noção de que o papel político da educação cumpre-se, na perspectiva dos interesses dos dominados, quando se garante aos trabalhadores o acesso ao saber, ao saber sistematizado. Em 1983 elaboro o texto "Onze teses sobre educação e política", publicado no livro Escola e democracia, onde procuro caracterizar mais precisamente as relações entre política e educação de modo a superar tanto o "politicismo pedagógico" que dissolve a educação na política, quanto o "pedagogismo políti- co" que dissolve a política na educação. E assim foi emergindo 76 e tomando forma essa nova proposta pedagógica. A partir de 1979, quando começa a assumir a forma sistematizada, vai se desenvolvendo e chega, por volta de 1983, a conseguir uma certa hegemonia na discussão pedagógica O reprodutivismo cede espaço, e este esforço em encontrar saídas para a questão pedagógica na base de uma valorização da escola como instrumento importante para as camadas dominadas, vai se generalizando. E multiplicaram-se os clamores no sentido de que essa concepção pedagógica se desenvolvesse de modo a exercer um influxo mais direto sobre a prática específica dos professores na sala de aula. Nesse quadro ganha relevância o trabalho de José Carlos Libâneo, que vem se empenhando em analisar a prática dos professores e redefinir a didática à luz da referida concepção, por ele denominada de "pedagogia Crítico-Social dos conteúdos". Surge a crítica da critica Todavia, de uns dois anos para cá, um conjunto de críticas vem sendo acionado contra essa tendência. É interessante notar que nessas críticas, unem-se conservadores da direita e ultras da esquerda. Estes últimos consideram que ser critico é ser intransigente, é negar inteiramente tudo o que a burguesia produziu, e acabam fazendo uma espécie de coro comum com a direita, fustigando a Pedagogia histórico-crítica. Por outro lado, os "ultracríticos" tentam reabilitar a Escola Nova. Isso me parece um fenômeno muito estranho porque esses elementos se distinguiram por fazer a critica da concepção liberal, do pedagogismo e, conseqüentemente, da Escola Nova. Talvez a mudança se deva ao fato de que, ao tentar encaminhar a proposta de uma pedagogia crítica não-reprodutivista, eu comecei por fustigar a Escola Nova na CBE de 1980. Partindo do pressuposto de que a platéia era predominantemente escolanovista, utilizei a metáfora de Lênin, da curvatura da vara, forçando a argumentação para o outro lado, o da defesa da Escola Tradicional. Deixava claro, todavia, que isso não queria dizer que a Pedagogia Tradicional estava certa. Eu estava apenas aplicando a técnica da curvatura da vara, ou seja, para endireitá-la não basta colocá-la na posição correta, é preciso curvá-la do lado oposto. 77 Minha intervenção na CBE foi publicada na revista da ANDE com o título de "Escola e democracia: a teoria da curvatura da vara". Em função das discussões que esse texto provocou, lancei uma continuação, na mesma revista, que denominei de "Escola e democracia: para além da teoria da curvatura da vara". Nesse artigo tentava mostrar como se configuraria uma proposta que não fosse nem tradicional nem escolanovista Porém, como a crítica inicial foi muito contundente, de alguma forma marcou a mente das pessoas, e às vezes sou mais identificado como anti-escolanovista do que propriamente como um educador crítico que tenta fundar o trabalho pedagógico à base da perspectiva histórica. É a( que surgem algumas tentativas de reabilitação da Escola Nova e colocações como: "Não é possível jogar a Escola Nova na lata do lixo; a Escola Nova foi importante, teve um papel na democratização da escola pública no Brasil etc." No entanto, isso não foi negado em nenhum momento nos meus trabalhos. A reabilitação da Escola Nova me parece ainda mais estranha porque tem avançado ao ponto de con,siderá-1a revolucionária! As objeções levantadas contra a pedagogia histórico-crítica costumam assumir a forma de falsas dicotomias, que comentarei a seguir. OBJEÇÕES E DICOTOMIAS 1. Forma e conteúdo Uma primeira dicotomia é aquela que se expressa na oposição entre forma e conteúdo. Segundo essa objeção, a proposta em questão seria conteudista, e, nesse sentido, desconsideraria as formas, os processos e os métodos pedagógicos. Acho que a denominação "Pedagogia dos Conteúdos", em que pese o fato de ser acrescida da especificação "Crítico-Social", tem dado margem à objeção de que a proposta centra-se nos conteúdos e secundariza as formas e os processos. No entanto, isso já tem sido refutado de diferentes maneiras. Num discurso que escrevi para a formatura da Universidade de Santa Úrsula e que foi publicado na revista da ANDE n° 9, 1985, sob o titulo "Sentido da pedagogia e papel do pedagogo", enfatizo que a questão central da Pedagogia é a questão dos métodos, dos processos. O conteúdo, 78 o saber sistematizado, não interessa à Pedagogia enquanto tal. É nesse sentido que em trabalhos mais antigos eu faço referência ao fato de q~ o cientista tem uma perspectiva diferente do professor em relação ao conteúdo. Enquanto o cientista está interessado em fazer avançar a sua área de conhecimento, em fazer progredir a ciência, o professor está mais interessado em fazer progredir o aluno. O professor vê o conhecimento como um meio para o crescimento do aluno; enquanto para o cientista o conhecimento é um fim, trata-se de descobrir novos conhecimentos na sua área de atuação. Nesse sentido, eu afirmava num texto de 1971, incluído no meu livro de 1980 - Edu- cação: do senso comum à consciência filosófica -, que o melhor geógrafo não será necessariamente o melhor professor de geografia; nem será o historiador aquele que desempenhará melhor o papel de professor de história ou o melhor literato, o melhor escritor necessariamente o melhor professor de português. E por quê? Porque para ensinar é fundamental que se coloque inicialmente a seguinte pergunta: para que serve ensinar uma disciplina como geografia, história ou português aos alunos concretos com os quais se vai trabalhar? Em que essas disciplinas são relevantes para o progresso, Para o avanço e para o desenvolvimento desses alunos? Daí surge o problema da transformação do saber elaborado em saber escolar. Essa transformação é o processo através do qual selecionam-se, do conjunto do saber sistematizado, os elementos relevantes para o crescimento intelectual dos alunos e organizam-se esses elementos numa forma, numa seqüência tal que possibilite a sua assimilação. Assim, a questão central da pedagogia é o problema das formas, dos processos, dos métodos; certamente, não considerados em si mesmos, pois as formas só fazem sentido na medida em que viabilizam o domínio de determinados conteúdos. O método é essencial no processo pedagógico. Pedagogia, como é sabido significa literalmente a condução da criança, e a sua origem está no escravo que levava a criança até o local dos jogos, ou o local onde ela recebia instrução do preceptor. Depois, esse escravo passou a ser o próprio educador. Os romanos, percebendo o nível de cultura dos escravos gregos, confiavam a eles a educação dos filhos. Essa é a etimologia da palavra. Do ponto de vista semântico, o sentido se alterou. No entanto, 79 a paidéia entre os gregos não significava apenas infância, paidéia significava a cultura, os ideais da cultura grega. Assim, a palavra pedagogia, partindo de sua própria etimologia, significa não apenas a condução da criança, mas a introdução da criança na cultura. A pedagogia é o processo através do qual o homem se torna plenamente humano. No meu discurso distingui entre a pedagogia geral, que envolve essa noção de cultura como tudo o que o homem produz, tudo o que o homem constrói, e a pedagogia escolar; ligada à questão do saber sistematizado, do saber elaborado, do saber metódico. A escola tem o papel de possibilitar o acesso das novas gerações ao mundo do saber sistematizado, do saber metódico, científico. Ela necessita organizar processos, descobrir formas adequadas a essa finalidade. Esta é a questão central da pedagogia escolar. Os conteúdos não re- presentam a questão central da pedagogia, porque se produzem a partir das relações sociais e se sistematizam com autonomia em relação à escola. A sistematização dos conteúdos pressupõe determinadas habilidades que a escola normalmente garante, mas não ocorre no interior das escolas de 1-° e 2°- graus. A existência do saber sistematizado coloca à pedagogia o seguinte problema: como torná-lo assimilável pelas novas gerações, ou seja, por aqueles que participam de algum modo de sua produção enquanto agentes sociais, mas participam num estágio determinado estágio esse que é decorrente de toda uma trajetória histórica? 2. Socialização versus produção do saber É possível articular a questão da relação forma e conteúdo com a da socialização do saber produzido. A objeção que vem sendo formulada é a seguinte: "Falar em socialização do saber elaborado é voltar a Durkheim, que já dizia que a função da escola é socializadora". No entanto, não é o fato de eu utilizar a palavra socialização que me torna durkheimiano; é preciso considerar em que contexto a expressão é utilizada. Se fosse assim, ter(amos que concluir que Marx é durkheimiano, e que todos os socialistas são durkheimianos, porque a bandeira básica de luta do socialismo é a socialização dos meios de produção. Ora, é sobre a base da questão da socialização dos meios de produção 80 que consideramos fundamental a socialização do saber elaborado. Isso porque o saber produzido socialmente é uma força produtiva, é um meio de produção. Na sociedade capitalista, a tendência é torná-lo propriedade exclusiva da classe dominante. Não se pode levar esta tendência às últimas conseqüências porque isso entraria em contradição com os próprios interesses do capital. Assim, a classe dominante providencia para que o trabalhador adquira algum tipo de saber, sem o que ele não poderia produzir; se o trabalhador possui algum tipo de saber, ele é dono da força produtiva e no capitalismo os meios de produção são propriedade privada! Então, a história da escola no capitalismo traz consigo esta contradição. Em Adam Smith já aparecia claramente a indicação de que os trabalhadores deviam ser educados, porém em doses homeopáticas. Deviam receber apenas o mínimo necessário de instrução para serem produtivos, para fazerem crescer o capital. Nada além disso. Depois, o taylorismo aperfeiçoou esse processo. No texto "Extensão universitária, uma abordagem não extensionista" (Saviani 1984, pp. 46-65), coloco que o taylorismo é um processo através ,do qual o saber dos trabalhadores é desapropriado e apropriado pelos setores dominantes, elaborado e devolvido de forma parcelada. Taylor fez estudos de tempo e movimento, analisou como os trabalhadores produziam, elaborou e sistematizou o conhecimento daí resultante, desapropriando os trabalhadores do saber sobre o conjunto do processo, que passou a ser propriedade privada da classe dominante. Como os trabalhadores não podem ser desapropriados, de forma absoluta, do saber, é preciso que eles tenham acesso ao mínimo de saber necessário para produzirem. A devolução na forma parcelada significa isso: devolve-se ao trabalhador apenas o conhecimento relativo àquela operação que vai desenvolver no processo produtivo. O saber relativo ao conjunto já não mais lhe pertence. Esta é a base da idéia da socialização do saber que a gente tem formulado em termos pedagógicos. Aqui é preciso desfazer uma confusão. Elaboração do saber não é sinônimo de produção do saber. A produção do saber é social, se dá no interior das relações sociais. A elaboração do saber implica em expressar de forma elaborada o saber que surge da prática social. Essa expressão elaborada supõe o domínio dos instrumentos de elaboração e sistematização. Daí a importância da escola se a escola 81 não permite o acesso a esses instrumentos, os trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de ascenderem ao nível da elaboração do saber, embora continuem, pela sua atividade prática real, a contribuir para a produção do saber. O saber sistematizado continua a ser propriedade privada a serviço do grupo dominante. Assim, a questão da socialização do saber, nesse contexto, jamais poderia ser assimilada à visão do funcionalismo durkheimiano. Porque se inspira toda na concepção dialética, na crítica da sociedade capitalista desenvolvida por Marx. 3. Saber versus consciência A terceira dicotomia, saber versus consciência, sustenta que a pedagogia histórico-crítica estaria dando mais importância à aquisição do saber do que da consciência crítica. Ora, tal objeção pressupõe que é possível desenvolver a consciência à margem do saber. E como se o acesso ao saber pudesse ser feito de forma inconsciente. Na verdade, o nível de consciência dos trabalhadores aproxima-se de uma forma elaborada na medida em que eles dominam os instrumentos de elaboração do saber. Nesse sentido é que a própria expressão elaborada da consciência de classe passa pela questão do domínio do saber. 4. Saber acabado versus saber em processo Segundo essa dicotomia, a pedagogia histórico-crítica implicaria uma visão do saber como algo definitivo e acabado, tratando-se apenas de transmiti-lo. Ora, tal objeção também é descabida. Com efeito, ao afirmar que o saber é produzido socialmente, isso significa que ele está sendo produzido socialmente, e, portanto, não cabe falar em saber acabado. A produção social do saber é histórica, portanto não é obra de cada geração independente das demais. O problema da pedagogia é justamente permitir que as novas gerações se apropriem, sem necessidade de refazer o processo, do patrimônio da humanida- de, isto é, daqueles elementos que a humanidade já produziu e elaborou. Não podemos fazer com que cada criança volte à Idade da Pedra lascada para poder depois atingir, na idade adulta, o 82 domínio do saber científico, tal como é formulado em nossa época. Esse é um aspecto que me parece importante considerar. O fato de falar na socialização de um saber supõe um saber existente mas isso não significa que o saber existente seja estático, acabado. É um saber suscetível de transformação, mas sua própria transformação depende de alguma forma do domínio deste saber pelos agentes sociais. Portanto, o acesso a ele se impõe. 5. Saber erudito versus saber popular ou ponto de partida versus ponto de chegada Quanto à dicotomia saber erudito versus saber popular, acho que pode ser ligada à questão do ponto de partida e ponto de chegada. Através dessas dicotomias afirma-se que a pedagogia histórico-crítica estaria valorizando a cultura erudita em detrimento da cultura popular e, ao centrar-se no ponto de chegada, estaria desconsiderando o ponto de partida. Tradicionalmente, a concepção dominante considera que a única cultura digna desse nome é a cultura erudita Cultos seriam os intelectuais, os que estudaram e tiveram acesso à cultura letrada O povo seria inculto porque suas formas de consciência e de saber são espontâneas, assistemáticas. Em contraposição a essa tendência, firma-se uma outra que acabou por concluir que só a cultura popular é digna desse nome, é a cultura legítima, autêntica. A cultura erudita seria uma cultura espúria, artificial; deveríamos trabalhar com a cultura popular porque aí está a verdade, a força, a consistência. A outra seria uma cultura ornamental, que só serviria para legitimar mecanismos de um poder obtido pela força material. Já abordei esta questão em outros momentos, inclusive no texto "Competência política e compromisso técnico"; aí chamo a atenção para o fato de que o saber é histórico e como tal é apropriado pelas classes dominantes, mas isso não significa que ele seja inerentemente dominante. O que hoje se chama "saber burguês" é um saber do qual a burguesia se apropriou e colocou a serviço de seus interesses. Em suma, o que parece importante entender é o seguinte: essa dicotomia entre sa6er erudito como saber da dominação e saber popular como saber autêntico próprio da libertação é uma dicotomia falsa. 83 Nem o saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular é puramente popular. A cultura popular incorpora elementos da ideologia da cultura dominante que, ao se converterem em senso comum, penetram nas massas. Então, a questão fundamental aqui parece ser a seguinte: como a população pode ter acesso às formas do saber sistematizado de modo a expressar de forma elaborada os seus interesses, os interesses populares? Chegaríamos assim a uma cultura popular elaborada, sistematizada. Isto aponta na direção da superação dessa dicotomia, porque se o povo tem acesso ao saber erudito, o saber erudito neo é mais sinal distintivo de elites, quer dizer, ele se torna popular. A cultura popular, entendida como aquela cultura que o povo domina, pode ser a cultura erudita, que passou a ser dominada pela população. A isto se liga a questão do Ponto de partida versus ponto de chegada. A acusação de que descuidamos da cultura popular é injusta. No meu texto "Para além da curvatura da vara", trabalhei o problema pedagógico à luz dessa diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Mostrei que o processo pedagógico tem que realizar no ponto de chegada o que no ponto de partida não está dado. Refiro-me, por exemplo, à questão da igualdade que não está dada no ponto de partida, mas que é algo que tem que ser alcançado no ponto de chegada. A cultura popular, do ponto de vista escolar, é da maior importância enquanto ponto de partida. Não é, porém, a cultura popular que vai definir o ponto de chegada do trabalho pedagógico nas escolas. Se as escolas se limitarem a reiterar a cultura popular, qual será sua função? Para desenvolvei cultura popular, essa cultura assistemática e espontânea, o povo não precisa de escola Ele a desenvolve por obra de suas próprias lutas, relações e práticas. O povo precisa da escola para ter acesso ao saber erudito, ao saber sistematizado e, em conseqüência, para expressar de forma elaborada os conteúdos da cultura popular que correspondem aos seus interesses. Levando em consideração os debates que ainda se travam no momento atual, outras dicotomias poderiam ser identificadas. Entretanto, para os limites do tempo destinado a esta exposição oral, creio ter mencionado e respondido às principais objeções 84 Outras precises e novos esclarecimentos poderão ser acrescentados oportunamente. Debate Alexandre - Gostaria de pedir ao professor Saviani que comentasse uma contestação que tem aparecido muito na Universidade da Paraíba, e que realmente balança as pessoas que estão trabalhando na linha da pedagogia Crítico-Social dos conteúdos. A contestação é que a ênfase aos conteúdos instrumentais faria com que estes assumissem uma certa autonomia em relação aos dados presentes na realidade concreta. Não se levaria em conta, por exemplo, as condições iniciais dos alunos das classes dominadas, cujas deficiências precisam efetivamente ser superadas. Dermeval - Em relação à questão de uma possível hipertrofia dos conteúdos instrumentais, onde as condições concretas do aluno fossem esquecidas, eu teria a dizer o seguinte: a proposta pedagógica que vimos formulando implica o esforço de desenvolver uma pedagogia concreta, que supere a pedagogia abstrata, a pedagogia das formas pelas formas. Estou utilizando o termo "concreto" não no sentido piagetiano, mas no sentido em que Marx define o conceito de concreto. Assim, poderíamos traduzir pedagogia concreta por pedagogia dialética. A dialética é uma lógica concreta, enquanto a lógica formal, a lógica das formas, é abstrata Uma lógica concreta é uma lógica dos conteúdos. Só que não podemos confundir conteúdos concretos com conteúdos empíricos. Os conteúdos empíricos manifestam-se na experiência imediata. Os conteúdos concretos são captados em suas múltiplas relações, o que só pode ocorrer pela mediação do abstrato. Para chegar ao concreto é preciso superar o empírico pela via do abstrato. Esse discurso pode ter ficado muito hermético, então vou ilustrá-lo pedagogicamente, na direção da questão feita. Veja, acho que uma das limitações da contribuição da psicologia à educação está no fato de que a psicologia tem tratado principalmente do indivíduo empírico, não do indivíduo concreto. Ora, o professor na sala de aula não se defronta com o indivíduo empírico, descrito em todas as suas variáveis, a respeito 85 do qual existem conclusões precisas, estatisticamente significativas. O professor está lidando com o indivíduo concreto; enquanto indivíduo correto ele é uma síntese de inúmeras relações sociais. Ele não se enquadra no modelo descrito pela psicologia, pois o indivíduo empírico é uma abstração, pressupõe um corte onde se definem determinadas variáveis que são objeto de estudo. O professor não pode fazer o corte; o aluno está diante dele, vivo, inteiro, concreto. É em relação a este aluno que ele tem de agir. Daí a necessidade de se desenvolver uma psicologia que leve em conta o indivíduo concreto e não apenas o indivíduo empírico. Uma questão fundamental na pedagogia e que o movimento da Escola Nova expôs com veemência, é a questão dos interesses do aluno. O objetivo do processo pedagógico é o crescimento do aluno, logo, seus interesses devem necessariamente ser levados em conta. O problema é o seguinte: quais são os interesses do aluno? De que aluno estamos falando, do aluno empírico ou do aluno concreto? O aluno empírico, o indivíduo imediatamente observável, tem determinadas sensações, desejos e aspirações que correspondem à sua condição empírica imediata. Estes desejos e aspirações não correspondem necessariamente aos seus interesses reais, definidos pelas condições sociais que o situam enquanto indivíduo concreto. Neste sentido, tenho mencionado que os pais das camadas trabalhadoras costumam dizer o seguinte: "Eu botei o meu filho ma escola para aprender mas ele não está aprendendo; o professor está lá para ensinar mas não está ensinando; o que será que está acontecendo?". Os pais viveram todo um conjunto de experiências mostrando que a estudos fazem falta. Ora, os pais, ao perceberem isso, acham que os professores têm obrigação de saber o que é realmente importante para os alunos. Nem sempre o que a criança manifesta à primeira vista como sendo de seu interesse é de seu interesse como ser concreto, inserido em determinadas relações sociais. Em contrapartida, conteúdos que ela tende a rejeitar são, no entanto, de seu maior interesse enquanto indivíduos concretos. Assim, a ênfase nos conteúdos instrumentais não se desvincula da realidade concreta dos alunos, pois é justamente a partir das condições concretas que se tenta captar porque e em que medida esses instrumentos são importantes. Dácio - Alguns princípios da pedagogia histórico-crítica vêm sendo utilizados por setores conservadores para justificar 86 um retomo à escola tradicional. Em vista disso, eu pediria ao professor Saviani que esclarecesse melhor a opção de classe e a opção por uma visão dialética da história implícita na proposta da pedagogia histórico-crítica. Dermeval - A apropriação de conceitos e teorias é feita a partir dos interesses, da visão de mundo e da posição que os indivíduos ocupam no quadro social. É um fato que setores conservadores vêm se apropriando não só da pedagogia histórico-crítica como de outras propostas - a utilização do método Paulo Freire é um exemplo disso, Desnatura-se o quadro original, encaixando-se conceitos de uma proposta em outro esquema teórico. Esse é um fenômeno real. Temos que aprender a lidar com ele, explicitando-o. Em relação à opção política assumida por nós, é bom lembrar que na pedagogia histórico-crítica a questão educacional é sempre referida ao problema do desenvolvimento social e das classes. A vinculação entre interesses populares e educação é explícita. Os defensores da proposta desejam a transformação da sociedade. Se este marco não está presente, não é da pedagogia histórico-crítica que se trata. Alguns tentam sugerir que não é nada disso, que estas colocações são "de fachada" e no fundo a proposta "fecha com a burguesia". Tais afirmações no entanto, não se sustentam. Apóiam-se 'es vezes em mutilações. Por exemplo, há abordagem ao meu texto Educação e política onde se considera que eu hipertrofio o papel do Estado, em detrimento das relações sociais. No entanto, esta análise não pode ser extraída do texto, se ele for cotejado com o artigo "A defesa da Escola Pública", onde destaco o papel da sociedade civil, do movimento dos trabalhadores como forma de controlar e fiscalizar a ação do Estado na educação. Portanto, o caráter de classe da Pedagogia histórico-crítica está explícito. Aliás, na minha exposição eu enfatizei este ponto, quando lembrei que a proposta de socialização do saber elaborado é a tradução pedagógica do princípio mais geral da socialização dos meios de produção. Ou seja, do ponto de vista pedagógico também se trata de socializar o saber elaborado, pois este é um meio de produção, Betty A. Oliveira - Estou muito preocupada com o grande desvio que a denominação pedagogia Crítico-Social dos conteúdos está gerando entre os educadores. Eu já fiz parte de debates onde as pessoas usavam o termo pedagogia dos conteúdos 87 suprimindo a expressão "crítico-social", que é de difícil entendimento. Isto é um desvio, já que estamos buscando a relação conteúdo e forma dentro do processo educativo. Então proponho que, em vez de pedagogia crítico-social dos conteúdos, usemos a denominação histbrico-cr5tica, que tem muito mais fundamento, como foi explicado aqui pelo Saviani. Parece-me que a nova pedagogia histórico-crítica está avançando, mas o mesmo não acontece com o estudo da dialética, necessário para a compreensão e prática dessa concepção. As dicotomias enunciadas por Saviani são frutos do dualismo lógico que domina nossas operações mentais. Pensamos na base do "ou-ou". Não conseguimos pensar por relações. Álvaro Vieira Pinto alertou para o problema quando notou que pensamos a contradição mas não pensamos por contradição. A minha questão para o Dermeval é: como avançar no estudo da nova concepção histórico-crítica, sem pensá-la dialeticamente para que e1a seja concretizada, superando os falsos dualismos? Dermeval - Quando o Libâneo estava para publicar seu livro utilizando a denominação pedagogia crítico-social dos conteúdos, ficou sabendo da denominação "pedagogia histórico-crítica" criada por mim. Disse-me então que esta era exatamente a denominação que estava buscando e chegou a pensar em utilizá-la no livro. Mas eu considerei secundária a questão do nome, pois o mais importante era difundir a proposta A fixação do nome mais adequado dependeria das reações suscitadas. Então, não me opus a que ele empregasse a sua denominação Mesmo a expressão "pedagogia dos conteúdos" não é totalmente rejeitável. A questão dos métodos está presente na palavra pedagogia Acontece que as expressões se difundem e no final você fica com formas sem conteúdos. É por isso que se fala em pedagogia sem estar atento ao significado da palavra. Há uma fetichização, uma reificação dos conceitos. A vantagem da denominação "pedagogia histórico-crítica" é que não se predetermina o sentido. Se você não entende o que é "histórico" ou "crítica" vai tentar inteirar-se do significado daquilo que lhe escapa, lendo e estudando os representantes da concepção. O problema da denominação "pedagogia dos conteúdos" é a ressonância que ela traz, dando margem a uma interpretação na linha 88 de uma volta à pedagogia tradicional, ou de uma recuperação dessa proposta. Em relação ao estudo da dialética, para a compreensão do fenômeno em pauta, creio que ë fundamental. Difundir uma concepção implica sua incorporação a nível de senso comum, desnaturado em vários aspectos o que é pressuposto. No nosso caso. há o risco de, apresentada a proposta que pretende orientar a prática, acredite-se que é só aplicá-1a e as coisas estão resolvidas. Isso já é uma distorção da proposta, que não se expressa em fórmulas abstratas e externas ao objeto. 89 A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR* O tema do nosso encontro gira em torno da Pedagogia Histórico-Crítica. Talvez devesse iniciar a exposição referindo-me a essa denominação, quer dizer, à nomenclatura "Pedagogia Histórico-Crítica". Logo de início é possível afirmar que, em verdade, Pedagogia Histórico-Crítica pode ser considerada como sinônimo de Pedagogia Dialética. No entanto, a partir de 1984 dei preferência à denominação de Pedagogia Histórico-Crítica, pois o outro termo - Pedagogia Dialética - vinha se revelando um tanto genérico e passível de diferentes interpretações. Sabe-se que há uma interpretação idealista da Dialética, além de uma tendência a julgá-la de uma forma especulativa, portanto descolada do desenvolvimento histórico real. Há correntes, por exemplo, próximas à tecnologia que utilizam a palavra dialética como sinônimo de dialógico, ou seja, referente ao dialogo, à troca de idéias, à contraposição de opiniões, e não propriamente como teoria do movimento da realidade, isto é, teoria que busca captar o movimento objetivo do processo histórico. Outro motivo da opção por Pedagogia Histórico-Crítica foi a ocorrência de diferentes visões da palavra dialética considerando que, quando a pronunciamos, cada um tem na cabeça um conceito de dialética - em conseqüência do que a expressão Pedagogia Dialética acaba sendo entendida por conotações diversas. Além disso, tal nomenclatura, por não ser muito corrente, provoca a curiosidade dos ouvintes, criando a oportunidade de se explicar as intenções contidas no tema. A outra denominação, por sua vez, acaba sendo entendida segundo os pressupostos de cada um e, conseqüentemente, é possível que em lugar * Publicado anteriormente em Pensando a Educação. São Paulo, UNES P, 1989, p. 23-33. 90 de se adquirir clareza, instale-se uma certa confusão a respeito. Em outros termos, o que eu quero traduzir com a expressão "Pedagogia Histórico-Crítica" é o empenho em compreender a questão educacional a partir do desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a concepção pressuposta nesta visão da Pedagogia Histórico-Crítica é o materialismo histórico, ou seja, a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana. No Brasil, esta corrente pedagógica se fuma, fundamentalmente, a partir de 1979 (1). Quando situo este momento, 1979, é importante ter em conta o seguinte: a educação brasileira se desenvolveu, principalmente por influência da pedagogia católica (a pedagogia tradicional de orientação católica), com os jesuítas que, praticamente, exerceram o monopólio da Educação até 1759, quando foram expulsos por Pombal. A partir daí se tenta desencadear uma interpretação da questão educacional à luz da pedagogia tradicional leiga, ou seja, pedagogia inspirada no liberalismo clássico. É o empenho de Pombal em se pautar pelas idéias do Iluminismo e rever a cultura e a instrução pública segundo esta concepção. Obviamente, isso não significou a exclusão da influência católica na Educação mas, sim, a quebra de seu monopólio. Este período vai até início deste século, quando se torna forte a influência da Escola Nova. A Pedagogia Nova é, pois, uma concepção já inspirada naquilo que chamo de concepção humanista moderna de Filosofia da Educação. A década de 20 é muito fértil nessa influência do escolanovismo. Nós sabemos que, em 1924, é fundada a ABE- Associação Brasileira de Educação -, que reunia os principais representantes das novas idéias em educação. A Igreja Católica também se organiza e entra em polêmica com os pioneiros da Educação Nova. Esta organização se dá através da AEC - Associação dos Educadores Católicos -, que se contrapõe à ABE. Em 1932, é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Em 1934, com as discussões em torno da Constituição, 1. Historio um pouco esta problemática num artigo publicado na revista ANDE, n.º 11, 1986, chamado “A Pedagogia Histórico-Crítica no Quadro das Tendências Críticas da Educação Brasileira”. 91 polarizam-se as posições no âmbito da Educação entre os liberais, representados pelos escolanovistas, e os católicos, que defendiam a posição tradicional em educação. Como vocês vêem, a polêmica atual "Educação Pública versus Educação Confessional", a propósito da discussão da nova Constituição, é alguma coisa que já vem fazendo história em nosso país. Por ocasião da LDB, essa polêmica foi retomada, no final da década de 50, e agora assume novos contornos. Após a promulgação da Constituição de 1934, a Escota Nova vai ganhando terreno no Brasil e, em 1947, em decorrência já da nova Constituição, a de 46, que determinou ser atribuição da União fixar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, compõe-se uma comissão para elaborar o anteprojeto da nova lei. Essa comissão reúne os principais educadores da época e nela figuram, em maior número, escolanovistas, o que já traduz uma predominância do escolanovismo na Educação brasileira nesse período que vai até cerca de 1960. Um indicador também dessa predomin5ncia é o fato de que a própria Educação católica busca renovar-se e, de uma certa forma, atender a certos requisitos de influência do escolanovismo. É nesse sentido que, em 1955, 1956 e 1957, a Igreja organiza as Semanas da Educação, traz o Padre Pierre Faure, da França, que divulga aqui as idéias de Lubienska, associadas a Montessori, representantes, portanto, da Escola Nova. A ênfase especial em Lubienska se explica pela sua maior compatibilidade com a Doutrina da Igreja. Com efeito, Lubienska tinha um pensamento místico - com influência oriental - e litúrgico; baseava-se na Bíblia e aplicava os processos litúrgicos na educação das crianças. Apoiada nessa pedagogia, a Igreja, de uma certa forma, busca se atualizar e incorporar no aspecto metodológico algumas das conquistas da Escola Nova, obviamente sem abrir mão da doutrina Na década de 60, a Escola Nova começa a apresentar sinais de crise, delineando-se uma outra tendência que eu chamo de Pedagogia Tecnicista. Esta pedagogia acaba se impondo, a partir de 1969-depoís da Lei 5.540 que reestruturou o ensino superior, destacando-se nesse quadro o Parecer 252/69 que reformulou o curso de Pedagogia. Nessa reformulação a influência tecnicista já está bem presente, O curso é organizado mais à base de formação de técnicos e de habilitações profissionais e reflui aquela formação básica, formação geral, que era a marca anterior do curso de Pedagogia. Em 1971 vem a 92 Lei 5.692, com a tentativa de profissionalização universal a nível de 2°- grau. A influência tecnicista, então, se impõe; é na década de 70 que o regime militar tenta implantar uma orientação pedagógica inspirada na assessorai americana, através dos acordos MEC-USAID, centrada aos idéias de racionalidade, eficiência e produtividade, que são as características básicas da chamada pedagogia Tecnicista Mas, ao mesmo tempo que, nessa década. a pedagogia assumida pelo governo busca imprimir esse caráter à Educação, desencadeia-se um processo de crítica à mesma. Boa parte dos educadores não aceita a educação oficial e busca articular as críticas ao regime militar, autoritário e tecnocrático, e à sua proposta educacional. Essas, formuladas ao longo da década de 70, tiveram forte apoio de uma concepção crítico- reprodutivista de Educação. Esta concepção foi sistematizada por alguns teóricos, entre os quais se destacam alguns autores franceses, basicamente Bourdieu e Passeron, com a Teoria do Sistema de Ensino enquanto Violência Simbólica sistematizada na obra "A Reprodução" (1970); Althusser, com o artigo "Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado", publicado na revista La Pensée, em 1969, e depois republicado na forma de livro; e o livro de Baudelot e Establet, A Escola Capitalista na França, que data de 1971. Por influência dessas obras se procurou empreender a crítica da educação, pondo em evidência seu caráter reprodutivista, isto é, educação como reprodução das relações sociais de produção. Chamo esta corrente de crítico-reprodutivista porque não se pode negar seu caráter crítico, se entendermos por concepção crítica aquela que leva em conta os determinantes sociais da educação, em contraposição às teorias não críticas, que acreditam ter a educação o poder de determinar as relações sociais, gozando de uma autonomia plena em relação à estrutura social, (Nesse senti- do, nós poderíamos dizer que a Pedagogia Tradicional, assim com a Pedagogia Nova e a Pedagogia Tecnicista são não-críticas); são reprodutivistas, no sentido em que chegam invariavelmente à conclusão de que a educação tem a função de reproduzir as relações sociais vigentes. Sendo assim, essa concepção crítico-reprodutivista não apresenta proposta pedagógica, além de combater qualquer uma que se apresente. Assim, dada uma sociedade capitalista, sua Educação reproduz os interesses do capital. Esta concepção serviu para municiar a denúncia da pedagogia oficial dominante e, no período entre 1975 e 1978, era confundi- da com a concepção dialética 93 Um marco da situação acima indicada foi o Seminário de Educação Brasileira, organizado em Campinas, em 1978, no qual prevalece a crítica à pedagogia oficial, tendo ficado em segundo plano a questão relativa aos rumos que se deveria imprimir à Educação. No entanto, de modo especial a partir da segunda metade da década de 70, vai se generalizando entre os professores a expectativa em torno da busca de alternativas. À medida que se tornam mais evidentes a insuficiência, a inadequação, a inviabilidade da orientação oficial, a tendência dos professores é raciocinar, mais ou menos, nos seguintes termos: "Está bem. Esta pedagogia oficial que se tentou generalizar é inconsistente, é passível de contestação, atende a interesses minorit5rios, atende à tentativa dos grupos dominantes de impor a toda a sociedade a sua dominação", mas, e então? Se essa educação, essa forma de ensinar, não é adequada, qual será? Havia, pois, uma expectativa muito grande entre os professores no sentido de se responder à questão: como devo me conduzir no processo educativo? A concepção crítico- reprodutivista não tem resposta para essas indagações e tende a concluir que qualquer tentativa na área de Educação é necessariamente reprodutora das condições vigentes e das relações de dominação - características próprias da sociedade capitalista. Ora, genericamente isso poderia até ser aceito, mas os professores se perguntavam qual seria o resultado de se levar às últimas conseqüências a análise dessas teorias, frente a possibilidade de, inculcando a ideologia dominante nos alunos, contribuir para que uma sociedade baseada na exploração se perpetue. Ou então, ao discordar e não compactuar com esse tipo de sociedade, a decisão mais acertada, e talvez a única opção, seria deixar a profissão de educador. No entanto, boa parte dos professores intuía que essa conclusão não podia prevalecer, acreditando na viabilidade de uma educação que não seja, necessariamente, reprodutora da situação vigente, e sim adequada aos interesses da maioria, aos interesses daquele grande contingente da sociedade brasileira, explorado pela classe dominante. Daí a questão: como agir nessa nova direção? Qual é a proposta pedagógica 9ue responderia a essas exigências? É nesse quadro que se procurou fazer uma análise mais aprofundada da questão educacional em geral e da própria teoria crítico-reprodutivista, ou seja, submetê- la à crítica, pondo 94 em evidência o seu caráter mecanicista e, portanto, o seu caráter não dialético, a-histórico. Em verdade, o que fazia, no fundo, a concepção crítico- reprodutivista? Considerava a sociedade capitalista, de classes, como algo não suscetível a transformações, um fenômeno que se justifica em si mesmo; uma estrutura que se impunha compactamente, portanto, de forma não contraditória. Em outros termos, não considerava esta sociedade contraditória, dinâmica e, portanto, em transformação. Com efeito, foi a partir das contradições do modo de produção feudal que se desenvolveu o capitalista. Conseqüentemente, a so- ciedade capitalista contém, também, em seu interior um caráter contraditório cujo desenvolvimento conduz à transformação e, mais tarde, à sua própria superação. A questão era, pois, a seguinte: como compreender a educação nesse movimento histórico? Tratava-se de percebê-la como sendo também determina- da por contradições internas à sociedade capitalista, na qual se inseria, podendo não apenas ser um elemento de reprodução mas um elemento que impulsione a tendência de transformação dessa sociedade. É esta análise que em nosso país começa a adquirir forma mais sistemática a partir de 1979, quando se empreende a crítica da visão crítico-reprodutivista e se busca compreender a questão educacional a partir dos condicionantes sociais. Trata-se, assim, de uma análise crítica porque consciente da determinação exercida pela sociedade sobre a Educação; no entanto, é uma análise crítico- dialética e não crítico-mecanicista. Com efeito, a visão mecanicista inerente às teorias crítico-reprodutivistas considera a sociedade como determinante unidirecional da Educação. Ora, sendo esta determinada de forma absoluta pela sociedade, isso significa que se ignora a categoria de ação recíproca, ou seja, que a Educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa determinação é relativa e na forma da ação recíproca - o que significa que o determinado também reage sobre o determinante. Consequentemente, a Educação também interfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua própria transformação. Em suma, a passagem dessa visão crítico-mecanicista, crítico-a- histórica para uma visão crítico-dialética, portanto histórico-crítica, da Educação, é o que queremos traduzir com a expressão Pedagogia histórico- crítica. Esta formulação envolve a necessidade de se compreender a 95 Educação no seu desenvolvimento histórico-objetivo e, por conseqüência, a possibilidade de se articular uma proposta pedagógica cujo ponto de referência, cujo compromisso, seja a transformação da sociedade e não sua manutenção, a sua perpetuação. Esse é o sentido básico da expressão Pedagogia histórico- crítica. Seus pressupostos, portanto, são os da concepção dialética da história. Isso envolve a possibilidade de se compreender a Educação escolar tal como ela se manifesta no presente, mas entendida essa manifestação presente como resultado de um longo processo de transformação histórica. Assim, a segunda parte do enunciado do tema desta palestra, que se refere à relação da Pedagogia Histórico-Crítica com a realidade escolar do presente, pode ser enfocada sob dois aspectos. Num primeiro sentido, pode-se dizer que a relação entre a Pedagogia Histórico- Crítica e a realidade escolar presente é muito íntima. Com efeito, como se mostrou, a referida concepção pedagógica surgiu em decorrência de necessidades postas pela prática dos educadores nas condições atuais. É, pois, na realidade escolar presente que se enraíza a proposta da Pedagogia Histórico- Crítica. Num outro ângulo de análise, a relação com a realidade escolar presente implica a compreensão dessa realidade nas suas raízes históricas. Sabe-se que o que caracteriza o homem é o fato dele necessitar continuamente estar produzindo a sua existência. Em outros termos, o homem é um ser natural peculiar, distinto dos demais seres naturais, pelo seguinte: enquanto estes em geral os animais inclusive - adaptam-se à natureza e, portanto, têm já garantidas, pela própria natureza, suas condições de existência, o homem precisa adaptar a natureza a si, ajustando-a, segundo as suas necessidades. Esta é a marca distintiva do homem, que surge no universo, no momento em que um ser natural se destaca da natureza, entra em contradição com ela e, para continuar existindo, precisa transformá-la. Eis a razão pela qual o que define a essência da realidade humana é o trabalho, pois é através dele que o homem age sobre a natureza, ajustando-a às suas necessidades. O que se chama desenvolvimento histórico não é outra coisa senão o processo através do qual o homem produz a sua existência no tempo. Agindo sobre a natureza, ou seja, trabalhando, 96 o homem vai construindo o mundo histórico, vai construindo o mundo de cultura, o mundo humano. E a educação tem suas origens nesse processo. No princípio, o homem agia sobre a natureza coletivamente e a Educação coincidia com o próprio ato de agir e existir, com o trabalho, portanto. O ato de viver era o ato de se formar homem, de se educar. E já que não existe produção sem apropriação, nessa fase inicial, os homens se apropriavam coletivamente dos meios necessários à produção de sua existência, fenômeno este adequadamente traduzido 00 conceito de "modo de produção comunal". Portanto, no chamado "comunismo primitivo" os homens produziam sua existência de forma coletiva, ou seja, apropriavam-se em comum dos elementos necessários à sua existência. Os meios de produção de existência eram, pois, de uso comum. A partir do momento em que a apropriação da terra - que era, então, o meio de produção fundamental - assume a forma privada, surge a classe dos proprietários; estes, por deterem a propriedade da terra, colocavam para trabalhar aqueles não proprietários. Sobre essa base se constitui o modo de produção antigo ou escravista, no qual os escravos trabalhavam para produzir a sua existência e a dos seus senhores. Esta propriedade privada da terra, que ocorre tanta no modo de produção antigo ou escravista quanto no modo de produção medieval ou feudal, propicia o surgimento de uma classe ociosa, que não precisa trabalhar para sobreviver porque o trabalho de outros garante também a sua sobrevivência. E aí que podemos localizar a origem da escola Escola, em grego, significa o lugar do ócio. O tempo destinado ao ócio. Aqueles que dispunham de lazer, que não precisavam trabalhar para sobreviver, tinham que ocupar o tempo livre, e esta ocupação do ócio era traduzida pela expressão escota. Na Idade Média, inclusive, evidenciou-se a expressão latina otium cum dignitate, o ócio com dignidade, isto é, a maneira de se ocupar o tempo livre de forma nobre e digna. A palavra 8násio possui origem semelhante. Ginásio era, e ainda é, o local onde se praticam os jogos, a ginástica; era pois, o local utilizado por aqueles que dispunham de lazer, de tempo livre de ócio. À medida que nesses dois tipos de sociedade, antiga ou escravista e medieval ou feudal, havia uma diminuta classe de proprietários e uma grande massa de não proprietários, a escola 97 aparecia como uma modalidade de educação complementar e secundária. Isto porque a modalidade principal de educação continuava sendo ainda o trabalho, uma vez que a grande massa, a maioria, não se educava através da escola mas através da vida, ou seja, do processo de trabalho. Era trabalhando a terra, garantindo a sua sobrevivência e a dos seus senhores, que eles se educavam. Eles aprendiam a cultivar a terra, cultivando a terra. E esse trabalho fundava determinadas relações entre os homens através das quais eles construíam a cultura e, assim, se instruíam e se formavam como homens. A maioria, portanto, se educava pelo trabalho; só uma minoria tinha acesso à forma escolar de educação. A educação escolar, por seu vez, era uma forma secundária e dependente da não escolar, que era o trabalho. Com a época moderna, em decorrência do desenvolvimento das forças produtivas no âmbito do feudalismo, acumulam-se recursos através das atividades mercantis, que deslocam a terra da condição de meio de produção principal. Os meios de produção passam a assumir a forma de capital, o qual inclui não apenas a terra mas os mais variados instrumentos de trabalho. Surge então uma nova sociedade, chamada moderna ou capitalista ou burguesa. Esta desloca o eixo do processo produtivo, do campo para a cidade, da agricultura para a indústria. E a classe dominante dessa nova sociedade, que é a burguesia, diferentemente dos proprietários de terra, dos senhores de escravos da Antigüidade e dos senhores feudais da Idade Média, não era uma classe ociosa. A burguesia não pode ser considerada uma classe ociosa, ao contrário, é uma classe empreendedora, que tem a necessidade de estar produzindo continuamente, para reproduzir indefinidamente, de forma insaciável, o capital. Em conseqüência, a burguesia revoluciona as relações de produção e passa a conquistar cada vez mais espaços, a dominar a natureza através do conhecimento metódico, e converte a ciência, que é um conhecimento intelectual, uma potência espiritual, em potência material, através da ind5stria Nesse quadro, surgem as cidades como local determinante das relações sociais. Em lugar do que ocorria na Idade Média, em que o campo determinava a cidade, a agricultura determinava a indústria, na época moderna, é a cidade que passa a determinar as relações do campo e é a indústria que rege a agricultura. Nesse sentido, a época moderna 98 vai se caracterizar por uma crescente industrialização da agricultura e uma progressiva urbanização do campo; vai ser marcada por relações sociais baseadas no direito positivo. A cidade é uma construção artificial, as relações sociais aí já não são mais naturais; são relações em que o social predomina sobre o natural, em que o contrato estabelecido entre os homens predomina sobre as formas consuetudinárias que predominavam anteriormente. Portanto, ao direito natural, sucede o direito positivo. E é neste quadro que a exigência de conhecimento intelectual se torna necessidade geral. Conseqüentemente, a partir da época moderna, o conhecimento sistemático - a expressão letrada, a expressão escrita se generaliza dadas as condições da vida na cidade. Eis porque é na sociedade burguesa que se vai colocar a exigência de universalização da escola básica. Há um conjunto de conhecimentos básicos que envolvem o domínio dos Códigos escritos, que se tornam importantes para todos. Com o advento desse tipo de sociedade, vamos constatar que a forma escolar da Educação se generaliza e se toma dominante. Assim, se até o final da Idade Média a forma escolar era parcial, secundária, não generalizada, quer dizer, era determinada pela forma não escolar, a partir da época moderna ela se generaliza e passa a ser a forma dominante, à luz da qual são aferidas as demais. E é esta a situação em que nos encontramos hoje. Por isso é que, hoje em dia, vivemos uma situação um tanto paradoxal, do ponto de vista escolar. De um lado, a escola é secundarizada; afirma-se que não é só através dela que se educa; educa-se através de múltiplas formas, através de outras instituições, como os partidos, os sindicatos, associações de bairros, associações religiosas, através de relações informais, da convivência, dos meios de comunicação de massa - isto é, do cinema, do rádio, da televisão. Portanto, há múltiplas formas de Educação, entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tend8nc~a, a escola não é a 5nica e nem mesmo a principal forma de educar; há, inclusive, aqueles que consideram a escola negativa, do ponto de vista educacional, o que foi formulado explicitamente pela proposta de desescolarização, cujo principal mentor foi Ivan Illich. De acordo com esta proposta, a escola não apenas é desnecessária e prescindível, como até prejudicial. Portanto, o que de 99 melhor a sociedade pode fazer é se livrar das escolas; é um peso inútil. Mais do que inútil, a escola é considerada nociva. Ora, esta visão na sua radicalidade, no seu extremo, tal como formulada por Illich, está um pouco atenuada, está em refluxo. Mas de qualquer modo, ainda existe hoje, difundido, um sentimento de secundarização da escola. Isso, de um lado. Mas, de outro lado, contraditoriamente nós assistimos a uma hipertrofia da escola. A escola é também, na situação atual, hipertrofiada tanto vertical como horizontalmente. Em sentido vertical, há não apenas a tendência a ampliar o tempo de escolaridade do 2-' grau para a universidade, da graduação para a pós- graduação e assim por diante, como também a ampliá-la, antecipando seu início. Daí a reivindicação mais ou menos generalizada de educação escolar para a fase anterior â idade propriamente escolar. A chamada educação pré-escolar ou educação infantil é requerida hoje não mais em termos de apenas um ou dois anos, correspondentes ao antigo curso pré-primário, mas desde o zero ano. A reivindicação está nas ruas e foi posta também para a Assembléia Constituinte. O Fórum das Entidades Educacionais em Defesa da Escola Pública aprovou o dever do Estado de cuidar da educação das crianças desde zero ano de idade. Há, pois, uma tendência a hipertrofiar a escola, a ampliar a sua esfera de ação educativa, reduzindo os demais espaços. A própria família, em lugar de requerer para si a exclusividade da educação, na primeira infância, tende a exigir a educação escolar desde a roais tenra idade; se possível, desde o nascimento. Além desta extensão vertical, há a extensão horizontal. Reclama-se a ampliação da jornada escolar. Pretende-se que as crianças não fiquem apenas três horas por dia na escola mas sim seis, ou até oito horas. Em suma, reivindica-se a escola de jornada integral. Qual o significado dessa tendência? Essa hipertrofia da escola, de uma certa forma, coloca a seguinte questão: a partir da sociedade moderna, ainda vigente pelo menos no Ocidente, a forma dominante de educação é a escolar. Isso é tão claro que é difícil pensarmos em educação sem a escola. A educação escolar é simplesmente a educação; já as outras modalidades são sempre definidas pela via negativa. Referimo-nos a elas através de denominações como educação não 100 escolar, não-formal, informal, extra-escolar. Portanto, a referência de análise, isto é, o parâmetro para se considerar as outras modalidades de educação, é a própria educação escolar. Esta é a situação com a qual nos defrontamos hoje. É nesse quadro e a partir dessas bases históricas que o que chamamos de Pedagogia Histórico-Crítica se empenha na defesa da especificidade da escola. Em ou Vos termos a escola tem uma função específica educativa, propriamente pedagógica, ligada à 9uestão do conhecimento; é preciso pois, resgatar a importância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta o problema do saber sistematizado, a partir do qual se define a especificidade da educação escolar. A Pedagogia Histórico-Crítica entende que a tendência a secundarizar a escola traduz o caráter contraditório que atravessa a Educação, a partir da contradição da própria sociedade. À medida que estamos ainda numa sociedade de classes com interesses opostos e que a instrução generalizada da população contraria os interesses de estratificação de classes, ocorre esta tentativa de desvalorização da escola, cujo objetivo é reduzir o seu impacto em relação às exigências de transformação da própria sociedade. Esta é uma característica que está presente na sociedade burguesa desde a sua constituição, mas que assume características marcantes na fase final, ou seja, no momento em que se acirram as contradições entre o avanço sem precedentes das forças produtivas e as relações de produção baseadas na propriedade privada e, portanto, na oposição de classes. Conforme se acirra a contradição entre a apropriação privada dos meios de produção e a socialização do trabalho realizada peta própria sociedade capitalista, o desenvolvimento das forças produtivas passa a exigir a socialização dos meios de produção, o que implica a superação da sociedade capitalista. Com efeito, socializar os meios de produção significa instaurar , uma sociedade socialista, com a conseqüente superação da divisão em classes. Ora, considerando-se que o saber, que é o objeto específico do trabalho escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado por essa contradição. Consequentemente, a expansão da oferta de escolas consistentes de modo a atender a toda a população significa que o saber deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Tal fenômeno entra em contradição com os interesses atualmente dominantes. Daí a tendência 101 a secundarizar a escola esvaziando-a de sua função específica que se liga à socialização do saber elaborado, convertendo-a numa agência de assistência social, destinada a atenuar as contradições da sociedade capitalista. No limite, como já foi assinalado, esses mecanismos se expressam na proposta da "desescolarização" que significa a negação cabal da própria escola. Eis porque critiquei essa proposta, desde o seu surgimento, considerando que ela provém d~ já escolarizados, os quais já se beneficiaram daquilo que a escola poderia oferecer e, portanto, não serão atingidos pela desescolarização. Cumpre assinalar que o problema em pauta já aparecia nos inícios da sociedade bur- guesa, pelo menos num vetor dessa sociedade representado pela economia política. Os economistas tinham clara consciência, de um lado, da necessidade de se generalizar a escola e, de outro, que essa generalização tinha que ser limitada à escola básica. Este é o sentido da famosa frase de Adam Smith, muito repetida, em que ele admitia a instrução intelectual para os trabalhadores, mas acrescentava: "porém, em doses homeopáticas". Quer dizer, os trabalhadores têm que ter instrução, mas apenas aquele mínimo necessário para participarem dessa sociedade, isto é, da sociedade moderna baseada na indústria e na cidade, a fim de se inserirem no processo de produção, concorrendo para o seu desenvolvimento. Ora, na sociedade capitalista, desenvolvimento produtivo significa geração de excedentes, isto é, trabalho que, por gerar mais-valia, amplia o capital. Isso era nítido entre os economistas políticos. Os ideólogos da burguesia colocavam a necessidade de educação de forma mais geral e, nesse sentido, cumpriam o papel de hegemonia, ou seja, de articular toda a sociedade em torno dos interesses dominantes. Enquanto a burguesia era revolucionária, isso fazia sentido; quando ela se consolidou no poder a questão principal não era superar a velha ordem, o Antigo Regime. Este, com efeito, já fora superado e a burguesia, em conseqüência, já consolidava o seu poder; nesse momento, o problema principal da 6urguesia passa a ser evitar as ameaças e neutralizar as pressões para que se avance no processo revolucionário e se chegue a uma sociedade socialista. A burguesia, então, se torna conservadora e passa a ter dificuldades ao lidar com o problema da escola, pois a verdade é sempre revolucionária. Enquanto a burguesia era revolucionária e1a tinha in 102 interesse na verdade. Quando passa a ser conservadora, a verdade então a incomoda, choca-se com os seus interesses. Isto ocorre porque a verdade histórica evidencia a necessidade das transformações, as quais, para a classe dominante - uma vez consolidada no poder - não são interessantes; ela tem interesse na perpetuação da ordem existente. A ambigüidade que atravessa a questão escolar hoje é marcada por essa situação social. E a clareza disso é que traduz o sentido crítico da Pedagogia. Com efeito, a Pedagogia Crítica implica a clareza dos determinantes sociais da educação, a compreensão do grau em que as contradições da sociedade marcam a educação e, consequentemente, como é preciso se posicionar diante dessas contradições e desenredar a educação das visões ambíguas, para perceber Claramente qual é a direção que cabe imprimir à questão educacional. Aí está o sentido fundamental do que chamamos de Pedagogia Histórico-Crítica. Nesse quadro, tenho insistido em alguns pontos que, de certo modo, poderiam ser chamados de óbvios. No entanto, é preciso insistir porque eles acabam sendo obscurecidos. Por exemplo, que a escola básica é importante para todos, que a alfabetização deve ser acessível a todos é o óbvio. No entanto, isso fica obscurecido por toda uma série de tergiversações as quais servem para retardar a consecução desse objetivo, contemporizar e, nesse sentido, prolongar as desigualdades vigentes. Nesse sentido, tenho sido crítico dos chamados modismos na educação, porque aparecem como algo muito avançado mas, na verdade, apenas obscurecem questões até certo ponto óbvias, que não podiam ser perdidas de vista e que dizem respeito ao trabalho escolar. Eis porque em um de meus textos(2) enunciei a distinção entre o tradicional e o clássico. Tradicional é o que se refere ao passado, ao arcaico, ultrapassado. Nesse sentido, nós temos que combater a pedagogia tradicional e reconhecer a validade de algumas das críticas que a Escola Nova formulou à pedagogia tradicional. No entanto, isto não pode obscurecer um elemento clássico na educação, pois este não se confunde com o tradicional. Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto. E por isso que a cultura greco-romana é considerada 2. Dermeval Saviani. "O ensino básico e o processo de democratização da sociedade brasileira." ANDE, 07: 9-13, 1984. 103 clássica embora tenha sido produzida na Antigüidade, mantém-se válida, mesmo para as épocas posteriores. De fato, ainda hoje reconhecemos e valorizamos elementos que foram elaborados naquela época. É neste sentido que se considera Descartes um clássico da Filosofia moderna. Aqui o clássico não se identifica com o antigo, porque um moderno é também considerado um clássico. Dostoievski, por exemplo - segundo a periodização dos manuais de História, um autor contemporâneo - é tido como um clássico da literatura universal. Da mesma forma, diz-se que Machado de Assis é um clássico da literatura brasileira, apesar de o Brasil ser mais recente até mesmo que a Idade Média, quanto mais que a Antigüidade. Então, o clássico não se confunde com o tradicional, razão pela qual tenho procurado chamar a atenção para certas características, certas funções clássicas da escola que não podem ser perdidas de vista porque, do contrário, acabamos invertendo o sentido da escola e considerando questões secundárias e acidentais como sendo principais, passando para o plano secundário aspectos principais da escola Exemplo disso são as comemorações nas escolas, que se espalhavam por todo o ano letivo, tais como a Semana da Revolução, Festa das Mães; Semana Santa, as Festas Juninas, Semana do Índio, Semana do Folclore, Semana da Pátria, Jogos da Primavera, Semana da Árvore, Semana da Criança, Semana da Asa. Ao final do ano letivo, após todas estas atividades comemorativas, fica a questão: as crianças foram alfabetizadas? Aprenderam Português? Aprenderam Matemática? Ciências Naturais, História, Geografia? Ora, estes são os elementos clássicos do currículo escolar, tão clássicos que ninguém contesta. Às vezes se contesta a forma: será que se deve alfabetizar assim ou seria melhor de outra forma? Mas alguém ousaria afirmar que a escola não deve alfabetizar? No entanto, esses elementos acabam sendo secundarizados, diluídos numa concepção difusa de currículo. Afirma-se que tudo o que a escola faz, importante ou não, válido ou não, é currículo. Para evitar esse tipo de equívoco, propus(3) a recuperação da distinção entre curricular e extra-curricular. Dessa forma, reserva-se para o termo currículo as atividades essenciais que a escola não pode deixar de 3. Dermeval Saviani, op. cit. 104 desenvolver, sob pena de se descaracterizar, de perder a sua especificidade. As demais atividades, tais como es comemorações antes mencionadas, não sendo essenciais, definem-se como extra-curriculares. Nessa condição elas só fazem sentido na medida em que possam enriquecer as atividades curriculares, não de- vendo, em hipótese alguma, prejudicá-las ou substituí-las. Creio ter apresentado o significado fundamental da Pedagogia Histórico-Crítica. Trata-se de uma concepção que, como o nome indica, procura se firmar sobre uma base histórica e hìstoricì2ante. Em texto recente4 observo que Marx, ao analisar a problemática histórica; chegou à conclusão que é a partir do mais desenvolvido que se compreende o menos desenvolvido. Por isso ele afirmou que é possível compreender o capital sem a renda da terra mas não é possível compreender a renda da terra sem o capital, uma vez que na sociedade moderna a renda da terra é determinada pelo capital. Ora, na sociedade atual pode-se perceber que já não é possível compreender a educação sem a escola porque a escola é a forma dominante e principal de educação. Assim, para se compreender as diferentes modalidades de educação, exige-se a compreensão da escola. Em contrapartida, a escola pode ser compreendida independentemente das demais modalidades de educação. Com reflexões e análises do tipo das apresentadas nesta palestra, procuramos fundar e objetivar historicamente a compreensão da questão escola, a defesa da especificidade da escola e a importância do trabalho escolar como elemento necessário ao desenvolvimento cultural, que concorre pua o desenvolvimento humano em geral. A escola é, pois, compreendida a partir do desenvolvimento histórico da sociedade; assim compreendida, torna-se possível a sua articulação com a superação da sociedade vigente em direção a uma sociedade sem classes, a uma sociedade socialista. É dessa forma que se articula a concepção Política Socialista com a concepção Pedagógica Hístórico-Crítica, ambas fundadas no mesmo conceito geral de realidade, que envolve a compreensão da realidade humana como sendo construída pelos próprias homens, a partir do processo de trabalho, quer dizer, da produção das condições materiais ao longo do tempo. 4. Dermeval Saviani, "Contribuição à elaboração da nova L.D.B.: um início de conversa". ANDE, n.º 13, 1988. 105 Apêndice Prefácio à 20ª edição de Escola e Democracia A primeira edição de Escola e Democracia data de setembro de 1983. Portanto, em pouco mais de quatro anos se esgotaram 19 edições, cada uma delas com tiragem de 5.000 exemplares. A acolhida vem sendo, pois, calorosa, chegando mesmo alguns leitores a revelar grande entusiasmo por esse trabalho. A par da grande acolhida (e talvez mesmo por causa dela), surgiram também algumas críticas, Obviamente, a obra não está isenta de limitações e defeitos. A julgar pelos depoimentos dos leitores, o reconhecimento de limitações não obscurece os méritos que o trabalho contém. Assim, o primeiro texto, se não esgota a temática que aborda, constitui uma síntese clara e didática das principais teorias da educação, o que tem sido sobremaneira útil aos educadores ajudando-os na compreensão de sua prática e permitindo-lhes situarem-se mais claramente no universo pedagógico. Os próprios críticos têm se beneficiado dessa síntese já que nela se apóiam, o que implica um endosso da classificação e análise das teorias pedagógicas aí apresentadas. O segundo texto tem um caráter preparatório para a teoria crítica da educação que fora apenas anunciada no texto anterior e cujo esboço é objeto da exposição efetuada no terceiro texto. Trata-se de uma abordagem centrada mais no aspecto polêmico do que no aspecto gnosiológico. Por isso, mutatis mutandis, vale para ele a observação feita por Gramsci a propósito da critica de Croce à concepção marxista de "superestrutura ideológica": "Quando, por razões `políticas', práticas, para tornar um grupo social independente da hegemonia de um outro grupo, fala-se de `ilusão', como é possível - de boa-fé - confundir uma linguagem polêmica com um princípio gnosiológico?" 106 (Gramsci, 1978: 261). A par dos limites ligados ao caráter polêmico, a exposição contém também defeitos de estilo derivados do fato de ser transcrição direta de uma fala não baseada em texto escrito. Daí o tom oral de que está impregnada O mérito do texto é antes heurístico do que analítico. Não se trata de uma exposição exaustiva e sistemática, mas da indicação de caminhos para a crítica do existente e para a descoberta da verdade histórica. O leitor encontra aí um estímulo para um ajuste de contas consigo mesmo ante as tendências pedagógicas com as quais tem se envolvido. de se- Se na polêmica avulta a questão da Escola Nova, isto não se es- deve induzir a equívocos. Escola e Democracia não é um livro contra a Escola Nova enquanto tal. É, antes, um livro contra a pedagogia liberal burguesa. Por isso, enganam-se aqueles que imaginam que; por efetuar a crítica à Escola Nova, o autor estaria de algum modo reabilitando a pedagogia burguesa. Ora, não se nega à Escola Nova o seu caráter progressista em relação à Escola Tradicional. Aliás, isso está formalmente explícito no terceiro texto. Entretanto, enquanto proposta burguesa, a Escola Nova articula em torno dos interesses da burguesia os elementos progressistas que, obviamente, não são intrinsecamente burgueses. E dessa forma que a burguesia trava a luta pela hegemonia procurando subordinar aos seus interesses os interesses das demais classes. Do ponto de vista do proletariado a luta do hegemônica implica o processo inverso: "Trata-se de desarticular dos interesses dominantes aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante a rearticulá-los em torno dos interesses dominados" (Saviani, 1980: 10-11). Dessa forma, a denúncia da Escola Nova é apenas uma estratégia visando a demarcar mais precisamente o âmbito da pedagogia burguesa de inspiração liberal e o âmbito da pedagogia socialista de inspiração marxista. Aliás, não foi outro o comportamento do próprio Marx que, em 1848, ao se engajar na luta política dos trabalhadores na Alemanha não se negou a participar do Movimento Democrático sob a condição, porém, de deixar sempre explícita a diferença entre a perspectiva proletária e aquela dos burgueses e pequeno- burgueses progressistas (cf. Fedosseiev et alii, 1983: 190). De minha parte, tenho procurado sistematicamente estabelecer esta diferenciação como 107 pode ser comprovado de forma recorrente em meus diferentes trabalhos. Dentre eles, cito como exemplo o texto "A defesa da escola pública" que deveria integrar "Escola e Democracia', o que não ocorreu por falta de espaço - e esta é outra limitação da obra. No referido texto me empenho em demarcar a perspectiva burguesa da perspectiva socialista, explicitando os limites da concepção liberal na defesa da escola pública e registrando como o próprio movimento popular acabou por cair na armadilha da "ilusão liberal" (Saviani, 1984: 10-25). É esse e não outro o sentido que assume no livro a crítica à Escola Nova. Nesse contexto chegam a soar um tanto deslocadas as abordagens que, provocadas por esse trabalho, pretendem reabilitar a Escola Nova a partir da perspectiva proletária. Demarcadas as perspectivas, feita a crítica da visão liberal burguesa, os elementos progressistas desarticulados da concepção dominante são, no terceiro texto, articulados no âmbito da perspectiva pedagógica correspondente aos interesses da classe trabalhadora Ainda que não se tenha podido explorar e aprofundar suas diversas implicações, avança-se aí decididamente na formulação de uma nova teoria crítica (não-reprodutivista) da educação a qual, como foi assinalado no final do primeiro texto, só pode ser formulada do ponto de vista dos interesses dominados (cf. p. 41). O último texto, "Onze teses sobre educação e política", procura situar o debate pedagógico muito além dos acanhados limites geralmente marcados pela repetição de slogans esvaziados de conteúdo. Com efeito, sem perder de vista a realidade concreta da sociedade de classes, projetou-se a reflexão para o horizonte de possibilidades, isto é, para o momento da passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, o momento da constituição da sociedade sem classes, momento catártico por excelência em que toda a sociedade humana se reencontra consigo mesma. A alguns leitores parece ter escapado tal intento, talvez em razão do caráter lapidar das teses formuladas e da economia das explicações apresentadas (seria este outro defeito do livro?). A questão do "desaparecimento do Estado" permite ilustrar esse ponto. No texto afirmo: "Sabe-se que não se trata de destruir o Estado; ele simplesmente desaparecerá por não ser mais necessário" (cf. p. 96). Obviamente, o contexto a( é o da passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, por 108 tanto, a passagem do socialismo ao comunismo que significa o advento da sociedade sem classes. Conseqüentemente, o Estado que fora utilizado pelo proletariado como instrumento de transição para a sociedade sem classes, ao ser esta consolidada, perde a razão de ser e desaparece. Que dizer então da interpretação que considera a colocação supra como indicadora de que o Estado burguês não é destruído mas consente no seu desaparecimento? Antes de qualquer outra consideração, cabe registrar que tal interpretação não corresponde ao que foi registrado no texto. Com efeito, lá está escrito: "sabe-se que não se trata de destruir o Estado"; e não: "sabe-se que não se trata de destruir o Estado burguês". Nesse ponto da reflexão supõe-se já superada a sociedade burguesa. Ora, a revolução socialista (proletária) não destrói o Estado em si mesmo. Ao conquistar o poder, o proletariado através do mesmo ato revolucionário, destitui (destrói) o Estado burguês e constitui o Estado proletário. Como falar, nessa nova situação, de destruição do Estado? Quem destruirá o Estado proletário? Não será uma outra classe, pois com a con- quista do poder pelo proletariado, que é a classe cujo domínio consiste na superação das classes, já não há outra classe que a ele se possa contrapor como historicamente progressista. Seria, então o próprio proletariado? Na verdade, não se trata já da destruição do Estado. Uma vez cumprido o papel de instrumento coercitivo para inviabilizar as tentativas de restauração do poder burguês, o Estado (sociedade política), não sendo mais necessário, desaparecerá A concepção acima exposta é encontrada reiterativamente nos escritos de Marx, resultando, assim, um contra-senso invocar esse autor para desautorizar a linha de reflexão por mim desenvolvida (cf. Marx, s. d.: 38; Marx, 1974: 80 e 90; Marx, 1968: 47-8; Marx 1984: 62-8). Para economia deste prefácio, cito apenas o final de A miséria da filosofia: "Somente numa ordem de coisas em que não existem mais classes e antagonismos entre classes as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas" (Marx, 1985: 160). O mesmo se diga de Gramsci: "O fim do Estado sublinhado por Marx e Lênin é concebido por Gramsci como a absorção, pela sociedade civil, da sociedade política que, numa sociedade sem classes, está voltada à extinção na proporção e na medida em que se harmonizam os 109 interesses do proletariado e os interesses do conjunto do corpo social" (Grisoni & Maggiori, 1973: 177-8). Nas palavras do próprio Gramsci: "A classe burguesa está `saturada'; não só não se amplia, mas se desagrega; não só assimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma (ou, pelo menos, as desassimilações são muitíssimo mais numerosas do que as assimi- lações). Uma classe que se considere capaz de assimilar toda a sociedade, e ao mesmo tempo seja realmente capaz de exprimir este processo, leva à perfeição esta concepção do Estado e do direito, de tal modo a conceber o fim do Estado e do direito, em virtude de terem eles completado a sua missão e de terem sido absorvidos pela Sociedade Civil" (Gramsci, 1976: 147). E, mais adiante: "O elemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desaparecimento, à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)" (Gramsci, 1976: 149): Para a 20ª edição foi feita uma revisão de todo o trabalho corrigindo-se algumas falhas de impressão ao mesmo tempo em que se procurou minorar os defeitos de estilo do segundo texto. Agradecendo a confiança dos leitores espero que os esclarecimentos deste prefácio os ajudem a melhor compreender as posições assumidas pelo autor. Os comentários feitos tiveram apenas essa intenção, não cabendo, pois, interpretá- los como resposta 'as objeções dos críticos. Pelo respeito que merecem os colegas que valorizaram este trabalho com suas apreciações, cabe considerá-las uma a uma de forma detida. Como não é possível fazer isso num simples prefácio, tais considerações são remetidas para outro momento e outro lugar. São Sepé (RS), 26 de janeiro de 1988 O Autor 110