Este livro foi informatizado por Américo Azevedo e Deolinda Fernandes. Caso esteja interessado em obter mais obras deste género, contacte com Américo Azevedo - Rua Manuel Ferreira Pinto, 530-4470-077 Gueifães Maia - Telefone.: 229607039 - 918175758. ADRIANA Pelos Autores da Biblioteca Franciscana Missionária Segunda Edição Edições dos Anais das Franciscanas Missionárias de Maria Barcelos - 1964 Tip. Editorial Franciscana Braga - 1964 1. Na Residência De Flávio "Glicéria!... Está ainda a dormir; não perturbemos o seu repouso!" Prenunciava estas palavras, num tom de voz cuja doçura contrastava com a severidade da sua fisionomia, um homem de quarenta anos pouco mais ou menos, de aspecto altivo e duro, mas em quem se notava todavia qualquer coisa de nobre. E ao dizer isto afastou-se, com passo silencioso, de um jardim de inverno, onde as plantas exóticas, graciosamente entrelaçadas a uma balaustrada e continuamente refrescadas por um jacto de água, mantinham uma frescura deliciosa, mesmo nas horas de maior calor. Neste agradável ambiente dormia despreocupada, sobre fofas almofadas, uma criança de catorze anos aproximadamente, cujo perfil era de uma distinção extraordinária: o rosto branco e rosado, e os cabelos louros como as espigas douradas no sol de Julho. Junto dela, velavam duas mulheres que bordavam ricas tapeçarias. A simplicidade que sua maneira de trajar - túnicas de cores discretas - contrastava com o esplendor da habitação e a elegante túnica de seda azul celeste, bordada a cores variadas, da criança que dormia. Ao notar a semelhança deste trabalho delicado com o que executavam entre as duas vigilantes, facilmente se concluía que era também obra das suas mãos. Estas mulheres eram escravas; mas se nas duas, a mais velha, que devia ter uns cinquenta anos, parecia ter nascido para tão rude condição, a outra, a mais nova, tinha nas suas maneiras, nas suas feições - numa palavra - em toda a sua pessoa, a graça e a distinção de uma patrícia. A túnica de escrava que usava não conseguia encobrir uma formosura à qual se podiam convir os adornos próprios da nobreza. A agulha que ela tinha entre os dedos parara subitamente e a jovem escrava permaneceu então como que absorvida num sonho. Porém a inesperada aptidão daquele nobre, que se aproximava de novo para assistir ao despertar da filha, arrancou-a de repente ao seu devaneio; estremeceu e, nesse movimento brusco, a tesoura ele aço que tinha sobre os joelhos caiu no pavimento de mármore, produzindo um barulho que fez acordar Glicéria. E surpreendida, a criança lançou à sua volta um olhar assustado, mas, ao reconhecer o pai e as duas fiéis guardas do seu sono, sorriu docemente. - Que susto! - disse - estava a dormir tão bem! - Foi esta criatura estúpida que te acordou, minha querida Glicéria, vou mandar castigá-la. - Meu pai, perdoai-lhe por esta vez, estou tão contente por ter acordado, pois assim posso ir passear convosco. Ao dizer estas palavras, a jovem patrícia agarrou carinhosamente no braço do pai e levou-o para o jardim; entretanto, as duas camareiras, admiradas com a desusada demência do seu Senhor, continuavam a trabalhar. Porém, o rubor que subira ao rosto da bordadora mais nova, quando a voz do patrício, dura e brutal, pronunciara as palavras "estúpida criatura", não desaparecera logo. Dos seus lindos olhos rolara uma lágrima, embora por um violento esforço de vontade tivesse conseguido reprimir o movimento de revolta que agitava a sua alma e permanecer calma perante a ameaça do castigo, que uma só palavra de Glicéria lhe havia poupado. No momento em que esta descia com o pai os degraus do peristilo, aparecia por sua vez na galeria uma mulher em todo o vigor dos seus trinta anos e cuja semelhança com Glicéria deixava facilmente adivinhar que era a sua mãe. A criança precipitou-se para ela beijando-a afectuosamente. O patrício aproximou-se também, sorrindo, e todos três se puseram a conversar animadamente. A velha escrava - Paulina de nome - retomara o seu trabalho, mas a sua companheira permanecia pensativa; os seus olhos, melancolicamente fixos no grupo que parara a dois passos, arrasaram-se de lágrimas. A mãe de Glicéria reparando nisso, aproximou-se dela e, pondo-lhe a mão sobre o ombro, disse com dureza: - Lá estás tu mais uma vez mergulhada nos teus vãos e inúteis devaneios, Adriana. Contudo sabes que esta túnica tem de ficar pronta esta noite, sob pena de seres rigorosamente castigada. Em que Muita vais? Adriana, empalidecendo, levantou-se, desdobrando diante da sua senhora as pregas do finíssimo tecido, de que uma grande parte estava ainda por bordar. A patrícia teve um gesto de cólera. - Com esta lentidão a túnica não estará com certeza pronta amanhã - disse: - queria pô-la para receber o imperador. Mas que fizeste desde ontem - Isto, - respondeu Adriana em voz baixa e mostrando umas lindas flores artisticamente matizadas. - Está bonito, mas é pouco; muito te descuidaste, - prosseguiu a sua interlocutora. - Quando chegares aos aposentos das escravas, já Márcia deverá ter recebido ordens para te castigar severamente por causa da tua preguiça. Após esta repreensão cruel, a patrícia foi ter com o marido e a filha que continuavam a conversar apoiados a uma colunata de mármore. O grupo assim formado era verdadeiramente encantador: pai - Flávio se chamava - de feições duras mas nobres, suavizava o olhar para pousá-lo alternadamente sobre a mulher e a filha; a patrícia - Faustina - numa posição graciosa, estava de pé, com o cotovelo negligentemente apoiado a um pilar que servia de pedestal a uma estátua de Diana; perto dela, Glicéria, com a cabeça pousada sobre o ombro da mãe, sobressaía no meio da verdura e das flores que formavam uma encantadora auréola à sua ingénua e fascinante beleza. Adriana, aquela singular e formosa escrava, contemplava em silêncio este grupo, imagem viva da felicidade; na sua expressão alterada transpareceu mais uma vez aquele ar de amarga tristeza e tortura sombria: mas foi só por momentos que este estado de espírito a dominou: tomando posse de si mesma, fez, com o polegar, uma cruz sobre o peito e, desviando o olhar da visão importuna, pôs-se corajosamente a trabalhar. Quando uns instantes depois Flávio, Faustina e Glicéria desceram ao jardim, a velha escrava que os seguia com a vista, certificando-se de que não podia ser ouvida disse, cheia de compaixão, à sua companheira: - Pobre Adriana, mais uma vez castigada, e tão injustamente! Mas porque não hás-de desculpar-te Porque não dizes que Glicéria te entreteve tantas vezes para satisfazer os seus mil caprichos? - Porque todas as desculpas teriam sido inúteis, minha boa Paulina, e ter-me-iam julgado igualmente digna de castigo se tivesse sacrificado um trabalho de responsabilidade aos caprichos de uma criança. - Faustina arranja sempre tudo para pôr as culpas do teu lado, bem o sei, - prosseguiu Paulina abanando a cabeça; - muito te há-de detestar! Não sou capaz de compreender o motivo por que assim procede e ainda menos adivinhar o da tua extraordinária afeição por uma criança tão caprichosa como é Glicéria; e, afinal, vê como tem um coração duro: bastar-lhe-ia uma só palavra para poupar-te um castigo e no entanto não o fez. Que lhe poderia acontecer se se mostrasse generosa? - Perdão, Paulina, Glicéria não reparou no que disse a mãe; se o tivesse ouvido, teria tido a lealdade bastante para não me deixar acusar injustamente. - Bem sei que não podes ouvir censurá-la; mudemos portanto de assunto, apesar de que te disse estas coisas pelo interesse que tenho por ti. Vejamos agora se posso ajudar-te um pouco: deixo a minha tarefa que está mais adiantada e talvez que as duas juntas sejamos capazes de acabar a tua, antes que anoiteça. - Quanto sois boa, Paulina, quanto vos agradeço!, - disse Adriana enternecida e apertando as mãos da sua companheira; - mas não ireis expor-vos, por minha causa, a qualquer sensaboria? - Não tenhas medo, minha filha; o meu trabalho está quase pronto e além disso não é de grande pressa; Faustina nem dará por isso. E assim a boa Paulina guardou o seu bordado e pôs-se a trabalhar então no da companheira. Durante toda a tarde trabalhando sempre, o silencio apenas era interrompido pelo doce ruído da agulha a correr pela seda; mas, apesar de todo este diligente esforço, as duas escravas não conseguiram terminar a tarefa, que o avançar da noite obrigou a interromper. De regresso aos aposentos das escravas, Adriana tentou ainda continuar o bordado à luz da Lamparina mas, a esta luz incerta e vacilante, os tons da seda confundiam-se de tal maneira que, mesmo com grande esforço, não conseguia distingui-los. Entretanto também recebia ordem de preparar a mesa para a refeição da noite, tudo a contrariando assim para que pudesse terminar a túnica que Faustina desejava. Quando Adriana, em companhia doutra escrava, acabou de servir no declínio Faustina e Glicéria, e enquanto Flávio acompanhava esta última ao quarto de dormir, Faustina chamou-a ao seu aposento. Apesar da sua mágoa e da sua fadiga, teve que ajudar nos seus preparativos da noite a patrícia - patrícia e senhora - que estava de mau humor. Quantas injúrias, sarcasmos e maus tratos suportou a pobre donzela antes de ter o direito de se refugiar nos aposentos destinados às escravas e de gozar, sobre uma cama estreita e dura, um pouco de repouso, feliz apanágio da juventude! - Não te esqueças de que amanhã deves vir com Apolónia e Orfeia ajudar-me a vestir. Não serão demais três pessoas para que possa estar pronta à chegada do imperador. Vais ter muito que fazer porque, além disso, não quero que Glicéria seja desprezada. E a propósito, acabaste a minha túnica? - Não, senhora, apesar de todos os esforços que empreguei. - Está bem. Já sabes o que te espera, vai-te Após estas palavras, com certa dureza pronunciadas, Adriana saiu Lentamente e, ao chegar diante do quarto de Glicéria, parou hesitante; mas não vendo ninguém, nem ouvindo barulho algum, de mansinho afastou o reposteiro e entrou. Um lampadário de alabastro irradiava uma luz suave sobre o leito da criança adormecida; os cabelos louros, espalhados sobre as fofas almofadas, formavam à volta do seu lindo rosto uma auréola dourada; a expressão tranquila e confiante da sua fisionomia mostravam que ignorava ainda as amarguras da vida. O contraste entre ela e Adriana impressionava e despertava interesse. Glicéria, loura, fresca, delicada, de olhos azuis como os da mãe, mas de expressão mais suave, tinha nas suas feições um não sei que de vivo, de atraente e ingénuo que cativava e encantava a alma à primeira vista. A estranha escrava, alta, elegante, de tez pálida, cabelos negros, olhos castanhos, com um olhar profundo e doce, deixava transparecer nas feições, de uma regularidade perfeita, uma expressão de dor íntima que inspirava simpatia a todos que a viam. Adivinhava-se que o seu sorriso devia ter sido gracioso outrora, mas, como poderiam agora sorrir uns lábios que só respiravam tristeza? É que esta criança, de dezoito ou vinte anos apenas, parecia ter já experimentado todas as amarguras da Vida! Ao contemplar o sono tranquilo de Glicéria, uma nuvem passou pela sua fronte branca como o marfim. "Que terá feito esta criança, disse consigo mesma, para ser assim rodeada de amor? e eu...", acrescentou, sem concluir, enquanto uma lágrima lhe rolava pela face pálida: "Mas, o Senhor sabe que, apesar de tudo, não sou ciumenta e que, ao contrário, sou muito vossa amiga, Glicéria. Sim, amo-vos com toda a ternura do meu coração". Esquecendo a sua fadiga, o tempo, que voava, a hora matinal a que devia levantar-se, Adriana conservara-se junto do leito de Glicéria, imóvel, até que um ruído de passos veio arrancá-la repentinamente á sua contemplação; saiu imediatamente, encontrando no vestíbulo uma mulher que, agarrando-lhe bruscamente no braço, lhe disse: - Até que enfim te encontro! Há mais de uma hora que estou à tua espera. Apolónia transmitiu-me a ordem de te castigar por causa da tua preguiça; por que razão não vieste logo que terminaste o teu serviço? Certamente tiveste medo, por isso não te apressaste? Adriana nada respondeu e seguiu a sua companheira. Esta, outrora escrava, alcançara a liberdade e estava agora encarregada de vigiar as escravas na ausência de sua Dama e Senhora, e de castigá-las quando não cumpriam os seus deveres; era pois muito dedicada a Faustina e temida pelos servos que procuravam ganhar a sua simpatia por saberem quanta influência exercia junto dela. Ao chegar aos aposentos das escravas, grande quarto contendo uma dezena de camas, Márcia fez sinal a Adriana para que despisse a túnica, pondo-lhe então uma mordaça rara que os seus gritos não acordassem as companheiras e munindo-se de uma correia estreita, açoitou-lhe barbaramente os ombros até lhos deixar em sangue. Infligido o castigo, Márcia sem a mínima emoção, foi deitar-se no quarto contíguo, enquanto Adriana, toda ensanguentada, se lançava para cima da dura cama, abafando os soluços. 2. Quintília Quem era afinal esta misteriosa escrava, tão afectuosa, tão boa e, apesar disso, tão detestada? Para sabê-lo, recuemos alguns anos atrás. Neste mesmo palácio de Gaeta cujos magníficos jardins, em anfiteatro, descem até ao Golfo azul, nestas mesmas galerias em que vimos Glicéria adormecida, uma mulher nova ainda, bela, nobre e de aspecto grave, embala entre os braços uma encantadora criança de alguns meses que um homem, inclinado sobre ela, contempla ternamente. - Quem serão estes três personagens? - Flávio, Quintilha e sua filha Adriana. A nobre patrícia não consentiu em confiar o seu tesouro a mãos mercenárias: é ela mesma quem alimenta com o seu próprio leite a débil criança. Alguns instantes depois Flávio é arrancado à sua contemplação. Devido à nobreza da sua origem havia sido nomeado primeiro magistrado da cidade, apesar da sua juventude: vêm chamá-lo apressadamente para que vá exercer as altas funções de que fora investido. Quintília entrega então a filha a uma das suas escravas e, saindo da galeria, vai apoiar-se à balaustrada donde pode seguir com o olhar Flávio que se dirige para o Pretório. - Que réus vão ser julgados hoje? - perguntou ela a uma rapariga que atravessa a praça em direcção ao palácio de Justiça. - Sempre estes infames cristãos, nobre senhora. São três, acusados de terem profanado um templo na via romana; vou a correr ao Pretório, pois asseguraram-me que vosso augusto esposo lhes fará rápida justiça. - O quê! - prosseguiu Quintilha indignada, - tendes coragem de assistir a tão impressionante espectáculo. - Podeis, senhora, chamar impressionante espectáculo ao castigo dos inimigos dos nossos deuses e dos nossos imperadores? - Mas que mal fizeram esses cristãos? Não posso compreender quais sejam os seus crimes: respeitam o imperador e, quanto aos deuses, não são estes bastante poderosos para se defenderem, e vingarem por si mesmos os insultos de que são alvo? Quintília exprimira involuntariamente em voz alta os seus pensamentos íntimos, mas calou-se de repente ao ver a sua interlocutora surpreendida e atónita. Quando se encontrou só, a nobre romana ficou por longo espaço de tempo pensativa: batia-lhe fortemente o coração, dir-se-ia que todo o sangue lhe afluía à fronte que agarrava com as duas mãos; .assim permaneceu mergulhada nas suas reflexões, entregue a um violento combate. uma força, uma poderosa atracção a impedia para o local onde estavam a ser julgados aqueles cujo nome, para todos objecto de horror, lhe inspiravam a ela tão profundo Interesse. Que iria ela presenciar? Com certeza um horrível espectáculo; mas, ao menos, poderia esclarecer as suas dúvidas, ouvir formular nitidamente a acusação, saber que argumentos empregavam os cristãos para se defenderem, e ver enfim, com os seus próprios olhos, se os tormentos conseguiriam triunfar dos erros dessa seita ou se deixariam os acusados inabaláveis na sua fé num Deus único. A filha dormia... uma fiel serva vigiava o seu sono... Porque não havia de executar o projecto que tanto a agitava? Que diria Flávio se a soubesse no Pretório? Certamente sentir-se-ia orgulhoso de se ver admirado no exercício da sua função pela sua jovem esposa e, não a amava ele bastante para submeter-se a esta nova espécie de capricho? Quintília sem mais demoras e pondo um véu espesso para não ser reconhecida, dirigiu-se em passo rápido ao Pretório, cujas colunas se elevavam do lado oposto ao Fortim, em frente da habitação de Flávio. Quando aí chegou, já o prefeito estava sentado no tribunal, tendo na sua frente os três acusados: um velho, um adolescente e uma rapariga - quase uma criança ainda. O prefeito, dirigindo-se ao primeiro com uma afabilidade fingida, perguntou-lhe o nome, a idade e a profissão. - Ao nascer, respondeu o velho, recebi o nome de Panfílio, mas, tenho outro bem mais glorioso - O de cristão. Atingirei em breve a idade de sessenta anos mas a minha vida espiritual, infelizmente, conta apenas vinte anos. Finalmente, sou o escravo destes senhores. - Que estás para aí a contar? - perguntou o prefeito com um riso irónico. - Aprende a falar com mais clareza, a fazer-te compreender, se não, ver-me-ei obrigado a arrancar-te a língua. Onde ias tu quando passaste com os teus senhores diante do templo de Vénus, na estrada de Roma? - Acompanhava os meus senhores a casa de uns parentes que possuem uma habitação perto de Gaeta. - E porque tiveste a audácia de profanar o templo de uma das divindades do império, correndo o risco de atrair sobre vós a sua cólera vingadora? Quintília, que observava atentamente os dois jovens, viu aflorar aos seus lábios um sorriso de desdenhosa incredulidade e, coisa estranha, ela própria ficou surpreendida por adivinhar o motivo que o originara e de pensar, como eles, que deuses de mármore e de madeira, tão facilmente reduzidos a bocados, não podiam ser "terríveis divindades". O velho, interrogado pelo prefeito, respondeu: - Apesar de não crermos no poder dos vossos deuses, não era contudo nossa intenção insultar o seu culto, fomos provocados: quiseram arrastar-nos até ao templo, fazer-nos tomar parte nos sacrifícios e nós recusámo-nos. - De que maneira. Com palavras insultuosas para os nossos deuses! - Na verdade são uns tristes deuses esses em nome dos quais cometeis tantos crimes, - murmurou o jovem que até então permanecera silencioso. Logo a seguir, elevando a voz e dirigindo-se ao prefeito, disse: - Essas palavras que qualificais de insultuosas, fui eu que as pronunciei; o meu servo está inocente. Afirmei que o culto que rendeis a Vénus era vergonhoso entre todos e que coraria se visse entrar minha irmã num templo em que se expõe a todos os olhares a imagem do vício. Apesar destas palavras obrigaram-nos a transpor à força as portas do templo; então, quebrei a estátua da vossa deusa infame, para que os olhos de minha irmã se não manchassem ao vê-la. Ao ouvir tão enérgica declaração, o escravo lançou sobre o seu senhor um olhar inquieto, enquanto o prefeito, pálido de cólera, se continha a custo. Quintília ficou espantada ao ver a expressão dura e rancorosa daquele olhar que sempre conhecera tão cheio de ternura e carinho. - Por agora não te dou resposta, insolente, - disse Flávio com uma voz fremente de cólera. - Chegará a tua vez quando acabar de interrogar o teu escravo. O interrogatório de Panfílio durou ainda muito tempo; o velho confessou desassombradamente a sua fé, declarando estar pronto a afirmá-la com o seu sangue. Querendo torná-lo responsável de uma sedução contra o imperador bem como de ter ultrajado os deuses, o prefeito procurava pô-lo em contradição consigo mesmo; porém, toda a habilidade das suas perguntas insidiosas não conseguiu fazer cair na cilada o generoso confessor da fé. Panfílio não se cansava de repetir que era um dos mais humildes e mais fiéis súbditos do imperador ao qual estava pronto a obedecer em tudo o que não fosse contrário à lei de Deus e, para afirmar esta submissão, buscava-se nas próprias palavras de Cristo: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Encolerizado, o prefeito mandou então estendê-lo sobre o cavalete. Durante uma hora, que lhe pareceu um século, Quintília, imóvel e petrificada, contemplou a tortura do corajoso velho que dos seus lábios não deixou escapar outras palavras que não fossem a heróica confissão da sua fé e o brado da sua alma para esse Deus, amparo da sua fraqueza. - Sou cristão! Sou cristão! - repetia. - O Deus, vinde em meu auxílio! Senhor, apressai-vos a socorrer-me! Os dois cristãos, de pé, longe dele e, além disso, impossibilitados de suavizar os seus sofrimentos animavam-no com gestos e palavras. A admiração de Quintília alimentava ao vê-los tão preocupados com o escravo, esquecidos da sorte que os esperava. A firmeza da donzela, débil criança de quinze anos apenas, causava-lhe um misto de admiração e de espanto. Nada conseguiu abalar a constância de Panfílio e, quando despedaçado pela tortura e escorrendo em sangue, o tiraram do cavalete para ser reconduzido á prisão, o intrépido confessor repetia em voz alta e vibrante: - Sou cristão! Sou cristão! Tanto o prefeito como os carrascos estavam cansados e o perfeito declarou então que, para dar aos outros acusados o tempo de reflectir, transferia para o dia seguinte o seu interrogatório e a sentença definitiva. A multidão, que esperava em vão, dispersou-se lentamente. "Hei-de voltar amanhã", disse consigo mesma Quintília enquanto regressava apressadamente ao pátio, onde chegou antes do marido. Teve tempo de refazer-se da sua emoção, conseguindo ir ao encontro de Flávio com uma expressão quase calma e serena; porém, não pôde deixar de empalidecer quando o prefeito, inclinando-se para Adriana, a tomou nos seus braços para melhor poder beijar o rosto terno e doce da filha. Tinha vontade de arrancar aquele ser inocente dos braços desse homem a quem o seu coração há pouco ainda dedicava tão terna afeição, mas que agora só lhe inspirava uma espécie de terror. Via-o nesse momento, e vê-lo-ia sempre, com as mãos tintas do sangue daqueles pobres cristãos, tão firmes, tão corajosos na sua opinião, tão inocentes! No dia seguinte a patrícia voltou ao Pretório. Ouviu Délio e sua irmã Délia confessarem o seu Deus crucificado. Foi com o rosto vermelho de vergonha que ouviu o jovem chamar publicamente infame ao culto de Vénus e sentiu-se confusa por ter assistido tantas vezes as estas cerimónias impuras. Quintília viu ainda os jovens mártires animarem-se um ao outro, sorrirem-se no meio dos tormentos; o irmão suster a fraqueza da irmã: esta, reconfortar o irmão com palavras repassadas de uma afeição quase maternal. Viu o escravo dedicado unido aos seus queridos senhores para o combate supremo e tornado seu igual por uma fé comum e um comum sacrifício. Teve a intuição da sublime igualdade do cristianismo e por isso dos seus olhos brotaram lágrimas de enternecimento quando os dois patrícios, aproximando-se pela última vez do ancião, apoiaram os lábios sobre as faces visitadas do escravo, inundando-as de lágrimas de alegria. Foi este o seu último adeus nesta vida. Conduzidos separadamente ao local do suplício, o escravo foi morto à chicotada e os jovens patrícios, graças ao sangue nobre que lhes corria nas veias, sucumbiram sob o machado do carrasco. Desde esse dia Quintília ficou sendo cristã de coração - Deus ia conceder-lhe a graça de poder usar este glorioso nome. Absorvida inteiramente na visão dos mártires, a Romana permanecera alheia a qualquer outra preocupação. Os sentimentos diversos que agitavam a sua alma e se manifestavam no seu semblante expressivo, haviam sido observados por um ancião que se encontrava perto dela no Pretório. Esse homem era não somente um cristão mas, ainda mais - um sacerdote; pela agitação de Quintilha adivinhara que o seu coração, tão profundamente comovido, em breve pertenceria a Deus: o sangue dos mártires, regando-o como terra fecunda, ia fazendo germinar nele o desejo de fé que consola e salva. Conhecendo de vista e de nome a esposa do prefeito (em Gaeta dizia-se que tinha tanto de bondade como de beleza), fez todo o possível por vê-la, falar-lhe e tornar fácil na sua alma a acção da graça. Tal empresa não era das mais fáceis: o venerável ancião, que nada receava por si, temia expor a nobre senhora à cólera do marido antes que ela tivesse a alma forte para os combates da fé. Entretanto, para ver Quintilha, instrui-la e oferecer-lhe o apoio dos seus conhecimentos no novo caminho que ia trilhar, Justiniano escolheu a ocasião em que Flávio havia sido chamado a Roma pelo imperador, que o contava entre o número dos seus favoritos. A jovem patrícia, que sentia já a sua alma agitada pela luta entre a verdade e o erro, acolheu com entusiasmo este auxílio inesperado. No seu desejo insaciável de conhecer a verdade aplicou a sua nobre inteligência e recto juízo ao estudo da Sagrada Escritura que Justiniano pusera à sua disposição. Bem depressa adquiriu a certeza de que não cedera a uma ilusão do espírito ou do coração mas de que esta religião, para a qual se sentia atraída por uma força invencível, era a dica verdadeira - a religião anunciada em todos os séculos pelos Profetas e pelas Sibilas - como o único caminho da salvação. Comovido com o ardente desejo que manifesta a nobre catecúmena de abraçar a religião de Cristo, e vencido pelas suas extraordinárias disposições, Justiniano julgou conveniente abreviar-lhe o tempo de prova. Na véspera do dia em que Flávio devia voltar a Gaeta, a água regeneradora do baptismo banhou a fronte de Quintília e da pequenina Adriana. A inocente criança não compreendia certamente o solene compromisso que a mãe tomava em seu nome, mas esta confiava a Deus o cuidado de imprimir na alma da filha o carácter indelével dos eleitos. Cheia de confiança só pensava numa coisa: implorar ardentemente de Deus a conversão do marido. Já não sentia por ele aquela repulsa que a sua crueldade para com os cristãos lhe inspirara primeiramente. Não são os desígnios de Deus impenetráveis, e não perseguira Saulo os discípulos de Cristo antes de ser fulminado pela mão divina no caminho de Damasco? Mais que nunca rodeou Flávio de ternos cuidados, das mais delicadas atenções do seu coração, repleto de uma inalterável afeição, não cessando de amá-lo e de orar a sós por ele. 3. CRISTÃ Adriana tinha perto de seis anos. Era uma criança precocemente desenvolvida, viva, inteligente, quase séria demais para a sua idade e de uma extraordinária firmeza de carácter. A mãe, compreendendo como seria funesta para a sua alma de criança uma orientação, seguia-a com desvelada ternura. Ela própria a instruía, ensinando-lhe os elementos da única verdadeira ciência - os dogmas fundamentais do cristianismo e, acima de tudo, essa caridade sublime que esquece e perdoa a injúria. A criança escutava atentamente os ensinamentos maternos. As ausências frequentes do prefeito permitiam a Quintília cumprir sem grande dificuldade a sua nobre e agradável missão. Via-se muitas vezes mãe e filha na galeria de plantas raras, à sombra das árvores ou seus aposentos, a primeira ocupada nalgum trabalho artístico que todavia a não absorvia inteiramente, a segunda brincando ao pé dela ou então sentada sobre os joelhos maternos, ouvindo com interesse narrativas acerca das maravilhas de Deus. Desgraçadamente foi a sua boca inocente que, involuntariamente, descobriu o segredo da mãe, atraindo sobre ela, e sobre si mesma, a terrível tempestade que para sempre iria aniquilar as suas vidas. Uma noite, tendo entrado no quarto de Quintília no momento em que Adriana ia deitar-se, Flávio aproximou-se do leito da criança e colocou-a sobre os joelhos para melhor gozar das suas ingenuidades. Quando o pai quis levá-la de novo para a cama, Adriana disse-lhe na sua candura: - Querido pai, levai-me primeiro à minha mãe para ela me ensinar a fazer a minha oração da noite. - A tua oração? - prosseguiu o patrício encantado. - Eis uma criança zelosa pelo culto dos deuses. Pois bem, serei eu quem te ajudará a fazer a tua oração, minha filha. Quem desejas invocar esta noite: o poderoso Júpiter ou a divina Piara? - Pai, não sei de quem falais, - respondeu Adriana abanando a cabeça com um gracioso sorriso; - as palavras da minha oração não se parecem com esses nomes. - Então di-las tu mesma. - Talvez não seja capaz de dizê-las bem. Quintília, que presenciara de longe esta conversa, empalidecera de repente, fazendo instintivamente um movimento para intervir, mas conteve-se logo e, inclinando a cabeça, murmurou em voz baixa: "Que a vossa vontade seja feita, meu Deus!" Entretanto a criança tomava uma atitude de recolhimento e, uns momentos depois, a sua voz doce e cristalina, ligeiramente hesitante, o que a tornava mais atraente ainda, ressoava no silêncio do quarto: - Pai-nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém. As primeiras palavras escutou-as Flávio distraídamente; porém, pouco a pouco, ia redobrando de atenção e finalmente, levantando bruscamente a cabeça, parecia querer encontrar dentro de si mesmo uma reminiscência que as palavras da filha acabavam de evocar. Onde teria ele ouvido já essa fórmula estranha? De repente o seu olhar tornou-se sombrio e severo, fixando-se em Quintília que de pé, imóvel e pálida, esperava o desfecho da tragédia. Quando Adriana acabou a sua oração, Flávio pô-la bruscamente no chão e, dirigindo-se à esposa, disse-lhe com uma calma que o movimento agitado dos seus lábios e o nervosismo com que apertava os pulsos finos de Quintilha desmentiam facilmente: - Fostes vós quem ensinou esta oração à vossa filha? - Fui, - respondeu Quintília com doçura. - É uma oração dos cristãos; muitas vezes lhes ouvi recitá-la; sabei-la? - Sim, sei-a. - E compartilhais os seus erros? Acaso sois cristã? - Vós o dissestes. Flávio: a fé deles é a minha fé - sou cristã! - E desde quando renegastes o culto dos nossos deuses para abraçar estas superstições infames? - Sou cristã desde o dia em que, perante o vosso tribunal, três mártires, por vós condenados, aniquilaram o poder dos vossos deuses e as acusações de que era alvo a sua santa religião. Esta calma e enérgica resposta revelava a Flávio que, desde há muito, dentro do seu próprio palácio, sua mulher, menosprezando as ordens do imperador e as suas ameaças pessoais, se tornara cristã. Era forte demais. Ébrio de raiva, o prefeito esbofeteou brutalmente a mulher que, poucos momentos antes, rodeava de atenções e de afecto; chamou-lhe os nomes mais vis, dirigiu-lhe as injúrias mais grosseiras, e tudo isto sem se importar com a presença de Adriana que, escondida num canto da sala, acompanhava esta cena com gritos e lágrimas. Porém, ao ver cair a mãe sem forças aos pés do seu verdugo que continuava, apesar disso, a insultá-la e a bater-lhe, Adriana, movida pelo amor filial e triunfando de todo o medo, avançou, rugindo como um pequenino leão, e, de punhos cerrados, empurrava e quase batia no pai. à custa de muito esforço conseguiu meter-se entre ele e a sua vítima. Perante a débil criaturinha que se perfilava na sua frente, pálida e a tremer, Flávio recuou, envergonhado de se ter deixado levar pela ira; porém, de repente, as suas ideias mudaram. Essa criança, apesar de instintivamente, não deixava por isso de ser uma rebelde como a mãe... O fanatismo, e mais ainda a ambição, fizeram calar a voz do sangue; um pensamento diabólico atravessou o seu espírito. Quintília, bem o sabia, não receava os maus tratos: jamais o sofrimento físico conseguiria triunfar da sua resistência. O patrício conhecia bem demais a sua nobre esposa para ignorar que, sob a sua doçura inalterável, se escondia uma energia fora do vulgar; conhecia também os tesouros de ternura encerrados no seu coração; encontrara pois o meio de torturá-la: faria sofrer o seu coração de esposa e de mãe e, pelos atrozes tormentos infligidos a esse coração, constrangê-la-ia a ceder. Os cidadãos romanos, como é sabido, eram senhores absolutos da sua família sobre a qual a lei lhes concedia o direito de vida ou de morte. Flávio apresentou então a Quintília o seguinte dilema: renunciar no espaço de oito dias à religião cristã ou então, depois de ter pedido ao imperador o governo de uma das províncias mais longínquas do império, levá-la-ia para lá e aí, desconhecida de todos, seria reduzida à condição de escrava e, além disso, para cúmulo do tormento, escolheria nova esposa entre as jovens patrícias da província. - Poderei ao menos levar comigo a minha filha? - perguntou Quintília. Flávio reflectiu um instante. - Por enquanto não: talvez possais tornar a vê-la mais tarde. Os oito dias que se seguiram a esta pungente cena foram para Quintilha um martírio antecipado. Não é possível descrever-se a violência da luta que a patrícia teve de travar contra os mais ternos sentimentos do seu coração! Apesar de tudo saiu vitoriosa desta luta, ainda que fisicamente extenuada, com o rosto macerado, os cabelos brancos, o coração despedaçado. Flávio obteve com facilidade a importante prefeitura da Istria. Na véspera da partida, Quintília, antes de adormecer pela última vez a sua querida filha, fez-lhe ingerir algumas gotas de um narcótico cujo efeito esperou impacientemente. Logo que viu a filha a dormir, pegou-lhe na mão, picou-a ligeiramente com um alfinete de ouro, sem que o seu sono profundo se alterasse. Então Quintília, munindo-se do sinal sagrado que fortifica os fracos, aqueceu, à chama de uma lamparina, uma cruzinha de couro que sempre costumava usar depois, afastando com a mão trémula a camisa que cobria o peito da criança adormecida, aplicou-lhe o crucifixo que devia imprimir nele a sua imagem. A expressão de Adriana não reflectiu a mais pequena alteração quando, na sua carne queimada em contacto com o ar, se formaram umas pequenas bolhas transparentes. Quintília picou-as ligeiramente aplicando sobre a queima dura um unguento refrigerante; quando, no dia seguinte, a criança acordou, uma cicatriz escura, em forma de cruz, havia deixado sobre o seu peito uma marca indelével. "Façam o que fizerem, murmurou a pobre mãe, poderei sempre reconhecer a minha filha, se Deus permitir que torne a vê-la". 4. VIDA NOVA E SEGUNDAS NÚPCIAS Ao chegar a Istria, Flávio instalou com o maior luxo a sua habitação; comprou grande número de escravos visto ter trazido apenas uma escrava da Itália: Quintília... E travou logo relações com a sociedade elegante do país, começando a frequentar todas as reuniões mundanas e todas as festas. Depressa se tornou popular: era procurado pelas melhores famílias e por elas acolhido entusiasticamente. como era rico, poderoso, de aspecto atraente ainda novo, sem dificuldade alcançou a mão de Faustina, a filha do mais nobre patrício da cidade. Tinha Faustina dezasseis ou dezassete anos. A sua rara beleza, comparável à flor ainda em botão, ia tornar-se deslumbrante ao desabrochar. Flávio, que a desposara menos por amor que pelo seu ódio a Quintília, ia sendo pouco a pouco, sem dar por isso, fascinado por essa mulher hipócrita e astuciosa que não tardou em captar inteiramente o espírito e o coração do marido, tornado escravo dos seus caprichos. A felicidade de Flávio atingiu o auge quando Veio ao mundo um pequenino ente, Glicéria, com a qual travámos conhecimento no começo desta narrativa. Não viria o remorso agitar a sua alma quando, diante de si, se desenhava o rosto pálido de Quintília ou a imagem da pequenina Adriana, entregue, em Roma, a mãos mercenárias? Não sentiria ele pena alguma ao pensar na ordem bárbara que dera para que a filha, destinada como a mãe à vergonhosa condição de escrava, fosse educada com dureza? Quem poderia sabê-lo? Todavia, se o remorso vinha fustigar essa consciência culpada, ele sabia afastar tais recordações importunas e, concentrando toda a sua afeição na segunda esposa e na filha, fazia por esquecer todo o resto. Quem poderia igualmente avaliar o abismo de cor em que estava mergulhada dia a dia a alma de Quintilha? Quem poderia compreender toda a crueldade do seu martírio contínuo? Faustina notara a estranha lividez do rosto da escrava sempre que algum castigo, algum sarcasmo ou uma alusão ofensiva lhe vinha da parte de Flávio; por uma extraordinária intuição suspeitara da existência de um mistério entre aquela e o marido; por isso, não deixou este em descanso enquanto ele não lhe revelou tudo. Desde então o seu ódio instintivo a Quintília aumentou desmedidamente, não havendo maus tratos, humilhações de toda a sorte que lhe não fizesse suportar. Levou mesmo a sua crueldade ao ponto de fazer parada da sua felicidade de esposa e de mãe diante daquela pobre criatura tão injustamente privada da menor consolação. Mas, todas estas torturas não eram nada comparadas à angústia que despedaçava o coração de Quintília quando perguntava a si mesma o que seria feito da sua pobre Adriana. Um dia ousou interrogar Flávio sobre este assunto; a resposta foi brutal: "Aprende a servir e a adorar os deuses do império", Foi tudo quanto conseguiu saber, e semelhantes palavras não eram de molde a tranquilizá-la. Entretanto o ódio sugeria a Faustina a ideia de um novo suplício que ia, com facilidade, obter a aprovação do marido; uma noite que passeavam juntos à beira do Adriático, pergunta de repente a Flávio: - Qual é o golfo mais bonito, este ou o de Gaeta? - O de Gaeta é mil vezes mais belo! - exclamou Flávio, que, tendo um amor apaixonado ao seu país, Como todos os italianos, começou a descrever a Faustina, numa linguagem viva e poética, as belezas maravilhosas do seu palácio de Gaeta, com os seus terraços cobertos de flores, dominando o golfo cuja água, azul durante o dia, é fosforescente durante a noite, o encanto incomparável daqueles campos ricos e férteis, chamados o jardim da Itália. - Oh! Quanto daria para conhecê-los, - prosseguiu Faustina com entusiasmo. - E não tendes saudades do vosso país? Nunca sentistes o desejo de tornar a vê-lo? Quanto a mim, considero-o como minha pátria de eleição e desejava visitá-lo quanto antes. - Será possível..... Mas convirá aquele clima abrasador ao vosso temperamento e beleza delicada? - Não receeis: sou uma flor de estufa quente; sinto-me definhar neste clima glacial. Flávio não insistiu mais, mas permaneceu hesitante. Nunca a ideia de semelhante regresso lhe viera à mente; seria ele capaz de suportar o peso das recordações que o esperava na sua terra natal? Faustina, com a sua astúcia, delicadamente e sem precipitação, deu-lhe a entender que compreendia como devia ser doloroso para ele o regresso aos lugares que outrora haviam sido testemunhas da sua felicidade. - Bem sei, - acrescentou com uma tristeza fingida, - que nem a minha presença bastaria para fazer-vos esquecer um passado do qual tudo falaria à vossa volta. - Peço-vos que não faleis assim, minha querida Faustina, - exclamou Flávio. - Bem sabeis que sois tudo para mim! Que recordações podeis temer? Já que esta viagem vos agrada, pedirei ao imperador a autorização de voltar para a prefeitura de Gaeta e, logo que receber dele uma resposta, que certamente favorável, partiremos. Estais contente? - Se estou! Sinto-me felicíssima, - exclamou. - Depois de uns momentos de silêncio, Faustina prosseguiu, não sem alguma hesitação: - Dizei-me, Flávio, onde está a filha desta escrava... de Quintília? - Porque me perguntais isto, Faustina?, - continuou o patrício, olhando para ela surpreendido. - Já vo-lo explico: Glicéria tem quase sete anos, começa a aborrecer-se de brincar só, precisava de alguém que lhe fizesse companhia; queria pôr ao seu serviço uma escrava ainda criança que se encarregasse de distraí-la e pensei que talvez Adriana estivesse apta para isso. - Mas... Quintília?... - Certamente vai reconhecer a filha; mas basta que lhe imponhais silêncio absoluto e que a ameaceis de fazer atrair sobre Adriana a vossa ira se ela se der a conhecer. Bem suponho que Quintília não poderá ficar contente ao ver a filha, patrícia de nascimento, reduzida, no seu próprio palácio, à condição de escrava... mas suponho também que certamente não tendes empenho em ser-lhe agradável?... A esta pergunta insidiosa Flávio fixou o olhar sobre Faustina: os olhos desta cintilavam de ódio e a sua boca entreaberta mostrava duas filas de dentes que pareciam estar prontos a morder e despedaçar. Um só olhar bastou para que os dois se compreendessem. - A criança, - disse Flávio, - está em Roma em casa de um dos seus antigos servos. Julgo que não deverá ter sido tratada com meiguices, mas sim educada segundo a sua condição de escrava. - Como sabeis, tenho uma verdadeira paixão pelos bordados artísticos; por isso, tenciono mandar ensinar este trabalho a Adriana; a minha ama, Márcia, e Paulina, tão hábeis nesta arte, estão já velhas mas poderão ser as suas mestras e assim a filha de Quintília ficará sempre sob a minha direcção imediata. Logo no dia seguinte Flávio enviou dois mensageiros ao imperador, os quais, cheios de diligência, regressaram dentro de curto espaço de tempo, trazendo-lhe uma resposta favorável. Não somente o César romano autorizava o seu caro Flávio a regressar à Itália, mas sentia grande prazer em ter ensejo de conhecer a sua nova esposa cuja fama de beleza chegara já até Roma, levada sobre as asas de Mercúrio. Começaram logo os preparativos de viagem; Quintília só a muito custo conseguiu dissimular a alegria que lhe causava o regresso à sua terra natal; numas breves palavras que com ela trocara, Flávio havia-lhe declarado que ela ia tornar a ver a filha, porém, sob pena de ser a causa da desgraça desta, não deveria revelar a ninguém os laços que as Uniam. Quintilha consentiu: certamente a filha não a reconheceria, jamais lhe daria o nome tão doce de mãe; mas ela, no seu coração, chamar-lhe-ia a cada instante filha, poderia vê-la, comprazer-se-ia em contemplá-la, gozaria a sós da sua inteligência e dos seus progressos. Como devia ter crescido a sua querida Adriana! Mas... ó tortura!, não poderia abraçá-la, estreitá-la ternamente contra o seu peito... de noite, porém, quando tudo estivesse mergulhado no sono, iria contemplá-la e imprimir na sua fronte um beijo furtivo. Tudo isto era para Quintilha uma tal perspectiva de felicidade que perguntava a si mesma se poderia suportá-la sem morrer de alegria; todavia um pensamento doloroso veio logo, como um dardo afiado, traspassar o seu coração. Que seria feito da religião da filha? Quintilha sentiu-se na obrigação de cumprir os seus deveres de mãe... como consegui-lo? Ignorava-o ainda; mas a sua ternura de mãe e de cristã sugerir-lhe-ia um meio. Cheia de confiança em Deus, tranquilizou-se, preparando-se na calma, para não se trair por uma alegria excessiva, ao ver pela primeira vez a sua filha querida. A travessia fez-se sem nenhum incidente; quando as costas da Itália despontaram ao longe, Flávio e a esposa subiram à ponte da sua galera para saudar o porto em que iam desembarcar, permanecendo aí uns instantes. Graças ao número sobresselente de cavalos que, segundo as ordens recebidas, estavam preparados em cada estação de posta para os viajantes, estes chegaram em pouco tempo a Roma. Nesse mesmo dia Faustina foi apresentada ao imperador que a acolheu com grandes honras e, encantado com a sua beleza, proclamou-a rainha das patrícias da grande capital do império. Uma vez instalado na sua habitação, Flávio enviou um dos seus servos procurar Adriana, com ordem de trazê-la; nessa mesma noite a criança ou, para melhor dizer, a donzela, visto que tinha já quase catorze anos, transpôs os umbrais do luxuoso palácio onde era esperada por Flávio. A mulher que a acompanhava, e à qual havia sido confiada a sua educação, foi a primeira a entrar; Adriana, escondida num canto do vestíbulo, esperava o momento de se apresentar, por sua vez, diante do patrício. Interrogada por Flávio e Faustina, a mestra de Adriana contou-lhes que, ao separar-se da mãe, a criança caíra primeiramente em tão profundo abatimento que a sua vida estivera em perigo; esta grande dor foi calmando pouco a pouco mas, para dar lugar a uma melancolia que nada conseguia afastar, o que, todavia, não impedia Adriana de cumprir os seus deveres quotidianos por mais duros que fossem; prestava-se generosamente aos trabalhos mais penosos, porém jamais a sombra de um sorriso se esboçava nos seus lábios de criança. - E as suas práticas supersticiosas? Suponho que as terá esquecido, - disse Flávio, - tanto mais que vos fiz, a este respeito, recomendações especiais. Abanando a cabeça, a mulher respondeu: - Apesar de todos os esforços que empregámos para impedi-la de praticá-las, todas as manhãs e todas as noites recitava, de joelhos, a mesma oração. Tentámos todos os meios; porém, nem ameaças, nem súplicas, nem castigos puderam vencer a sua obstinação: não recalcitra, nem resiste, mas, logo que se encontra livre, volta às suas práticas cristãs sem mesmo procurar esconder-se. - Herdou o carácter indomável da mãe, - murmurou Flávio; - mandai-a entrar. A mulher levantou o reposteiro que separáva o aposento do vestíbulo; ia para chamar mas, pondo um dedo na boca, voltou-se para os patrícios, fazendo-lhes sinal para que se aproximassem de mansinho. Adriana e Glicéria, ajoelhadas no mármore, jogavam aos ganizes e, a sua alegre tagarelice, era acompanhada pelas gargalhadas de Glicéria que, tendo ouvido dizer que lhe iam dar uma companheira, esperava impacientemente a sua chegada; ao ver Adriana só no vestíbulo, viera ao seu encontro com aquela franqueza própria das crianças habituadas a ver satisfeitos todos os seus caprichos. Adriana, com uma seriedade superior à sua idade, sorrira condescendentemente perante a vivacidade da encantadora menina; depois, Glicéria convidou-a para jogar e ela julgou-se na obrigação de lhe mostrar o jogo dos ganizes no qual era exímia. O espírito vivo e a agilidade dos dedos de Glicéria depressa se exercitaram neste jogo e agora, mestra e discípula, combatiam com igual força. Ainda mais: as duas crianças chamavam-se já pelos seus nomes e falavam confiadamente uma com a outra. - É curioso, - disse a mestra da primeira filha de Flávio, - que Adriana confraternize assim com Glicéria, ela que só contrafeita tomava parte nos jogos das crianças da vizinhança. Falava-lhes amavelmente, era o árbitro da paz nas suas disputas, mas só à força brincava com elas. - Adriana, - dizia naquele momento Glicéria, - a tua voz é tão doce, deves cantar muito bem! Canta alguma coisa para eu ouvir, peço-te. - Só sei canções tristes, - respondeu a escrava: - não quero fazer-vos chorar, querida Glicéria, sois tão alegre! - Vem cá, pequena, - disse a voz áspera de Faustina. - Fica sabendo de uma vez para sempre que Glicéria é de sangue nobre; terás que curvar-te diante de todos os seus caprichos, abstendo-te ao mesmo tempo de uma familiaridade que não pode existir entre uma patrícia e uma escrava. Ao ouvir estas palavras, Adriana lançou sobre a jovem patrícia um olhar límpido e perscrutador; os seus lábios entreabriram-se, fechando-se imediatamente como para impedir a resposta que ia sair-lhe; baixou a cabeça e permaneceu silenciosa. A sensitiva concentrou-se em si mesma e desde então, fossem quais fossem as expansões de Glicéria, esta encontrou Adriana sempre amável, mas já não com aquele ingénuo abandono dos primeiros momentos. Adriana, segundo as ordens de Faustina, entrou no aposento de Flávio que se tinha retirado num canto para não lhe falar, enquanto aquela lhe explicava as múltiplas ocupações a que ia destiná-la. A escrava não havia reparado no patrício quando este, ao ver tropeçar Glicéria numa almofada, se precipitou para ampará-la. Adriana acorreu por seu turno, o que fez com que se encontrassem face a face. Ao cruzar o seu olhar com o do pai, estremeceu, tornando-se extremamente pálida; como era quase noite, Flávio ficou na dúvida de ter sido reconhecido. De resto, nada mais que súbito compadecer de Adriana deixou transparecer a sua emoção: sem hesitar respondeu às perguntas do patrício que, para prová-la, lhe deu ordem de pegar numa bacia de água morna perfumada e de a segurar enquanto ele lavava as mãos. Ela obedeceu com uma tranquilidade imperturbável e, diante do pai, de olhos baixos, segurou a bacia sem se mostrar cansada. Quando, terminadas as abluções, Adriana se retirou, o patrício seguiu-a com o olhar. - Criança extraordinária! - exclamou perturbado, saindo em seguida. Depois de uma breve estada em Roma, durante a qual Faustina teve tempo de visitar as principais maravilhas da cidade imperial, toda a família partiu para Gaeta onde haviam chegado já os escravos encarregados de preparar o palácio. Apenas Adriana ficará só com os seus senhores, graças ao seu serviço especial junto de Glicéria. Quintília não havia ainda conseguido ver a filha. 5. MÃE E FILHA Quando Quintília chegou ao palácio que lhe tinha pertencido, cumpriu simples e corajosamente, juntamente com os outros escravos, os trabalhos que lhe haviam sido destinados. Assim fazia exteriormente, mas quem poderia supor a luta travada na sua alma?... O seu pensamento andava alheio: esperava a filha, O ruído de qualquer carro fazia palpitar o seu coração: seria Flávio que regressava e com ele a sua Adriana? Oito dias se passaram nesta expectativa. Finalmente, chegaram os viajantes; foi naquela mesma galeria, testemunha da sua felicidade, que a mãe e a filha se encontraram. Quintília de há muito se vinha preparando para aquele emocionante encontro e, contudo, quando a porta do peristilo se abriu e viu aparecer a filha na penumbra daquela tarde de inverno, o seu coração bateu com violência e a altiva romana esteve prestes a desfalecer. Pálida, de lábios cerrados, para poder conter o brado do amor materno, agarrando-se com as duas mãos à balaustrada de mármore, com receio de avançar para a filha estremecida, Quintília devorava-a com os olhos; depois, receando ser traída pela expressão do seu olhar, baixou as pálpebras fixando os mosaicos do pavimento. O seu coração estava simultaneamente inundado de uma alegria imensa e martirizado por uma dor não menos profunda. Tornava a ver enfim junto de si a sua querida filha tão linda e pura no desabrochar da adolescência! Este encontro enchia- a de consolação. Mas, era-lhe interdito a ela, patrícia transformada em escrava, estreitar nos seus braços esse ente querido e dizer-lhe: "Sou a tua mãe". Sabia-a reduzida à mais humilde das condições, iria ser testemunha das suas penas, das suas lágrimas e não poderia consolá-la jamais! Enquanto Quintília, repassada de amargura, assim pensava, Flávio aproximou-se dela. - Queres, - murmurou o nobre romano, - renunciar aos teus erros?... Proclamarei Adriana irmã de Glicéria, restituir-lhe-ei o seu nome, a sua condição e mandar-vos-ei viver as duas juntas nos meus vastos domínios da úmbria. A mãe fechou os olhos e estremeceu, porém, a cristã, recuperando a sua energia, respondeu: - A palavra que esperais, Flávio, jamais vo-la direi! - A vossa filha ficar-vos-á devendo a desgraça da sua vida, continuou o prefeito. - Não digais isso, - replicou com ardor a infeliz. - Deus, na sua bondade, permitirá que ela me perdoe tê-la feito escrava e que o meu sofrimento lhe mereça uma felicidade eterna. Flávio, querendo dissimular a sua comoção, voltou-se. Faustina estava a seu lado e também seguia Adriana com um olhar investigador. - Estou convencida de que reconheceu a mãe, - disse para o esposo, - todavia o seu rosto não traiu o mais leve sinal de emoção nem os seus olhos exprimiram a menor curiosidade; somente notei a insistência com que se fixaram sobre Quintília. Os dois esposos afastaram-se, saboreando a sua vingança. Ao encontrar-se só na vasta galeria, Adriana aproximou-se da balaustrada de mármore donde sua mãe acabava de sair e, pousando os lábios no lugar em que Quintília pousara as mãos, cobriu-o de beijos apaixonados de amor filial ao mesmo tempo que o seu coração parecia estalar de dor. Ia já avançada a manhã quando, no dia seguinte, Faustina, refeita da fadiga da viagem, saiu dos seus sumptuosos aposentos. Márcia, segundo o costume, ajudou a sua senhora a vestir-se. Várias vezes no decorrer da conversa a patrícia e a escrava pronunciaram o nome de Adriana: - És uma grande observadora, - disse Faustina ao terminar, - traz à minha presença esse ente estranho. Alguns instantes depois apareceu Adriana nos ricos aposentos e, sem receio nenhum, fixou o seu olhar límpido no rosto da patrícia. - Aproxima-te, - disse-lhe com uma doçura desacostumada. - Escuta-me e responde-me francamente: és cristã? A fisionomia da donzela tomou uma expressão de tão ingénuo espanto que Faustina, achando inútil esperar a sua resposta, continuou bondosamente: - Disseram-me que te entregavas a práticas supersticiosas contrárias à religião dos nossos divinos imperadores, que recitavas as orações dos cristãos... Compreendo que não saibas o que fazes e ser-te-á fácil renunciar aos teus erros. Adriana abanou a cabeça e uma resolução repentina fez brilhar os seus olhos. - Certamente quereis falar da minha oração? - disse num tom submisso, mas firme. - Jamais deixarei de recitá-la. - Pensa bem no que dizes, Adriana. - Minha mãe ensinou-ma quando era ainda pequenina, foi a única recordação que, por muito tempo, pude conservar dela. Ninguém poderá roubar-ma. - Mas não compreendes que és rebelde aos edictos do imperador? - insistiu Faustina a quem esta resistência inesperada exasperava. - Só uma coisa sei, - respondeu a escrava, - é que minha mãe me falava muitas vezes de um Deus infinitamente bom e poderoso que morreu para salvar-nos. Creio n'Ele, espero n'Ele e amo-O de todo o meu coração. Se isto é ser cristã, eu sou-o. A patrícia, batendo o pé encolerizada, prosseguiu: - Esqueces tu, insensata, que os cristãos são perseguidos e podem ser entregues aos mais terríveis tormentos? Minha mãe contava-me que assistira ao suplício e à morte de dois jovens nobres de Gaeta que foram decapitados por amor a Cristo. - Sim, porque, como dizes, eram de sangue nobre; mas, sabes tu a sorte que te esperaria a ti, escrava, e filha de escrava? Adriana ia interromper Faustina mas, dominando-se, conseguiu conter a sua indignação que apenas manifestou por um ligeiro rubor. - Tu, como escrava, - prosseguiu a patrícia, - serias morta à chicotada. Fica sabendo que, se persistires na tua impiedade, posso denunciar-te a Flávio, entregar-te à sua justiça... - Fazei como quiserdes, senhora, - respondeu docemente a jovem escrava, - mas nunca renunciarei à minha religião: o Deus pelo qual sofrerei ajudará a minha fraqueza. - Está bem, - concluiu a orgulhosa patrícia, franzindo o sobrolho. - Podes agradecer ao teu Cristo a minha resolução de te conservar por muito tempo junto de mim. Terás salva a vida, mas não esperes perdão e misericórdia da minha parte. Farei castigar as tuas faltas mais leves, até que a tua obstinação seja vencida. "Márcia, leva-a daqui para que seja castigada por me ter resistido tão insolentemente". Enquanto Faustina pronunciava estas palavras, o reposteiro entreabriu-se aparecendo à porta o rosto expressivo de Glicéria que, entristecida pelas cruéis palavras que acabava de ouvir, correu para Adriana pegando-lhe na mão; e virando-se para a mãe, disse-lhe por entre lágrimas: - Que fez ela para merecer tão duro castigo? Querida mãe, perdoai-lhe! - Deixa-a, Glicéria, - interrompeu secamente Faustina; - Adriana é indigna da tua compaixão; deixa-a, é uma cristã... O desprezo inspirado por este nome era tão geral que a criança, de sua natureza compassiva, largou a mão da escrava indo refugiar-se junto da mãe, tomada de súbito terror. Adriana, que ficara insensível perante a ameaça de castigo, sentiu os olhos arrasarem-se-lhe de lágrimas quando a sua pequenina protectora a deixou e, sem proferir palavra, retirou-se acompanhada de Márcia que a empurrava rudemente. Ao atravessar a sala em que Quintília trabalhava com as outras escravas, esforçou-se por tomar um ar alegre a fim de que a mãe não pudesse suspeitar para onde a levavam. A heróica criança a nada mais aspirava e, ao menos desta vez, teve a consolação de sofrer só. Márcia havia-a levado já para um quarto afastado onde a amarrou com uma corda a uma das colunas de mármore que sustentavam o tecto, quando Faustina, desejosa de inebriar-se do cruel prazer da vingança, entrou no aposento. Ao vê-la, Adriana empalideceu ainda mais; porém, a resolução expressa pela sua fisionomia não mudou. De pé, com os braços cruzados sobre o peito, a patrícia fixou sobre a sua escrava um olhar cheio de ódio e de triunfo; em seguida, fazendo sinal à escrava libertada, disse-lhe: - Podes começar, Márcia. O chicote, erguendo-se e caindo sobre os ombros da escrava, ia imprimindo neles largos traços vermelhos. Adriana abafou um ligeiro gemido, receando que os queixumes da sua dor chegassem aos ouvidos da mãe!... Márcia chicoteou-a de novo e depois mais e mais. Adriana não deu nenhum grito, não derramou uma só lágrima, mas a sua palidez era cada vez maior, dir-se-ia uma estátua de cera com os olhos cercados de negro. Entre cada chicotada Márcia olhava para a sua senhora como que a interrogá-la e de cada vez Faustina inclinava a cabeça em sinal de assentimento: esperava um grito, uma súplica de piedade; a sua indignação ia aumentando de minuto para minuto perante a firmeza da sua vítima. Adriana, que instintivamente havia fechado os olhos ao ver o chicote cair sobre si, abria-os em seguida, fixando-os no céu. Faustina lera neles primeiramente uma súplica de compaixão... mas, depois, vendo a expressão de Adriana, bateu fortemente com o pé no chão. Acaso o Deus dos Cristãos ouviria a oração da pequena mártir? Viria ele em seu auxílio? O sangue cobria já os seus ombros, agitava-a um tremor a cada chicotada e todavia a sua fisionomia ia-se transformando cada vez mais, tomando uma expressão de serenidade e de fervor. A dor contraía-lhe os lábios, as sobrancelhas franziam-se-lhe, mas o seu olhar vivo não se despregava do céu onde parecia contemplar uma suave visão. Dir-se-ia que só o seu corpo ressentia a dor e que o espírito, completamente livre, pairava acima de tudo; mas, se a alma era forte, o seu invólucro era bem débil e enfraquecia a olhos vistos. Faustina fez uma última tentativa. - Queres obedecer, Adriana? Queres abandonar o teu Cristo pelos deuses do império?... Perdoar-te-ei imediatamente. Ao ouvir estas palavras, Adriana veio a si e olhando para a mulher do prefeito disse-lhe: - Nunca! Depois fechou os olhos, e o seu corpo, sucumbindo à dor, permaneceu suspenso pelas cordas, até que desmaiou. Faustina deixou escapar uma exclamação de despeito. Apesar da sua vontade e do seu poder, havia sido vencida pela firmeza de uma escrava, de uma criança!... Um raio de ódio iluminou a sua fisionomia sombria: vingar-se-ia mais tarde desta derrota. Quanto a Márcia, assustada com o súbito enfraquecimento de Adriana, desamarrou-a apressadamente, procurando por todas as formas fazê-la vir a si. Vendo baldados os seus esforços, voltou-se para Faustina e disse-lhe: - Se me permitis, levo-a para o ar livre; talvez que um pouco de ar fresco a reanime. - Faz o que quiseres, - respondeu impacientemente a cruel matrona; - mas, logo que voltar a si, manda-a trabalhar. Não pode haver indulgência para com uma obstinada desta espécie. Prometi-lhe não ter misericórdia e assim farei até que ela se submeta! Márcia abanou a cabeça com ar de dúvida, pois começava a compreender a doçura passiva da jovem escrava, e estava certa de que Faustina se enganava ao pensar triunfar à força de rigor e de maus tratos. Logo que a patrícia voltou para os seus aposentos, aquela pegou em Adriana e levou-a para um banco rústico do jardim. O ar fresco fê-la voltar a si imediatamente; apesar de não ter um coração compassivo, Márcia comoveu-se com o estado lamentável em que ficara Adriana e, em vez de a mandar trabalhar, como lhe recomendara a sua senhora, conduziu-a ao dormitório das escravas, permitindo-lhe reparar as forças com um pouco de repouso. Glicéria depressa esqueceu que a sua escrava, tão boa e condescendente, pertencia à seita detestável dos cristãos, e por isso, sem hesitar, lhe restituiu a sua amizade. Porém, nem Faustina nem Adriana esqueceram aquele dia em que as suas vontades tão violentamente se haviam experimentado: esta permaneceu fiel à religião da mãe, apesar de todo o rigor que teve de sofrer. Faustina, por seu turno, cumpriu à risca a resolução de não ter dó nem piedade. Pode imaginar-se o que era a vida da escrava, exposta ao ódio da patrícia e à vigilância das companheiras que não deixavam um momento de expiá-la, sabendo que deste modo agradavam a Faustina; a pobrezinha nem podia ao menos encontrar um conforto nos carinhos maternos porque Quintilha receando causar-lhe maiores tormentos, afastava-se dela em vez de procurá-la. Só lhe restava como único refúgio Deus, amparo todo-poderoso, que bastava por si só para suster Adriana. Cada dia tinha de suportar novas provas: umas vezes era um trabalho excessivo, seguido de maus tratos, como castigo, se não conseguisse terminá-lo no tempo fixado, outras eram humilhações públicas e imerecidas ou cruéis reprimendas de Flávio e Faustina, ou ainda sarcasmos desagradáveis que lhe dirigiam as companheiras, quando não a maltratavam. Porém, o que mais fazia sofrer Adriana e mais feria o seu coração afectuoso, eram os tormentos da sua pobre mãe. Quando presenciava o martírio contínuo por que Faustina fazia passar Quintilha, sentia em si todo o sofrimento desta e o seu coração transbordava de amargura... Não podia perdoar tanta maldade e, ao passo que esquecia os seus próprios sofrimentos, sentia aumentar cada dia o ódio aos carrascos da mãe. Adriana não era ainda uma cristã perfeita, mas Deus não a trouxera em vão para junto do seu anjo tutelar: depressa soaria a hora em que Quintília iria poder continuar a obra encetada no berço. Três anos haviam passado sem que nada de extraordinário viesse perturbar a vida dos habitantes do palácio do prefeito de Gaeta. Flávio e Faustina viam a sua filha querida desenvolver-se dia a dia e tornar-se cada vez mais bela; começavam a levá-la consigo às frequentes visitas que faziam à corte imperial. Adriana acompanhava-a de tempos a tempos. Entretanto Quintília ia empalidecendo e enfraquecendo cada dia mais; todavia, mostrava-se sempre carinhosa, calma, resignada; como cumpria os seus deveres com a mesma exactidão, ninguém, a não ser ela mesma, tinha conhecimento da doença que a minava lentamente. Bem sabia a infeliz o que a ia matando pouco a pouco!... Como poderia suportar, sem um grande abatimento, ver essa criança, que era sua, e que tinha de tratar como se fora uma estranha; presenciar os sofrimentos que lhe eram impostos pela leviandade de Glicéria, pela vingança de Flávio e o ódio de Faustina? Adriana podia, à custa de força de vontade abafar os gritos e os soluços, mas não estava na sua mão esconder os sinais das lágrimas que todos os dias inundavam o seu rosto; os sofrimentos da filha iam minando as forças da mãe. Quanto não daria para enxugar essas lágrimas com as suas carícias maternais! à custa de que tormentos não compraria a consolação de estreitar ao peito a sua pobre filha atormentada, de suavizar consolar o seu coração tão martirizado, de encher, com a efusão de todo o seu amor, o vácuo cavado na alma da filha pelo abandono e a injustiça do pai? Esquecida dos próprios sofrimentos, Quintília só pensava dia e noite em tornar mais suaves os de Adriana. Apenas o receio de aumentar estes sofrimentos dava a Quintília a força para impor silencio ao seu coração; contentava-se com olhar para a filha sempre que a via passar e sair furtivamente do seu aposento para ir ao de Adriana, enquanto as suas companheiras dormiam, contemplar o seu sono angélico, o que fazia retendo a respiração para a não acordar. Uma noite, apoderando-se dela um desejo mais forte, não pôde conter-se e, quase sufocada, inclinou-se ansiosa, pousando ao de leve os lábios febris sobre a fronte da filha. A este contacto, Adriana estremeceu ligeiramente; os seus braços levantaram-se um pouco, tornando a cair sobre os cobertores, ao mesmo tempo que Quintilha, tremendo de pavor, voltava para a cama, olhando à sua volta para ter a certeza de que nenhum olhar indiscreto havia descoberto o seu segredo. Porém, como uma circunstância imprevista lhe tivesse feito lembrar os seus deveres sagrados para com a alma da filha, decidiu-se a dominar todos os seus receios, a afrontar todos os perigos, a fim de retomar sobre o coração de Adriana o ascendente de outrora. Quintilha, retida pelo seu serviço (tinha a seu cargo os trabalhos mais pesados da cozinha e a limpeza de vários aposentos), só regressava ao dormitório das escravas quando Adriana e as suas companheiras estavam já deitadas; todavia uma noite subiu mais cedo que de costume e ao entrar no dormitório parou comovida no limiar da porta. Todas as escravas dormiam; só Adriana estava ainda levantada, ajoelhada junto do seu leito, murmurando umas palavras que o coração de Quintília depressa reconheceu: era a sublime oração ditada pelos próprios lábios de Deus e que a criança piedosamente conservara na memória como única recordação da mãe. Chegando à altura da oração dominical em que o cristão pede a Deus que lhe perdoe como ele perdoa, a voz de Adriana velou-se, ficando sufocada num soluço. "Não! não! balbuciou ela angustiada, é mais forte do que eu, não posso perdoar!". Levantando-se bruscamente, acabou de despir-se e ia a meter-se na cama quando a mão de Quintilha a reteve suavemente, dizendo-lhe: - Minha filha, torna a ajoelhar-te e repete comigo esta oração como ta ensinei e com a mesma submissão com que os teus lábios infantis a pronunciavam outrora sobre os meus joelhos. E Quintília recomeçou o "Pai-Nosso", recitando-o inteiramente, ao mesmo tempo que Adriana, sufocada pelas lágrimas, mas subjugada pela autoridade materna, repetia cada palavra. Terminada a oração a mãe abriu os braços: entre ambas não mais acabavam as perguntas e respostas, as explicações entremeadas de lágrimas e carícias. - Minha querida Adriana, dizia Quintília delirando de alegria, será possível que te não tenhas esquecido de mim? - Não, minha mãe, reconheci-vos logo que vos vi. Reparei que empalidecestes; parecíeis tremer e afastar de mim o olhar quando Flávio se aproximou para falar-vos. Compreendi que algum perigo e, certamente, uma nova separação nos ameaçava se mostrássemos ter-nos reconhecido e, por isso, tive forças para não correr a abraçar-vos, nem vos chamar minha mãe. "Faustina, apesar de me observar atentamente, nada conseguiu ler no meu olhar nem na minha fisionomia. Receava perder-vos; no meu espírito tudo era confusão: não conseguia compreender nada, a não ser que estávamos outra vez juntas, mas já não como outrora; e só pouco a pouco comecei a ver as coisas mais claramente. Tinha sempre diante dos olhos aquela cena horrível em que Flávio tanto vos fez chorar e compreendi que a nossa separação, assim como o nosso encontro, quase tão cruel, tudo o que nos fazem sofrer, teve nela a sua origem. Desde que compreendi tudo isto, não pude mais continuar a dizer a minha oração como acabais de obrigar-me a dizê-la esta noite; não sei mentir àquele que me ensinastes a chamar "Pai do Céu". - Mas, esta noite, junto de mim, mentiste? - Não, minha mãe, sentia-me tão feliz que nem já tinha coragem para odiar... nem sequer este homem... - Este homem é o teu pai, minha filha! - O quê? Ainda é meu pai - exclamou com energia Adriana - esse homem que, contra todos os direitos da justiça, vos reduziu à dura condição de escrava, vos humilhou e aviltou, a vós, a companheira da sua vida, diante de Faustina? Não, minha mãe, não me faleis dele; só ouvir pronunciar o seu nome me irrita; basta vê-lo para que todo o meu ser se revolte. Só o grande amor que vos tenho e o receio de aumentar os vossos sofrimentos que deram forças para lhe não lançar cem vezes, em rosto, toda a cólera que enche a minha alma. Ao ouvir estas palavras, Quintilha inclinou a cabeça, numa atitude de dor pungente. - Já não és discípula de Cristo, Adriana, esqueceste os meus ensinamentos; o que acabas de dizer despedaça-me o coração. A revolta de Adriana não pôde resistir à dor da mãe; lágrimas copiosas lhe rolaram pelas faces e, escondendo-se no regaço materno, balbuciou no meio de soluços: - Minha mãe, minha querida mãe, ensinai-me o que devo fazer... já não sei... esqueci tudo!... tudo, excepto a linda oração aprendida convosco. Nem sei o que é ser cristã mas, o que sois, quero eu sê-lo também. Ensinai-mo.., e eu direi e farei tudo o que quiserdes. Quintilha estreitou ternamente a filha ao coração, dizendo-lhe: - Encontro-te tal qual te deixei: viva, mas com bom coração. Vou recomeçar a instruir-te, mas é preciso muita prudência para podermos gozar esta felicidade, paga por tão alto preço. - Não receeis, minha mãe, sei bem dissimular as minhas impressões: bem vedes que consegui até hoje não vos dar a perceber que vos tinha reconhecido. Estava sempre acordada à noite quando vínheis beijar-me; via-vos através dos meus olhos semicerrados, seguindo todos os vossos movimentos, e quando as vossas lágrimas corriam, mais me concentrava num desejo ardente de as beber. - E conseguias ficar imóvel? Que coragem! - Sim, minha mãe, tendes razão de dizer: que coragem! Preferia afrontar todas as fúrias da cruel Faustina a resistir por mais tempo ao ardente desejo de abraçar-vos, como fiz esta noite em que, inclinando-vos sobre mim, viestes beijar-me. Ai! mãe, - continuou Adriana chorando convulsivamente, - era o primeiro carinho que recebia desde há sete anos e... de quem vinha ele?... Será necessário explicar-vos o esforço que tive de fazer para não vo-lo restituir, mesmo com o risco de comprometer para sempre a felicidade que a vossa presença me causava? Mãe e filha teriam passado a noite nestas expansões, sem que o tempo lhes parecesse longo, se um ligeiro ruído, vindo do quarto de Márcia, lhes não fizesse lembrar a prudência requerida. Após um último beijo, Quintilha deixou a filha, e ambas se deitaram, agitadas demais para poderem dormir, mas tão felizes que, ao chegar a hora de levantar, nem sentiam a fadiga da sua longa insónia. Que mudança se operou nas suas vidas a partir daquele dia, apesar de nada o fazer notar exteriormente! Já não sentiam aquela amargura, aquele terrível sofrimento, sob o peso do qual eram esmagados os seus pobres corações. A sua ternura recíproca sustinha-as uma à outra: um olhar, um sorriso trocados secretamente, bastava para restituir-lhes a serenidade no meio das mais duras provações e, além disso, de vez em quando, apesar da vigilância de Márcia e da contínua espionagem das companheiras, refaziam as suas almas numa conversa íntima, interrompida por mil manifestações de ternura. 6. OS MISTÉRIOS CRISTÃOS Durante vários meses, Quintília, inebriada pela consolação, não mais sentiu aquela fraqueza que parecia um prenúncio de morte, podendo considerar-se livre da languidez que a minava. Flávio, cada vez mais em evidência, havia sido em diversas ocasiões chamado a Roma pelo imperador, permanecendo aí grandes temporadas com Faustina e parte dos escravos do palácio. Pode calcular-se como foi grande a alegria de Quintilha e Adriana ao verem-se livres de toda a vigilância, gozando do ensejo que tinham de falar-se a qualquer hora do dia e da noite. Quintília, que logo ao regressar a Gaeta tivera o cuidado de informar-se do local das reuniões dos cristãos, pôde, enfim, levar várias vezes a filha a essas santas assembleias. Como os fiéis de Roma, os de Gaeta, perseguidos pelo ódio de Flávio, eram obrigados a esconder-se nos jazigos subterrâneos dos mortos, para oferecer ao Rei do Universo a homenagem das suas orações. Como intrépidos guerreiros, davam prova de grande coragem e de uma fé viva e profunda para permanecerem fiéis a Jesus e poderem descobrir a beleza da majestade divina velada por tanta humilhação. Uma noite Quintilha e a filha, envoltas em véus espessos, saíram furtivamente do palácio, mal guardados pelos escravos que dormiam. Das suas companheiras apenas tinham ficado Paulina e uma adolescente, que também dormiam a essa hora. Era a primeira vez que Quintília conduzia Adriana à assembleia dos cristãos; não lhe querendo tirar a emoção da surpresa que a esperava, não lhe dissera onde iam e a jovem, um tanto admirada, mas sempre cheia de confiança, deixava-se guiar sem nada perguntar. Mãe e filha seguiram pela rua principal da cidade sem parar diante de nenhuma habitação; estas depressa se tornaram mais raras, até que os seus olhos já só podiam contemplar os campos que ladeavam a estrada de Roma. De quando em quando as duas cristãs encontravam outras pessoas que lhes tomavam a dianteira, outras vezes eram elas que passavam à frente de alguns grupos que caminhavam mais lentamente. Adriana, um pouco assustada pela escuridão da noite e pelo profundo silêncio apenas interrompido pelos passos de algum transeunte, chegava-se instintivamente para a mãe que, mais valente, seguia sem o menor receio o caminho que tão bem conhecia. Por entre as árvores que o orlavam viam-se, de quando em quando, algumas ruínas e a criança estremecia ao reconhecer nelas a morada dos mortos. - Não tenhas medo: os que ali repousam não são para temer. Depois, conduziu-a por uma estrada de ciprestes, em direcção a um sepulcro de mármore mais elevado que os outros e, como este, podia ser visto a uma certa distância. Adriana reparou com grande espanto que todos os que iam à sua frente tomavam a mesma direcção e, chegados àquele sítio, desapareciam de repente. - Não tenhas medo, minha filha. Em seguida bateu ao de leve num portão de ferro forjado que dava acesso ao túmulo; os que se encontravam no interior deste deviam supor quem estava a bater, pois, a este sinal, a porta abriu-se silenciosamente e as duas patrícias entraram no sepulcro sombrio. Um rapaz de uns quinze anos estava de pé atrás da porta que tornou a fechar imediatamente; tinha na mão uma lanterna que apenas projectava a sua luz sobre o rosto das duas recém-chegadas. - Deus seja convosco, nobre Quintília, - disse ele reconhecendo-a. - E também convosco. Estamos atrasadas, não é verdade? Parece-me que não vem mais ninguém atrás de nós. - Creio, efectivamente, que quase todos os nossos irmãos que deviam comparecer já chegaram. Os que faltam já não virão provavelmente, mas os mistérios não começaram ainda. - Então podeis acompanhar-nos. - Não posso: devo ficar aqui uns momentos ainda para esperar um ou outro mais atrasado; só depois descerei. Aqui tendes uma luz, conheceis o caminho. Ao dizer estas palavras, o adolescente acendeu uma lanterna que entregou a Quintilha e em seguida, carregando numa mola escondida no mármore, abriu uma porta, pela qual passaram as duas romanas, fechando-a imediatamente. Quintília e Adriana desceram uns vinte degraus de pedra, percorrendo um corredor escuro e húmido sobre as paredes do qual estavam fixas placas de mármore com inscrições. - Viste, lá em cima, a sepultura dos ricos e poderosos da terra, - disse Quintília, respondendo à muda interrogação da filha; - vê agora as dos nossos irmãos perseguidos e mortos. Inclina respeitosamente a cabeça, minha filha estás no cemitério dos cristãos. Na morte, como na vida, devemos esconder-nos e fugir das honras; só no céu seremos glorificados com Aquele que disse que o seu reino não era deste mundo! "As inscrições que vês gravadas sobre este mármore falam-nos das virtudes e das lutas daqueles que já nos precederam na glória; estes lugares vagos esperam que um dia venhamos nós preenchê-los. - Minha mãe, compreendo agora onde quereis levar-me: é às piedosas reuniões de que me tendes falado tantas vezes. - Adivinhaste; vais assistir pela primeira vez aos sagrados mistérios. Deves estar recolhida para gravares no teu espírito e no teu coração o que vais ver e ouvir. Falar-se-á das obras e palavras do próprio Jesus Cristo Nosso Senhor, que te ensinei a amar. E assim falando, mãe e filha continuavam o seu caminho através do labirinto daqueles subterrâneos que Quintília tão bem conhecia. A cada encruzilhada uma lanterna acesa as ia guiando e indicando-lhes o caminho que deviam seguir. Depressa chegaram a uma espécie de largo ao qual vinham desembocar vários caminhos e onde um ancião, que fazia o ofício de guarda, trocou algumas palavras com Quintília. De repente, uma porta que estava fechada abriu-se diante das duas patrícias. Adriana, deslumbrada, parou, sufocando a custo um grito de admiração: encontrava-se em frente de um vasto salão decorado de ricos reposteiros e iluminado com esplendor; ao fundo elevava-se majestosamente, sobre vários degraus, um altar resplandecente de luzes e de pedras preciosas; três homens, revestidos de dalmáticas de seda, estavam de pé junto do altar, rodeados de crianças vestidas de linho branco alvíssimo. No salão, os fiéis encontravam-se divididos em dois grupos: de um lado os homens, do outro as mulheres; porém, tanto de um como de outro, patrícios, plebeus e escravos se confundiam, sem nenhuma distinção de classes. Os homens estavam de pé, numa atitude grave recolhida; as mulheres, de joelhos, com a cabeça piedosamente apoiada nas mãos. A solenidade era apenas perturbada por algum ligeiro ruído. - ó minha mãe, - disse Adriana, - é isto o paraíso que prometeste à minha constância na fé cristã? - Não, minha filha, - respondeu Quintília em voz baixa e grave - é o caminho que para lá nos conduz. Adriana ouviu pela primeira vez os admiráveis salmos de David, essas súplicas cheias de ternura, mas não desesperadas; esse apelo à bondade de um pai, de um filho pecador, mas arrependido; esse grito da fragilidade humana ao poder divino. Ao ouvir estes salmos de tão elevada inspiração que permaneceram através dos séculos a mais consoladora oração para a alma cristã exilada e exposta às mais cruéis perseguições, Adriana comoveu-se profundamente sentindo ao mesmo tempo uma grande consolação. - Oh! - dizia ela, - a religião cristã é bem a de todos os que sofrem: tudo nela dá força e coragem. Logo a seguir, o ancião, revestido das vestes sacerdotais, já preparadas sobre o altar, começou o santo sacrifício acolitado por dois jovens diáconos. Um deles leu uma epístola de S. Pedro, primeiro pastor da Igreja. O pescador da Galileia, tornado chefe dos fiéis, exortava os seus filhos, com uma autoridade cheia de ternura, a amarem-se e a ampararem-se como irmãos. As palavras do apóstolo não caíram certamente nu terreno estéril; Adriana repetia-as consigo mesma, admirando a união e a concórdia que reinavam entre os fiéis de tão diversas condições que via à sua volta. A dois passos estavam ajoelhadas, lado a lado, uma pobre velha aleijada e uma jovem patrícia; esta ajudava-a, com as suas mãos delicadas, a sentar-se e a levantar-se. A certa altura a patrícia desprendeu do cinto uma bolsa, introduzindo-a entre as pregas dos andrajos que cobriam a sua protegida, sem que esta desse por isso; só Adriana presenciou o piedoso artifício. Mas eis que os fiéis se levantam, fazendo sobre a fronte, a boca e o peito, o símbolo da Redenção. Marcados com este sinal, pelo qual o Mestre reconhecerá os seus discípulos, escutam o Evangelho que o diácono canta com acentos de verdadeira inspiração. Depois, todos juntos, recitam o Símbolo dos Apóstolos, esse admirável acto de fé que contém todas as verdades da religião; em seguida faz-se um novo silêncio, durante o qual o sacerdote recita as orações da oblação. Os diáconos recolhem as abundantes esmolas dos ricos e, ao mesmo tempo, o óbolo dos pobres; se tudo foi oferecido com o mesmo amor, todos receberão das mãos sacerdotais a mesma bênção. Quintília explicava carinhosamente à filha todo o significado destas cerimónias sagradas; foi com lágrimas de amor e fé sincera que Adriana inclinou a cabeça no momento da consagração para adorar a Hóstia Santa, pois ela sabia que Jesus estava ali presente, tão real e perfeitamente como esteve no Monte do Calvário, no dia da grande expiação. à comunhão, quando o sacerdote, descido do altar onde se havia realizado o augusto sacrifício, avançou para os fiéis e, tendo na mão um cibório de ouro, disse: "Ecce Agnus Dei, eis o Cordeiro de Deus", Adriana, tomada de Uma profunda comoção, bateu no peito dizendo: "Não sou digna de receber o Hóspede Divino"; apoderou-se dela então uma santa inveja ao olhar para o semblante radioso de alegria de todos os que recebiam, na boca e no coração, o Deus da Eucaristia. Quintília, que compreendera a pena da filha, disse-lhe, pegando-lhe na mão: - Em breve, minha filha, se Deus o quiser, gozarás também connosco de tão grande felicidade. Ao terminar o ofício divino o sacerdote, com voz comovida, dirigiu algumas palavras de incitamento aos cristãos que o rodeavam, exortando-os a que não se deixassem vencer nem pelas perseguições nem pela morte e, lembrando-lhes os sofrimentos do Homem-Deus, terminou dizendo: "Se o Mestre sofreu tanto, poderá o discípulo queixar-se de ser julgado digno de partilhar do seu cálice de amargura?". Em seguida abençoou ainda uma vez o seu rebanho, dizendo-lhe adeus, pois nunca estava certo de tornar a vê-lo e, pouco a pouco, a multidão dispersou-se, saindo por todas as portas do subterrâneo. Quintília, demorando-se um pouco mais, aproximou-se do ministro de Deus que, de joelhos sobre os degraus do altar, esperava que os últimos fiéis partissem, para sair também. - Padre, - disse-lhe ela, - desta vez não vim só: aqui está a minha filha, que tinha perdido e que tornei a encontrar, cristã, como a deixei. Que grande consolação tive com isso! - É a recompensa da vossa fé, minha filha, e dos sofrimentos suportados com coragem. O Senhor nunca nos envia uma prova que não seja proporcionada às nossas forças, e conta avidamente todos os sacrifícios feitos por seu amor. Virando-se para Adriana e colocando a mão descarnada sobre as suas tranças escuras: - Não me conheces? - disse-lhe com um sorriso bondoso: - sou o teu pai, segundo a fé. Foi esta mão, hoje trémula, que outrora derramou sobre a tua fronte e sobre a de tua mãe a água sagrada do baptismo. Ao ouvir estas palavras, Adriana, cedendo a um movimento espontâneo, pegou na mão do velho sacerdote e beijou-a respeitosamente. - Bendito sejais, meu Pai, por me terdes colocado neste caminho divino, que depois minha mãe me ensinou a seguir. - Quer dizer, minha filha, que aceitas livremente a fé que tua mãe escolheu para ti quando eras ainda criança? - Sim, meu Pai, e estou pronta a morrer para defendê-la. Sinto-me tão feliz por ter tornado a encontrar a minha mãe que não poderei deixar de ficar eternamente unida a ela e ao Deus que ma restituiu. - Pois bem, minha filha, esse Deus cheio de bondade cumular-te-á das suas graças. Depois de ter permitido que encontrasses aquela que estremeces acima de tudo o que existe na terra, quer ainda dar-se Ele próprio a ti, Ele, que é o Bem Supremo! - Trazei-a novamente à próxima reunião, Quintília; abrir-me-á a sua alma para que sem demora lave as suas faltas nas águas salutares da penitência (que o tempo é precioso e as horas de paz incertas) e admiti-la-emos sem tardar ao banquete celestial. Agora, parti, minhas filhas, e que Jesus vos proteja. O venerável Justiniano deu-lhes ainda uma benção; depois, mãe e filha retomaram o caminho que as havia conduzido ao subterrâneo. Adriana desta vez já não tremia ao passar junto dos túmulos; considerava esses corpos, que roçava na sua passagem, como se fossem de amigos e irmãos cujas almas, ao mesmo tempo que a protegiam do alto, a conduziam nas suas peregrinações sobre a terra. O regresso fez-se rápida e silenciosamente; a comoção de ambas era demasiado grande para poderem falar. Quando chegaram a casa já o dia começava a despontar. Estas saídas nocturnas puderam repetir-se bastantes vezes no decurso daquele ano, graças às frequentes ausências de Flávio e de sua família. Adriana teve pois ensejo de inebriar-se das alegrias santas, apanágio dos seus irmãos na fé. Na verdade tais consolações eram necessárias a Quintília e à filha; a prova tornava-se para elas cada dia mais cruel; o facto seguinte, colhido entre mil, no-lo mostrará: No regresso de uma das suas viagens a Roma, Faustina e Flávio, por oferta do imperador, haviam trazido um carro de plantas raras e maravilhosas, provenientes das mais longínquas regiões da Ásia. Faustina tratava com um cioso cuidado desses arbustos, cuja folhagem impregnava a atmosfera de perfumes deliciosos. Glicéria seguia com um entusiasmo infantil o transporte das plantas para os belos jardins, tão ricos já em espécies raras; como a mãe, fazia mil projectos para formar com elas Uma avenida especial, porém, incapaz de fixar-se muito tempo na mesma ideia, depressa pensou noutra coisa e se encaminhou para o palácio com o pai, deixando a mãe, só, no meio dos escravos. Era um trabalho bem fatigante para as pobres mulheres o de transportar os pesados Caixotes cheios de terra; mas Faustina, receando que o contacto rude dos escravos pudesse estragar os seus tesouros, preferiu confiá-los a mãos mais delicadas. Adriana, débil criaturinha, pouco habituada a esta espécie de trabalho, vergava sob o peso das plantas, que transportava com o máximo cuidado. O trabalho era feito simultaneamente por duas escravas visto uma só ser incapaz de levantar um peso tão considerável: fosse por acaso ou propositadamente, a companheira de Adriana era Orfeia, uma assíria que, invejosa do talento da jovem bordadora e da predilecção que por ela tinha Glicéria, não deixava passar nenhuma ocasião de fazer-lhe sentir a mais negra inveja. Adriana bem reparava ma vontade desta ultima e procurava evitar os propositados desvios que fazia a Assíria para tocar-lhe ao passar. Perto dela trabalhava Quintília com Paulina, a qual, mais forte e caridosa, se esforçava por poupar a pobre mulher. A certa altura Quintília, querendo agarrar numa planta, deu que encontro a um cacto cujos espinhos compridos lhe feriram o braço; a dor que sentiu foi tão violenta que não pôde reter um grito. Ao ouvi-lo, Adriana esqueceu o seu próprio cansaço, a malícia de Orfeia e a roseira branca que tinha nas mãos e que Faustina admirava em Silêncio. A Assíria notara a súbita emoção de Adriana e, sorrindo maliciosamente, fez um movimento brusco. de tal maneira que a sua companheira, surpreendida, largou a asa de metal do Caixote que, virando-se, partiu em mil pedaços a frágil planta. Antes que a pobre pequena pudesse compreender o que havia sucedido, a altiva patrícia lançou-se sobre ela agarrando-a fortemente com uma das mãos enquanto que, com a outra, a esbofeteava barbaramente. Perante tal acesso de cólera, Adriana empalideceu, não tanto pela dor que ressentiu, como pelo receio de que a mãe se traísse. Efectivamente o primeiro movimento de Quintília fora de lançar-se entre a filha e Faustina, porém, o olhar suplicante e enérgico daquela detivera-a. O receio de aumentar os tormentos de Adriana deixara-a impávida; não teve, como Agar, a fraqueza de fugir para não ser testemunha do sofrimento daquele ente querido mas, de pé, apoiada ao carretel, pálida como o mármore, sentia no seu coração todas as pancadas que caíam sobre a pobre criança. Adriana lutava consigo mesma, fixava no seu algoz um olhar suplicante; quisera dizer-lhe: "Diante dela não, diante de minha mãe, não!" Faustina não compreendeu e, tomando esta súplica muda por um pedido de misericórdia, sorriu com ar vitorioso. Finalmente triunfava da escrava indomável; que alegria atormentar a mãe, fazendo sofrer a filha! - Afinal a tua coragem sempre tem limites? - disse-lhe com desprezo... - Sim, far-te-ei misericórdia por esta vez, mas tens que pedir-me perdão de joelhos. Faustina largou o braço de Adriana deixando nele marcadas as unhas e esperou, de pé, a execução das suas ordens. Adriana hesitou um momento: todo o seu orgulho se revoltou com a ideia de humilhar-se perante a sua bárbara senhora e na presença de todas as suas companheiras; porém, lançando um olhar para a mãe, viu-a a lutar também contra o seu orgulho inato e prestes a avançar com ar ameaçador; a escrava, vencida, cedeu. Ajoelhou-se humildemente e, corando, implorou, com a cabeça inclinada até ao chão, a demência de Faustina. - Está bem, - prosseguiu a patrícia satisfeita, - não te castigo mais; vai ter com Orfeia. Adriana retirou-se mas, ao passar junto da mãe, escondida atrás do carro das plantas, ao abrigo de todos os olhares, esta abriu-lhe os braços abraçando-a efusivamente; este abraço foi como um bálsamo para as suas penas. No dia seguinte Adriana, levantada à hora habitual, esperava que a escrava liberta viesse dar-lhe a tarefa quotidiana. A filha de Quintília recebeu ordem de descer ao jardim para aí arrancar a erva de um prado, no meio do qual Faustina queria traçar uma avenida de flores. - Quando este trabalho estiver terminado, - disse Márcia, - a nossa divina senhora deverá estar já levantada; ela mesma vos dará as suas instruções. Isto é o castigo da vossa falta de ontem. Orfeia virá ajudar-vos. Sem proferir uma única palavra, Adriana dirigiu-se ao prado onde encontrou Orfeia que parecia estar de muito mau humor. A Assíria recebeu-a com palavras duras, mas ela, apesar disso, dócil paciente, munida de uma pesada foice, começou, com cuidado, o seu trabalho. Era ainda cedo, mas o sol ia já alto no horizonte, fazendo sentir o calor dos seus raios abrasadores. Mais frágil que a sua companheira e menos habituada a este género de trabalho, Adriana teve que parar várias vezes para descansar um pouco e limpar o rosto banhado em suor. E em vez de compadecer-se da fadiga da sua jovem companheira, Orfeia insultava-a grosseiramente. Márcia marcara a cada uma a parte de erva a arrancar; quando Orfeia terminou, Adriana ia apenas em metade. - Ainda te falta muito para terminar? - perguntou Faustina que chegava nesse momento. Antes que Adriana tivesse tempo de abrir a boca, Orfeia respondeu em tom respeitoso. - Sabei, nobre senhora, que executei durante a manhã todo o trabalho que me foi imposto; esta preguiçosa pouco faz porque descansa a cada momento. - Tanto pior para ela, - respondeu Faustina; - quero que a avenida fique limpa e guarnecida com as plantas que trouxemos ontem; Adriana não terá descanso enquanto todo o trabalho não estiver terminado. O toque da sineta, chamando os escravos para a sua refeição, fez-se ouvir; com um sorriso cruel, Faustina virou-se para Orfeia dizendo: - Vai à cozinha tomar o alimento que mereceste; - e para a pobre Adriana: - "Trabalha, que só comerás quando tiveres acabado". Depois de assim falar, foi sentar-se ali perto, num banco rústico, à sombra de Uma acácia que exalava um perfume delicioso. Enquanto Faustina assim se repousava indolentemente, Adriana continuava a sua penosa tarefa sob os raios abrasadores do sol. SE perto das duas horas se pôde dirigir à sala de jantar dos escravos para tomar a sua primeira refeição, encontrando aí, felicidade unicamente por Quintília. Para não afligir a mãe, Adriana absteve-se de lhe contar o que se passara de manhã mas Quintília, que tivera conhecimento de tudo por Orfeia, guardou não somente a parte que cabia à filha, mas ainda a sua, calculando quanto o trabalho e a hora tardia lhe haveriam aberto o apetite. Enquanto esta reparava as forças, Quintília, olhando à sua volta com receio de ser vista, limpava o rosto, o pescoço e os ombros de Adriana e, com um pouco de azeite, untava as pápulas feitas pela foice nas suas mãos delicadas. Adriana procurava subtrair-se às carícias da mãe e olhava inquieta para a porta. - Basta, minha mãe; é já um alivio para a minha dor estar perto de vós. Se alguma das nossas companheiras nos surpreende... se nos estão a espiar... prudência, minha mãe! - Que medo tens! - respondeu Quintília sorrindo; - ninguém nos vê, as escravas estão todas a trabalhar. - Bem sei, mas Faustina é capaz de mandar Orfeia ou Márcia à minha procura... - Não receies. Paulina, sempre bondosa, deu- um pouco de vinho para ti; bebe-o, far-te-á bem. - Obrigada, minha mãe; só bebo se beberdes também. E quando depois de uma discussão que terminou por um beijo, Quintília, provando o vinho o passou a Adriana, esta, pálida, afastou a taça e levantou-se. - Minha mãe, devo retirar-me, vem aí Orfeia. E, sem dizer mais nada, fugiu, para que a mãe não pudesse presenciar a brutalidade da Assíria. Até à noite não fez mais que derribar arbustos, transportar terra, plantas exóticas e regá-las. A sua companheira deixava para ela o trabalho mais penoso, fazendo de propósito por meter nas suas mãos as plantas mais frágeis e cheias de espinhos; não admira pois que Adriana, apesar das precauções tomadas, ferisse as mãos ou, quebrando alguns troncos, excitasse a cólera de Faustina. à noitinha a patrícia pôde já admirar com Flávio e a filha, a avenida que deveria merecer às jardineiras improvisadas os maiores elogios pelo seu bom gosto e diligência. - Amanhã, - disse ela a Adriana, - continuarás a trabalhar na túnica de Glicéria que deseja vesti-la no dia da festa da deusa Vesta. Se a minha filha me não tivesse manifestado abertamente este desejo, ter-te-ia deixado ainda alguns dias a trabalhar no jardim, para castigar-te da tua estúpida incapacidade. Logo que a mãe se afastou, Glicéria aproximou-se da humilde escrava. - É escusado afligires-te com a minha túnica, - disse-lhe, - não preciso dela; insisti com a minha mãe porque desejava ver-te outra vez a bordar: causaste-me tanta pena ontem! Os olhos de Adriana arrasaram-se de lágrimas; agarrou na mão de Glicéria e, beijando-a, disse: - Como sois boa! Só peço a Deus que vos dê toda a felicidade que mereceis. - Julgas então que não possuo a felicidade?... - perguntou; - que me falta para não ser inteiramente feliz? - Nada, por agora, mas, no futuro, prevejo que tereis grandes sofrimentos. Que o Senhor vo-los poupe e mos dê todos a mim! - És muito minha amiga, Adriana? - Mais que de mim mesma, querida menina, - disse-lhe com ternura. - amo-vos como a uma irmã. - Uma irmã!! - prosseguiu Glicéria pensativa. - Quanto tenho desejado ter uma! Adriana esboçou um sorriso enigmático mas não respondeu e depois de ter olhado com gratidão para Glicéria, voltou apressadamente para o palácio. 7. LIBERTAÇÃO DE UM MÁRTIR A saúde de Quintília melhorara um pouco sob a influência da felicidade que tinha sucedido às suas longas angústias; todavia, passado aquele momento de reacção, que fora breve, o enfraquecimento que antes se lhe vinha notando, voltou agora a acentuar-se, lenta e gradualmente, mesmo apesar dos cuidados incessantes de que a rodeava sua filha Adriana. E pode calcular-se, por isso, quanto esta sofreu ao ser obrigada a deixar a pobre mãe para acompanhar, a Roma, Faustina que tivera o capricho de fazer apreciar o seu talento de bordadora a uma das suas amigas. Nesse momento de separação foi a custo que reprimiu os soluços: assaltava-a naturalmente um negro pressentimento; invadia-a uma angústia mortal. Durante a estada na cidade imperial ela empregou todos os esforços para esconder uma tristeza que, de resto, ninguém saberia compreender; aqueles dias pareceram-lhe intermináveis. Glicéria, com razão, estranhava agora a sua companheira que, habitualmente sorridente e bem disposta, alegre mesmo, por todos os modos procurava distraí-la: agora repetindo-lhe as suas canções preferidas, logo mais inventando jogos divertidos, e cedendo sempre, sempre, aos seus mil caprichos... Adriana, agora, já não sorria; e quando Glicéria lhe pedia que cantasse, tentava-o naturalmente com a sua doçura habitual, mas logo as lágrimas, coitada dela, lhe embargavam a voz. Já não lhe fora possível inventar um penteado ou enfeites novos para adornar Glicéria por ocasião das festas imperiais; e esta, menina mimada como era, queixara-se à mãe da mudança de disposição da companheira. E Faustina repreendeu duramente a escrava; porém, todas as repreensões foram inúteis: só a certeza da próxima partida para Gaeta iluminou o céu negro dos seus pensamentos; e foi então com um ardor febril que Adriana ajudou a fazer os preparativos da viagem, como se o guardar cuidadosamente nas malas o rico vestuário das suas senhoras, pudesse avançar a hora da partida. Mas esse momento tão suspirado chegou. Adriana contava os minutos que a aproximavam da mãe; os seus olhos brilhavam intensamente; não podia dissimular a sua felicidade, sempre crescente, à medida que se aproximavam do palácio de Flávio. Finalmente chegaram a Gaeta; as carruagens entraram no pátio de honra do prefeito. Adriana, num supremo esforço, corajosa e dominando-se perfeitamente, não denunciou nunca a sua impaciência; e com calma, com tão custosa calma, tirou a túnica empoeirada de Glicéria para substitui-la por outra mais ligeira. Por fim, a jovem patrícia deixou a pobre escrava, que logo correu à procura da mãe. Em vão percorreu todos os lugares em que Quintília costumava trabalhar. Apoderou-se dela Uma secreta inquietação... E se tivesse sido descoberta... se, aproveitando a sua ausência, tivessem afastado a mãe? Estes pensamentos faziam-lhe perder as forças. De repente, encontrou Paulina. Pegando-lhe nas mãos, disse-lhe: - Paulina, onde está a minha.., onde está Quintília? Paulina levantou a cabeça, e uma tristeza profunda se desenhava na sua fisionomia. - Foi-se embora?... não tornarei a vê-la? - Sim, Adriana, tornareis a vê-la, mas, por pouco. Desde que partistes, o mal da pobre mulher agravou-se; penso que não viverá muito tempo. Se Paulina tivesse podido prever o efeito das suas palavras, certamente teria falado com mais reserva. Adriana, cambaleando, agarrou-se ao braço da companheira. Apesar dos seus mais terríveis pressentimentos não sonhara, contudo, na possibilidade de uma eterna separação. Receara, sim, o afastamento da mãe; mas ficava-lhe ainda a esperança de tornar a encontrá-la; agora, é que nada mais havia que esperar. "Morrer! A minha querida mãe!" E, deixando Paulina admirada com a sua profunda emoção, correu para os aposentos das escravas. Por compaixão pela pobre doente, Márcia, que possuía um coração duro mas bom, tinha-a mandado levar para um quarto separado do dormitório. Era ali que, havia alguns dias, Quintília se ia consumindo numa suave agonia. A fraqueza que Lentamente a minava e que parecia ter estacionado com a alegria de tornar a ver Adriana, definhava-a desde que deixara de ter junto de si a filha estremecida. É assim que, as mais das vezes, a doença nos ilude: durante a sua evolução vagarosa faz-nos quase ignorar a sua acção; porém, quando o fim se aproxima, rapidamente completa a sua obra de morte. Quintília, prestes a terminar os seus dias, estava como que suspensa sobre a sepultura, na esperança de voltar a ver a filha e de comover ainda o coração de Flávio. Há oito dias já que se encontra estendida no leito, quase moribunda; os seus olhos, dilatados pela febre, conservam-se permanentemente fixos na porta. De repente, estremece... Levanta-se: parece-lhe ter ouvido no andar inferior, um diálogo animado, uma exclamação abafada, e reconhece aquela voz. Uns passos precipitados ressoam na escada; Uma sombra se desenha no limiar da porta; Quintília, com a voz enfraquecida pela doença, dá um grito e levanta ao céu as suas mãos trémulas. O seu coração não a enganara... Adriana está na sua frente... e chora, já, nos braços da mãe. Momento de felicidade indizível! Mãe e filha abraçam-se ternamente; ambas esquecem a dor suprema da separação!... Adriana senta-se sobre a cama de Quintilha, olhando-a fixamente; dir-se-ia querer inocular na mãe a vida pujante que tem em SI. - Que tendes, minha mãe... que vos aconteceu? Respondei. Dizei-me que já não sofreis, que estais curada, que não me deixareis só... Dizei-me que não ides morrer!... Adriana, cheia de dor, metia dó, e Quintília, com a alma fortalecida por longos sofrimentos e pelas divinas visões da fé, procurava consolá-la, tirando-lhe ao mesmo tempo todas as esperanças e preparando-a para o sacrifício. - Nem tudo acaba com esta vida, - dizia-lhe com voz firme. - Como cristãs devemos elevar para mais alto os nossos olhares: para essa vida eterna onde a felicidade da nossa união com Deus não terá fim. Enxuga as tuas lágrimas, minha filha, ou, ao menos, derrama-as sobre o Coração de Cristo, que permite a dor, mas olha que condena o desespero. Sobretudo, não desanimes e compreende que vou para um mundo melhor, onde já não existe a dor, e donde velarei por ti! O resto da tarde mãe e filha o passaram em diálogos sublimes. Adriana, beijando as mãos da moribunda, tentava aquecê-las; mais forte agora, escutava as últimas recomendações da mãe. Era completo o silêncio no vasto palácio. Faustina e Glicéria tinham recolhido mais cedo aos seus sumptuosos aposentos, esquecendo-se de reclamar a presença de Adriana e não tendo notado a sua longa ausência. Quando nenhum ruído perturbava já o silêncio da noite, Quintília, que havia uns instantes estava profundamente recolhida, perguntou à filha: - Adriana, tinhas medo de sair só a esta hora? - Não, minha mãe, por vós serei capaz de ir ao fim do mundo; somente receio deixar-vos... se... - Se eu morresse durante a tua ausência?... - terminou a doente, sorrindo. - Não, filha, fica sossegada, que me encontrarás ainda. Não cumpri toda a minha missão neste mundo, antes de deixá-lo para sempre. - Se assim é, estou pronta a sair; onde quereis que vá? - Com certeza que adivinhaste?... Vai ter com o venerável Justiniano: foi ele quem abriu os meus olhos à luz da fé, será ele também quem mos abrirá para os bens eternos que me esperam; habita na casa da viúva do prefeito Cásio. Dar-te-ás a conhecer como cristã, dizendo-lhe apenas: "Minha mãe vai morrer", e voltarás imediatamente. Prepara-te, minha filha, e sê prudente. Adriana não precisava desta recomendação; vigilante e tomando mil precauções, saiu do palácio, procurando conhecer as ruas da cidade. A habitação da venerável viúva Marcela não ficava longe; depressa Adriana lá chegou e bateu à porta. Certamente que em casa do zeloso e intrépido pastor estavam habituados a estas visitas constantes, pois, mal Adriana bateu, logo a porta se abriu e o velho porteiro, de longa barba branca, apareceu perguntando que desejavam; a filha de Quintilha respondeu-lhe que era cristã e vinha buscar Justiniano para que administrasse os últimos sacramentos a uma moribunda. Imediatamente o ancião a mandou entrar, indo buscar o sacerdote que, apesar da sua avançada idade, e dos perigos sempre iminentes, desceu sem hesitar. Ao reconhecer Adriana, uma nuvem toldou o seu rosto venerável. - Não é para a vossa mãe que vindes buscar-me, pois não? - Sim, meu Pai, é para ela, que me manda dizer-vos: "Meu Pai, Quintília vai morrer e reclama-vos". O ministro de Deus não hesitou um instante apesar do perigo que havia para ele em penetrar de noite no palácio, tão bem guardado, do perseguidor dos cristãos. - Esperai por mim um instante, minha filha, - disse ele simplesmente a Adriana, - eu irei convosco. Com efeito, voltou quase logo, pondo-se a caminho com a escrava. Profundamente comovidos, chegaram ao palácio sem proferir palavra. Adriana estava ansiosa por tornar a ver a mãe: cada segundo passado longe dela parecia-lhe um século. Por seu turno Justiniano sentia o seu coração paternal oprimido por uma dor pungente. Quantos dos seus filhos vira já partir para a outra vida, e agora, era a vez desta alma que se lhe tornara tão querida pelos seus sofrimentos e pela sua virtude! Lágrimas silenciosas rolavam pelo seu rosto. Adriana e o seu companheiro foram obrigados a tomar mil precauções para penetrar no palácio e poder chegar ao quarto onde a doente os esperava. O sacerdote aproximou-se do leito de Quintília que, ao vê-lo, exultou de alegria. - Trago-vos Aquele que esperais, - disse-lhe ele, inclinando-se para ouvir a sua confissão. Justiniano trazia sobre o peito a Hóstia Santa; deste modo, foi verdadeiramente Jesus quem se inclinou sobre aquele leito de dor, para ouvir as confidências daquela alma. Adriana afastara-se por uns instantes; a um sinal da mãe aproximou-se e estendeu sobre o leito uma toalha branca; ajoelhada, com a alma a transbordar de dor, e ao mesmo tempo de uma alegria inefável, recebeu com a mãe a sagrada hóstia, penhor de ressurreição para os mortos e de grande conforto para aqueles que são obrigados a continuar a luta entre os espinhos da vida. Depois de dirigir a Quintília algumas palavras de incitamento, Justiniano afastou-se, deixando a mãe e a filha mergulhadas nas alegrias da acção de graças. Quintília permaneceu por tanto tempo recolhida e imóvel que Adriana lhe agarrava por vezes as mãos, receando que a vida se tivesse escapado daquele corpo debilitado. A moribunda abria então os olhos, sorria à filha e retomava a sua oração. Quando os primeiros clarões da aurora iluminaram as janelas do palácio, colorindo-as de Uma cor rosada, Márcia veio acordar as escravas, para mandar cada uma cumprir as suas obrigações. Depressa deu pela falta de Adriana, acabando por encontrá-la ajoelhada junto ao leito de Quintilha. - Que fazes aí? - perguntou-lhe bruscamente. - Por que motivo não começaste já o teu trabalho? Estás, por acaso, convencida de que esta mulher precisa de ti para morrer? Adriana, irritada, ia a responder, mas Quintília continuou com suave firmeza: - É a minha filha, Márcia, deixa-a ficar; é ela quem há-de fechar-me os olhos quando eu dormir o sono eterno. A escrava liberta encolheu os ombros com ar de compaixão. - A "sua" filha!... a pobre mulher delira! Afinal isso é contigo, Adriana, se quiseres ficar, fica. Arranja-te depois com os teus senhores. Proferidas estas palavras, retirou-se; então Quintília disse à filha: - Tenho ainda um último dever a cumprir antes de morrer, uma última tentativa a fazer junto de teu pai. Vai dizer-lhe que desejo falar-lhe. - Quererá ele vir? - perguntou Adriana com ar duvidoso. Por vezes, à hora da morte, lê-se no futuro, e por isso Quintilha respondeu sem hesitar: - Tenho a certeza que sim. Adriana dirigiu-se imediatamente aos aposentos do patrício; dois escravos negros guardavam a porta, esperando o momento do seu despertar, e tentaram impedir que ela entrasse. - Deixai-me passar, - disse-lhes com voz firme, - tenho que falar ao vosso Senhor. - Não pode ser, ainda dorme. - Acordá-lo-ei. Intimados por este tom de comando, e impressionados com a palidez e tristeza impressas no rosto de Adriana, os escravos supuseram que tivesse acontecido algum desastre a Faustina ou a Glicéria, e deixaram entrar a triste mensageira. Habituando-se pouco a pouco à obscuridade, Adriana avançou até ao leito em que Flávio dormia o sono febril de uma consciência agitada pelo remorso. Fixou por instantes aquela fisionomia que Uma vontade implacável deixava sempre impassível, mas que naquele momento estava atormentada, inquieta, a ponto de inspirar dó. Flávio continuava a dormir; Adriana chamou-o suavemente: - Senhor! Ao ouvir esta voz, o patrício acordou e, abrindo os olhos, exclamou aterrado: - Ainda tu, Quintília! Hás-de perturbar eternamente a minha tranquilidade? - Não sou Quintília, - respondeu Adriana, - a sua filha. - A filha dela!... Adriana!... - Sim, meu senhor, e venho, junto de vós, enviada por ela. - Enviada por ela?... A mim?... Adriana fixou o olhar no de Flávio, dizendo gravemente: - Meu pai, minha mãe está a morrer e quer ver-vos. Vinde comigo. Dominado e fascinado por aquele tom calmo e autoritário, o patrício levantou-se, seguindo sem demora a filha, dócil, como um hipnotizado segue o hipnotizador. Ao entrar no quarto em que Quintília agonizava e ao ver aquele lindo rosto sobre o qual a dor, causada por ele, havia cavado sulcos tão profundos, o patrício teve medo e tentou fugir, mas Adriana, pálida e resoluta, de lábios cerrados, perfilara-se no limiar da porta como que a impedir-lhe a passagem; tremendo, Flávio aproximou-se do leito da doente. Vinha-lhe ao pensamento aquela tarde em que tivera conhecimento de que Quintília mudara de religião e todas as circunstâncias de tão triste cena; parecia-lhe ver ainda aquela pobre criatura, que barbaramente espancara, aniquilada diante dele e a filha, cheia de coragem apesar da tenra idade, avançando para defender a mãe. A despeito de todas as precauções tomadas, mãe e filha tinham-se reconhecido; certamente haviam falado do passado e acalentado no seu espírito algum projecto de vingança. Sendo pagão, Flávio ignorava por completo a beleza do perdão cristão, porém, sabia que esta seita desprezava a vida e era indiferente aos piores suplícios, e isto levava-o a pensar que Adriana ter-se-ia talvez exposto ao perigo para satisfazer os naturais desejos de vingança contra o seu carrasco e, só, entre uma mulher moribunda e uma criança, ele, o altivo patrício, teve medo. - Aproximai-vos, Flávio, - disse-lhe Quintilha. - Mais... mais um pouco... Não tenhais receio. Não quero mal a ninguém e só vós deveis ouvir o que quero dizer-vos. Quando Flávio se inclinou sobre o leito, Quintília continuou em voz baixa: - Flávio, quem está prestes a morrer, tem o direito e o dever de falar livremente: Sois muito culpado; todavia, perdoo-vos todo o mal que me fizestes a mim e à minha filha, a nossa boa e inocente Adriana que tornaste tão infeliz. Tudo isto, repito-o, vos perdoo; mas, há um Deus no céu que vós negais e que, apesar disso, existe; Ele usa por muito tempo de misericórdia, mas depois julga com inflexível severidade. "Foi este mesmo Deus que ultrajastes mais do que a nós ao violardes os vossos deveres de esposo e de pai, ao perseguirdes os cristãos, fazendo-vos o seu carrasco. Os mártires que conduzistes ao suplício pedirão por vós, mas as suas orações não poderão aplacar a cólera divina se vós não juntardes a elas as vossas próprias súplicas, as vossas expiações e sofrimentos. Escutai-me bem, atentamente, não tornareis a ouvir a minha voz durante a noite, nos pesadelos que vos atormentam e que também vos dizem a verdade". "Tendes ainda tempo de arrepender-vos, suplico-vos que o não deixeis passar... Aproveitai o reino da misericórdia, não espereis pelo da justiça. Tendes uma mulher e uma filha a quem amais... Deus servir-se-á delas talvez para castigar-vos, pensai bem nisto". Depois, chamando Adriana que se conservava de pé encostada à porta, continuou: - Tendes sagrados deveres de justiça a cumprir para com esta criança, não o esqueçais... E agora, Flávio... adeus por esta vida... Acalento a doce esperança de tornar a encontrar-vos na outra; que este meu último desejo seja uma palavra de esquecimento e perdão. Ficai sabendo que nunca deixei de amar-vos e de pedir a Deus para que os vossos olhos se abram um dia à verdade. O prefeito empalidecera; apoderara-se dele uma angústia profunda; sentia-se perturbado até ao mais intimo do seu ser; e obedecendo a uma força superior à sua vontade, dobrou o joelho diante da moribunda: - Fui cruel para convosco, Quintília, não mereço a vossa indulgência. - Por mim perdoo-vos; porém, não se trata agora de obter a minha misericórdia mas a de Deus. Quintília fez então sinal a Adriana para que deixasse sair o pai e se aproximasse dela; Flávio, julgando fugir ao remorso afastando-se das suas vítimas, deixou precipitadamente o quarto e voltou para os seus aposentos. Alguns momentos depois Quintília, voltando-se para a filha que se ajoelhara junto do leito, disse-lhe: - Faça ele o que fizer, Adriana, lembra-te de que Flávio é teu pai e que, como cristã, lhe deves respeito, amor e perdão... Adeus, minha filha, do céu velarei por ti! Ditas estas palavras, os seus olhos amorosamente fixos sobre Adriana, velaram-se, as mãos tornaram-se frias, a respiração foi rareando; Adriana, dando um grito, caiu desmaiada. Quando voltou a si, encontrou-se só no mundo. 8. A VISTA IMPERIAL Não existe dor, por mais profunda que seja, que o tempo não venha suavizar. Adriana, que julgara morrer ao perder a mãe, admirava-se alguns meses mais tarde de se encontrar ainda neste mundo, sem que nada tivesse mudado na sua maneira de viver. "Mas então a dor não mata", dizia ela consigo mesma. Não, quando é suportada corajosamente, isto é, cristãmente. A jovem escrava, cuja vida amadurecera numa só noite, era digna em tudo de ser a filha de Quintília. Um ano havia passado desde a morte desta; estava-se na véspera de Uma visita do imperador ao palácio do prefeito de Gaeta, visita que punha em movimento os numerosos escravos de Flávio. Este, apesar de todos os seus esforços, não conseguia repelir a contínua visão de Quintília, moribunda, repetindo-lhe a palavra de perdão sem contudo lhe poupar a censura das suas faltas. Desde aquele momento o desgraçado não mais pudera gozar um só instante de felicidade. A ameaça formulada a respeito da mulher e da filha ressoava com persistência aos seus ouvidos. Era em vão que tentava rir-se dela e que não queria dar crédito ao delírio de Uma moribunda irritada contra ele - não conseguia afastá-la do espírito e aquelas palavras proféticas tomavam por vezes o aspecto de uma tremenda realidade. Como poderia sofrer por causa de Faustina e de Glicéria, que amava cada dia mais? Ele próprio parecia atrair a tempestade que pairava sobre a sua cabeça, blasfemando contra o céu e contra a pobre morta, em vez de procurar evitar o castigo, reparando as suas faltas. Dir-se-ia que, por uma estranha aberração de espírito, tinha concentrado sobre Adriana todo o ódio que alimentava contra a primeira mulher. Insensato! Para afrontar o Deus dos cristãos, do qual era obrigado, contra a sua vontade, a reconhecer o poder, afastava-se d'Ele, sentindo prazer em humilhar, em fazer sofrer, sem todavia conseguir obter aquela paz de espírito a que aspirava. A morte de Quintília havia transformado radicalmente Adriana: já não era aquela criança vingativa que odiava e desprezava os verdugos da mãe e os seus; tornara-se uma cristã segundo o coração de Deus, perdoando e compadecendo-se daquele a quem a mãe moribunda havia perdoado generosamente. Como Flávio, Adriana não esquecera aquele momento que lhe roubara a mãe. Quintília tornara-se grande a seus olhos, via-a cingida da auréola dos bem-aventurados. A mãe, que sempre amara, parecera-lhe sublime naquele momento de generoso perdão; tomava-a para seu modelo, esforçando-se por imitá-la e, lutando contra a sua natureza impetuosa e altiva, depressa conseguiu assemelhar-se à querida morta. Era justamente esta a causa do ódio crescente de Flávio: via na filha um fantasma vivo, encarregado de alimentar na sua alma os mais veementes remorsos. Foi no meio destas circunstâncias que se recebeu a notícia da visita do imperador, a qual pôs em grande movimento o palácio e os jardins do prefeito. Por todos os lados se viam escravos polindo os metais, fazendo reluzir os móveis e estátuas de mármore, enquanto as escravas substituíam os cortinados de seda ou dispunham artisticamente açafates de flores de perfume delicioso. Nos jardins, limpavam-se as avenidas, colocavam-se plantas raras, abriam-se caminhos nos pequenos bosques cerrados donde podiam avistar-se, sobre as águas do Golfo, os navios embandeirados para os passeios e concertos que deviam realizar-se ao cair da noite. Porém, todo este movimento em nada era comparável à animação que reinava no quarto de Faustina. A indolente patrícia acordara ao raiar da aurora, chamando logo as suas escravas que, havia já algumas horas, procuravam tudo o que podia ser-lhe necessário; sobre uma placa de mármore ao seu alcance estavam cosméticos, sabonetes, perfumes: tudo, enfim, para se preparar segundo o costume das damas romanas - tarefa complicada - conforme as descrições dos autores antigos. Os lindos cabelos de Faustina caíam-lhe sobre os ombros e três camareiras se agitavam à sua volta sem, todavia, conseguirem satisfazer-lhe os caprichos. Adriana ocupava-se em tirar dos estojos de madeiras preciosas as pérolas destinadas a realçar a beleza da patrícia, quando esta a chamou bruscamente: - Vem cá, Adriana; estas inúteis não sabem fazer penteados; vê lá se me arranjas um que me fique melhor... se não... Sem parecer intimidada pela ameaça subentendida nesta última palavra, a escrava aproximou-se sorridente e, com mão hábil, pegou-lhe na farta cabeleira que parecia reflectir os raios dourados do sol; em seguida dividiu-a em tranças e pequenos caracóis. Dentro de poucos instantes havia conseguido um penteado que fazia sobressair toda a sua beleza deslumbrante. Durante o tempo que duraram estes preparativos, a fútil romana mirava-se a cada instante num espelho de aço polido, objecto de grande luxo nesses tempos; não podendo reter a expansão do seu contentamento, começou a bater palmas. O trabalho principal tinha sido habilmente executado, mas restavam ainda mil detalhes de grande importância. Foi preciso pelo menos uma hora para que Faustina se decidisse a escolher o que havia de calçar; finalmente optou por uns coturnos gregos de cor vermelha guarnecidos a galão dourado. Só a grande custo Adriana conseguiu atá-los a gosto da sua senhora; acertou por fim, depois de ter ouvido, por várias vezes, duras reprimendas. Finalmente, apenas faltava pôr a túnica; compunha-se esta de uma espécie de peplo comprido e amplo, preso aos ombros por bolas de metal e cingido por um cinto igual às bolas. Faustina não podia perdoar a Adriana de não lhe ter acabado a que desejava estrear por ocasião da vinda do imperador e da corte. Ela gozava em Roma de uma fama de elegância que se empenhava em justificar mais uma vez. No momento de escolher entre as suas túnicas a que devia pôr, Faustina deixou explodir a sua cólera em termos tão duros que Adriana, apesar da sua paciência e de todo o domínio que exercia sobre si mesma, não conseguiu reter as lágrimas. Enquanto se esforçava por enxugá-las, para que ninguém desse por isso, Glicéria, com a sua frescura infantil, entrou no quarto de Faustina e, depois de ter estendido o rosto para que a mãe o beijasse, pôs-se a examinar com curiosidade as riquezas que via espalhadas à sua volta. - Que lindo colar, - exclamou, pegando numa corrente ornada de safiras. - Coloca-a ao pescoço, Adriana! Adriana julgou-se no dever de obedecer imediatamente, o que deu lugar a que Glicéria reparasse nas lágrimas que ela procurava esconder. - Que tens? - perguntou-lhe em voz baixa. - Nada, ou... quase nada!... - respondeu a escrava. - Não vale a pena perturbar a vossa alegria por tão pouco. Glicéria tinha bom coração; o tom triste e resignado de Adriana impressionou-a mais do que se esta se tivesse queixado. Virando-se para Faustina, disse-lhe: - Querida mãe, se já não precisais de Adriana, permitis que ela venha vestir-me? - Primeiro vai ajudar Apolónia a pôr-me a túnica, - respondeu a patrícia, - depois podes dispor dela como quiseres. A túnica que obtivera as preferências de Faustina era de magnífica seda vermelha guarnecida de um fino bordado oriental executado, caprichosamente, a cores vivas e brilhantes, por Adriana, Paulina e Márcia, que nela haviam trabalhado sem descanso durante longos dias, de tal forma era difícil e feita com esmero. As senhoras romanas cobriam-se então de jóias dos pés à cabeça, mas Faustina, demasiado orgulhosa da sua beleza, à qual sabia que nada podia resistir, desdenhava os enfeites falsos; apenas cingiu os pulsos com dois braceletes de âmbar perfumado, da cor dos seus cabelos, e pôs ao pescoço um colar de ouro do qual pendia um camafeu finamente trabalhado. Terminados estes preparativos, Faustina, desejosa de ver o efeito que produzia, deu alguns passos no aposento, diante do espelho. Ao vê-la, Glicéria não pôde conter uma exclamação de espanto: - Que linda estais, minha mãe! Poderíeis passar por uma imperatriz. Faustina estremeceu ligeiramente. - Que linda estais! Que linda! - repetiu Glicéria ao mesmo tempo que os olhos extáticos das escravas pareciam repetir, em linguagem muda, as mesmas exclamações. Os lábios da patrícia esboçaram um sorriso de orgulho. - Pensas, então, Glicéria, que o imperador me achará digna dos seus olhares? - Com certeza! Não dizia ele ainda há pouco que ultrapassáveis, em beleza, as mais célebres mulheres da Itália? Mas, será sobretudo meu pai quem vai sentir-se feliz de vos ver a mais bela entre as mais belas! Flávio! Mas Faustina nem sequer nele pensava no momento em que todos os seus pensamentos eram para o hóspede ilustre que vinha, com a sua presença, honrar o palácio do prefeito. Havia já algum tempo que esta mulher astuta só se preocupava com a impressão que causara no espírito de César; do espírito ao coração vai só um passo; Faustina pressentira que Maximiano estava apaixonado por ela. Primeiramente rira desta paixão: mulher do prefeito de Gaeta, rica, feliz e poderosa, nada lhe faltava; mas, pouco a pouco, a sua ambição ia despertando. Ser imperatriz!.., que sonho!.. e... porque não? Outras, antes dela e de bem mais obscuro nascimento, haviam compartilhado do trono dos césares. Mas Flávio?... Surgia-lhe este como um fantasma entre ela e os seus sonhos ambiciosos. Apoderou-se então do seu coração um ódio feroz, preparando assim ao marido aquele castigo profetizado por Quintilha no leito da morte. Todavia, Flávio nada suspeitava porque Faustina, tão fingida como ambiciosa, o rodeava como antes de uma ternura aparente; se algumas vezes as palavras de Quintília vinham perturbá-lo, procurava convencer-se de que eram vãos receios sem fundamento. Não tardaria que um golpe terrível viesse feri-lo. Mas, não antecipemos a narrativa dos acontecimentos que vão marcar indelevelmente a passagem do imperador por Gaeta. Sigamos antes Glicéria que, acompanhada de Adriana, volta aos seus aposentos. A jovem patrícia desejava igualmente parecer bem, mas não queria outra ajuda que não fosse a da sua companheira habitual, cuja habilidade e inalterável bom humor tanto apreciava. Além disso, ao ver chorar Adriana, o seu coração comovera-se; estava ansiosa por encontrar-se a sós com ela para saber o motivo do seu desgosto. Logo que entraram no quarto e o espesso reposteiro impediu olhares indiscretos, Glicéria, voltando-se para Adriana e fixando nela o seu olhar límpido, disse-lhe: - Não receies falar aqui; dizei-me, porque choravas há pouco? - Por nada.., - tentou responder a escrava. Glicéria tapou-lhe a boca. - Vamos, Adriana, tu não sabes mentir, - disse-lhe sorrindo. - Não te faças, pois, rogada: o que tens? - Quereis sabê-lo? Não é nada de extraordinário, e uma escrava deveria estar suficientemente habituada às repreensões para não chorar ao recebê-las. - Certamente foram injustas? - perguntou Glicéria. - Então compreendo, sentes-te revoltada? - Revoltada não, - respondeu Adriana com doçura: - a revolta é um pecado. Mas, custa ser repreendida quando não se cometeu falta alguma. - Porque te não justificas? Quem te acusou? - Vossa mãe encolerizou-se porque não terminei aquela túnica de seda branca que estou a fazer há tanto tempo e que ela queria pôr precisamente esta semana. - Oh! - exclamou Glicéria penalizada; - fui eu a causa do teu sofrimento! Tantas vezes te fiz deixar o trabalho! Tu bem me dizias "que era obra de pressa, que a não podias interromper", mas eu insistia sempre e então satisfazias o meu capricho. Deves estar sentida comigo. - Sentida convosco? Que ideia, Glicéria, não posso ter contra vós, que sois tão boa, o menor ressentimento. - Não te compreendo, Adriana: como é possível que nunca sintas rancor aos que são para ti a causa de tantos tormentos e desgostos? E, o que fazes para nunca te zangares?, - perguntou a encantadora menina, pondo a mão no ombro da camareira. - Porque... Adriana ia a responder; mas, empalidecendo, balbuciou e deixou escapar um grito doloroso. - O que tens? O que aconteceu? - continuou Glicéria apavorada. - Magoei-te?... Mas, antes que a escrava respondesse, Glicéria, entreabrindo-lhe a túnica, reparou no seu ombro macerado pelas pancadas de Márcia. Ao ver isto pôs-se a chorar. - Oh! Pobre Adriana, - exclamou Glicéria; - mas não foi minha mãe quem tão cruelmente te bateu? - Foi Márcia. - Ah! Quanto a detesto! Será castigada por sua vez. - Isso não, Glicéria, não o fareis, - respondeu Adriana, rindo da indignação da criança, apesar da dor ressentida. Márcia não fez mais do que o seu dever: obedeceu à nobre Faustina. - Como? Minha mãe, tão boa, poderá dar ordens tão cruéis? - murmurou Glicéria. - Fica descansada, Adriana, que intercederei por ti; de futuro será mais indulgente. Parece-me ter notado, mas não podia crê-lo, que ela é muito severa para ti e que, por vezes, dir-se-ia que te odeia; isto admira-me bastante; quem sabe se alguma vez não a terás ofendido sem querer? - Talvez, - respondeu Adriana sorrindo. Depois calou-se e as duas permaneceram durante alguns momentos em profundo silêncio. - Escuta, Adriana, que movimento vai no palácio! - observou Glicéria que não podia deter-se por muito tempo no mesmo pensamento, fosse ele alegre ou triste. - Olha para todos aqueles escravos que vão de um lado para o outro, lançando flores sobre a estrada. Está a aproximar-se a hora da chegada do imperador e eu ainda por vestir. Meu pai não ficaria contente se não estivesse pronta. Ajuda-me... depressa... "Há já algum tempo que acho meu pai com um ar triste; deve ter algum desgosto íntimo. Se tivesse a tua idade e fosse ajuizada como tu, Adriana, talvez que ele mo confiasse; mas... considera-me uma criança!" Adriana sorriu. - O teu sorriso significa talvez que ele tem razão? - continuou Glicéria; - pois fica sabendo que nem todos assim pensam. - De verdade? - Acredita. Da outra vez que estivemos em Roma, quando te levamos connosco - lembras-te? - Um dia em que passeava nos jardins do imperador com várias damas da corte e diversos oficiais, encontrava-se entre estes o nobre Emiliano. E recordas-te que me apeteceu ter uma coroa de rosas e te encarreguei de ma fazer? Não tinhas com que atar as flores e, apesar de toda a tua boa vontade, como o conseguiste; impacientei-me, ralhei-te e bati com o pé no chão. Então, Emiliano aproximou-se de mim e olhando-me severa e tristemente, disse-me: "Pensai, Glicéria, que já não sois uma criança!" dFiquei muito envergonhada e naquele momento tive vontade de odiá-lo. - Não devemos odiar ninguém, Glicéria. - Não sei, - disse ingenuamente Glicéria, - se seria capaz de perdoar a todos como tu, o que sei é que me era impossível detestar Emiliano, fizesse ele o que fizesse contra mim: tem sentimentos tão nobres, tão elevados! Nunca ouvi homem nenhum falar como ele! Uma emoção repentina se apoderou de Adriana e os seus olhos tomaram uma vivacidade estranha. - Acaso amais Emiliano, Glicéria?, - perguntou-lhe docemente. - Não sei, - respondeu a patrícia com uma certa unção na voz; - mas admiro-o profundamente. - É Deus que assim dispõe as coisas, - murmurou Adriana a meia voz: - que Ele seja bendito. - Que estais a dizer? - Digo que, se amais Emiliano, só poderá ser para a vossa felicidade. Enquanto as duas assim falavam, iam preparando tudo para enfeitar Glicéria e, graças à habilidade de Adriana que nisso pôs toda a sua boa vontade, a filha estremecida de Flávio apareceu vestida com o mais requintado gosto e uma elegância rica mas simples. Nos seus lindos cabelos louros que lhe formavam um diadema à volta da fronte, Adriana pusera um tufo de flores de um branco rosado. Tinha ao pescoço um colar de ouro e rubis; os braços estavam adornados com ricos braceletes que faziam realçar a sua brancura. Uma túnica de tom indeciso, de um cinzento pálido um pouco rosado, como as nuvens da manhã que deixam adivinhar o sol nascente, caía-lhe em pregas graciosas sobre os pés pequeninos calçados com sapatos de pelica, guarnecidos com um bordado de gosto requintado. Flávio, inquieto por não ver aparecer a filha e receando que ela não estivesse pronta à chegada do imperador, entrou no quarto; deteve-se no limiar da porta, impressionado com aquela beleza virginal que desabrochava como uma flor aos primeiros raios do sol; um sorriso de paternal orgulho iluminou a expressão do seu olhar, tantas vezes contraído pelas preocupações íntimas. Porém, ao reparar em Adriana, um arrepio lhe passou por todos os membros; o seu coração sentiu uma emoção repentina, parecendo-lhe que uma fibra, que há muito julgava quebrada, vibrava dolorosamente. Que contraste entre aquela filha, objecto de tantos carinhos e adulações, tão graciosa na sua elegante túnica, e a escrava que ali estava de pé, na sombra, numa atitude de humilhação, mas apesar disso tão nobre! Esta escrava, de rosto pálido pelas fadigas de cada dia, esta pobre criatura calçada de sandálias e grosseiramente vestida.., não era também sua filha?.. Que fizera ela para perder a sua ternura?... Nada! Condenara uma inocente! Mesmo que a mãe tivesse sido culpada, a filha, sem dúvida, não podia sê-lo. Este pensamento foi como um raio de luz que momentaneamente lhe fez ver todo o horror da sua injustiça. Porém, se Flávio reconhecia a sua falta, ignorava a grandeza da reparação; apenas teve medo do castigo predito por Quintília, compreendeu quanto era merecido, sentiu-o próximo e fugiu como um louco do quarto, procurando distracções exteriores para nelas afogar os remorsos que lhe despedaçavam a alma. Glicéria, fixando em Adriana um olhar cheio de tristeza, perguntou-lhe assustada: - Compreendes alguma coisa? Sabes, por acaso, o que tem o meu pobre pai? A que atribuir esta súbita loucura? - Sim, eu sei o que ele tem, - respondeu Adriana com voz grave e solene. - Oh! diz-mo depressa para que possa ir consolá-lo. - Nada posso dizer-vos, Glicéria, senão que existe um segredo entre vosso pai e uma campa. Talvez que um dia ele próprio vo-lo revele; quanto a mim, nada devo revelar. - Estás a fazer mistérios, Adriana. As tuas palavras assustam-me e, ao mesmo tempo, cativam-me: não sei que laços me unem a ti. Meu pai e minha mãe parecem odiar-te... e eu, ao contrário, amo-te tanto! Adriana, que escutava enternecida a sua querida irmã, ficou um instante indecisa ao ouvir as suas últimas palavras, mas depois, inclinando-se com entusiasmo sobre ela, agarrou-lhe a cabeça e beijou-lhe repetidas vezes a fronte, saindo em seguida precipitadamente, antes que a jovem patrícia pudesse compreender alguma coisa do que se passava. "Mas que mistério estranho me rodeia?, disse consigo mesma Glicéria ao encontrar-se só. - Se Emiliano vier com o imperador, hei-de contar-lhe tudo; talvez que ele me ajude a decifrar este enigma". Nesse momento chegou aos seus ouvidos grande tumulto vinde do exterior e Faustina, pálida de emoção, veio buscá-la para ir ao encontro do imperador, que Flávio havia recebido já à descida da carruagem. 9. EMILIANO O tempo corre veloz, sobretudo no meio de prazeres e distracções, tais como as que Flávio proporcionava aos seus hóspedes, numa variedade até então desconhecida em Gaeta. Cada dia novos divertimentos: espectáculos, bailes, concertos; e tudo isto suscitava a admiração dos convidados do prefeito e, ao mesmo tempo, a inveja de muitos deles. A gente de então não era menos perversa que a dos nossos tempos. Faustina e Glicéria faziam as honras do palácio com um requinte perfeito; dentro em pouco esta última, de rara beleza e inteligência superior, cativava todas as simpatias. Entre os numerosos oficiais que acompanhavam o imperador, um notou e procurou de modo especial a encantadora donzela. Era um jovem patrício chamado Emiliano, descendente da nobre família Marcelo, que Maximino distinguia com a sua amizade. Os seus sentimentos nobres e elevados, a sua franqueza cheia de energia, junta a um raro bom senso, coisa difícil de encontrar na maioria dos jovens, tão superficiais quando não corrompidos, faziam-no admirar por todos. A calma e a distinção de maneiras de Emiliano conciliavam-lhe a amizade, mesmo dos mais desvairados dos seus companheiros e faziam também com que, apesar das suas eminentes qualidades, só contasse amigos e não tivesse invejas. Os leitores devem recordar-se de que Glicéria, numa conversa íntima que tivera com Adriana, lhe havia feito compreender a sua inclinação pelo brilhante oficial. Aquela noite, Flávio tinha mandado iluminar freneticamente os seus maravilhosos jardins, todo o palácio, e as margens do Golfo. O espectáculo ia ser deslumbrante, e por isso a noite era esperada impacientemente por todos. Depressa o sol começou a declinar no horizonte, iluminando o céu e as ondas do mar com os seus últimos raios, transformando-os numa imensa fornalha de ouro em fusão. Pouco a pouco o seu disco diminuiu e depois escondeu-se, deixando atrás de si uma cor rosada que, empalidecendo, desapareceu aos poucos para dar lugar à noite. Flávio e os seus hóspedes haviam assistido, da praia, ao pôr do sol e dispunham-se a regressar aos terraços, onde os escravos terminavam os últimos preparativos para as iluminações. Glicéria, de pé, a um canto, não se resolvia a segui-los e, deixando a multidão dos convidados juntar-se a eles, encostou-se a um rochedo com a cabeça apoiada entre as mãos, parecendo mergulhada em profunda meditação. Emiliano, que desde alguns momentos a seguia com o olhar, aproximou-se de mansinho e chamou-a. Glicéria, levantando-se de repente e virando-se, deixou ver as lágrimas copiosas que lhe banhavam o rosto: - Que tendes, Glicéria? - Balbuciou Emiliano assustado; - dizei-me, vos peço, que tendes? A patrícia, sorrindo por entre as lágrimas, respondeu-lhe - Choro pelo fim, este espectáculo era de tal maneira belo e grandioso que teria querido vê-lo durar sempre! - Mas as iluminações preparadas nos terraços por vosso pai terão também a sua beleza: não vedes que todos se apressaram a voltar para o palácio por lhes parecer que a noite tardava? - Não compreendo, - replicou Glicéria com ar indiferente e com uma vivacidade que fez sorrir Emiliano. - Como é possível preferir a luz daqueles lampiões de cores ao brilho esplendoroso do rei dos astros? - Não é essa a vossa opinião, não é verdade, Glicéria? Desdenhais as obras das criaturas para admirar as de Deus. - De que Deus? - perguntou maravilhada a patrícia. - Qual é o criador do sol que é, por seu turno, uma divindade?... - Acreditais verdadeiramente que o sol seja um deus?.. - Sempre assim mo disseram, - respondeu timidamente Glicéria já um tanto abalada nas suas convicções pelo sorriso incrédulo de Emiliano. - Como é possível então que esse deus, que deveria ser omnipotente, obedeça a uma lei invisível? Qual é então o ser de tal forma poderoso que é capaz de obrigá-lo a desaparecer a uma hora determinada, para sé reaparecer a outra - É verdade, - exclamou Glicéria, - nunca tinha pensado nisso. - Parece-me, continuou o oficial, - que uma divindade deve descer do seu pedestal ao perder o poder supremo. - É verdade! - disse ela outra vez. Dotada como era de grande perspicácia, de inteligência e boa fé, logo compreendeu claramente as palavras do seu interlocutor. Não é àquele que obedece que devemos adorar, mas sim ao que manda. Dizei-me, Emiliano, o nome desse Senhor do sol. - Agora não, - respondeu num tom gravo o oficial. - Espero poder fazê-lo um dia e talvez dentro em pouco. - Mas... falais como Adriana. Muitas vezes responde também às minhas interrogações com palavras misteriosas: porquê? Antes que o jovem oficial tivesse tempo de responder, ouviu-se, sobre a areia, um passo ágil e ligeiro. - Vede, - disse ele sorrindo, - estais a falar dela e hei-la que aparece. Era com efeito Adriana que procurava Glicéria para levá-la ao pai. inquieto já com a sua ausência prolongada. Todos três se dirigiram para o palácio, encontrando, à entrada do jardim, Flávio um tanto agitado, que vinha ao encontro da filha; esta, deu-lhe o braço e, juntos, seguiram alguns passos à frente de Emiliano e Adriana. Ao chegar ao primeiro terraço, Glicéria voltou-se e ficou admirada de vê-los parados junto da porta a falar com vivacidade, mas era voz baixa, e Adriana tirar do peito um pergaminho dobrado que entregou ao oficial. O seu coração cândido ignorava o ciúme, apesar disso sentiu uma impressão dolorosa; porém, a agitação que reinava no palácio e as iluminações verdadeiramente feéricas dos jardins distraíram-na, fazendo-a retomar depressa o seu encanto habitual. Flávio mandara ornamentar a sua habitação com um gosto especial e um luxo inédito. Na fachada estavam dispostos, em forma de grinalda, lampiões de diversas cores, formando desenhos indefinidos e variados. As avenidas eram iluminadas por duas filas de pequenas lanternas venezianas cuja luz incidia sobre as flores dos canteiros e sobre as nobres senhoras em indumentária de festa que passeavam, conversando, em companhia dos oficiais do palácio e do imperador. As árvores do bosque tinham também lampiões que sobressaíam por entre o verde sombrio das folhas. Grande número de archotes, colocados artisticamente à beira-mar, reflectiam na água o seu rasto luminoso enquanto que das pequenas embarcações que sulcavam o mar se elevavam deliciosas melodias que a brisa da noite deixava chegar aos ouvidos dos passeantes. Maximino por mais que uma vez havia dirigido a Flávio os seus calorosos elogios pela magnificência ostentada naquela festa, e o prefeito, exultando de alegria, esquecia, na embriaguez do triunfo, preocupações, receios e remorsos. A esposa nunca lhe tinha parecido tão bela: seguia-a com um olhar maravilhado e, cada vez que esta mulher astuciosa o encontrava, sorria-lhe, dirigindo-lhe palavras afectuosas. Quanto poderia ele suspeitar da odiosa armadilha preparada por Faustina e por aqueles a quem acabava de oferecer tão sumptuosa hospitalidade? A noite terminou com os aplausos de todos os convidados. Finalmente, cada qual retirou-se para os seus aposentos e, durante a noite, as últimas iluminações foram-se apagando, não deixando, como rasto, mais que um pouco de fumo, imagem fiel do que resta das festas mundanas não inspiradas por algum pensamento elevado. No dia seguinte, logo ao amanhecer, Adriana e as suas companheiras apressaram-se a fazer desaparecer todos os sinais das festas da véspera. à luz crescente do dia os jardins tomavam o aspecto desolador de lugares destruídos por um incêndio: o solo estava coberto de cinza e de pedaços de madeira carbonizada, últimos vestígios dos numerosos archotes; lâmpadas apagadas pendiam dos ramos das árvores, cujas folhas estavam todas queimadas pelo calor. Ao ver uma tal transformação, Adriana sorriu de compaixão. "Que é feito do esplendor de ontem?", disse em voz baixa ao apanhar uma pulseira partida, perdida na areia. - Tudo se dissipou como o fumo, - respondeu Emiliano que também se levantara cedo para respirar o ar fresco da manhã e que, ao passar perto de Adriana, ouvira a sua reflexão. Olhando ao redor e certificando-se de que vários arbustos os encobriam de olhares indiscretos, prosseguiu: - Julguemo-mos felizes, Adriana, por não dar-mos valor a esta felicidade de um dia, e firmarmos todas as nossas esperanças nos tesouros que jamais perecerão. - Sim, bem-aventurados, - suspirou Adriana com o rosto resplandecente e como que transfigurado pela recordação das promessas divinas. - Mas, como me entristece pensar em Glicéria que, tão digna de conhecer a verdadeira fé, permanece ainda mergulhada no erro! - Consolai-vos, Adriana: sigo-a de perto e cada dia me convenço mais de que ela se vai aproximando de nós. A sua sinceridade e a sua profunda inteligência não podem deixar-se enganar pelas fábulas grosseiras do paganismo. Cada momento lhe traz novas desilusões e, quando tiver caído essa nuvem de poesia doentia que cobre com o seu véu ídolos horrendos, Glicéria será dos nossos. - Queira Deus que assim seja, nobre Emiliano; desejo-o ardentemente, mais do que podeis calcular; unem-me a ela laços tais... Calou-se de repente. O olhar do oficial fixara-se no seu, admirado, maravilhado com aquela animação tão diferente da sua calma habitual; então, elevando um pouco a voz, Adriana continuou: - Glicéria foi sempre tão boa para mim! Sim, é uma alma privilegiada, uma jóia preciosa que ignora o seu próprio valor, - replicou Emiliano que, por seu turno, se calou confundido por ter deixado escapar o segredo do seu coração. - Rezaremos por ela esta noite, - respondeu Adriana depois de uns momentos de silêncio; - espero que venhais. Lestes a carta que vos trouxe ontem da parte do santo sacerdote Justiniano? - Li; esse bom pastor que reconhece e até adivinha as suas ovelhas, digna-se admitir-me no seu rebanho. - Fazei o possível por estardes pronto à meia-noite; saí sem ruído do vosso quarto e descei por aqui: esta porta nunca está fechada nem vigiada; é sempre por ela que passo; por isso espero que, tomando as devidas precauções, possais fazer o mesmo. - Mas não conheço o caminho a seguir e ignoro por completo qual o local da reunião. - Fica na estrada de Roma, já fora da cidade, nas criptas subterrâneas do cemitério. - O quê! No centro desta cidade somos também obrigados a escondermo-nos no fundo das catacumbas para adorarmos o verdadeiro Deus? - Ainda duvidais, nobre Emiliano? Flávio... - ia a dizer Adriana que logo emendou - os pagãos de Gaeta odeiam-nos como os de Roma. - E Flávio também! Ieis a dizê-lo e não podeis negá-lo, exclamou tristemente Emiliano. Adriana baixou a cabeça. - O seu cargo de prefeito obriga-o a perseguir-nos... e, além disso, não faz mais que partilhar dos erros de todo este povo. - Não o condeno mais que a todos os outros perseguidores, mas tremo com a ideia de que Glicéria vá excitar a cólera do pai, convertendo-se à fé cristã. - Emiliano, - continuou a escrava tristemente surpreendida e quase indignada, - como consentis que tal pensamento perturbe a vossa alma? Que importância poderiam ter as cadeias que ligassem os seus braços e até a morte que a ameaçasse, se Glicéria comprasse por esse preço uma liberdade e uma felicidade eternas? - Tendes razão, Adriana; envergonho-me da minha fraqueza. Esta noite pedirei força e coragem ao Deus que nos conforta e amanhã terei uma conversa decisiva com Glicéria. - Tenho a certeza de que sereis bem sucedido: Deus abençoar-vos-á, não permitindo que Flávio descubra a nossa empresa. Até logo; esperar-vos-ei aqui. Ao proferir estas palavras, a escrava preparava-se para retomar o seu trabalho que a consciência lhe censurava ter deixado por um longo espaço de tempo, quando, ao virar-se, viu Glicéria que sorria atrás dela a tremer, com a fisionomia transtornada e os olhos inchados de chorar. - O que tendes? Que vos aconteceu? - exclamaram ao mesmo tempo Adriana e o oficial, que se tinham aproximado da patrícia. - Deixai-me, suplico-vos, não posso mais. - Razão tanto maior para que vos não abandonemos, Glicéria, - respondeu Adriana. Depois, fazendo-lhe sinal para que se sentasse, colocou-se diante dela, ao mesmo tempo que o oficial se afastava discretamente. Então, fixando Glicéria que se obstinava em ter os olhos baixos, chorando sempre, Adriana começou a interrogá-la carinhosamente, como poderia fazê-lo uma mãe e, apesar da resistência da criança, conseguiu descobrir o segredo de tão grande desgosto. Glicéria tivera uma noite inquieta, sobressaltada, com sonhos estranhos e impressionantes; por este motivo, logo ao romper do dia se levantara e, apoiada ao peitoril da janela, procurava na frescura matinal e no sossego da natureza remédio para a sua agitação. De Longe, avistara Adriana que havia começado já o seu trabalho; viera-lhe então à ideia ir ter com ela mas, ao aproximar-se, reparou que a escrava não estava só mas sim conversando com Emiliano. De quando em quando a conversa chegava-lhe aos ouvidos, e apesar de não conseguir entender o sentido das palavras proferidas, compreendeu que entre os dois existia uma mútua confiança que nunca tinham demonstrado na sua presença. Certamente entre eles não havia segredos, nem mesmo aquelas reticências que eram muitas vezes a resposta às suas perguntas. Quanto desejaria que Emiliano e Adriana a julgassem digna da sua confiança!... Tinha por eles uma tão grande dedicação, admirava-os tanto! Enquanto assim falava, ora hesitante ora parando para enxugar as lágrimas que continuavam a embargar-lhe a voz, Emiliano, a quem Adriana chamara a atenção, avançara pouco a pouco e ouvira o ingénuo desabafo daquela alma inocente. Trocou com Adriana um olhar significativo e esta pegou na mão de Glicéria, apertando-a entre as suas. - É verdade, Glicéria, temo-vos escondido um segredo que nos é comum, disse-lhe num tom grave (depois de se ter assegurado de que ninguém a escutava), porque se trata de um sigilo que deve ser guardado rigorosamente até que chegue o momento de revelá-lo - é qualquer coisa de terrível e de infinitamente bom ao mesmo tempo. Se vo-lo manifestássemos cedo demais, correríamos risco de não sermos compreendidos, de vos afastarmos de nós e até talvez.., quem sabe? de vos atemorizarmos. - Que dizes, Adriana? - exclamou Glicéria surpreendida ao máximo, - O nobre Emiliano e tu não podem inspirar-me senão estima e afeição. Adriana, abanando a cabeça, disse: - Talvez que assim não penseis quando nos tiverdes escutado; apesar de tudo vamos confiar-vos o nosso segredo para vos provarmos a confiança que temos na vossa amizade. - Seja o que for que me disserdes e fizerdes, - respondeu Glicéria, dominando a angústia que a oprimia, - jamais vereis diminuída a minha amizade. - Obrigada, querida Glicéria. Seria bem doloroso se nos tornássemos objecto de ódio de uma pessoa a quem temos tanto amor, - respondeu a escrava; - e, contudo, compreende-se que receássemos isto: vosso pai odeia os cristãos, o imperador persegue-os, o povo reclama em alta voz a sua morte... - Deus! - balbuciou Glicéria empalidecendo. - Somos cristãos, Glicéria! - disse em voz clara Emiliano, fixando o seu olhar sobre a patrícia espavorida. Houve um momento de silêncio e ansiedade. Glicéria escondeu o rosto entre as mãos mas, reagindo imediatamente, ergueu a fronte e olhou resolutamente para os dois amigos. A sua fisionomia tomara uma expressão de gravidade calma e serena como nunca tivera até então. - Compreendo tudo agora! Eis o segredo da suavidade e da força que sabeis opor aos mais desumanos maus tratos, do vosso desprezo pelos nossos deuses e do culto que prestais a uma Divindade mais poderosa que eles. Pertenceis àquela seita que não dá valor à vida presente, porque espera noutra que lhe trará uma felicidade eterna; à seita que adora um Deus grande e poderoso que nunca desce do Seu trono de glória. É uma religião elevada e bela que admiro e respeito do fundo do meu coração. - As vossas palavras, Glicéria, enchem-nos de alegria, - disse o oficial apertando-lhe a mão, - somente enganais-vos ao dizer que Deus não desce jamais do seu trono de glória: muito ao contrário, vem a nós cada vez que O chamamos; esta noite mesmo, assistiremos ao mistério inefável de um Deus que se humilha a ponto de, à voz de um homem, descer até junto dos seus filhos, encobrindo o esplendor da sua divindade para os confortar, abençoar e fortificar. Esta noite?.,, no cemitério?... Era então aí que combináveis encontrar-vos com Adriana? - Sim, era, - responderam os dois sorrindo. - E tu, querida Adriana, - perguntou Glicéria a tremer, - não tens medo de ir de noite a esse lugar? - Há já seis anos que lá vou e dentro em pouco fará dois que para lá me dirijo completamente só, - respondeu Adriana com simplicidade. Glicéria calou-se uns instantes, depois prosseguiu timidamente: - Já que desta vez ireis juntos, não querereis levar-me convosco? - O quê?... O que quereis É impossível. - Impossível? Talvez não possa ser admitida na vossa reunião? - Sim, sê-lo-eis, mas receamos expor-vos ao perigo. - Não vos expondes vós também? E se eu quiser compartilhar convosco esse perigo, se quiser também ser cristã? Ao mesmo tempo que Adriana, num sentimento de gratidão, elevava as mãos ao céu, Emiliano deixava transparecer no olhar uma alegria profunda. Glicéria, - disse-lhe ele com voz comovida, - agora já posso e devo confiar-vos o mais ardente de todos os meus desejos: a vossa alma é tão bela que quero arrancá-la aos ídolos impotentes para dá-la a Deus e consagrar a minha existência a fazer-vos feliz nesta vida e na outra. Desde há muito que sonho pedir a vossa mão a Flávio e, depois de vos ter desposado, levar-vos para longe de Roma (porque também lá somos perseguidos) para uma solidão feliz e tranquila onde vos farei conhecer toda a beleza da fé cristã. Permitis-me realizar o meu sonho? Glicéria, corando, estendeu a mão ao nobre oficial. - Sim, - respondeu, - quero! Mas será uma cristã que levareis connosco: esta noite mesmo abjurarei os meus erros e diante de Deus.. do nosso Deus, prometeremos um ao outro fidelidade até à morte; depois disto, podereis falar com meu pai. O sol ia já alto no horizonte; o pessoal do palácio começava a agitar-se: era preciso separarem-se. Glicéria, pensativa e recolhida, fechou-se no quarto; Emiliano rejubilava; quanto a Adriana, chorava de alegria, retomando o seu trabalho. 10. ESPOSOS CRISTÃOS Era noite, uma noite sombria, de trovoada: o céu cor de chumbo, escuro, e tudo, até o silêncio da natureza, inspirava terror e anunciava a aproximação de alguma tempestade. Apesar disso o palácio estava preparado para um espectáculo extraordinário. Flávio, sempre em busca de novos divertimentos para o seu hóspede ilustre, tendo sabido que se encontrava de passagem em Gaeta uma companhia de comediantes, contratara-os para virem ao palácio representar as suas melhores peças. Para este fim mandara armar num dos salões um teatro improvisado. Emiliano, Glicéria e Adriana, a princípio desconcertados com os preparativos que se faziam à sua volta, depressa se persuadiram de que, ao contrário, aquela festa, que ia concentrar todas as atenções dos espectadores, favorecia os seus projectos. Glicéria Passara todo o dia fechada no quarto com Adriana que lhe ia explicando, para satisfazer os seus desejos, os principais e mais sublimes mistérios da religião cristã O que mais seduzia a jovem neófita, era aquela união das almas, bem mais duradoura porque eterna - que a união material a única que coube - os pobres pagãos. E Glicéria amava instintivamente a crença que lhe oferecia o ideal tantas vezes sonhado pelo seu coração. Faustina estava de tal maneira ocupada com os seus convidados que parecia ter esquecido completamente Adriana; entretanto, desde a chegada do imperador, graças às distracções da vingativa patrícia, a escrava gozava de uma liberdade quase completa. Não deixou pois um só momento Glicéria durante todo o dia, que foi passado em conversas sublimes. - Como me sinto feliz, - repetia pela centésima vez a filha de Faustina; - como sou feliz por conhecer e partilhar da vossa fé! - Bem pensava eu, Glicéria, que um dia vos tornaríeis cristã! Já o éreis quase, sem o saberdes: e havia qualquer coisa que me dizia que, dentro em pouco, o seríeis de facto. - Mas fala-me ainda destas festas místicas, dessas solenidades que me descrevias e cuja narrativa trazia à minha alma uma suave alegria. Fala-me dessa união perfeita que une entre si todos os cristãos e os faz amarem-se como irmãos. Se soubesses como os julgava mal quando os meus olhos estavam ainda fechados para a luz da verdadeira fé!... Sentia ciúmes da intimidade que, por várias vezes, surpreendi entre ti e Emiliano!... Pensava que ele queria desposar-te - Apesar das nossas vidas serem iguais aos olhos de Deus, há contudo distâncias sociais que os cristãos devem respeitar e, por isso, o nobre Emiliano não podia ligar-se a uma escrava. - Uma escrava! Mas tens um ar tão nobre, Adriana. - Que importa! - respondeu a filha de Quintília; - e não é só o obstáculo de que acabo de falar-vos que se opõe a projectos de realização impossível. Já que me testemunhais tanta confiança, Glicéria, não quero que haja segredos entre nós. Vedes esta aliança? - Vejo, mas nunca tinha reparado nela. É tão esquisita! Glicéria ficou a olhar atentamente para uma argola de ouro sobre a qual estavam escritas cinco letras gregas formando a palavra: IXORE (peixe). Era, como se sabe, o sinal simbólico dos cristãos e as cinco letras representavam as iniciais das palavras: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. - Esta aliança, - disse Adriana, - é o laço que une a minha vida a Deus, eternamente. Quem a usa faz voto de não ter outro esposo neste mundo. - Como as nossas Vestais, não é? - Com a diferença de que, em vez de recebermos como recompensa da nossa virgindade honras e bens efémeros, alcançamos uma felicidade eterna no céu. Glicéria ficou pensativa, absorta nestas palavras de felicidade eterna. Adriana viu-se obrigada a chamá-la à realidade fazendo-lhe notar que era tempo de tomarem as últimas disposições para a saída nocturna. Ficou decidido que Glicéria iria ao espectáculo que se realizava naquela noite no palácio, mas que sairia antes do fim. Emiliano faria o mesmo e os dois reunir-se-iam para se encontrarem com Adriana que devia esperá-los próximo da porta secreta do jardim, tendo antecipadamente o cuidado de munir-se de um manto de cor escura para cobrir com ele a túnica branca de Glicéria. Deus protegia os intentos dos seus filhos: nenhum obstáculo veio impedir a realização dos projectos daquelas duas almas. A tempestade que já começara a anunciar-se, desencadeou-se de repente com extraordinária violência; mas o temporal não era coisa que assustasse os três viajantes que se sentiam sob a protecção da divina Providência e viam naquela fúria da natureza um meio posto por Deus à sua disposição para deixar passar despercebida a sua saída. O mar batia agitadíssimo contra os muros do jardim. Perto da porta secreta flutuava sempre um barquinho preso a uma grande argola de ferro. Os intrépidos jovens subiram para ele; Emiliano pôs-se aos remos. Não foi sem uma certa emoção e receio que Glicéria entrou na pequena embarcação. Ia jogar o seu destino e por isso o demónio, sempre pronto a perseguir as almas que dele fogem, apresentava-lhe aquela felicidade, apenas entrevista, tão incerta como aquele barquinho no meio das ondas furiosas. Mas Glicéria era dotada de um carácter forte e generoso; num abrir e fechar de olhos viu tudo o que se arriscava a perder e aquilo que estava certa de ganhar, não deixando que o desânimo se apoderasse da sua alma. Emiliano e Adriana, por seu turno, compreendiam também a gravidade do passo que Glicéria ia dar, ao mesmo tempo que conheciam a sua parte de responsabilidade, pias, apesar de todas estas considerações, nem um só instante pensaram em retroceder. Seguindo sempre a margem do rio, chegaram finalmente ao extremo da cidade; absortos nos seus pensamentos íntimos, fizeram todo o trajecto no mais profundo silêncio. Ao desembarcarem, saíram por uma pequena porta, seguindo pela estrada de Roma, ao longo da qual começaram logo a ver os mausoléus brancos, perfilados na escuridão como espectros. Glicéria, completamente transformada, desconhecia-se a si mesma: outrora, bastar-lhe-ia a ideia de atravessar o cemitério, àquela hora, para morrer de medo; e, agora, não sentia a menor impressão ao roçar com o seu manto pelo mármore dos túmulos. Era como se uma alma nova lhe tivesse sido infundida; os seus companheiros bendiziam o Senhor pela transformação operada naquela donzela, ainda ontem fraca e receosa. Antes de começar o augusto sacrifício, o venerável Justiniano, com quem Emiliano e Adriana haviam previamente falado, foi buscar Glicéria pela paixão; esta, vestida com a veste dos catecúmenos, esperava à porta da igreja. Ali, ajoelhou-se aos pés do sacerdote; em voz clara e firme declarou que renunciava aos erros do paganismo para abraçar a religião de Cristo. Então, o ministro de Deus levantou-a, impondo-lhe as mãos sobre a cabeça e, como os tempos que atravessavam eram cheios de perigos e ameaças para os cristãos, disse-lhe que, se ela quisesse, a agua santa do baptismo podia, naquele mesmo instante, regenerar a sua alma. Louca de alegria com a ideia de receber tão grande graça, Glicéria consentiu na proposta do santo Ancião. Para madrinha escolheu Adriana e, num gesto nobre de humildade, quis para padrinho um pobre velho, escravo, nas mãos do qual esvaziou toda a sua bolsa. Logo que a água baptismal caiu sobre a sua fronte, a jovem neófita levantou-se. Conduzida por Adriana, foi dar o beijo de paz às suas novas irmãs na fé; em seguida dirigiu-se para junto do altar. Emiliano avançou por sua vez colocando-se ao seu lado e ali, diante do Senhor, que ia selar a promessa dos seus corações, juraram um ao outro fidelidade até à morte. Justiniano abençoou-os e dirigiu-lhes palavras repassadas de emoção; depois, no meio do maior recolhimento, deu início ao santo sacrifício da missa. 11. VINGANÇA Muitos haviam sido os divertimentos, naquela noite de festa, no palácio de Flávio; nem faltaram, naquele pequeno mundo de luxo e de paganismo, os comediantes declamando, em versos pomposos, exagerados louvores aos Césares, que o imperador Maximiano, assim lisonjeado ali na sua vaidade e no seu amor-próprio, era sempre o primeiro a aplaudir. Faustina parecia, entretanto, alheada de tudo, e mesmo impaciente; as suas mãos torciam e pregueavam nervosamente a sua bela túnica de seda, ao mesmo tempo que assim distraída e inquieta, batia com o pé no pavimento de caprichoso mosaico. E de sobrecenho um tanto franzido, assim parecia mostrar, na verdade, o quanto lhe ia sendo desagradável já a continuação do espectáculo. Trocou então com o imperador uns sinais que só eles poderiam compreender. E logo que pôde afastar-se sem qualquer inconveniente que seria imediatamente notado, ela abandonou com cuidadosa elegância os seus hóspedes e desceu ao jardim, onde pouco depois apareceu Maximino. Logo se encontraram.., e, entre os dois, a conversa foi bastante animada... Nas luxuosas salas iluminadas do palácio, o calor tornara-se asfixiante. E embora, cá fora, a atmosfera naquela ocasião fosse bastante carregada, mais agradavelmente, contudo, se estaria agora no jardim, por onde pouco a pouco se dispersaram todos os convidados. Flávio, a quem as palacianas canseiras haviam conseguido distrair por vezes, de novo se deixou invadir pelos seus tristes pensamentos. E no desejo de os esquecer, de si tentando afastá-los, ia a dirigir-se a um dos grupos quando, ao passar junto de um tufo de árvores, ouviu pronunciar o seu nome. Parou, e imóvel ficou, como que pregado ao chão, atingido no mais íntimo do seu coração. - Flávio!... Oh! Não me faleis dele! Se soubésseis como o odeio! - dizia, numa expressão transbordante de ódio, a voz incisiva de Faustina. - Certamente não o odiais mais do que eu, - respondeu Maximino com ar sombrio; - quando o vejo entre mim e vós, sinto uma vontade louca de matá-lo. Faustina estremeceu ligeiramente. - Isso não! Isso não... Sois o seu senhor, podeis talvez obrigá-lo a afastar-se. - E, se assim acontecesse, seguir-me-íeis? - Faustina só poderá seguir-vos como vossa esposa, não o esqueçais! - respondeu a patrícia em tom decidido. - Podeis impor o divórcio a Flávio. - Flávio não aceitará esta imposição. - Apesar disso experimentai. Conheço-o muito bem e sei quanto vos ama: há-de, com certeza, revoltar-se. - Nesse caso, - retorquiu Faustina lançando um olhar perverso, - ele próprio irá contra o seu destino e então estareis vós no direito de fazerdes o que vos aprouver. Quando o imperador se afastou de Faustina, esta, julgando-se só, suspirava: "Seja por que preço for, quero ser imperatriz!" Depois, erguendo a prega da túnica, passou direita e calma diante de Flávio, roçando nele sem dar por isso e sem que o desgraçado, como que fulminado, tivesse a coragem de detê-la por qualquer gesto ou palavra. Quanto tempo permaneceria Flávio assim aterrado, insensível a tudo, excepto à sua própria dor? Os relâmpagos sucediam-se sem interrupção, iluminando tudo à sua volta; mas ele nada via, nem ouvia; nem mesmo o ribombar do trovão, tornando-se cada vez mais terrível, conseguia arrancá-lo aos seus amargos pensamentos; e nem até havia reparado que os seus hóspedes se tinham retirado, precipitadamente pelo mau tempo, e entrado de novo no palácio. Chovia agora, e alguma chuva caindo-lhe sobre a fronte, veio chamá-lo à realidade. O nobre romano teve então uma explosão louca de dor: andava a passes largos sob a chuva que se tornara torrencial, elevando para o céu os punhos cerrados, proferindo tremendas imprecações e, na sua fúria tresloucada, quebrava todos os arbustos que ia encontrando à mão, no seu caminho. De repente descortinou na escuridão da. noite uma sombra ligeira e diáfana que avançava ao seu encontro. Sobre a areia da avenida, mal tocando-a, essa aparição passava rápida e silenciosamente, em poucos instantes colocando-se bem perto de Flávio. Sob o véu que a envolvia, os seus olhos perturbados pelo remorso reconheceram a fisionomia de Quintília que lhe parecia tremente de cólera. "Vingança!...", exclamou, cobrindo o rosto com as duas mãos e correu para o palácio, sem ter sequer reconhecido Adriana, que se dirigia para o lugar combinado com Glicéria. Flávio, com as vestes completamente encharcadas, entrou nos seus aposentos como um leão no covil, invadido pelo cansaço e espumante de raiva. Poucos minutos depois alguém, afastando discretamente o reposteiro da porta, apareceu na sua frente. Flávio soltou um grito enfurecido: - Que desejais? Não chamei ninguém. - Pois não.., mas... devo informar-vos de assuntos da maior importância. Ao ouvir esta voz, o patrício virou-se e ao reconhecer o intruso e importuno, uma expressão de desprezo se desenhou no seu rosto: - Mais uma vil denúncia, - disse com ar de repugnância; - não estou disposto a escutar-vos. O recém-chegado baixou humildemente a cabeça: - Em conformidade com o vosso desejo, nobre Flávio, retirar-me-ei. Depois, continuando em tom da mais hipócrita submissão: - Contudo, havíeis-me recomendado de não perder de vista estes cristãos Flávio, senhor de si mesmo, fixou sobre o espião um olhar perscrutador: - As tuas pesquisas obtiveram resultado satisfatório? - Espero que sim! - Descobriste finalmente o local das suas reuniões sacrílegas? - Descobri. Estão justamente reunidos neste momento: se quiserdes pôr alguns soldados à minha disposição, apresentarei amanhã, perante o vosso tribunal, esses rebeldes que até agora procurastes em vão. - Está bem, - interrompeu nervosamente o prefeito; - dá-me uma folha de pergaminho para que assine a ordem que reclamas. O infame espião trazia uma já preparada e assim Flávio pôde, com umas simples linhas, que rapidamente escrevera, decidir da sorte de todos os cristãos reunidos, naquele momento, nas catacumbas. pondo o seu selo naquela ordem cruel que ia privar da liberdade e talvez da vida tantos seres inocentes, o patrício sentiu-se aliviado do peso da sua dor atroz. "Ah! disse consigo mesmo - enquanto o espião se retirava - já que sofro tanto, hei-de também fazer sofrer". O vil espião, ao afastar-se, tinha nos lábios um sorriso diabólico, e a meia voz exclamou, querendo referir-se ao prefeito: "Vingar-te-ás dos cristãos, orgulhoso patrício, mas eu vingar-me-ei do desprezo com que me tratas! Mal supões que golpe te vai ferir!". Chegado ao local em que os oficiais faziam a guarda, bastou-lhe apresentar a ordem do prefeito para que logo um dos chefes avançasse seguido de uma escolta de soldados. Depois de ter trocado com ele algumas palavras em que mal podia dissimular o desprezo, o chefe fez-lhe sinal para que saísse e seguiu-o com os seus homens. Flávio, uma vez só, mergulhava-se de novo nas suas ideias tristes. Esquecendo os cristãos e o seu ódio por eles, o seu pensamento ia para Faustina e o imperador. Recordava cada palavra ouvida, crendo ser objecto de uma terrível ilusão. A sua cólera transformou-se em loucura, irrompendo em imprecações de toda a espécie. Se naquele momento Faustina lhe tivesse aparecido, tê-la-ia certamente estrangulado. Depois, acalmando pouco a pouco, pôs-se a pensar friamente na vingança que poderia exercer. Não; não a mataria; dar-lhe-ia castigo mais demorado, mais cruel. A semelhante criatura, inebriada de prazeres, de honras, de despotismo, até ao ponto de consentir, por mera ambição, na morte do seu próprio marido, metê-la-ia em prisão obscura cujo segredo só dele seria conhecido e onde ela expiaria, nos tormentos do escuro e da solidão o crime que premeditara. Ele mesmo seria o carcereiro, e que carcereiro, senhores!... O imperador ia partir dentro de poucos dias: até essa altura era preciso manter uma atitude dissimulada e, ao mesmo tempo, impedir que ele visse Faustina; Flávio receava trair-se, se tornasse a presenciar mais qualquer encontro dos dois. Depois de feitos estes planos, o prefeito dirigiu-se aos aposentos de Faustina, que dormia tranquilamente, sendo absoluto o silêncio à sua volta. Flávio caminhou devagar, parando a dois passos do leito em que repousava aquela mulher. Astucioso, nem sombra de remorsos modificou o aspecto do seu rosto, que retomara a sua expressão calma e serena. Como podia aquela boca que acabava de proferir tão cruéis palavras, abrir-se em tão tranquilo sorriso? Nada alterava a brancura maravilhosa daquela fronte em que tantos projectos culposos haviam sido concebidos! Nem um movimento, nem um suspiro que pudessem dar indícios de uma preocupação, de um remorso! Seria aquela mulher um monstro?... - E amara-a tanto!... Por ela, o que não teria sido capaz de fazer!... Insensato!.,. Um sorriso amargo se esboçou nos seus lábios. Faustina fez um movimento, acordou e, ao ver Flávio, de pé, na sua frente, sentou-se na cama. - A esta hora aqui, querido Flávio! - exclamou surpreendida. - Julgava que dormíeis. Estais doente? A vossa palidez assusta-me. O patrício, a princípio, calou-se aterrado com tanta hipocrisia; logo a seguir exclamou enfurecido: - Miserável! Ah! miserável criatura! - bramiu, louco de cólera, apertando Faustina como se quisesse estrangulá-la sem que ela, apavorada, tivesse forças para gritar por socorro. - Ousas, ainda, dirigir-me palavras afectuosas depois das que trocaste, há alguns momentos, com Maximiano?... O teu plano está bem combinado, mas consegui descobri-lo e bem saberei impedir a sua execução! Flávio expôs então friamente tudo o que resolvera fazer. Entretanto, Faustina que recuperara o sangue-frio, afastava o marido e, correndo para a porta, gritou: - "Socorro!!!" O prefeito, agarrando-a de novo, amordaçou-a. Atou-lhe as mãos e, como Faustina, no desespero de ver fugir-lhe o único meio de salvação, tivesse desmaiado, estendeu-a sobre o leito e foi chamar Márcia a fim de lhe confiar a vigilância da patrícia, sua senhora. - Compreendei bem, Márcia, - disse. - A todos os que perguntarem por Faustina e, especialmente ao imperador, dir-se-á que o seu estado de saúde inspira cuidados. Ninguém deverá entrar nos seus aposentos. A sua vida e a vossa dependem da inteira submissão às minhas ordens. Se lhe tendes alguma afeição, se quereis que ela viva, não esqueçais as minhas recomendações. Quando despontou o dia, ainda Flávio não havia cerrado os olhos um só instante. Para Faustina fora também aquela noite uma terrível e interminável insónia; primeiramente, entregue a uma fúria fácil de compreender, vira desabar diante de si os seus projectos ambiciosos, no próprio momento em que julgava o seu êxito assegurado; e assim o seu desespero atingira o auge. Márcia, receosa, apenas podia balbuciar uma ou outra palavra, na esperança de reanimar a sua senhora. Todavia, pouco a pouco conseguiram as duas chegar a enfrentar com mais sangue-frio a situação. Certamente, pensavam elas, não deixariam de mandar-lhes algum alimento durante o dia; nessa ocasião poderia Faustina, com as suas ricas jóias de ouro, seduzir facilmente algum escravo ou soldado e, deste modo, encarregá-lo de uma mensagem para o imperador ou melhor explicar-lhe verbalmente o que desejava transmitir a Maximiano... Na verdade, Flávio tinha poder sobre a cidade de Gaeta e sobre o seu palácio; porém, o imperador era bem mais poderoso que ele. Faustina, tranquilizada com estas considerações, pôs-se a contar as horas com ansiedade febril. Cada vez que ouvia passos perto da porta, o coração parecia saltar-lhe do peito; tinha então um desejo ardente de gritar por socorro; todavia, temendo que esse grito pudesse ser o último da sua vida - Flávio estava de vigia ali perto - resolveu calar-se e esperar. O patrício permaneceu até de manhã num quarto contíguo ao de Faustina. Ao ouvir qualquer ruído nos aposentos do imperador, chamou um escravo mouro em quem depositava plena confiança; como lhe salvara outrora a vida, este dedicava-lhe eterno reconhecimento: bastava um sinal seu para que o mouro se lançasse no fogo. - Hamid, - disse o patrício, - estás pronto a fazer tudo o que eu te mandar? - Senhor, assim vo-lo prometi no dia em que me arrancastes à morte. Um mouro só tem uma palavra: mandai e sereis obedecido. - Que castigo infligem na tua terra a uma mulher infiel? - Matam-na. - Bem, compreendes-me. Faustina traiu-me quero vingar-me. Nem o menor espanto se desenhou no rosto bronzeado do escravo; apenas agarrou no alfanje que tinha pendurado à cinta. - Não, - disse Flávio, - essa arma é inútil, eu próprio me hei-de vingar. O essencial, por agora, é que essa celerada não possa escapar-me... Ficarás de vigia até ao meu regresso, para que ela não comunique com pessoa alguma. Como resposta, Hamid foi postar-se diante da porta do quarto de Faustina, permanecendo imóvel, de alfanje em punho. Flávio afastou-se. O guarda fiel permaneceu durante longas horas no mesmo posto sem que no rosto demonstrasse a mais leve emoção e no corpo a mais ligeira fadiga. O seu Senhor recomendara-lhe que ficasse ali até ao seu regresso; Hamid esperava-o como um cão fiel. Depois de ter deixado o escravo, o prefeito dirigiu-se aos aposentos do imperador; e conseguiu dominar-se de tal maneira que, ao encontrar-se com Maximiano, este apenas pôde notar na sua fisionomia uma cor empalidecida, resultante das emoções da véspera. - Pareces cansado, - disse o César respondendo à saudação de Flávio; - certamente esta noite tempestuosa impediu-te de repousar! - É verdade, e também a alguém que me é querido. - Queres referir-te a Faustina? - replicou Maximiano com secreta angústia. - A mulher é um ser delicado, - prosseguiu Flávio; - os trovões, ressoando continuamente, abalaram por completo os nervos da minha querida Faustina e o médico, que mandei chamar logo ao romper do dia, ordenou-lhe inteiro repouso e completo isolamento. - Mas a sua vida não está em perigo? - Depende do modo como ela seguir as indicações prescritas. - Que os deuses a salvem! - exclamou o imperador. - Apesar da contrariedade que é para nós partirmos sem lhe dizermos adeus, somos obrigados a regressar já à cidade imperial. - O quê? Já amanhã? - tentou objectar o patrício que a custo reprimiu a alegria que tal notícia lhe trazia. - Não insistas para que fiquemos, - replicou o imperador. - A nossa presença aqui seria apenas um embaraço; promete-nos somente que nos trarás Faustina logo que esteja restabelecida, o que esperamos seja depressa. Flávio balbuciou apenas algumas palavras banais. A chegada de um oficial do palácio, portador de uma mensagem, veio pôr termo àquela embaraçosa conversa. A carta era do espião encarregado de descobrir o esconderijo dos cristãos e anunciava a Flávio que grande número de rebeldes estavam já detidos, realizando-se o julgamento logo que ele ordenasse. Maximiano, que tomara conhecimento do conteúdo da mensagem ao mesmo tempo que Flávio, perguntou-lhe: - Que pensas fazer? - Dirigir-me imediatamente ao pretório, chamar esses infames e começar logo o seu processo. - Acompanhar-te-emos, - disse o imperador cujo olhar brilhava de cruel alegria; - ofereces-nos assim uma festa como complemento da tua agradável hospitalidade. - Permiti-me então que chame a vossa comitiva e partamos já. 12. A REPARAÇÃO Alguns instantes depois da conversa que acabamos de ouvir, Flávio encontrava-se já no Palácio de Justiça, sentado ao lado do imperador. O pretório havia sido invadido por uma imensa multidão de cortesãos, oficiais e também de nobres patrícios, a quem um tal espectáculo oferecia irresistível atracção. As imediações do tribunal estavam guardadas por lictores armados, encontrando-se outros espalhados em diversos pontos, quer para impedirem manifestações hostis, quer na hipótese de possíveis tentativas de evasão. A um sinal de Flávio, abriram-se as portas laterais. Os cristãos, rodeados de soldados e de carcereiros, vieram enfileirar-se diante do estrado onde estavam sentados Maximiano, o prefeito e os assessores. Flávio levanta-se, pronto a pronunciar contra os rebeldes uma acusação fulminante. Mas, de repente, apodera-se dele uma intensa perturbação, a sua fisionomia toma um aspecto cadavérico, as palavras morrem-lhe nos lábios. Estaria invadido por terrível pesadelo, ou teriam os tristes acontecimentos da noite anterior enfraquecido o seu cérebro? Não, não! Era bem verdade que via, na primeira fila dos que esperavam a sua condenação, a filha, a sua Glicéria, branca como a veste que a cobria, mas calma e serena; a seu lado, uma figura angélica em quem reconheceu Adriana e, depois, um oficial de estatura alta e de nobre aspecto, Emiliano. Maximiano e a multidão reconhecem-nos logo, o que dá lugar a que ressoe no pretório tumulto indescritível de exclamações, de surpresa, de compaixão e de cólera. Flávio, emudecido de terror e desespero, deixa-se cair sobre a cadeira, tapando o rosto com as mãos. O imperador, furioso, dirige a Emiliano invectivas de toda a espécie que não conseguem, todavia, perturbar o oficial. Exasperado por tanta calma, Maximiano volta-se para Flávio: - Prefeito, a tua surpresa e a tua dor são provas evidentes de que ignoravas a rebeldia da tua filha. Não admira que fosses traído no teu palácio, pois eu próprio o fui de modo tão cruel por um oficial da minha comitiva, e no qual, até hoje, depunha toda a minha confiança. A traição de ambos destrói os laços de amizade que a eles nos umam: deves, como eu, estar pronto a vingar o insulto feito aos nossos deuses. aCalma-te um pouco e inicia o interrogatório. Flávio, estremecendo, levantou-se, fixou por momentos o olhar no grupo de cristãos que tinha ali na sua frente, procurando em vão as palavras que devia pronunciar. O seu espírito obscurece-se, as ideias perturbam-se-lhe: Os cristãos!... Certamente que os odeia, que quer destruir a sua seita, tanto mais que lhes atribui a desgraça que naquele momento o atinge... Mas não pode condenar a própria filha, a sua querida Glicéria, que fixa sobre ele os seus lindos olhos azuis onde se lê uma expressão de angústia. E Adriana?... Não consegue fugir àquele olhar profundo que irradia piedade e indulgência! Também ela é a sua filha! Não bastaria já tudo o que lhe fez? Iria ainda, para cúmulo da sua crueldade, condená-la à morte? Voltando-se então para Maximiano, profundamente inclinado, com o rosto lívido e os olhos rasos de lágrimas, diz-lhe, com voz trémula: - César, é minha filha, a minha filha estremecida... tende piedade dela! ... A sua pouca idade justifica o seu delito, não pode ser responsável do crime que cometeu... Perdoai-me... que posso interrogá-la.., julgá-la!... permiti que me retire. - Serás por acaso tão vil, Flávio, que prefiras a tua família ao teu imperador? - perguntou Maximiano com dureza. - Lembra-te de Bruto que, sem hesitar, sacrificou o filho no altar da pátria. - Bruto não tinha coração. Sou pai antes de tudo, não condenarei a minha própria filha. - Está bem, - prosseguiu o imperador, - que a tua vontade seja feita; dispenso-te de condená-la, mas, ao mesmo tempo, demito-te do teu cargo de governador. Já não és prefeito de Gaeta; Valério substituir-te-á. - Que me importa! - murmurou Flávio pensando na infidelidade de Faustina, na nova crença da filha, na sua vida desfeita para sempre. Depois respondeu com ar indiferente: - Que se faça segundo o beneplácito do imperador. Ao proferir estas palavras, despojou-se das insígnias do seu cargo, cedendo-as àquele que Maximiano acabava de nomear para substitui-lo. Uma vez livre, foi ter com os acusados, correndo para a filha e, enquanto o novo prefeito começava o interrogatório pelo velho Justiniano, suplicava-lhe que renunciasse às suas novas crenças e que voltasse ao culto dos ídolos. - Minha Glicéria, lembra-te que, se persistes no teu erro, serás condenada, como uma malfeitora, à morte ignominiosa! Terás que suportar inúmeros suplícios! Queres fazer-me passar pela dor suprema de ver-te sofrer? Queres abandonar-me?... Morrer?... Minha filha, só a ti possuo neste mundo!... Só tu me prendes à vida! Glicéria estremeceu, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, porém a alma, apesar de dilacerada pela angústia do pai, não fraquejou. - Meu pai - disse comovida, mas firmemente, - deixai-me seguir o destino para o qual o Senhor me chama; vós, vivei para consolação da minha mãe. - A tua mãe!... - exclamou tristemente o prefeito, sem poder continuar... Para que iria perturbar aquele coração inocente? Não seria melhor deixá-lo na feliz ignorância das misérias da terra. Depois, continuou as suas súplicas entrecortadas de soluços. Glicéria interrompeu-o docemente: - Meu pai, - murmurou-lhe ao ouvido, não quero voltar ao caminho que abandonei, pois conduz ao abismo; porque não entraríeis vós também nesse caminho que nos leva à eterna bem-aventurança? Já várias vezes notei que andais agitado e perturbado... Se soubésseis como a fé consola todas as penas! Quantos sofrimentos suaviza!... Infelizmente vamo-nos separar dentro em pouco... Se dispuséssemos ainda de algum tempo, Emiliano e Adriana, que me instruíram na fé, poderiam dizer-vos, melhor do que eu, toda a beleza da nossa santa religião. Flávio não respondeu; a sua emoção era visível. Pensava consigo mesmo: na verdade é bela esta crença estranha que transforma em heroinas mulheres simples e tímidas crianças; é realmente confortante esta fé que amparou Quintília e Adriana no meio da sua desgraça e que, apesar de angústias atrozes, lhes punha nos lábios o doce sorriso que vê agora nos de Glicéria. O momento é terrível: estão já prontos os cavaletes; sob as abóbadas do circo ressoam os rugidos dos leões; os carrascos afiam os sabres mas, Adriana, sabendo já a sorte que a espera, esquece-se mais uma vez de si mesma para só pensar em Glicéria. Avança para ela, ampara-a com carinho e murmura-lhe em voz baixa palavras de alento. Emiliano contempla-as com admiração. Também ele possui um coração nobre, um espírito elevado e deu provas do seu valor em vários combates. "Apesar de ser cristão, possui todas estas qualidades", pensava Flávio. O pagão hesita um instante; mas pouco depois, pergunta a si mesmo: "Possui ele estas qualidades apesar da sua fé ou devido à sua fé?" Mas eis que Adriana se aproxima de Flávio; este baixa os olhos sob a impressão daquele olhar sereno e puro que nunca pudera suster. Com doçura e suavidade obriga-o a erguer a cabeça e olhando-o bem de frente: - Meu pai - disse-lhe ela de maneira que só por ele pudesse ser compreendida - eu ouvi o pedido que Glicéria vos fez; uno a minha súplica à dela enquanto que lá do céu, a minha querida mãe vos chama; ninguém jamais vos amou como ela... não vos sentiríeis feliz de tornar a vê-la, de compartilhar aquela felicidade plena e total que se goza para além da vida terrena e que sombra alguma pode vir perturbar? Fizeste-la sofrer muito, mas tudo isso será esquecido se abraçardes a religião por amor da qual ela foi capaz de suportar tantos sofrimentos e dar até a própria vida. Flávio, chorando amargamente, exclamou: - Isto é demais!!! Cristo, venceste-me! Sou cristão! Um raio que tivesse caído sobre o Palácio de Justiça não teria produzido maior espanto nem perplexidade entre os pagãos, que aquelas palavras pronunciadas por Flávio em voz clara e firme. Ao ouvir tal declaração, o próprio imperador emudeceu de espanto; o seu furor não teve limites. Como! Ver o mais nobre patrício da cidade, o prefeito, o terrível perseguidor dos cristãos, abraçar publicamente aquela religião odiosa, ver aquela raça detestável regozijar-se triunfante e desprezar as ameaças dele, o César, sem se importar com os suplícios que o esperava nem com a morte ignominiosa que iria sofrer? Na sua cólera o imperador não hesitou em dirigir os mais baixos insultos àquele que, ainda na véspera, tratava como amigo e do qual recebera tão sumptuosa hospitalidade. Flávio revoltado com tantas injúrias, sentia o sangue ferver-lhe nas veias; as respostas afluíam-lhe impetuosas; porém, Adriana e Glicéria, semelhantes a dois anjos de paz, mantinham-se ao seu lado para contê-lo e ensinar-lhe que o cristão deve perdoar tudo, que as injúrias suportadas por amor de Cristo se transformam em títulos de glória, e o patrício, dominando-se, conseguiu permanecer silencioso. Entre os numerosos espectadores, muitos, menos por convicção que por política, partilhavam da indignação do imperador; todavia, a maioria da assistência ficou impressionada com uma tão repentina mudança e admirada com a importância de uma tal conversão... O prefeito, ainda ontem violento perseguidor dos cristãos e hoje confessor da fé!... Pelo silêncio com que a maior parte dos circunstantes acolheu a singular declaração de Flávio, o imperador compreendeu a corrente de simpatia, o movimento que se formou já a favor dos cristãos. Virou-se então para o novo prefeito que naquele momento sentiu que se ia tornando impopular e, de comum acordo, decidiram adiar para o dia seguinte o fim do interrogatório. Os acusados foram reconduzidos à prisão. Maximiano, para vingar-se da sua derrota, ordenou que o pai e a filha ficassem separados, para assim privar Flávio da consolação de poder abraçar a sua querida Glicéria. Mas... que importava esta separação ao novo cristão? Amanhã estariam novamente reunidos perante o tribunal e, juntos, confessariam a sua fé, juntos sofreriam por ela. Por uma graça verdadeiramente divina, Flávio tinha a intuição da consolação experimentada ao sofrer por uma santa causa. No dia Marcado, apresentou-se o glorioso rebanho de Cristo diante dos perseguidores, que de tudo lançaram mão: eloquência, artifícios e astucia, promessas e ameaças; porém, nada foi capaz de abalar a coragem dos cristãos. Todos reclamaram a sua parte de sofrimento, como outros poderiam reclamar a de um rico espólio. Os homens combateram intrepidamente e as mulheres, desejosas de elevar-se ao mesmo nível, mostraram-se de uma constância heróica. Depois de uma luta terrível e prolongada, os perseguidores tiveram de dar-se por vencidos; a hora do triunfo aproximava-se para as vitimas. O prefeito leu com voz trémula a sentença que condenava à morte todos os rebeldes. O imperador declarou em seguida que partiria dentro de dois dias, mas que, antes de regressar à cidade imperial, concederia aos habitantes de Gaeta a subida honra de assistir aos jogos do circo que teriam lugar no dia seguinte e nos quais os cristãos de sangue nobre serviriam de pasto aos leões e aos tigres, trazidos expressamente da África para os combates dos gladiadores. Os de raça plebeia e os escravos, esses, seriam mortos à chicotada. Ao ouvir estas disposições, Flávio empalideceu: morreria junto à sua Glicéria! Mas Adriana?... Não era justo que gozasse também do mesmo privilégio? Deveria continuar a ser considerada escrava? No seu leito de morte, Quintília havia-lhe dito: "Tendes um dever de justiça a cumprir para com esta criança". Esse dever consistia em restituir a Adriana a sua nobre categoria. Até então Flávio não o tinha feito; era chegado o momento de reparar publicamente a sua falta. Adriana ia a retirar-se com os outros escravos, quando o patrício, agarrando-a carinhosamente dirigindo-se ao prefeito, disse com voz firme: - Valéria, esta cristã deve ficar connosco... é irmã de Glicéria... é minha filha!... Ditas estas palavras, descreveu ainda rápida mas claramente o seu triste passado, implorando o perdão de Adriana. E esta heróica figura de mulher cristã, comovida até às lágrimas, abraçou o pai e Glicéria. Entretanto, os cristãos dirigiam louvores a Deus por esta nova vitória! 13. TRIUNFO Acabava de dar meio-dia. Sob os raios brilhantes do sol, toda a população de Gaeta ia invadindo os bancos do anfiteatro. Era este um grande círculo situado no centro da cidade, perto do Fórum, e construído segundo o modelo do coliseu de Roma. As bancadas eram separadas por grandes areadas e no primeiro andar havia várias galerias chamadas "vomitorii", pelas quais a multidão entrava e saía. Numa das extremidades da arena havia uma caverna abobadada com uma porta de ferro; era a jaula onde se aprisionavam as feras antes de serem lançadas sobre a presa apetecida. Ao lado da porta, havia uma cavidade na pedra: os batentes ao abrir-se, tapavam aquele esconderijo, refúgio do homem que estava encarregado de soltar as feras. Na outra extremidade, um corredor comprido e escuro conduzia a uma sala ampla, por onde os gladiadores que deviam combater, ou os cristãos condenados à morte, faziam a sua entrada na arena. Enquanto a multidão ia ocupando as bancadas de pedra, o imperador, o prefeito Valério e toda a corte tomavam os seus lugares sob um baldaquino de púrpura com franjas de ouro; e os leões e os tigres, sequiosos de sangue, batiam com a cauda nas paredes das jaulas; os valorosos atletas da fé, esses, faziam as suas últimas despedidas. Justiniano, no meio dos seus filhos, animava-os e abençoava-os para o grande combate. Emiliano e Glicéria, os noivos de ontem, cujas núpcias iriam celebrar-se no céu, renovavam, em palavras cheias de ternura, o juramento de permanecerem fiéis à sua fé. A patrícia queria ir, alegremente, ao encontro da morte, apoiada ao braço daquele que Deus lhe tinha dado por protector e guia: que felicidade seria para ela se morressem juntos! Adriana, ajoelhada um pouco mais adiante, absorvida em ardente oração, contemplava já o céu para onde a chamava o seu Esposo divino e onde a mãe lhe abria os braços. Flávio ocupava-se, pela última vez, de assuntos terrenos para que no momento da morte só uma coisa o preocupasse: a sua alma. Havia já uma hora que o escravo Hamid ali estava para contar-lhe o que se tinha passado no palácio depois da sua partida. - Ao sair do pretório o imperador viera pedir notícias de Faustina; Hamid respondeu conforme as ordens recebidas de Flávio. O resto do dia passara-se sem nenhum incidente; mas, no dia seguinte de manhã, voltou de novo o imperador, dizendo a Hamid que necessitava transmitir a Faustina assuntos da máxima importância. O Númida não deixara de cumprir a sua promessa, mas fora obrigado a ceder perante a força; assistira à entrevista do imperador com Faustina, de mãos atadas e amordaçado. Quando o escravo terminou a sua narrativa, Flávio agarrou no seu canhenho e disse-lhe: - Escuta, Hamid: vou escrever a Faustina o meu último adeus; encarrego-te de transmitir-lho fielmente. - Sim, meu Senhor. Flávio escreveu: - "Adeus, Faustina, perdoo-vos e deixo esta vida em que podíeis ter-me feito tão feliz e me tornastes tão desgraçado. Mas este castigo foi justo porque também fiz sofrer criaturas inocentes. Deus puniu-me no que possuía de mais querido. Se o céu o permitir, podeis vir a ser imperatriz sem vos manchardes com um grande crime". - Entregou o livrinho ao seu fiel servo que, sem proferir palavra, agarrou nele, escondendo-o nas pregas da sua veste. - Que farás Hamid, quando eu desaparecer? Ao ouvir estas palavras, o rosto bronzeado do escravo perturbou-se. - Quando vós tiverdes desaparecido, Senhor, murmurou ele, Hamid velará ainda sobre vós, não permitindo que o vosso corpo fique exposto às aves de rapina. - E depois... - a voz de Hamid tremia ao dizer isto - como nada mais me prenderá aqui, voltarei para a Numídia. - Adeus, meu amigo, - disse-lhe Flávio cuja mão nobre procurou a de Hamid para a apertar em sinal de estima. O escravo dobrou o joelho, agarrou na mão que o seu senhor lhe estendia e, pousando sobre ela os lábios, afastou-se sem olhar para trás. Os cristãos encontravam-se já no anfiteatro, cantando hinos ao seu Deus crucificado; as suas vozes iam enfraquecendo à medida que o sangue dos mártires tingia a areia do circo. à vista das feras, apoderou-se de Glicéria um tremor nervoso; mas Emiliano apontou-lhe o céu com um olhar de ansiedade. Então a noiva sorriu-lhe, fez o sinal da cruz, dando a mão ao oficial. Emiliano, Adriana, Flávio - todos os que lhe são queridos - estão ali à sua volta. É verdade que falta a mãe... Oh! como desejaria vê-la a seu lado, naquele momento! Mas, já que essa alegria não lhe é concedida, suplica ao Senhor que salve a alma daquele ente tão querido e, na sua ardente oração, esquece os tormentos que a esperam. Ressoa no anfiteatro um grito estridente: um tigre e um leão aparecem na arena. Deslumbrados durante uns momentos pelo brilho das luzes, param soltando rugidos; depois, num salto, precipitam-se sobre o grupo dos cristãos. Nenhum deles recua, nenhum procura evitar as suas garras temíveis, aqueles tremendos maxilares que, num só movimento, roubam a vida. O tigre depressa escolhe a sua presa; lança-se sobre Adriana, deita-a ao chão esfacelando-lhe um ombro donde corre um rio de sangue; mas... esta vítima não lhe basta, lança-se também sobre Glicéria. Flávio deixa escapar um grito de dor e Emiliano, num movimento instintivo, coloca-se à frente. No rosto do valente soldado de Cristo lê-se o indizível sofrimento que ressente naquele momento, e que oferece ao seu Deus. Ver morrer aquela por quem teria dado a própria vida! Que martírio! Mas Jesus, tão bom para os que O amam, não quis impor-lhe esse sacrifício. Quando o oficial avançou, o tigre virou-se para ele enraivecido e Emiliano, asfixiado debaixo da fera cruel, expirou ao mesmo tempo que a noiva. Os outros cristãos caíam e morriam por sua vez. Entre os primeiros via-se o venerável Justiniano que, na morte como na vida, mostrava o caminho da verdade aos que lhe haviam sido confiados. E agora sobre a arena coberta de cadáveres, apenas restam Flávio e Adriana. O sangue vai correndo sempre da ferida que esta tem no ombro mas, sem se inquietar com a sua própria dor, Adriana só pensa em instruir Flávio, em falar-lhe da esperança eterna e celestial que ele não conhece ainda. As feras, já quase saciadas, parecem repousar. Flávio aproveita-se deste descanso para confiar à filha os seus últimos receios, a sua última pena. - Sou cristão de coração e de desejo mas... a água regeneradora não foi, ainda, lançada sobre a minha fronte. Deus é capaz de não me reconhecer como um dos Seus, por não estar Marcado com o sinal dos eleitos! - Meu Pai, o sangue que ides derramar para confessar a Cristo, e as lágrimas que minha mãe chorou por vós, serão o vosso baptismo. - Tenho medo, Adriana, - murmurou ele. A sua fisionomia contraiu-se. Então Adriana, tremendo, pensa nas perigosas tentações que o demónio é capaz de sugerir-lhe e se, à falta de uma gota de água purificadora, o terror viesse apoderar-se da alma do seu pai, fazendo-lhe perder a crença na misericórdia infinita de Deus, precipitando-a no abismo do desespero?!... Receia que aquela ali remida por tão alto preço se perca no momento de chegar às portas da eternidade! - Oh! não, isso não pode ser, - diz, e num impulso de fé ardente, a jovem patrícia faz ressoar pela imensa arena o grito dilacerante que Jesus fez ouvir sobre a cruz: - Sítio! Tenho sede!... Como o Redentor, Adriana tinha sede de almas. Uma mulher do povo, comovida com este grito, atirou para os mártires um odre de couro cheio de água e Adriana, com a alma a transbordar de felicidade, derramou-a sobre a fronte do pai, pronunciando as palavras sacramentais: - Eu te baptizo em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Flávio, num gesto de intenso fervor, pôs as mãos... como se estivesse precisamente à espera daquele momento; e um leão, saindo do torpor em que estava, agitou a cauda no ar e lançou-se sobre o pai e a filha, ajoelhados ao lado um do outro. Flávio foi o primeiro a cair com o crânio dilacerado pelos dentes vorazes da fera. Adriana susteve-o durante uns instantes, até ao momento em que foi por sua vez apanhada; o seu corpo caiu inerte ao lado do pai. Um grito ressoou por todo o anfiteatro; e uma pomba que ninguém vira antes, saiu do local em que jazia o corpo da mártir e, deixando atrás de si um rasto luminoso, elevou-se no ar, desaparecendo ante os olhares daqueles espectadores estupefactos. FiM