Histórias de Almanaque Bertold Brecht _história da _literatura Bertold Brecht Histórias de Almanaque Tradução de Rafael Gomes Filipe _r_b_a _editores _c original: Vega (1992) _c da presente edição: Editores Reunidos, Lda., 1994 e _R_B_A Editores, S._A. Depósito legal: 80088/94 Depósito legal: M. 16.984-1995 Revisão gráfica: Luís Milheiro Fotocomposição: Espaço 2 Gráfico, Lisboa Impressão e encadernação: Mateu Cromo Artes Gráficas, S._A., (Pinto) Madrid Printed in Spain -- Impresso em Espanha O Círculo de Giz de Ausburgo No tempo da Guerra dos Trinta Anos, um protestante suíço de nome Zuínglio tinha uma grande fábrica de curtumes e um negócio de cabedais na cidade franca de Ausburgo do Lech. Era casado com uma senhora de Ausburgo de quem tinha um filho. Quando os católicos marcharam sobre a cidade, os amigos aconselharam-no vivamente a fugir, mas, ou porque a sua pequena família o prendesse, ou porque não queria abandonar a fábrica de curtumes, não houve maneira de se decidir a ausentar-se a tempo. Ele estava pois ainda na cidade quando as tropas imperiais a invadiram; e quando, à noite, começaram os saques, escondeu-se numa cova, no pátio, onde se guardavam as tintas. A mulher devia ir com o filho para casa de uns parentes que viviam nos arredores da cidade, mas levou demasiado tempo a arranjar as coisas, os fatos, os adornos :, e as roupas de cama, e foi então que viu de repente, de uma janela do primeiro andar, um pelotão de soldados imperiais entrar no pátio. Apavorada, largou tudo o que estava a fazer e correu por uma porta das traseiras para fora da propriedade. A criança ficou, assim, sozinha em casa. Estava deitada no berço, no grande vestíbulo, a brincar com uma bola de :madeira que pendia do tecto presa por um cordel. Em casa só tinha ficado uma criadinha. Estava esta ocupada na cozinha a limpar os tachos de cobre, quando ouviu barulho que vinha da rua. Debruçando-se à janela, viu que soldados atiravam do primeiro andar do prédio em frente para a rua toda a espécie de despojos. Correu para o vestíbulo e estava precisamente a tentar tirar a criança do berço, quando ouviu o barulho de violentos golpes na porta de castanho da casa. Ficou em pânico e correu escadas acima. O vestíbulo encheu-se de soldados embriagados que espatifaram tudo. Sabiam que se encontravam na casa de um protestante. Como que por milagre, Ana, a criada, não foi descoberta durante o saque. O pelotão retirou-se, e Ana, ao sair do armário onde se tinha escondido, deparou com a criança incólume no vestíbulo. Apressou-se a pegar no bebé e correu com ele para o :, pátio. Entretanto, a noite tinha caído, mas o clarão vermelho de uma casa em chamas nas imediações iluminava o pátio, e ela viu horrorizada o cadáver mutilado do patrão. Os soldados haviam-no tirado da cova e tinham-no assassinado. A criada só então se apercebeu do perigo que corria se fosse apanhada na rua com o filho do protestante; pesarosa, voltou a colocá-lo no berço, deu-lhe leite a beber, embalou-o até ele adormecer, e pôs-se a caminho do bairro onde vivia a sua irmã casada. Pelas dez horas da noite, acompanhada pelo marido da irmã, atravessou a multidão de soldados que festejavam ruidosamente a vitória para ir à procura, nos arredores da cidade, da Sra. Zuínglio, mãe da criança. Bateram à porta de uma casa rica, e esperaram bastante até que a porta se entreabriu. Um velho pequenino, tio da Sra. Zuínglio, pôs a cabeça de fora. Ana relatou ofegante os factos, disse que o Sr. Zuínglio tinha morrido, mas que a criança estava em casa incólume. O velho olhou-a friamente com uns olhos de peixe e disse-lhe que a sobrinha já lá não estava e que ele próprio não tinha nada à ver com os protestantes. E tornou a fechar a porta. Quando se iam embora, o cunhado de Ana viu uma cortina mexer-se numa das janelas e ficou convencido :, de que era a Sra. Zuínglio que estava por trás dela. Pelos vistos, não tinha vergonha de renegar o filho. Durante algum tempo, Ana e o cunhado caminharam silenciosos, lado a lado. Em seguida, ela revelou-lhe que queria voltar à fábrica de curtumes para ir buscar a criança. O cunhado, um homem calmo e ordeiro, ouviu-a cheio de aflição e tentou tirar-lhe essa ideia perigosa da cabeça. O que é que ela tinha a ver com essa gente? Nem sequer tinha sido bem tratada. Ana ouviu-o em silêncio e prometeu-lhe não cometer nenhuma loucura, mas tinha impreterivelmente de ir à fábrica para ver se não faltava nada à criança. E queria ir sozinha. Levou a sua avante. A criança estava calmamente deitada no seu berço no meio do vestíbulo destruído, e dormia. Ana sentou-se, cansada, junto do bebé, a observá-lo. Não tinha ousado acender uma luz, mas a casa ao lado ainda estava a arder, e conseguia ver bem a criança a essa claridade. Tinha no pescoço um sinal minúsculo. Passado algum tempo, talvez uma hora, em que a criada observou a criança, vendo como ela respirava e chuchava no pequenino punho, deu-se conta de que tinha ficado ali sentada tempo de mais e tinha observado o bebé tão demoradamente que não :, podia ir-se embora sem o levar consigo. Levantou-se a custo, e, com movimentos lentos, embrulhou-o na coberta de linho, pô-lo ao colo e saiu com ele do pátio, olhando medrosamente em volta, como alguém com a consciência pesada, como uma ladra. Daí a duas semanas, levou a criança, após longas conversas com a irmã e o cunhado, para o campo, para a aldeia de Grossaitingen, onde vivia o irmão mais velho, que era camponês. As terras pertenciam à mulher -- ele entrara na sua posse apenas pelo casamento. Ficou assente que ela talvez devesse revelar apenas ao irmão quem era a criança, pois ainda não conheciam a jovem camponesa pessoalmente e não sabiam como ela iria acolher aquele pequenino hóspede tão perigoso. Ana chegou à aldeia pelo meio-dia. O irmão, a mulher e a criadagem estavam a almoçar. Não foi mal recebida, mas ao olhar para a cunhada, sentiu-se na obrigação de apresentar imediatamente a criança como sua. Só depois de ter contado que o marido estava a trabalhar num moinho numa aldeia distante e que a esperava lá com a criança dentro de algumas semanas é que a cunhada se começou a sentir mais à vontade e a criança foi então devidamente admirada. :, À tarde, o irmão acompanhou-a ao bosque para ir buscar lenha. Sentaram-se em troncos de árvores, e Ana ofereceu-lhe vinho puro. Percebeu que ele não se sentia bem na sua pele. A sua posição na quinta ainda não estava firme e ele louvou Ana por não ter dito nada na frente da mulher. Era evidente que ele não achava que a mulher fosse capaz de ter uma atitude generosa em relação à criança protestante. Ele queria que o engano se mantivesse. Ora isto não se mostrou fácil com o correr do tempo. Ana ajudou nas colheitas e entretanto cuidava do *seu* bebé, correndo constantemente das terras para casa, enquanto os outros descansavam. O pequeno medrou e até engordou; ria logo que via Ana e, cheio de força, tentava levantar a cabeça. Mas chegou o Inverno e a cunhada começou a perguntar com insistência pelo marido de Ana. Nada havia a dizer contra a permanência de Ana na quinta -- ela podia ser sempre útil. O pior foi que os vizinhos começavam a interrogar-se sobre o pai do filho de Ana, porque ele nunca mais o vinha ver. Se ela não conseguisse mostrar o pai da criança, a quinta passaria a andar nas bocas do mundo. Numa manhã de domingo, o camponês :, atrelou o cavalo e chamou Ana em voz alta para ir com ele buscar uma vitela a uma quinta vizinha. No desconjuntado veículo, participou-lhe que tinha procurado e encontrado um homem para ela. Era este um caseiro moribundo, que mal conseguiu levantar a escalavrada cabeça do lençol ensebado quando ambos entraram na sua cabana de tectos baixos. Ele estava de acordo em casar com Ana. À cabeceira da cama estava uma velha de pele amarela -- a mãe dele. Receberia uma remuneração pelo serviço prestado a Ana. O negócio foi concluído em dez minutos, e Ana e o irmão puderam seguir caminho para irem comprar a vitela. O casamento teve lugar no fim dessa mesma semana. Enquanto o padre murmurava as fórmulas sacramentais, o doente nunca virou para Ana os olhos vítreos. O irmão não duvidava de que dentro de alguns dias iriam receber a notícia da sua morte. O marido de Ana e pai da criança teria então morrido quando vinha a caminho para os visitar, numa aldeia qualquer perto de Ausburgo, e ninguém se admiraria que a viúva e o filho ficassem a viver na casa do irmão. Ana regressou alegre do seu estranho casamento, em que não houve nem sinos :, nem música, nem damas de honor nem convidados. O seu copo de agua foi comer um naco de pão com uma fatia de presunto na casa de jantar, e dirigiu-se depois com o irmão para junto do caixote onde a criança, que agora já tinha nome, dormia. Ajeitou-lhe melhor os lençóis e: riu para o irmão. Mas a certidão de óbito tardava em chegar. Nem na semana seguinte nem na outra receberam notícias da velha. Ana tinha contado na quinta que o marido já vinha a caminho. Dizia até, quando lhe perguntavam pelo paradeiro dele, que a muita neve dificultava a viagem. Mas quando passaram mais três semanas, o irmão dirigiu-se, extremamente preocupado, à aldeia perto de Ausburgo. Regressou de noite, muito tarde. Ana ainda estava levantada e correu para a porta quando ouviu a carroça entrar, chiando, no pátio. Viu-o desatrelar vagarosamente os cavalos, e o coração comprimiu-se-lhe. Trazia más notícias. Ao entrar na cabana, viu o moribundo sentado à mesa a jantar, em mangas de camisa, mastigando com a boca cheia. Estava completamente restabelecido. O irmão desviou os olhos de Ana, enquanto falava. O caseiro, que se chamava :, Otterer, e a mãe, estavam igualmente surpreendidos com o curso dos acontecimentos e ainda não tinham chegado a uma conclusão sobre o que se passara. Otterer não lhe deixara uma impressão desagradável. Tinha falado pouco, mas mandara calar a mãe, quando esta se quis lamentar pelo facto de ele ter agora ao pescoço uma mulher indesejada e um filho estranho. Comia, pensativo, o seu queijo enquanto conversavam, e ficara ainda a comer quando o camponês se foi embora. Nos dias seguintes, Ana sentiu-se naturalmente muito preocupada. No intervalo das lides caseiras, ensinava a criança a andar. Quando ele largava a roca e com os bracinhos estendidos e passo incerto caminhava para a mãe, esta reprimia um soluço seco e apertava-o com força quando o agarrava. Perguntou uma vez ao irmão: Como é que ele é? Só o tinha visto no leito de morte e à noitinha, à luz fraca de uma vela. Ficou então a saber que o marido era um cinquentão gasto pelo trabalho -- "imagina como são os caseiros". Pouco depois, viu-o. Um vendedor ambulante informou-a, com grandes pedidos de segredo, que um certo "conhecido seu" queria encontrar-se com ela no dia tantos de tal, às tantas horas, na aldeia de tal, no sítio donde :, parte o atalho para Landsberg. E assim se encontraram os esposos entre às suas duas aldeias, tal como os antigos generais entre as linhas de batalha, num descampado coberto de neve. Ana não gostou do homem. Ele tinha dentes pequeninos e cinzentos, olhou-a dos pés à cabeça, embora ela estivesse embrulhada numa espessa manta de peles e pouco dela se visse, e empregou as palavras "sacramento do matrimónio". Ela disse-lhe secamente que tinha ainda de pensar em tudo aquilo, mas pediu-lhe que lhe fizesse o favor de mandar dizer à cunhada, através de um vendedor qualquer ou de um carniceiro, que passassem por Grossaitingen, que chegaria em breve e que tinha adoecido pelo caminho. Otterer fez que sim com a cabeça, no seu jeito pensativo. Era mais alto do que ela uns bons vinte centímetros e, enquanto falava, olhava sempre para o lado esquerdo do pescoço dela, o que a irritava. Mas a mensagem nunca chegou à destinatária, e Ana começou a pensar em sair simplesmente com a criança da quinta e ir mais para 0 Sul, à procura de um emprego, talvez em Kempten ou em Sonthofen. Só a insegurança das estradas, de que muito se falava, e o facto de se estar em pleno Inverno, a impediram de o fazer. :, A estada na quinta foi-se tornando muito difícil. A cunhada fazia-lhe perguntas desconfiadas à mesa do almoço na presença dos criados acerca do marido. Quando uma vez disse, em voz alta, olhando para a criança com falsa compaixão, "pobre verme", Ana resolveu ir-se embora, mas nessa altura a criança adoeceu. Jazia no seu caixote, inquieto, com a cara vermelha a escaldar e os olhos turvos, e Ana passou noites inteiras junto dele, cheia de angústia e de esperança. Quando ele já convalescia e tinha recuperado o sorriso, bateram uma manhã à porta, e Otterer entrou. Não estava mais ninguém no quarto além de Ana e da criança, pelo que ela não teve que dissimular, o que aliás lhe teria sido impossível com o susto que apanhou. Ficaram de pé durante um bom bocado sem dizer palavra, e então Otterer disse que tinha reflectido no caso e que a vinha buscar. Voltou a falar no sacramento do matrimónio. Ana exasperou-se. Com voz firme, se bem que reprimida, disse ao homem que não pensava viver com ele, que tinha contraído matrimónio só por causa da criança e que não queria mais nada dele a não ser o nome, para si e para a criança. Quando ela se referiu à criança, Otterer :, olhou de relance na direcção do caixote onde esta jazia palrando, mas não se aproximou. O que fez com que Ana ainda antipatizasse mais com ele. Ele disse ainda que ela devia reflectir novamente em tudo, que em casa dele se vivia com grande aperto, mas que a mãe podia ir dormir para a cozinha. Entrou então a camponesa, cumprimentou-o cheia de curiosidade e convidou-o para almoçar. Ele cumprimentou o camponês, já quando se sentava à mesa, com um negligente aceno de cabeça, nem fingindo que o não conhecia nem dando a entender que o conhecia. Respondia com monossílabos e sem erguer os olhos do prato às perguntas da camponesa, dizendo que tinha encontrado trabalho em Mering e que Ana se podia mudar para lá. No entanto, não disse que isso tinha de acontecer imediatamente. Durante a tarde ele evitou a companhia do camponês e foi rachar lenha para trás da casa, se bem que ninguém lho tivesse pedido. Depois do jantar, em que ele participou em silêncio, a camponesa foi ela própria levar roupa de cama ao quarto de Ana, para ele lá poder dormir, mas ele ficou estranhamente pensativo e levantou-se murmurando que tinha de regressar nessa mesma noite. Antes de partir fitou com um olhar :, ausente o caixote onde estava a criança, mas não disse nada e também não lhe tocou. De noite, Ana adoeceu com febres que se prolongaram durante semanas. A maior parte do tempo jazia apática; só algumas vezes pela manhã, quando a febre abrandava, se arrastava até ao caixote da criança e compunha a roupinha da cama. Na quarta semana da doença, Otterer apareceu na quinta com um carro com xalmas para a ir buscar a ela e à criança. Ela deixou que isso acontecesse sem dizer palavra. Só muito lentamente é que recobrou as forças, o que não era para admirar com as sopas ralas que lhe serviam na cabana do caseiro. Mas uma manhã viu que a criança estava suja, e levantou-se decidida. O pequeno recebeu-a com um sorriso cordial, que o irmão afirmava ter ele herdado dela. Tinha crescido e gatinhava com incrível velocidade pelo quarto, avançando as mãozinhas e dando gritinhos quando caía de borco. Ela lavou-o numa selha e voltou a sentir-se confiante. Passados que foram poucos dias, já ela não conseguia aguentar a vida com Otterer. Embrulhou o pequeno numas mantas, pegou num pão e num bocado de queijo e fugiu. :, Pretendia chegar a Sonthofen, mas não foi longe. Estava ainda muito fraca das pernas, a estrada estava coberta de neve já a derreter e as pessoas nas aldeias tinham-se tornado muito desconfiadas e avarentas devido à guerra. No terceiro dia da caminhada, torceu um pé num buraco da estrada e foi levada, muitas horas depois, durante as quais se afligiu muito por causa da criança, para uma quinta, onde teve de ficar deitada no estábulo. O pequeno gatinhava por entre as patas das vacas e só se ria quando ela gritava angustiada. Por fim teve de dizer aos donos da quinta o nome do marido, e este levou-a de volta para Mering. A partir de então não mais voltou a tentar a fuga e aceitou a sua sorte. Trabalhava muito. Era difícil tirar qualquer coisa daquelas terras exíguas para assegurar o insignificante governo da casa. Mas o homem não era grosseiro para com ela, e o pequeno andava bem alimentado. O irmão também aparecia de vez em quando e trazia-lhe presentes, e uma vez ela até conseguiu mandar tingir de vermelho um casaquinho do pequeno. Pensou que ele havia de ficar bem ao filho de um tintureiro. Com o tempo, acabou por ficar contente e conheceu muitos momentos de alegria :, com a educação da criança. E assim se passou aquele ano. Um dia, porém, foi à aldeia buscar melaço e quando voltou a criança já não estava na cabana, e o marido contou-lhe que uma senhora muito bem vestida tinha vindo num coche buscar o menino. Cambaleou e apoiou-se na parede horrorizada, mas ainda nessa mesma noite se pôs a caminho de Ausburgo, levando apenas uma trouxa com comida. Mal chegou à cidade, dirigiu-se logo à fábrica de curtumes. Não a deixaram entrar e não conseguiu ver a criança. A irmã e o cunhado tentaram em vão consolá-la. Ela correu às autoridades e, fora de si, gritou que lhe tinham roubado o filho. Foi ao ponto de sugerir que a criança tinha sido roubada por protestantes. Soube então que se viviam outros tempos e que reinava a paz entre católicos e protestantes. Não teria conseguido coisa alguma, se um feliz acaso não tivesse vindo em seu auxílio. A sua queixa foi evada a um juiz que era um homem muito especial. Era ele o juiz Ignaz Dollinger, conhecido em toda a Suábia pela sua rudeza e pela sua sabedoria, alcunhado de "esse camponês de merda latino" pelo príncipe eleitor da Baviera, contra quem ele tinha instaurado um processo em favor da cidade franca, mas a :, quem a arraia-miúdi1 não se, cansava de tecer louvores numa longa cantilena. Acompanhada pela irmã e pelo cunhado, Ana compareceu perante ele. O velho, baixo mais invulgarmente gordo, estava sentado num quarto minúsculo e nu entre pilhas de pergaminhos, e ouviu-a brevemente. Em seguida, escreveu qualquer coisa numa folha de papel e resmungou: "Vai para ali, mas rápido!", e indicou-lhe com uma mãozinha gorda um local do quarto iluminado pela luz da estreita janela. Durante alguns minutos, observou-lhe o rosto; em seguida fez-lhe sinal para se ir embora, ao mesmo tempo que soltava um suspiro de aflição. No dia seguinte mandou-a buscar por um oficial de diligências e gritou-lhe, mal ela apareceu na ombreira da porta: "Porque é que não disseste que se tratava de uma fábrica de curtumes situada numa bela propriedade?" Ana respondeu obstinada que o que lhe interessava era a criança. -- Não penses que podes apanhar a fábrica gritou o juiz. -- Se o miúdo é mesmo teu, as propriedades pertencem aos parentes do Zuínglio. Ana fez que sim com a cabeça, sem olhar para o juiz. Em seguida, disse: -- Ele não precisa da fábrica de curtumes. :, -- Ele é teu? -- berrou o juiz. -- É -- disse ela baixinho. -- Se eu ao menos pudesse ficar com ele até ele saber falar bem. Ele só conhece sete palavras. O juiz tossiu e pôs em ordem os pergaminhos em cima da secretária. Depois disse, mais calmo, mas ainda em tom zangado: -- Tu queres o miúdo, e o estafermo das cinco saias de seda também o quer. Mas de quem ele precisa é da verdadeira mãe. -- Sim -- disse Ana, e olhou para o juiz. -- Desaparece -- berrou ele. -- O julgamento é no sábado. Naquele sábado, a cidade e a praça em frente da câmara municipal estavam pejadas de gente que queria assistir ao processo da "criança protestante". O estranho caso tinha desde logo causado muita sensação e nas casas e nas hospedarias discutia-se sobre quem seria a verdadeira ou a falsa mãe. Também o velho Dollinger era de todos conhecido pelos seus processos populares recheados de expressões sarcásticas e de ditos sábios. As suas audiências eram mais apreciadas que a coscuvilhice e as romarias. Assim, aglomeravam-se em frente da câmara não só pessoas de Ausburgo; não eram poucos os camponeses das redondezas que ali se encontravam. Sexta-feira era :, dia de mercado, pelo que eles tinham pernoitado na cidade na expectativa do julgamento. A sala onde o juiz Dollinger dava audiência era a chamada Sala Dourada. Era célebre por ser a única sala daquelas proporções em toda a Alemanha que não tinha colunas; o tecto estava preso à cumeeira do telhado por correntes. O juiz Dollinger estava sentado, uma pequena e rotunda montanha de carne, em frente do portão de bronze fechado de uma das paredes longitudinais. Uma simples corda separava os assistentes. Mas o juiz estava sentado no chão e não tinha à sua frente nenhuma mesa. Ele próprio concebera há anos esta disposição. Dava muita importância às aparências. Presentes dentro do espaço delimitado pela corda estavam a Sra. Zuínglio com o tio, os parentes suíços do falecido Sr. Zuínglio que tinham vindo à cidade para o julgamento, dois senhores muito bem vestidos com o aspecto de ricos comerciantes, e Ana Otterer com a irmã. Junto da Sra. Zuínglio via-se uma ama com a criança. Todos, litigantes e testemunhas, estavam de pé. O juiz Dollinger costumava dizer que as audiências eram mais rápidas se os interessados estivessem de pé. Mas ele talvez os mandasse ficar de pé para o esconderem do :, público, de tal modo que só se conseguia ver o juiz quando a pessoa se punha em bicos de pés com o pescoço esticado. No início do julgamento houve um incidente. Quando Ana viu a criança soltou um grito e deu um passo em frente, e a criança quis ir ao seu encontro, debateu-se violentamente nos braços da ama e começou a berrar. O juiz ordenou que o fizessem sair da sala. Em seguida, chamou a Sra. Zuínglio. Ela avançou, por entre um rumorejar de sedas, e contou, levando de vez em quando um lencinho aos olhos, que durante o saque os soldados imperiais lhe tinham tirado a criança. Nessa mesma noite a criada tinha ido à casa do tio e dissera que a criança ainda estava em casa, aparentemente à espera de uma gorjeta. Mas uma cozinheira do tio, que fora então enviada à fábrica de curtumes, não tinha encontrado a criança, o que a levava a admitir que a criatura (referia-se a Ana) se tinha apoderado daquela para de alguma maneira poder extorquir algum dinheiro. Ela apresentaria de qualquer modo, mais tarde ou mais cedo, essas exigências, se nãó lhe tivessem já tirado a criança. O juiz Dollinger chamou os dois familiares do Sr. Zuínglio e perguntou-lhes se se tinham nessa altura informado sobre o que acontecera ao Sr. Zuínglio e sobre o que a Sra. Zuínglio lhes tinha contado. :, Eles declararam que a Sra. Zuinglio lhes mandara dizer que o marido fora assassinado, e que ela tinha confiado a criança a uma criada, sob cuja guarda sé encontrava bem. Disseram coisas muito desagradáveis dela, o que de resto não era para admirar, já que os bens lhes tocariam em sorte se a Sra. Zuínglio perdesse a acção. Depois do seu depoimento, o juiz voltou-se de novo para a Sra. Zuínglio e quis que ela lhe dissesse se, aquando do assalto, não tinha simplesmente perdido a cabeça e abandonado a criança. A Sra. Zuínglio olhou para ele com os seus pálidos olhos azuis como que surpreendida e disse magoada que não tinha abandonado o filho. O juiz Dollinger pigarreou e perguntou-lhe com empenho se ela achava que não havia mãe nenhuma que pudesse abandonar um filho. -- Há, sim -- disse ela com firmeza. Se ela também não achava, continuou o juiz a perguntar, que se deviam dar uns bons açoites no traseiro a uma mãe que fizesse uma coisa dessas, independentemente do número de saias que usasse? A Sra. Zuínglio não respondeu, e o juiz chamou a antiga criada Ana. Ela compareceu logo e repetiu em voz baixa o que já tinha dito durante os inquéritos preliminares. :, Mas falava como se estivesse ao mesmo tempo à escuta, e de vez em quando olhava para a grande porta para além da qual tinham levado a criança, como se temesse que ela continuasse a chorar. Declarou que de facto tinha ido naquela noite à casa do tio da Sra. Zuínglio mas que não tinha voltado à fábrica de curtumes com medo dos soldados imperiais e porque estava preocupada com o seu próprio filho, que fora levado para casa de pessoas amigas na localidade vizinha de Lechhausen. O velho Dollinger interrompeu-a desabridamente e disse com voz cortante que havia pelo menos uma pessoa na cidade que sentira algo que se parecia com medo. Alegrava-se de o poder confirmar, pois isso provava que naquela altura tinha havido pelo menos uma pessoa com algum bom senso. Já não era bonito que a testemunha só se tivesse preocupado com o seu próprio filho, mas por outro lado lá dizia o provérbio que o sangue era mais forte que a água, e qual era a mãe verdadeira que não era capaz de roubar para o filho, o que era proibido por lei, porque a propriedade privada é: a propriedade privada, e quem rouba também mente, e a mentira também é proibida por lei. Proferiu então uma das suas sábias e vigorosas lições sobre a patifaria :, dos homens, que mentiam nos tribunais com quantos dentes tinham na boca, e após uma breve digressão sobre os camponeses que misturavam água no leite de vacas inocentes e sobre o magistrado da cidade que cobrava altos impostos em dinheiro aos camponeses, digressão essa que nada tinha a ver com o litígio, anunciou que tinha terminado o depoimento das testemunhas sem que se tivesse chegado a qualquer conclusão. Fez em seguida uma longa pausa e deu mostras da maior perplexidade, olhando em volta como se esperasse de qualquer lado uma sugestão que lhe permitisse solucionar o caso. As pessoas olhavam-se estupefactas e algumas esticavam o pescoço para poderem ver o desamparado juiz. Reinava, porém, um grande silêncio na sala -- só se ouvia a multidão lá fora na rua. O juiz retomou então, suspirando, a palavra. -- Não se provou quem é a mãe verdadeira -- disse ele. -- É de lamentar a criança. lá se sabe que os pais muitas vezes se despedem à francesa e não querem ser pais, os patifes; neste caso, porém, apresentam-se duas mães ao mesmo tempo. O tribunal ouviu-as o tempo que foi necessário, ou seja, cinco minutos para cada uma, e o tribunal ficou com a impressão de que ambas :, mentiam como um saco roto. Mas há que pensar na criança, que tem de ter uma mãe. Portanto, sem se entrar em conversas supérfluas, temos de provar qual das duas é a verdadeira mãe. E com voz irada chamou o oficial de diligências e ordenou-lhe que fosse buscar um giz. O oficial de diligências trouxe-lhe o que ele pedira. -- Desenha com o giz um círculo no chão, no qual possam caber três pessoas de pé -- ordenou-lhe o juiz. O oficial de diligências ajoelhou-se e desenhou com o giz o círculo pretendido. -- Agora, traz a criança -- ordenou o juiz. Trouxeram a criança. Esta desatou novamente numa gritaria e queria ir para junto de Ana. O velho Dollinger não se importou com a choradeira, e limitou-se a fazer o seu discurso num tom mais alto. -- Esta prova, a que se vai proceder -- anunciou ele --, descobri-a eu num velho livro, e continua a ser válida. A ideia fundamental da prova com o círculo de giz é a de que se reconhece a verdadeira mãe pelo amor que tem ao filho. Daí que a força desse amor tenha de ser posta à prova. Oficial de diligências, põe a criança no meio deste círculo! :, O oficial de diligências tirou a criança que berrava da mão da ama e colocou-a dentro do círculo. O juiz prosseguiu, voltando-se para a Sra. Zuínglio e para Ana: -- Ponham-se vocês também dentro do círculo, agarrem cada uma uma, mão da criança e quando eu disser "Agora!", esforcem-se por tirar a criança do círculo. A que tiver um amor mais forte, puxará com mais força e arrastará a criança para o seu lado. Reinava uma certa agitação na sala. Os espectadores punham-se em bicos de pés e discutiam com os que estavam à sua frente. Fez-se de novo um silêncio total quando as duas mulheres entraram no círculo e cada uma pegou numa das mãos da criança. Também a criança se calou, como se pressentisse do que se tratava. Mantinha a carita lavada em lágrimas erguida para Ana. Então o juiz ordenou: "Agora!" E com um único e violento puxão a Sra. Zuínglio arrastou a criança para fora do círculo de giz. Ana seguiu-a com os olhos, perturbada e incrédula. Com receio de que o menino sofresse qualquer lesão ao ser puxado por ambos os bracinhos em direcções opostas, tinha-o logo largado. O velho Dollinger levantou-se. -- E assim ficamos a saber -- disse ele em voz alta -- quem é a verdadeira mãe. Tirem a criança a essa porcalhona, que com :, frieza de animo a faria em postas. -- Acenou com a cabeça na direcção de Ana, e saiu rapidamente da sala para ir almoçar. E nas semanas seguintes os camponeses da região, que não eram tolos, contavam uns aos outros que o juiz, ao fazer entrega da criança à mulher de Mering, lhe piscara o olho. Os Dois Filhos Uma camponesa da Turíngia sonhou em Janeiro de 1945, quando se aproximava o fim da guerra de Hitler, que o filho chamava por ela no campo e, tendo saído de casa bêbeda de sono, julgou ver o filho a beber na nora. Quando lhe dirigiu a palavra, reparou que se tratava de um dos jovens prisioneiros de guerra russos que executavam trabalhos forçados na quinta. Uns dias mais tarde, teve uma experiência estranha. Ela levava comida aos prisioneiros a um bosque das proximidades, onde tinham arrancado troncos de árvores. Ao regressar, olhou por cima do ombro e viu o mesmo jovem prisioneiro de guerra, de resto um homem adoentado, inclinar o rosto, com ar desconsolado, para a tigela de lata que alguém lhe estendia com a sopa, e de repente este rosto transformou-se no do filho. Nos dias seguintes ela registou com frequência rápidas transformações, que :, rapidamente se confundiam, do rosto desse jovem no do seu filho. Depois, o prisioneiro de guerra adoeceu; jazia sem cuidados no celeiro. A camponesa sentiu um impulso crescente para lhe levar qualquer coisa de tonificante, mas o irmão, um inválido de guerra que cuidava da quinta e que tratava mal os prisioneiros, impediu-a, particularmente naquela altura em que tudo começava a desmoronar-se e a aldeia começava a temer os prisioneiros. A camponesa não podia ficar insensível aos argumentos dele; não achava correcto ajudar esses sub-homens, sobre os quais tinha ouvido coisas horríveis. Vivia no temor do que os inimigos poderiam fazer ao filho, que estava no Leste. Não se concretizara ainda o seu meio propósito de auxiliar *aquele* prisioneiro no seu abandono, quando uma noite, no pomar coberto de neve, surpreendeu um grupo de prisioneiros em animada conversa que, para se manter secreta, decorria no meio do frio. O jovem também ali estava, a tiritar de febre, e aparentemente devido ao seu estado de fraqueza assustou-se mais do que os outros. No meio do susto, ocorreu de novo a estranha transformação do seu rosto, de tal maneira que o que ela via era o rosto do filho, muito assustado. Isso deixou-a profundamente preocupada e, se bem tivesse devidamente contado ao irmão a :, conversa no pomar, resolveu dar ao rapaz o toucinho fumado que já tinha preparado. Como muitas outras boas acções no Terceiro Reich, tal viria a revelar-se extremamente difícil e perigoso. Nessa empresa, tinha o próprio irmão por inimigo, e também não podia confiar nos prisioneiros de guerra. No entanto, foi bem sucedida. Descobriu, porém, ao mesmo tempo, que os prisioneiros planeavam efectivamente fugir, pois aumentava de dia para dia o perigo de serem arrastados para ocidente com o avanço do Exército Vermelho, ou de serem pura e simplesmente exterminados. A camponesa não resistiu a satisfazer alguns desejos do jovem prisioneiro, que este lhe comunicava por gestos ou num péssimo alemão, uma vez que a ligava a ele uma estranha experiência, e deixou-se assim envolver nos planos de fuga dos prisioneiros. Arranjou um casaco e uma grande tesoura de metal. Singularmente, a partir dessa altura nunca mais se deu a transformação; a camponesa ajudava agora tão-só o jovem estrangeiro. Foi assim um choque para ela quando uma manhã, em finais de Fevereiro, alguém bateu à janela e ela viu através do vidro na penumbra o rosto do filho. Desta vez era mesmo o seu filho. Envergava o uniforme esfarrapado dos *_S_S*; a sua unidade tinha sido destroçada e ele informou excitado :, que os Russos estavam apenas a uns escassos quilómetros da aldeia. A sua chegada devia ser mantida em absoluto segredo. Numa espécie de conselho de guerra que a camponesa, o irmão e o filho realizaram num recanto do sótão, foi decidido, antes de mais, livrarem-se dos prisioneiros, já que eles teriam possivelmente visto o *_S_S*, e era de prever que se queixassem do tratamento que lhes fora reservado. Nas proximidades ficava uma pedreira. O *_S_S* insistia em que era capaz de, sozinho, os levar a sair na noite seguinte do celeiro para os abater. Podia-se levar depois os cadáveres para a pedreira. À noite deviam dar-lhes ainda umas doses de aguardente; o que não deveria levantar suspeitas, pensava o irmão, pois este, juntamente com a criadagem, já nos últimos tempos vinha sendo muito amável com os russos para no último momento lhes ganhar as simpatias. Quando o jovem *_S_S* expôs o seu plano, viu a mãe começar de repente a tremer. Os homens decidiram que ela em caso algum poderia ficar nas proximidades do celeiro. Assim, ela aguardou horrorizada o cair da noite. Os russos aceitaram a aguardente aparentemente agradecidos e a camponesa ouviu-os cantar, embriagados, as suas canções melancólicas. Mas quando o filho pelas onze da noite se dirigiu ao celeiro, os prisioneiros :, tinham fugido. Tinham fingido estar bêbedos. Fora precisamente a nova e pouco natural amabilidade das gentes da quinta que os convencera de que o Exército Vermelho devia estar perto. Os Russos chegaram efectivamente na segunda metade da noite. O filho deitara-se, bêbedo, no sótão, enquanto a camponesa, em pânico, tentava queimar-lhe o uniforme *_S_S*. Também o irmão se tinha embriagado; ela própria teve de receber os soldados russos e de os alimentar. Fê-lo com uma cara de pau. Os Russos partiram pela manhã -- o Exército Vermelho prosseguia a sua ofensiva. O filho, exausto pela noite em claro, pediu mais aguardente e comunicou o seu firme propósito de abrir caminho até às unidades alemãs em retirada para continuar a combater. A camponesa não procurou fazer-lhe ver que a continuação da luta significaria agora uma morte certa. Desesperada, atravessou-se-lhe no caminho e tentou barrar-lhe a saída com o corpo. Ele empurrou-a para cima da palha. Erguendo-se de novo, sentiu na mão o varal de um carro e, levantando o braço ao alto, abateu o tresloucado. Nessa mesma manhã, uma camponesa guiando um carro com xalmas apresentou-se na vila mais próxima perante o governo militar russo e fez entrega, atado com cordas :, dos bois, do próprio filho, como prisioneiro de guerra, para que este, como ela tentava explicar a um intérprete, pudesse salvar a sua vida. A Experiência A carreira pública do grande Francis Bacon terminou como uma justa parábola do falso provérbio "O crime não compensa". Sendo ele lorde-chanceler do Reino, deixou-se tentar pela corrupção e foi parar à cadeia. Os anos do seu magistério contam-se, com todas as execuções, concessões de monopólios ilícitos, detenções ilegais e casos de sentenças viciadas, entre os mais sombrios e infames da História de Inglaterra. Depois de ter sido desmascarado e de ter confessado, a sua fama de humanista e de filósofo fez com que os seus crimes se tornassem conhecidos muito para além. Das fronteiras do Reino. Era um velho quando lhe permitiram sair da prisão e voltar para a sua quinta. Tinha o corpo debilitado pelos esforços que lhe tinha custado levar várias pessoas à queda e pelos sofrimentos que os outros por sua vez lhe infligiram quando o levaram à sua :, própria queda. Mas, mal chegou a casa, lançou-se no mais intensivo estudo das ciências da natureza. Fora mal sucedido ao querer dominar os homens. Por isso consagrava agora as forças que lhe restavam à investigação sobre a melhor maneira de a humanidade dominar as forças da natureza. As suas investigações, voltadas para coisas úteis, faziam-no constantemente sair do gabinete de estudo para ir para os campos, para os jardins e para as estrebarias da propriedade. Conversava horas a fio com os jardineiros sobre as possibilidades de enxertar as árvores de fruto, ou dava indicações às criadas sobre a maneira de medirem a quantidade de leite de cada vaca. Chamou-lhe então a atenção um moço de estrebaria. Um cavalo de raça tinha adoecido e o rapaz dava informações ao filósofo duas vezes por dia. O seu zelo e os seus dons de observação encantaram o velho. Mas, quando ele uma tarde entrou no estábulo, viu uma velha de pé junto do rapaz que lhe dizia: "Ele é um homem mau, toma cuidado com ele. E se bem que ainda seja um grande senhor e tenha dinheiro como milho, nem por isso deixa de ser mau. É ele quem te dá o pão, por isso trata de fazeres bem o teu trabalho, mas nunca te esqueças de que ele é mau." O filósofo já não ouviu a resposta do :, rapaz, porque deu rapidamente meia volta e regressou a casa; na manhã seguinte, porém, viu que o rapaz em nada alterara o seu comportamento para com ele. Quando o cavalo melhorou, ele fez-se acompanhar do rapaz em muitas das suas saídas e confiou-lhe pequenas tarefas. A pouco e pouco habituou-se a falar com ele sobre algumas das suas experiências. Mas não escolhia as palavras que os adultos geralmente acham que se coadunam com o entendimento das crianças, antes falava com ele como se ele fosse uma pessoa instruída. Convivera durante a sua vida com as grandes sumidades, que poucas vezes o tinham compreendido, não por ele ser confuso, mas, pelo contrário, por ser claro de mais. Não se preocupava, portanto, com as dificuldades do rapaz; no entanto, emendava-o pacientemente, quando ele, por sua vez, tentava usar palavras estranhas. A tarefa principal do rapaz consistia em ter de descrever as coisas que via e os processos que presenciava. O filósofo mostrava-lhe a grande quantidade de palavras que existia e quantas eram de facto necessárias para se poder descrever a reacção de uma coisa por forma a que ela pudesse ser identificada a meio da descrição, e, sobretudo, para que, depois da descrição, pudesse ser manipulada. Também havia algumas palavras :, que era preferível não usar, pois no fundo nada diziam, palavras como "bom", "mau", "bonito", etc. O rapaz não tardou a perceber que não fazia sentido chamar "feio" a um escaravelho. Até "rápido" não bastava; tinha de se ver a que velocidade é que ele se deslocava, em comparação com outras criaturas do seu tamanho, e ver o que é que isso lhe possibilitava. Tinha de se pôr o animal numa superfície inclinada e lisa e provocar ruídos para ele fugir, ou então arranjar-lhe pequenas presas sobre as quais ele se precipitasse. Quando nos ocupávamos com ele o tempo suficiente, ele perdia "rapidamente" a sua fealdade. Uma vez, o rapaz tinha de descrever um pedaço de pão, que segurava na mão, quando o filósofo veio ao seu encontro. -- Neste caso podes empregar à vontade a palavra "bom" -- disse o velho --, porque o pão foi feito para a alimentação dos homens e pode ser bom ou mau para eles. Só em relação a objectos maiores, que a natureza criou e que não podem sem mais nada ser usados para determinados fins, e, que sobretudo se não destinam ao uso exclusivo dos homens, é que é disparate contentarmo-nos com semelhantes palavras. O jovem pensava nas frases da avó sobre o milorde. :, Fez rápidos progressos na compreensão, já que tudo o que havia a compreender se prendia sempre com o concreto: o cavalo curara-se graças aos meios que tinham sido usados, ou determinada árvore morrera devido ao remédio utilizado. Compreendeu também que devia ficar-se sempre com uma dúvida prudente sobre se as modificações que se observaram se ficavam efectivamente a dever aos métodos usados. O rapaz mal compreendia o significado científico do modo de pensar de Bacon, mas a manifesta utilidade de todas estas empresas entusiasmava-o. Entendia assim o filósofo: Tinha chegado uma nova era para o mundo. A humanidade multiplicava o seu saber diariamente. E todo o saber significava melhoria do bem-estar e da felicidade terrena. A direcção cabia à ciência. A ciência investigava o universo, tudo o que existia sobre a terra: plantas, animais, solo, água, ar, para que de tudo se pudesse extrair um maior proveito. Não era aquilo em que se acreditava que era importante, mas o que se sabia. Acreditava-se em demasiadas coisas e sabia-se de menos. Eis porque se tinha de experimentar tudo, com as próprias mãos, e só se devia falar do que se via com os próprios olhos e podia ter uma utilidade qualquer. Era essa a nova doutrina, que tinha cada :, vez mais seguidores entusiasmados e prontos a lançarem-se nos novos trabalhos. Os livros tinham nisso um papel importante, embora muitos também fossem maus. O rapaz não duvidava de que tinha de se agarrar aos livros se queria pertencer ao número daqueles que se ocupavam das novas tarefas. É claro que ele nunca entrou na biblioteca da casa. Tinha de esperar o milorde em frente dos estábulos. O mais que pôde fazer foi encontrar-se uma vez com ele no parque, quando o velho não aparecera durante uns dias. No entanto, a curiosidade que sentia pelo gabinete de estudo, no qual durante toda a noite ficava acesa uma lâmpada, era cada vez maior. De uma sebe que ficava em frente do quarto, podia lançar um olhar às estantes com livros. Resolveu aprender a ler. O que não foi fácil. O vigário, a quem ele foi comunicar esse seu desejo, olhou-o como quem avista uma aranha em cima da mesa do pequeno-almoço. -- Queres pregar às vacas o Evangelho do Senhor? -- perguntou de mau humor. E 0 rapaz bem pôde dar-se por feliz por ter sido despedido sem levar uma bofetada. Teve assim de escolher outro caminho. Havia na sacristia da igreja da aldeia um missal. Podia-se lá chegar, se a pessoa se oferecesse :, para tocar o sino. Se se pudesse saber qual era a passagem que o cura ia cantar na missa, devia ser possível descobrir uma relação entre as palavras e os caracteres. De qualquer modo, o rapaz começou a aprender de cor as palavras latinas que o cura cantava na missa, pelo menos algumas delas. O cura, no entanto, pronunciava as palavras de uma maneira invulgarmente ininteligível, e muitas vezes nem lia a missa. Fosse como fosse, o rapaz já conseguia, ao fim de algum tempo, acompanhar algumas entradas do cura. O estribeiro surpreendeu-o uma vez a fazer esses exercícios atrás do celeiro e bateu-lhe, pois pensou que o rapaz estava a fazer troça do cura. E foi assim que ele acabou por apanhar um par de bofetadas. O rapaz ainda não conseguira localizar no missal os sítios em que apareciam as palavras que o cura cantava, quando aconteceu uma grande desgraça que quase pôs termo aos seus esforços para aprender a ler. O milorde caiu de cama para não mais se levantar. Durante todo o Outono tinha andado adoentado e não estava ainda completamente restabelecido quando, no Inverno seguinte, num carro aberto, fez uma viagem de algumas milhas até uma propriedade :, distante. O rapaz acompanhava-o. Seguia atrás nos varais, ao lado do cocheiro. Terminada a visita, quando o velho se encaminhava com dificuldade, acompanhado pelo dono da casa, para o carro, eis que viu um pardal enregelado no caminho. Parou e, com a bengala, revirou-o. -- Há quanto tempo é que acha que ele está aqui? -- ouviu-o o rapaz, que vinha com uma botija de água quente atrás deles, perguntar ao dono da casa. A resposta foi: -- Há uma hora ou uma semana, ou mais. O velhinho seguiu caminho pensativo e despediu-se do dono da casa com um aceno distraído. -- A carne ainda está muito fresca, Dick -- disse ele, virando-se para o rapaz, quando o carro se pôs em marcha. Andaram um bocado a grande velocidade, pois a noite caía já sobre os campos cobertos de neve e o frio aumentava a olhos vistos. Aconteceu então que, ao fazerem a curva para entrar no portão da quinta, atropelaram uma galinha que pelos vistos tinha fugido da capoeira. O velho seguiu os esforços do cocheiro para se desviar da galinha que esvoaçava espavorida e fez sinal para parar, depois da manobra ter falhado. Libertando-se das mantas e das peles, :, desceu do carro e, apoiado ao braço do rapaz, foi, apesar dos avisos do cocheiro contra o frio, até ao sítio onde jazia a galinha. Estava morta. O velho mandou o rapaz pegar nela. -- Tira-lhe as entranhas -- ordenou. -- Não se pode fazer isso na cozinha? -- perguntou o cocheiro ao amo, ao vê-lo tão frágil naquele vento gelado. -- Não, é melhor aqui -- disse este. -- Dick tem com certeza uma faca, e precisamos da neve. O rapaz fez o que lhe mandavam, e o velho, que aparentemente tinha esquecido a doença e o frio, curvou-se e pegou a custo num punhado de neve que meteu cuidadosamente no interior da galinha. O rapaz percebeu. Também ele apanhou neve e entregou-a ao professor, para que a galinha ficasse inteiramente recheada. -- Ela deve conservar-se fresca durante semanas -- disse o velho com vivacidade. -- Ponham-na na cave, em cima de uma laje fria! Percorreu a pé a curta distancia que o separava da porta, um tanto extenuado e apoiando-se em peso contra o rapaz, que levava a galinha recheada de neve debaixo do braço. Quando entrou no vestíbulo teve um arrepio de frio. :, Na manha seguinte tinha febre muito alta. O rapaz andava em cuidados de um lado para o outro procurando por toda a parte saber notícias do seu professor. Pouco conseguiu apurar -- a vida na grande propriedade prosseguia imperturbável. Só no terceiro dia é que houve uma mudança. Foi chamado ao gabinete de trabalho. O velho jazia num estreito catre de madeira por baixo de muitas mantas, mas as janelas estavam abertas, pelo que fazia frio. O doente parecia, porém, arder em febre. Com voz trémula, indagou do estado da galinha cheia de neve. O rapaz disse que parecia estar na mesma fresca. -- Isso é bom -- disse o velho, satisfeito. -- Dentro de dois dias volta a dar-me notícias! O rapaz lamentou, ao sair, não ter levado a galinha. O velho parecia menos doente do que se dizia no refeitório dos criados. Mudava-lhe a neve duas vezes por dia, e a galinha continuava incólume quando ele de novo se encaminhou para o quarto do doente. Encontrou obstáculos inusitados. Tinham vindo médicos da cidade. O corredor fervilhava de vozes sussurrantes, que :, davam ordens, que obedeciam, e viam-se por todo o lado caras estranhas. Um criado, que levava para o quarto do doente uma bacia tapada com uma grande toalha, mandou-o embora com maus modos. Em vão tentou várias vezes durante a manhã e a tarde entrar no quarto do doente. Os médicos desconhecidos pareciam querer instalar-se no palácio. Surgiam-lhe como gigantescos pássaros negros, que se abatiam sobre um pobre doente indefeso. Ao fim da tarde, ele escondeu-se num gabinete no corredor, onde fazia muito frio. Tremia constantemente de frio, mas achou que isso era favorável, já que, para bem da experiência, a galinha tinha de se conservar absolutamente gelada. Durante o jantar a maré negra diminuiu um pouco e o rapaz conseguiu introduzir-se no quarto do doente. O doente estava sozinho -- toda a gente tinha ido jantar. Junto da exígua cama havia um candeeiro de leitura com uma pantalha verde. O velho tinha um rosto estranhamente chupado que uma palidez de cera realçava. Tinha os olhos fechados, mas as mãos agitavam-se inquietas sobre a colcha rígida. O quarto estava muito quente -- tinham fechado as janelas. O rapaz deu alguns passos na direcção da cama, com a galinha bem agarrada, e :, chamou várias vezes em voz baixa: "Milorde." Não obteve resposta. Mas o doente não parecia estar a dormir, pois mexia de vez em quando os lábios, como se falasse. O moço resolveu chamar-lhe a atenção, convencido da importância de novas instruções para o prosseguimento da experiência. Sentiu, no entanto, antes de poder puxar pela colcha -- pusera a galinha com a caixa onde a transportava em cima duma cadeira de braços --, que alguém o agarrava por trás e o puxava. Um homem gordo de rosto cinzento olhava-o como se ele fosse um assassino. Conseguiu libertar-se com presença de espírito e, agarrando na caixa de um pulo, saiu com ela porta fora. No corredor, pareceu-lhe que o vice-mordomo, que vinha a subir as escadas, o tinha visto. Isso era mau. Como é que iria provar que viera cumprindo ordens do milorde com vista à realização de uma experiência importante? O velho estava inteiramente nas mãos dos médicos -- assim o mostravam as janelas fechadas do seu quarto de cama. Viu efectivamente um criado atravessar o pátio na direcção dos estábulos. Resolveu privar-se da ceia e escondeu-se, depois de ter levado a galinha para a cave, no celeiro para forragem. :, O inquérito que pendia sobre ele provocou-lhe um sono inquieto. Foi a medo que, na manhã seguinte, saiu do esconderijo. Ninguém se preocupava com ele. Reinava no pátio uma terrível azáfama. Milorde tinha morrido de madrugada. O rapaz andou todo o dia como se tivesse recebido uma pancada na cabeça. Tinha a sensação de não se poder consolar da perda do seu professor. Quando, ao fim da tarde, desceu à cave com uma terrina cheia de neve, a sua preocupação transferiu-se para a experiência que não tinha sido concluída, e derramou lágrimas sobre a caixa. Que seria da grande descoberta? Ao regressar ao pátio -- sentia os pés tão pesados que olhou para as pegadas na neve para ver se não eram mais fundas do que habitualmente --, certificou-se de que os médicos londrinos ainda não tinham partido. Os coches ainda ali estavam. Vencendo a sua aversão, resolveu confiar-lhes a descoberta. Eram homens instruídos e deviam reconhecer o alcance da experiência. Foi buscar o pequeno caixote com a galinha e pôs-se atrás do poço, bem escondido, até que por ali passou um dos senhores, baixote, que não infundia um medo excessivo. Adiantando-se, mostrou-lhe a caixa. A princípio, a voz ficou-lhe embargada na garganta, mas depois lá conseguiu :, exprimir o que pretendia em frases descosidas. -- Milorde encontrou-a morta há seis dias, Excelência. Enchemo-la de neve. Milorde achava que ela podia conservar-se fresca. Veja só! Está perfeitamente fresca. O baixote olhou admirado para a caixa. -- E que mais? -- perguntou. -- Não está estragada -- disse o rapaz. -- Ah, sim -- disse o homem. -- Veja -- insistiu o rapaz. -- Estou a ver -- disse o médico, e abanou a cabeça. Afastou-se, meneando a cabeça. O rapaz ficou a olhar para ele pasmado. Não era capaz de entender o homem baixo. Acaso o velho não pagara com a vida o facto de ter descido do carro com aquele frio todo para fazer a experiência? Recolhera a neve do chão com as próprias mãos. Isso era um facto irrecusável. Voltou com passos lentos para a porta da cave, mas parou pouco antes de a alcançar, deu rapidamente meia volta e correu para a cozinha. Foi encontrar o cozinheiro muito atarefado, porque se esperavam convidados das redondezas para o jantar do velório. -- O que queres tu com essa ave? -- resmungou zangado o cozinheiro. -- Está completamente gelada! -- Não tem importância -- disse o rapaz. -- Milorde disse que não tinha importância. :, O cozinheiro fitou-o por momentos com ar ausente, dirigiu-se depois com andar pesado para a porta com uma grande frigideira na mão, porventura para deitar fora alguma coisa. O rapaz seguiu-o, solícito, com a caixa. -- Não se pode tentar? -- perguntou ele com insistência. O cozinheiro perdeu a paciência. Agarrou na galinha com as mãos grossas e arremessou-a com ímpeto para o pátio. -- Não tens mais nada em que pensar? -- berrou, fora de si. -- E com a morte de Sua Senhoria! Furioso, o rapaz pegou na galinha e afastou-se com ela. Os dois dias seguintes foram ocupados com as cerimónias fúnebres. Teve de atrelar e desatrelar muitos cavalos e quase dormia de olhos abertos quando, de noite, ainda ia substituir a neve dentro da caixa. Parecia-lhe que não havia qualquer esperança -- a nova era chegara ao fim. Mas ao terceiro dia, no dia do funeral, lavado de fresco e com o seu melhor fato, sentiu que ó seu estado de espírito tinha mudado. Estava um belo e ameno tempo de Inverno, e ouviam-se os sinos da aldeia. Animado por uma nova esperança, foi à cave è inspeccionou demorada e cuidadosamente :, a galinha morta. Não conseguia descobrir um único sinal de putrefacção. Com todo o cuidado, acondicionou o animal morto dentro da caixa, encheu-a de neve imaculada, pô-la debaixo do braço e pôs-se a caminho da aldeia. Assobiava contente quando entrou na cozinha baixa da avó. Ela tinha-o criado, pois os pais tinham-lhe morrido muito cedo, e merecia a sua confiança. Sem mostrar logo o conteúdo da caixa, contou à velha, que se estava a aprontar para o funeral, a experiência de milorde. Ela ouviu-o com paciência. -- Mas isso toda a gente sabe -- disse ela então. -- As coisas ficam duras com o frio e conservam-se durante algum tempo. O que é que isso tem de especial? -- Eu acho que ainda se pode comer -- respondeu o rapaz, esforçando-se por aparentar a maior indiferença. -- Comer uma galinha morta há uma semana? Mas isso é um veneno! -- Porquê? Se não se alterou desde que morreu? E morreu atropelada pelo carro do milorde, por isso estava boa. -- Mas por dentro, por dentro está estragada! -- disse a velha, perdendo um pouco a paciência. -- Não acredito -- disse o rapaz com firmeza, com os olhos claros fitos na galinha. :, -- Por dentro teve sempre neve. Acho que vou cozê-la. A velha zangou-se. -- Tu vais é comigo ao funeral -- disse ela terminantemente. -- Sua Senhoria fez por ti o suficiente, penso eu, para que te sintas na obrigação de acompanhar bem comportado o seu caixão. O rapaz não respondeu. Enquanto ela punha na cabeça o lenço preto de lã, tirou a galinha da neve, soprou os últimos vestígios de neve que ainda a salpicavam e colocou-a sobre duas achas de lenha diante do fogão para que descongelasse. A velha não voltou a dar-lhe atenção. Quando ficou pronta, pegou-lhe na mão e saiu com ele resolutamente porta fora. Ele acompanhou-a obedientemente um bom bocado. Havia mais gente a caminho do enterro, homens e mulheres. De repente, o rapaz soltou um grito de dor. Tinha enfiado o pé num buraco da neve. Tirou-o com uma careta de dor, dirigiu-se a pé-coxinho para um marco e sentou-se a esfregar o pé. -- Torci o pé -- disse ele. A velha olhou-o desconfiada. -- Podes bem andar -- disse ela. -- Não posso -- respondeu ele, mal-humorado. -- Mas se não acreditas, senta-te ao pé de mim até que eu fique melhor. :, A velha sentou-se, sem dizer palavra, junto dele. Passou-se um quarto de hora. Continuavam a passar habitantes da aldeia, embora em número cada vez menor. E eles de cócoras, obstinadamente, na berma do caminho. A velha disse então com ar sério: -- Ele não te ensinou que pão se deve mentir? O rapaz não respondeu. A velha levantou-se com um suspiro. O frio era demasiado para ela. -- Se não apareceres dentro de dez minutos -- disse ela --, vou dizer ao teu irmão, que te há-de dar um bom par de açoites. E fez-se de novo ao caminho, estugando o passo para não perder a oração fúnebre. O rapaz esperou que ela estivesse a uma certa distancia, e levantou-se então lentamente. Voltou para trás, mas olhava muitas vezes por cima do ombro e ainda coxeava um pouco. Só quando uma sebe o ocultou da velha, é que recomeçou a andar normalmente. Na cabana, sentou-se junto da galinha, que observou com ansiedade. Ia cozê-la numa panela com água e comer uma asa. Veria então se estava ou não envenenada. Estava ainda sentado quando ecoaram ao longe três tiros de canhão. Foram disparados em honra de Francis Bacon, barão de :, Verulam, visconde de Santo Albano, antigo lorde-chanceler de Inglaterra, objecto de escândalo para não poucos dos seus contemporâneos, mas que também soube despertar em muitos o entusiasmo pelas ciências úteis e proveitosas. O Capote do Herege Giordano Bruno, o homem de Nola, que a Inquisição romana mandou queimar na fogueira no ano de 1600 por heresia, é geralmente considerado um grande homem, não só devido às suas hipóteses ousadas, que depois se provou serem verdadeiras sobre os movimentos dos astros, como também devido à sua atitude corajosa perante a Inquisição, à qual terá dito: "Vós pronunciais a sentença contra mim talvez com mais receio do que eu a escuto." Quem ler as suas obras e se debruçar também sobre o seu comportamento em sociedade, não poderá deixar de considerá-lo um grande homem. Há, porém, uma história capaz de aumentar ainda mais a nossa admiração por ele. _é a história do seu capote. Para tanto importa saber como é que ele caiu nas garras da Inquisição. Um seu patrício veneziano, um tal Mocenigo, :, convidou o sábio para sua casa, para que ele lhe ensinasse física e mnemotecnia. Hospedou-o durante alguns meses e, como contrapartida, recebeu os ensinamentos pretendidos. Mas, em vez de uma iniciação na magia negra, como esperava, apenas recebeu lições de física. Ficou por conseguinte muito desapontado, pois esses conhecimentos para nada lhe serviam. Lamentou os gastos que fizera com o hóspede. Exortou-o várias vezes em tom sério para que finalmente lhe transmitisse os conhecimentos secretos e rendosos que um homem tão famoso tinha por força de possuir, e como isso de nada lhe valesse, denunciou-o por carta à Inquisição. Disse na carta que aquele homem mau e ingrato falara mal de Cristo na sua presença, dissera que os frades eram uns asnos e que estupidificavam o povo, e, além disso, afirmava que existia, contrariamente ao que vem na Bíblia, não apenas um Sol, mas um número incontável deles, etc., etc. Ele, Mocenigo, tinha-o fechado no sótão e solicitava que o viessem prender o mais depressa possível. Os funcionários chegaram a meio da noite de domingo para segunda-feira e levaram o sábio para as masmorras da Inquisição. Isto passou-se numa segunda-feira, 25 de Maio de 1592, pelas 3 horas da madrugada, :, e desde essa data até ao dia em que o ataram sobre a fogueira, a 17 de Fevereiro de 1600, nunca mais o homem de Nola saiu dos calabouços da Inquisição. Durante os oito anos que durou o terrível processo, lutou pela vida sem desfalecimento, mas o combate que travou no primeiro ano em Veneza contra a sua extradição para Roma foi, talvez, o mais desesperado de todos. Foi nessa altura que ocorreu a história com o capote. No Inverno de 1592, ele tinha mandado fazer, quando ainda vivia num hotel, um espesso capote a um alfaiate chamado Gabriele Zunto. Quanto foi preso, ainda a peça de roupa não fora paga. Ao saber da notícia da prisão, o alfaiate correu a casa do senhor Mocenigo perto de S. Samuel a apresentar a conta. Tarde de mais. Um criado do Sr. Mocenigo apontou-lhe a porta. "_já pagamos o suficiente a esse aldrabão!", gritou ele da soleira da porta com voz tão exaltada que alguns transeuntes se viraram para trás. "O melhor é talvez dirigir-se ao Tribunal do Santo Ofício e dizer o que se passa entre si e esse herege." O alfaiate ficou especado no meio da rua, assustado. Um bando de garotos da rua ouvira toda a conversa, e um deles, um petiz andrajoso e cheio de pústulas, atirou-lhe :, uma pedra. Uma mulher pobremente vestida saiu até de uma porta e deu-lhe uma bofetada, mas Zunto, que era velho, apercebeu-se claramente de que era perigoso "ter alguma coisa a ver com esse herege". Apressou-se a dobrar a esquina olhando timidamente em volta e, fazendo um grande desvio, seguiu para casa. Não contou nada do sucedido à mulher, que andou uma semana intrigada com o estado de abatimento do marido. Mas a 1 de Junho ela descobriu, ao transcrever as contas, que havia um capote que não fora pago por um homem cujo nome andava na boca de toda a gente, pois o homem de Nola era o assunto de todas as conversas na cidade. Corriam os mais terríveis boatos sobre a sua maldade. Ele não só arrastara o casamento pela lama, tanto em livros como em conversas, como também tinha chamado charlatão ao próprio Cristo e dissera as coisas mais disparatadas sobre o Sol. O que batia certo com o facto de ele não ter pago o capote. A boa mulher não tinha a mínima vontade de arcar com este prejuízo. Depois de uma violenta discussão com o marido, a septuagenária dirigiu-se com as suas melhores roupas ao edifício do Tribunal do Santo Ofício e, de cenho carregado, exigiu os trinta e dois escudos que lhe devia o herege preso. :, O funcionário com quem ela falou tomou nota da queixa e prometeu tratar do assunto. Zunto não tardou a receber uma contrafé e, trémulo e cambaleante, apresentou-se no temível edifício. Com grande espanto seu, não foi interrogado, mas apenas informado de que o seu crédito seria tomado em consideração quando da regularização dos assuntos financeiros do preso. O funcionário disse-lhe, no entanto, que não acalentasse muitas esperanças. O velho ficou tão contente por se ver livre de apuros com tamanha facilidade que agradeceu cheio de humildade. Mas a mulher não ficou satisfeita. Para compensar o prejuízo não bastava que o marido renunciasse ao seu quartilho da noite e que ficasse a coser até altas horas. Havia dívidas que tinham de ser pagas ao vendedor de fazendas. Ela vociferou na cozinha e pelo pátio que era uma vergonha prender um criminoso antes dele ter pago o que devia. Estava disposta a ir até ao Santo Padre, em Roma, se fosse necessário, para receber os seus trinta e dois escudos. "Ele não precisa de capote na fogueira", bramava ela. Contou ao confessor o que lhe tinha acontecido. Este aconselhou-a a exigir que pelo menos lhe devolvessem o capote. Ela considerou isso como o reconhecimento por parte de uma autoridade eclesiástica da existência de um direito e declarou que não se satisfazia com o capote, que por certo já fora usado e que além disso tinha sido feito por medida. Tinha de receber o dinheiro. Como o zelo a levasse a elevar um pouco a voz, o padre pô-la na rua. Isto trouxe-a um pouco à razão e passou algumas semanas mais serena. Não transpirou mais nada do edifício da Inquisição sobre o caso do herege preso. Dizia-se no entanto em voz baixa que os interrogatórios traziam à luz crimes monstruosos. A velha dava ouvidos ávidos a todo esse palavrório. Era para ela uma tortura ouvir dizer que o caso do herege ia mal. Nunca mais ele seria libertado para poder pagar as suas dívidas. lá não conseguia dormir e, em Agosto, quando o calor acabou por lhe dar cabo dos nervos, começou a apresentar as suas queixas com grande soltura de língua nas lojas onde ia comprar coisas e diante dos clientes que vinham provar. Insinuava que os padres cometiam um pecado ao não ligarem importância às justas exigências de um pequeno artesão. Os impostos eram pesados e o preço do pão tinha há pouco aumentado outra vez. Uma manhã, um funcionário conduziu-a ao edifício do Tribunal do Santo Ofício onde a admoestaram insistentemente para que acabasse com o palavrório. Perguntaram-lhe :, se ela não tinha vergonha de, só por causa de uns escudos, andar a apregoar aos quatro ventos um processo do foro eclesiástico da maior gravidade. Deram-lhe a entender que dispunham de toda a espécie de meios para lidar com gente como ela. Isso resultou durante uns tempos, se bem que ficasse vermelha de cólera sempre que se lembrava da expressão "só por causa de uns escudos" que um frade glutão proferira. Mas constou em Setembro que o Grande Inquisidor em Roma tinha exigido a extradição do homem de Nola. Tratava-se disso na Signoria. O município discutiu animadamente este pedido de extradição, e a opinião foi em geral contrária. As corporações não queriam que tribunais romanos se sobrepusessem a elas. A velha estava fora de si. Queriam agora mandar o herege para Roma, sem ele ter pago-as suas dívidas? Era o cúmulo. Mal tinha ouvido a inacreditável notícia, e já ela corria, sem perder tempo a vestir uma saia melhor, para o edifício do Tribunal do Santo Ofício. Foi desta vez recebida por um funcionário superior que, curiosamente, mostrou muito maior boa vontade em relação a ela do que os funcionários anteriores. Era quase da idade dela e ouviu as suas queixas :, com deferente paciência. Quando ela terminou, perguntou-lhe, depois de uma pequena pausa, se queria falar com Bruno. A velha disse logo que sim. Marcaram-lhe um encontro para o dia seguinte. Nessa manhã, veio ao seu encontro, num quarto minúsculo com janelas gradeadas, um homem pequeno, magro, com uma barba rala e escura, que lhe perguntou cortesmente o que é que ela pretendia. Ela tinha-o visto em tempos, quando ele fora provar o capote, e conservara uma boa recordação do seu rosto, mas agora não o reconheceu imediatamente. As aflições dos interrogatórios deviam tê-lo alterado. Ela apressou-se a dizer: -- O capote. O senhor não pagou o capote. Ele fixou-a, surpreendido, durante alguns segundos. Recordou-se depois, e perguntou em voz baixa: -- Quanto lhe devo? -- Trinta e dois escudos -- disse ela. -- Mas o senhor recebeu a conta. Ele voltou-se para o funcionário grande e gordo que assistia à entrevista e perguntou-lhe se ele sabia quanto dinheiro fora entregue no Tribunal do Santo Ofício juntamente com os seus haveres. O homem não sabia, mas prometeu informar-se. -- Como está o seu marido? -- perguntou o prisioneiro, voltando-se de novo para :, a velha, como se o assunto ficasse assim em andamento, e se pudessem estabelecer relações normais e estivessem criadas as condições para uma visita banal. E a velha, perturbada com a amabilidade do homenzinho, murmurou que ele estava bem e até acrescentou mais qualquer coisa sobre o seu reumatismo. Ela voltou passados dois dias ao edifício do Santo Ofício, pois parecera-lhe conveniente dar tempo ao homem para se informar. Foi efectivamente autorizada a falar uma vez mais com ele. Teve, no entanto, de esperar no minúsculo quarto com janela gradeada mais de uma hora, pois ele estava a ser interrogado. Ele entrou com um ar extremamente fatigado. Como não havia ali nenhuma cadeira, encostou-se um pouco à parede. Mas foi logo direito ao assunto. Disse-lhe com voz muito sumida que infelizmente não estava em condições de lhe pagar o capote. Não tinham encontrado dinheiro entre as suas coisas. Ela não devia, no entanto, perder toda a esperança. Ele tinha reflectido e ocorrera-lhe que devia haver dinheiro que lhe pertencia em casa de um homem que lhe imprimia os livros na cidade de Francoforte. Ia escrever-lhe, se lho permitissem. Pediria essa licença logo no dia seguinte. Hoje, tinha-lhe parecido :, durante o interrogatório que o ambiente não era propício. Por essa razão não tinha querido perguntar e, porventura, deitar tudo a perder. A velha fitava-o com olhos penetrantes enquanto ele falou. Ela conhecia os subterfúgios e as promessas dos devedores desleixados. Estavam-se nas tintas para as suas obrigações, e quando se lhes deva um apertão reagiam como se remexessem céus e terra. -- Para que é que precisava de um capote, se não tinha dinheiro para o pagar? -- perguntou ela com dureza. O prisioneiro acenou com a cabeça, como que a dizer-lhe que lhe seguia o fio do pensamento. Respondeu: -- Ganhei sempre dinheiro com livros e com o ensino. Pensei, assim, que também agora ganharia. E pensei que precisava do capote, pois achava que continuaria em liberdade. Disse isto sem qualquer azedume, manifestamente apenas para que ela não ficasse sem resposta. A velha voltou a examiná-lo dos pés à cabeça, furiosa, mas com a sensação de que não se devia aproximar dele. Sem dizer palavra, deu meia volta e saiu do quarto. -- Quem é que vai mandar dinheiro a um homem a quem a Inquisição pôs um processo? -- disse ela zangada para o marido, :, quando os dois já estavam deitados. Ele estava agora tranquilo quanto à posição das autoridades eclesiásticas a seu respeito, mas desaprovava as incansáveis tentativas da mulher para reaver o dinheiro. -- Ele tem agora outras coisas em que pensar -- murmurou ele. Ela não disse mais nada. Passaram-se meses sem que o triste caso conhecesse qualquer evolução. No princípio de _janeiro, soube-se que a Signoria estava a pensar em aceder ao desejo do papa e em extraditar o herege. E veio então uma nova contrafé para que os Zunto comparecessem no edifício do Tribunal do Santo Ofício. Não se indicava a hora, pelo que a Sra. Zunto para lá se dirigiu numa tarde. A sua ida foi inoportuna. O prisioneiro aguardava a visita do procurador da República, a quem a Signoria solicitara um parecer sobre a extradição. Foi recebida pelo alto funcionário que lhe tinha arranjado o primeiro encontro com o homem de Nola, e o ancião disse-lhe que o prisioneiro desejava falar-lhe, mas que ela devia ponderar se seria boa altura, uma vez que o prisioneiro ia ter imediatamente uma entrevista da maior importância. Ela limitou-se a dizer que lhe fizessem a ele a pergunta. :, Um funcionário saiu e voltou com o prisioneiro. A conversa teve lugar na presença do alto funcionário. Antes que o homem de Nola, que já da porta lhe sorria, pudesse dizer qualquer palavra, a velha exclamou: -- Porque se comporta desta maneira, se quer ser posto em liberdade? O homem ficou por instantes como que aparvalhado. Tinha, durante os últimos três meses, respondido a muitas perguntas e quase lhe passara da memória o final da conversa que tivera com a mulher do alfaiate. -- Não me chegou dinheiro nenhum -- acabou ele por dizer. -- Escrevi duas vezes a pedir, mas não chegou nada. Pensei que a senhora talvez quisesse ficar com o capote. -- Eu já sabia que isto ia acontecer -- disse ela com desdém. -- E foi feito por medida e é demasiado pequeno para a maioria das pessoas. O homem de Nola olhou contristado para a velha. -- Nisso é que eu não pensei -- disse ele, e voltou-se para os padres: -- Não seria possível vender tudo o que tenho e dar o dinheiro a esta gente? -- Isso não será possível -- intrometeu-se o funcionário grande e gordo que o fora buscar. -- O senhor Mocenigo reivindica direitos nessa matéria. O senhor viveu muito tempo à custa dele. :, -- Ele convidou-me -- respondeu, cansado, o homem de Nola. O ancião ergueu a mão. -- Isso não vem efectivamente a propósito. Penso que o capote deve ser devolvido. -- Mas o que é que faremos com ele? -- perguntou, teimosa, a velha. O ancião corou um pouco. Disse devagar: -- Boa mulher, não lhe ficaria mal um pouco de indulgência cristã. O réu vai comparecer numa entrevista que poderá significar para ele a vida ou a morte. A senhora dificilmente poderá exigir que ele se interesse pelo seu capote. A velha olhou para ele, insegura. Lembrou-se de repente do sítio onde estava. Ponderou se não devia ir-se embora, quando ouviu atrás de si o prisioneiro dizer em voz baixa: -- Acho que ela o pode exigir. -- E quando ela se virou para ele, ele acrescentou: -- Tem de desculpar tudo isto. De maneira alguma pense que me é indiferente o seu prejuízo. Vou apresentar um requerimento sobre o assunto. A um sinal do ancião, o funcionário grande e gordo tinha saído da sala. Voltou então, abriu os braços e disse: -- O capote não deu cá entrada. O Mocenigo deve ter ficado com ele. O homem de Nola ficou visivelmente perturbado. Disse então com firmeza: :, -- Isso não está certo. Vou apresentar queixa contra ele. O ancião abanou a cabeça. -- Preocupe-se mas é com a conversa que vai ter dentro de minutos. Não posso tolerar que se fique aqui a discutir mais tempo por causa de uns míseros escudos. O sangue subiu à cabeça da velha. Permanecera silenciosa e amuada com os olhos fixos num canto do quarto, enquanto o homem de Nola falou. Mas perdeu de novo a paciência. -- Uns míseros escudos! -- gritou. -- É o ganho de um mês! Bem pode mostrar-se indulgente, já que o prejuízo não é seu! Nesse momento um frade alto assomou à porta. -- Chegou o procurador -- disse ele a meia voz, olhando com surpresa para a velha que gritava. O funcionário grande e gordo pegou no homem de Nola pela manga e conduziu-o para fora. O prisioneiro olhou por cima do ombro magro para a mulher, até que transpôs a soleira da porta. Tinha o rosto magro muito pálido. A velha desceu transtornada as escadas de pedra do edifício. Não sabia o que havia de pensar. O homem acabou por fazer o que estava ao seu alcance. Ela não estava na oficina quando, uma :, semana mais tarde, o funcionário grande e gordo veio trazer o capote. Mas escutou à porta, e ouviu o funcionário dizer: -- Ele preocupou-se efectivamente nos últimos dias com o capote. Apresentou dois requerimentos, entre os interrogatórios e as entrevistas com as autoridades municipais, e por diversas vezes solicitou uma audiência com o núncio sobre este assunto. Conseguiu, finalmente. Mocenigo teve de devolver o capote. Ele, aliás, bem o podia usar agora, pois vai ser extraditado e deve seguir ainda esta semana para Roma. Era verdade. Estava-se no fim de _janeiro. Histórias de Almanaque por Bertold Brecht _publicação em 3 volumes _s. _c. da _misericórdia do _porto _c_p_a_c -- _edições _braille _r. do _instituto de _s. _manuel 4050-308 __porto 1999 _segundo _volume _história da _literatura Bertold Brecht Histórias de Almanaque Tradução de Rafael Gomes Filipe _r_b_a _editores _c original: Vega (1992) _c da presente edição: Editores Reuni- dos, Lda., 1994 e _R_B_A Edito- res, S._A. __isbn: 972-747-132-3 Depósito legal: 80088/94 Depósito legal: M. 16.984- -1995 Revisão gráfica: Luís Mi- lheiro Fotocomposição: Espaço 2 Gráfico, Lisboa Impressão e encadernação: Mateu Cromo Artes Grá- ficas, S._A., (Pinto) Madrid Printed in Spain - Im- presso em Espanha _césar e o _seu _legionário Desde o princípio de Março que o ditador sabia que a ditadura tinha os dias contados. Um forasteiro que chegasse de uma das províncias acharia talvez a capital mais imponente do que nunca. A cidade crescera extraordinariamente; uma variegada mistura de gentes enchia os alojamentos superlotados; a City fervilhava de projectos; os negócios decorriam normalmente; os escravos eram baratos. O regime parecia ter-se consolidado. O ditador acabava de ser nomeado ditador vitalício e preparava agora *o mais ambicioso dos seus empreendimentos*, a conquista do Oriente, a campanha há tanto tempo esperada contra os Persas, uma verdadeira segunda campanha de Alexandre. César sabia que não sobreviveria àquele mês. O seu poder atingira o auge, pelo que a seus pés se escancarava o abismo. :, A grande sessão do Senado em 13 de Março, em que o ditador tomara posição num discurso contra a "atitude ameaçadora do governo persa" e informara ter reunido em Alexandria, capital do Egipto, um exército, deparara com uma atitude do Senado estranhamente indiferente, fria até. Durante o discurso circulou entre os senadores uma ominosa lista das somas que o ditador depositara em bancos hispânicos sob um nome falso: *_O ditador transfere os seus bens particulares (110 milhões) para o estrangeiro!* Acaso não acreditava na sua guerra? Ou a sua intenção seria, não uma guerra contra a Pérsia, mas uma guerra contra Roma? O Senado autorizou os créditos de guerra, por unanimidade, como habitualmente. No palácio de Cleópatra, que é o centro de todas as intrigas relacionadas com o Oriente, estão reunidos alguns líderes militares. A rainha egípcia é a verdadeira inspiradora da guerra pérsica. Bruto e Cássio, bem como outros jovens oficiais felicitam-na pelo triunfo da política de guerra no Senado. A ideia dela, de fazer circular a ominosa lista, é devidamente apreciada e objecto de risos. O ditador irá ter uma surpresa quando quiser levantar na City os créditos concedidos... César, a quem não escapara a frieza do Senado apesar de toda a sua docilidade, :, tem efectivamente de constatar também na City uma atitude altamente irritante. Na câmara de comércio, ele conduziu os financeiros até um mapa gigantesco pendurado na parede e explicou-lhes os seus planos de campanha para a Pérsia e a Índia. Os cavalheiros dizem que sim com a cabeça, mas começam depois a falar da Gália, que já fora conquistada há anos, mas onde estalaram de novo revoltas sangrentas. A "Ordem Nova" não funciona. E surge a proposta: não seria preferível começar a nova guerra no Outono? César não responde, e abandona bruscamente a sala. Os cavalheiros erguem os braços fazendo a saudação romana. Alguém murmura: "O homem tem os nervos abalados." Será que eles de repente já não querem mais guerras? As interrogações não podem fazer esquecer um facto desconcertante: as indústrias de armamento preparam febrilmente a guerra; as suas acções sobem na vertical; o preço dos escravos também sobe... O que é que isso significa? Eles querem a guerra do ditador, mas recusam-lhe o dinheiro para tanto? Ao fim da tarde, já César sabe o que isso significa: *_Eles querem a guerra, mas não a querem com ele*. Ordena a prisão de cinco banqueiros; :, está porém muito abalado, à beira de uma crise nervosa, com grande espanto do seu ajudante, que o pudera ver perfeitamente calmo no meio de batalhas sangrentas. Fica um pouco mais tranquilo com a chegada de Bruto, de quem ele gosta muito. Todavia, não se sente com forças suficientes para consultar um *dossier* que o seu homem de confiança na City lhe enviou. Contém *nomes* de conjurados, entre eles o de Bruto. Preparam um atentado contra a sua vida. O receio de encontrar também no volumoso *dossier* ("Ele é tão espesso, tão horrivelmente espesso") nomes familiares leva o ditador a não o abrir. Bruto tem necessidade de um copo de água, quando César finalmente o entrega por abrir ao seu secretário -- para uma leitura posterior. Reina a maior agitação no palácio de Cleópatra, quando Bruto, pálido e perturbado, informa da existência de um *dossier* sobre a conspiração. César pode lê-lo a todo o momento. Cleópatra tranquiliza a custo os presentes, apelando para a sua honra de soldados, e ela própria dá a ordem para fazer as malas. Entretanto, o comissário de polícia compareceu junto de César para informar. É o terceiro neste ano, que vai apenas em dois meses, tendo os seus predecessores sido demitidos por envolvimento em conspirações. :, O comissário garante a segurança pessoal do ditador -- apesar da agitação provocada na City pela prisão dos banqueiros, a favor de quem, aliás, se movem círculos influentes. A guerra pérsica, de cujo próximo início o comissário parece estar convencido, provocará em sua opinião o emudecimento da oposição. Enquanto ele expõe as extensas medidas de protecção que considera necessárias, César, trespassando-o com o olhar, tem como que a visão da sua morte, pois sabe que morrerá. Far-se-á conduzir até ao Pórtico de Pompeu, descerá do carro, atenderá peticionários, dirigir-se-á para o Templo, procurará com os olhos e cumprimentará este ou aquele senador e sentar-se-á numa cadeira. Desenrolar-se-ão algumas cerimónias, que ele contempla antecipadamente. Depois, os conjurados -- que na visão de César não têm rostos, apenas manchas brancas no lugar dos rostos -- avançarão para ele sob um pretexto qualquer. Alguém lhe dará a ler qualquer coisa, ele estenderá a mão para o documento, eles cairão sobre ele, *ele morrerá*. Não, já não haverá para ele qualquer guerra no Oriente. A maior das suas empresas já não terá lugar: *bastaria para tanto que ele tivesse embarcado vivo num navio* que o conduzisse para junto das suas tropas em :, Alexandria, o único sítio onde talvez estivesse em segurança. Quando, alta noite, as sentinelas vêem entrar alguns senhores nos aposentos do ditador, continuam a pensar que se trata de generais e de inspectores militares que vêm discutir a guerra pérsica. Mas trata-se apenas de médicos -- o ditador precisa de um somnífero. O dia seguinte, 14 de Março, decorre agitado e penoso. Quando dava o seu passeio matinal a cavalo no picadeiro, César teve uma grande ideia. O Senado e a City estão contra ele, e depois? *_Ele voltar-se-á para o povo!* Não foi ele outrora o grande tribuno da plebe, a esclarecida esperança da Democracia? Chegou até a haver um programa gigantesco com que ele pregou um susto de morte ao Senado -- parcelamento das herdades, bairros económicos para os pobres. A ditadura? Ponto final na ditadura! O grande César abdicará, retirar-se-á para a vida privada, por exemplo em Espanha... Foi um homem cansado o que montou a cavalo e se deixou arrastar, abúlico, à volta do picadeiro; mas depois aprumou-se (ao ocorrerem-lhe determinados pensamentos relacionados com o Povo) cheio de energia, puxou as rédeas, chamou a si o cavalo e deixou-o banhado em suor; foi um homem novo e recomposto que saiu do picadeiro. :, Bem poucos dos que participam no grande jogo se sentem hoje de manhã tão confiantes como César... Os conspiradores aguardam a prisão. Bruto dispõe sentinelas nos seus jardins; em diversos pontos foram aparelhados cavalos. Em muitas casas são queimados papiros. No seu palácio junto do Tibre, Cleópatra prepara-se para o dia da sua morte. Neste momento, já há muito que César terá lido o *dossier*. Ela arranja-se com esmero, liberta os escravos, distribui presentes. Os esbirros não tardarão a chegar. A oposição atacou ontem. Hoje, deve seguir-se o contra-ataque do regime. O despertar do ditador fornece uma indicação sobre a natureza da resposta. Na presença de vários senadores, César fala do seu novo plano. Irá anunciar eleições e abdicar. O seu santo-e-senha: *_Contra a guerra!* O cidadão romano irá conquistar solo itálico, não persa. Pois como vive o cidadão romano, o senhor do Mundo? César descreve-o. São rostos petrificados os que assistem à assustadora descrição da miséria em que vive o comum cidadão romano. O ditador deixou cair a máscara; quer sublevar a populaça. Meia hora depois, já toda a City o saberá. As inimizades entre a City e o Senado, entre os banqueiros e os oficiais :, dissipar-se-ão, e todos estarão de acordo num ponto: fora com César! César sabe, mesmo antes de acabar de falar, que cometeu um erro no seu discurso. E evidente que não deveria ter sido tão sincero. Muda subitamente de tema e fá-lo com o seu comprovado encanto. Os seus amigos nada terão a recear. Os seus bens estão seguros. Irá providenciar para que os caseiros recebam terras, mas isso será da competência do Estado e far-se-á com meios estatais. O próximo Verão será magnífico -- eles serão seus hóspedes em Baja. Depois de eles terem agradecido o convite e de se terem retirado, César ordena a demissão e a detenção do comissário de polícia que logo na noite anterior soltara novamente o banqueiro que fora preso. A seguir, envia o seu secretário a sondar o ambiente que reina nos círculos democráticos. Tudo depende agora da atitude do povo. Os círculos democráticos são propriamente os políticos das há muito dissolvidas associações de artífices, que nos bons tempos da República decidiam as eleições. A ditadura de César destruiu este aparelho, outrora poderoso, e de uma parte dos seus membros constituiu uma guarda civil, as chamadas associações de rua. Também estas foram dissolvidas. Agora, porém, o :, secretário Titus Rarus procura os políticos plebeus para sondar a sua disposição. Fala com um antigo chefe da corporação dos caiadores, depois com um antigo escrutinador que é agora taberneiro. Os dois homens mostram-se extremamente cautelosos, avessos a falarem de política. Remetem-no para o velho Carpo, do antigo clube dos operários da construção, um homem que poderá exercer a maior influência, *já que está na cadeia*. Entretanto, César recebeu uma visita de vulto: Cleópatra. A rainha não conseguiu suportar a tensão. Precisa de saber qual a sorte que lhe está reservada. Está preparada para a morte, todas as artes que do Egipto foram mobilizadas para realçar a sua beleza em três continentes. O ditador parece não ter pressa. Ele mostra-se para com ela, como sempre nos últimos anos, de uma cortesia requintada, sempre disposto a dar um conselho, insinuando de quando em vez que poderia voltar imediatamente a ser seu amante caso ela o desejasse, incomparável apreciador que ele é da beleza feminina. Mas, nem uma palavra sobre política. Sentam-se no *atrium* e dão de comer aos peixes dourados, enquanto falam do tempo. Ele convida-a a passar o Verão em Baja... Ela não fica tranquila. Provavelmente o que se passa é que ele não terá concluído :, ainda os preparativos para a resposta. Ela retira-se afivelando uma máscara rígida. César acompanha-a até à liteira, depois do que se dirige para os escritórios onde os juristas e os secretários trabalham febrilmente no projecto da nova lei eleitoral. O projecto deve ser mantido secreto: ninguém foi autorizado a deixar o palácio. *_Esta Constituição será a mais livre que Roma alguma vez conheceu.* Tudo depende agora efectivamente do povo... Uma vez que Rarus tarda estranhamente em regressar -- o que poderá haver a discutir, se os plebeus devem agarrar com ambas as mãos a oportunidade única que o ditador agora lhes oferece? --, César decide ir assistir às corridas de cães. Sente a necessidade de contactar ele próprio com o povo, e onde se encontra o povo é nas corridas de cães. A arena ainda não está completamente cheia. César não se dirige para o grande camarote, prefere tomar lugar mais acima, no meio da multidão. Não tem de recear que o reconheçam, pois as pessoas sempre o avistaram apenas de longe. César observa durante algum tempo, e aposta depois num determinado cão. Veio sentar-se um homem junto dele a quem ele explica as razões que o levaram a apostar precisamente naquele cão. O homem faz :, que sim com a cabeça. Numa fila mais à frente gera-se uma pequena discussão. Parece que alguns espectadores se sentaram nos lugares errados, donde recém-chegados os querem expulsar. César procura meter conversa com os vizinhos, mesmo sobre política. Estes respondem-lhe com monossílabos, mas ele não tarda a dar-se conta de que eles sabem quem ele é: pois fora sentar-se no meio dos agentes da sua polícia secreta. Irritado, levantou-se e saiu. De resto, o cão em quem ele apostou acaba de ganhar... Em frente da arena encontra o secretário, que vinha à sua procura. Não traz boas notícias. Ninguém quer negociar. O medo e o ódio imperam por toda a parte. Em especial este último. O homem em quem depositam confiança é Carpo, o operário da construção. César ouve com ar sombrio. Sobe para a liteira e ordena que o conduzam à Prisão dos Mamertinos. Quer falar com Carpo. Têm de ir primeiro à procura de Carpo, de tal modo são numerosos os antigos presos plebeus que apodrecem às dúzias naquelas casamatas. Ao cabo de algumas idas e vindas lá conseguem içar com cordas de um buraco o operário da construção Carpo, e o ditador pode então falar com o homem em quem o povo de Roma confia. Sentam-se um ao lado do outro e observam-se. :, Carpo é um homem velho, talvez não tenha mais idade do que César, em todo o caso parece ter oitenta anos. Muito velho, muito caduco, mas não vencido. César expõe-lhe sem rodeios o seu plano inaudito de restabelecer a Democracia, de anunciar eleições, de se retirar para a vida privada, etc., etc. O velho não abre a boca. Não diz que sim nem diz que não, guarda silêncio. Olha fixamente César sem produzir qualquer som. Quando César se retira, baixam-no de novo com cordas até ao seu buraco. O sonho da Democracia desvaneceu-se. É muito claro: a haver uma revolução, não querem fazê-la com ele. Conhecem-no demasiado bem. Quando o ditador regressa a casa, o secretário tem dificuldade em fazer compreender às sentinelas quem ele é. São guardas novos. O novo comissário afastou os guardas romanos e destacou para o palácio um contingente negro. Os negros são mais seguros, não compreendem o latim, pelo que será mais difícil sublevá-los, e também será mais improvável que se deixem contagiar pelo ambiente da cidade. César já sabe então qual o ambiente que reina na cidade... A noite decorre inquieta no palácio. César levanta-se várias vezes da cama e :, vagueia pelo imenso palácio. Os negros bebem e cantam. Ninguém se preocupa com ele, ninguém o reconhece. Ele escuta por momentos as suas canções tristes e dirige-se depois para a cavalariça a visitar o seu cavalo preferido. Ao menos o cavalo reconhece-o... A Roma eterna dorme um sono inquieto. Diante dos portões dos albergues de noite estão ainda de pé artífices arruinados à procura de três horas de sono e lêem grandes cartazes meio arrancados que angariavam soldados para uma guerra no Oriente que já não irá ter lugar. Dos jardins da *jeunesse dorée* desapareceram as sentinelas da noite anterior. Dos palácios saem vozes embriagadas. Por um portão situado a sul da cidade sai uma pequena cavalgada: a rainha do Egipto abandona embuçada a capital... As duas da manhã César lembra-se de qualquer coisa, levanta-se e dirige-se em traje de dormir para a ala do palácio onde os juristas continuam a trabalhar na nova Constituição. Ordena-lhes que vão dormir. Pela manhã, César é informado de que o seu secretário Rarus foi assassinado durante a noite. As suas conversas com os políticos plebeus foram pelos vistos escutadas por agentes da polícia, e a coberto da escuridão mãos poderosas aproveitaram a oportunidade. As mãos de quem? As listas com :, os nomes dos conspiradores, que estavam em seu poder, desapareceram. Ele foi assassinado no palácio, que assim deixou de ser um lugar seguro para os partidários do ditador. O próprio ditador estará ali em segurança? César permanece de pé muito tempo junto do catre, onde jaz o secretário morto, o seu último confidente, a quem precisamente essa confiança custou a vida. Ao sair do aposento chocou com ele um soldado da guarda embriagado, que não pediu desculpa. César olhou várias vezes em volta com nervosismo, antes de descer as escadas. No átrio, singularmente vazio -- ninguém compareceu ao toque de alvorada --, deparou com um emissário de António; o cônsul e o seu sequaz mandam dizer-lhe que ele de modo algum deveria ir hoje ao Senado. A sua segurança pessoal estaria ali ameaçada. César manda dizer a António que não irá ao Senado. Ordena em vez disso que o conduzam a casa de Cleópatra, passando por diante da longa fila de peticionários madrugadores em frente do seu palácio. Talvez Cleópatra financiasse a sua campanha. Nesse caso não precisaria nem da City nem do povo. Cleópatra não se encontra em casa. A casa está fechada. Parece que ela se foi embora :, há muito tempo. Regressa ao palácio. O portão está estranhamente aberto. E evidente que a guarda foi retirada. O senhor do Mundo inclina-se para fora da liteira e observa a sua casa, onde já não se atreve a entrar. Ele poderia reclamar de António uma escolta. Mas desconfia de todas as escoltas. Melhor será seguir caminho sem escolta; já não terá assim que a recear. E para onde se dirige ele? Dá uma ordem. Encaminha-se para o Senado. Segue recostado na liteira, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Manda que o conduzam ao Pórtico de Pompeu. Desce. Atende peticionários. Entra no Templo. Procura com os olhos este ou aquele senador e cumprimenta-o. Senta-se na sua cadeira. Seguem-se algumas cerimónias. Depois, os conjurados, sob um pretexto qualquer, dirigem-se para ele. Deixaram de ter sobre os pescoços manchas brancas, como no sonho que ele teve dois dias antes; todos eles têm rostos, os dos seus melhores amigos. Alguém lhe dá qualquer coisa a ler, ele pega no documento. Eles caem sobre ele. O Legionário de César Um carro de bois atravessa de madrugada a Campagna verdejante e primaveril em direcção a Roma. Trata-se de um caseiro e veterano dos exércitos de César de 52 anos de idade, Terentius Scaper, que viaja com a família e os trastes domésticos. Os seus rostos denotam grande preocupação. Por dívidas de arrendamento foram expulsos da sua pequena quinta. Apenas Lucília, de 18 anos de idade, aguarda com alegria a chegada à grande e fria cidade: é lá que vive o seu noivo. Ao aproximarem-se da cidade, apercebem-se da iminência de acontecimentos extraordinários. O controlo nas barreiras é mais rigoroso, e ocasionalmente são detidos por patrulhas militares. Circulam boatos sobre a iminência de uma grande guerra na _ásia. O velho soldado contempla as barracas de alistamento tão suas familiares, ainda vazias devido à hora matutina; o homem :, recobra vigor. César planeia novas expedições vitoriosas. Terentius Scaper chega mesmo a tempo. Estamos no dia 13 de Março do ano 44. Pelas nove horas da manhã o carro de bois atravessa o Pórtico de Pompeu. Uma multidão aguarda ali a chegada de César e dos senadores para uma sessão no Templo, durante a qual o Senado ouvirá "uma importante comunicação do ditador". A guerra é o assunto de todas as conversas; no entanto, com grande espanto de Scaper, as patrulhas militares procuram levar as pessoas a seguirem caminho. Todas as discussões cessam, quando os soldados aparecem. O veterano esforça-se apenas por fazer passar a sua carroça. A meio caminho, põe-se de pé no carro e grita em voz alta para trás: "Viva César!" Verifica com surpresa que ninguém responde ao seu brado. Um tanto irritado, conduz a família até uma modesta estalagem dos arrabaldes e sai à procura do seu futuro genro, o secretário de César, Titus Rarus. Não autoriza que Lucília o acompanhe. Tem primeiro que ajustar contas com o jovem. Verifica que é extremamente difícil entrar no palácio de César situado no Fórum. O controlo, especialmente em relação a armas, é extremamente rigoroso. O ar está pesado. :, Já lá dentro, é informado de que o ditador tem mais de duzentos secretários. Ninguém conhece o nome Rarus. Na realidade, já há três anos que Rarus não tem oportunidade de saudar o seu chefe na ala do palácio que alberga a biblioteca. Ele é o secretário de César para os assuntos literários e colaborou no seu trabalho sobre a gramática. A obra está por concluir, pois o ditador já não tem tempo para essas coisas. Rarus não cabe em si de alegria, ao ver o velho soldado entrar batendo com os pés. O quê, Lucília está aqui, em Roma? Sim, está aqui, mas não há motivos para alegria. A família foi posta na rua. Principalmente por culpa de Lucília. Bem que ela poderia ter sido mais amável para com o rendeiro, o industrial de couros Pompilius... Tanto mais que Rarus tem primado pela ausência! O jovem defende-se com paixão. Ele não teve quaisquer férias. Tudo fará para ajudar a família. Procurará obter um adiantamento junto da Administração. Usará as suas relações em favor de Scaper. Porque não há-de o veterano ser promovido a capitão, agora que finalmente está iminente uma grande guerra? Ruído de passos e tilintar de espadas no corredor, e a porta abre-se de repente: César está de pé no umbral. :, O pequeno secretário fica como que paralisado sob o olhar inquisidor do grande homem. Ao cabo de três anos, é a primeira vez que vê César no seu local de trabalho! Não suspeita que o *seu destino acaba de assomar à soleira daquela porta*. César não veio ali para trabalhar na sua gramática. O que se passa é que ele anda à procura de um homem em quem possa confiar, portanto um homem difícil de encontrar neste palácio. Ao passar diante da biblioteca, ocorreu-lhe a ideia do seu secretário para as coisas literárias, um jovem que não tem nada a ver com a política. Talvez não tenha ainda sido subornado... Dois guardas de corpo revistam Scaper à procura de armas e lançam-no para fora do aposento. Ele afasta-se orgulhoso: o seu futuro genro parece não ser o mais insignificante dos homens naquele palácio. O grande César procura-o, o que é um sinal favorável. Também revistam Rarus à procura de armas. Em seguida, porém, o ditador confia-lhe uma missão. Ele deve, de preferência por caminhos desviados, procurar um determinado banqueiro espanhol e perguntar-lhe donde provem as misteriosas resistências da City contra a guerra de César no Oriente. Entretanto, o veterano espera pelo :, jovem em frente do palácio. Como aquele tarda em aparecer -- na realidade ele utiliza uma saída pelas traseiras --, Scaper põe-se a caminho para ir comunicar à família aquela mudança de bom augúrio. De caminho, passa por uma agência de alistamento. Apenas rapazes muito jovens se inscrevem no serviço militar. Será bom beneficiar de uma protecção e ser promovido a capitão. Para soldado, já é demasiado idoso. Entra ainda em algumas tabernas, pelo que ao chegar à pequena estalagem dos subúrbios já está um pouco borracho. lá se sente na pele do *capitão* Terentius Scaper, e a sua cólera volta-se contra o noivo de Lucília, que continua sem aparecer. O próspero Sr. Secretário não tem tempo disponível para vir cumprimentar a sua noiva! E de que é que a família há-de viver? Para já e imediatamente são precisos pelo menos trezentos sestércios. Lucília terá de dignar-se ir procurar o industrial de couros e pedir-lhe dinheiro emprestado. Lucília chora. Não percebe porque é que Rarus não aparece. O Sr. Pompilius não hesitará em dar-lhe os trezentos sestércios, mas não o fará de borla. O pai fica extremamente zangado. lá não podem restar dúvidas de que o rapaz nunca mais "se decide". Há que lhe pegar fogo no rabo. Importa não lhe dar a :, entender que se está dependente dele.: Ele deve ver que existem ainda outras pessoas que sabem apreciar Lucília. Lucília parte lavada em lágrimas, voltando constantemente a cabeça para trás a ver se avista Rarus. Nesse momento, Rarus encontra-se de novo no palácio. Recebeu do banqueiro espanhol um *dossier* que entregou a César. Procura agora obter um adiantamento da Administração. Sofre um choque profundo, ao ser interrogado em vez de receber o dinheiro. Onde é que ele esteve? Qual foi a missão que o ditador lhe confiou? Recusa-se a responder e vê-se despedido. Lucília tem mais sorte. Todavia, no escritório do industrial de couros a primeira coisa que lhe dizem é que o Sr. Pompilius se encontra preso. Os escravos comentam ainda excitados a inacreditável ocorrência, apenas explicável pelo facto de, nos últimos tempos, o patrão ter frequentemente manifestado a sua furiosa oposição ao ditador, quando o Sr. Pompilius faz a sua entrada sorridente. "Evidentemente" pessoas como ele e os outros cavalheiros da City não podiam ser metidos na cadeia. Felizmente ainda se movem determinadas influências junto da polícia. O Sr. César já não é assim tão poderoso como isso nestes dias... :, Lucília ainda não voltou, quando Rarus chega finalmente à estalagem. O veterano está melindrado, e a família não quer revelar onde Lucília se encontra. Além disso, Rarus não trouxe consigo os trezentos sestércios. Não se atreve a confessar que foi despedido, e limita-se a dizer, baixando o tom de voz, que não teve oportunidade de ir à Administração. Chega depois uma Lucília chorosa que lhe cai nos braços. Terentius Scaper, porém, não vê motivo para mostrar discrição. Pergunta descaradamente a Lucília pelo êxito da sua diligência. Sem olhar Rarus de frente, ela entrega ao pai os trezentos sestércios. Rarus não tem dificuldade em compreender donde vem o dinheiro: Lucília esteve em casa do industrial de couros! Furioso, o jovem arranca o dinheiro das mãos do velho. Ele próprio irá restituí-lo de manhã ao Sr. Pompilius. O mais tardar pelas oito horas da manhã entregará a Lucília na estalagem dinheiro suficiente. Depois, conduzirá o pai dela à presença do comandante da guarda do palácio para discutirem o assunto do posto de capitão. O veterano dá, resmungando, o seu consentimento. Ao fim e ao cabo não deverá ser difícil ao confidente do senhor do Mundo ajudar a família de um velho e honrado legionário... :, Na manhã seguinte porém, a família Scaper espera em vão por Rarus. Conduziram-no de manhãzinha à presença de César. O ditador lê-lhe na biblioteca um velho discurso, que há muitos anos aguardava a oportunidade de ser proferido, em que desenvolvera o seu programa democrático. Depois disso o secretário seguiu para os arrabaldes a sondar a opinião de diversos políticos plebeus acerca de um restabelecimento da Democracia. O ditador ordenou, aliás, a substituição da guarda do palácio e mandou prender o respectivo chefe, que interrogara Rarus no dia anterior. Terentius Scaper começa a ficar pessimista. lá não acredita no noivo da filha. Esta chorou durante toda a noite e, num acesso, gritou na cara dos pais o que o industrial de couros tinha exigido dela. A mãe tomou o seu partido. O veterano decide alistar-se como soldado numa agência de recrutamento. Depois de uma longa hesitação, confessa à família que se sente demasiado velho para o alistamento. A família prontifica-se com solicitude a rejuvenescê-lo. Lucília empresta-lhe o *rouge* e o filho mais pequeno corrige-lhe os movimentos. Quando ele, porém, com ar remoçado, chega à agência de recrutamento, esta está :, fechada. Os jovens que estacionam em frente comentam excitados o boato de que a guerra no Oriente foi cancelada. O veterano de dez guerras de César regressa desolado ao seio da família e depara com uma carta de Rarus a Lucília em que se refere estarem iminentes grandes acontecimentos. Neste preciso momento estaria a ser aprontada uma lei que prevê a concessão de arrendamentos e de subsídios estatais aos veteranos de César. A família exulta de alegria. A carta de Rarus, escrita de manhã, está ultrapassada quando Terentius Scaper a lê. As diligências do secretário revelaram que os antigos políticos plebeus, durante muitos anos perseguidos por César, deixaram de ter qualquer confiança nos seus estratagemas políticos. Rarus, que de resto se sente seguido, procura em vão o seu senhor no palácio e só o encontra ao fim da tarde no circo assistindo às corridas de cães. A caminho do palácio, comunica a César aquele facto perturbante. Depois de um longo silêncio, compreendendo subitamente o enorme perigo em que o ditador se encontra, faz uma proposta desesperada: César deveria deixar a cidade em segredo ainda essa noite e procurar escapar-se até Brundisium para dali alcançar de barco Alexandria e reunir-se ao seu :, exército. Promete pôr à sua disposição um carro de bois. O ditador, prostrado no banco da liteira, não lhe responde. Mas Rarus está decidido a preparar essa fuga. O crepúsculo cai sobre uma Roma gigantesca, inquieta, fervilhante de boatos, quando ele no Pórtico do Sul trata com a guarda do portão. Um carro de bois deverá ser autorizado a passar por volta da meia-noite sem que exijam salvo-conduto. Entrega aos guardas todo o dinheiro que traz consigo. Exactamente trezentos sestércios. Por volta das nove horas apresenta-se aos Scaper na estalagem. Abraça Lucília. Pede à família que o deixe sozinho com Terentius Scaper. Aproxima-se depois do veterano e pergunta-lhe: -- O que estarias tu disposto a fazer por César? -- Como vai isso do arrendamento? -- pergunta Scaper. -- Isso está fora de questão -- responde Rarus. -- E o posto de capitão também "ardeu"? -- pergunta Scaper. -- O posto de capitão também "ardeu" -- responde Rarus. -- Mas tu continuas a ser secretário dele? -- _sim. -- E encontras-te com ele? :, -- _sim. -- E não está em teu poder levá-lo a fazer alguma coisa por mim? -- Ele já nada pode fazer por ninguém. Tudo se desmoronou. Irão assassiná-lo amanhã como quem mata uma ratazana. Portanto: que estás disposto a fazer por ele? -- perguntou o secretário. O velho veterano olhou-o fixamente, incrédulo. O grande César está perdido? Tão perdido que ele, Terentius Scaper, tem de o socorrer? -- Como poderei ajudá-lo? -- pergunta ele com voz rouca. -- Prometi-lhe o teu carro de bois -- diz calmamente o secretário. -- Terás de esperar por ele a partir da meia-noite no Pórtico do Sul. -- Não me irão deixar passar com o carro. -- Deixarão. Para tanto paguei-lhes eu trezentos sestércios. -- Trezentos sestércios? Os nossos? -- _sim. O velho crava nele os olhos por um instante, quase encolerizado. Perpassa depois no seu olhar a incerteza ruminadora do homem que passou metade da vida sob a disciplina militar, e afasta-se resmungando. Diz ele, entredentes: "Talvez seja até certo ponto um negócio tão bom como qualquer :, outro. Se ele conseguir safar-se, há-de poder tirar desforra." E voltou a assumir a atitude que define toda a sua vida: tornou a ter *esperança*. Rarus tem mais dificuldade em convencer Lucília. Desde que ela o tornou a ver em Roma, ele nunca esteve a sós com ela. Nem ele nem o seu pai lhe disseram o que o tem mantido constantemente afastado nestes últimos dias. Ela fica agora a saber o motivo. O seu noivo tem estado com César. E o único homem em quem o senhor do Mundo pode confiar. Mas não poderá passar com ela um quarto de hora num tasco da Travessa dos Caldeireiros? Será que César o não poderá dispensar por um quarto de hora? Rarus segue com ela até à Travessa dos Caldeireiros. Não chegam, porém, a entrar na tasca. Rarus apercebe-se subitamente que está de novo a ser seguido. Dois indivíduos escuros espiam-no, para onde quer que ele vá, desde a manhã. Os namorados separam-se assim em frente à estalagem. Lucília corre para a mãe e conta-lhe radiante quão próximo o seu noivo está do grande César. Entretanto, o jovem procura em vão livrar-se dos seus perseguidores. Ficará a saber antes da meia-noite o que significa circular na vizinhança dos poderosos. :, Pelas onze horas, Rarus está de novo no palácio sobre o Fórum. Um regimento de negros veio render a guarda do palácio. Os soldados estão na sua maioria bêbedos. No seu pequeno compartimento por detrás da biblioteca, folheia febrilmente o *dossier* que o banqueiro espanhol lhe deu no dia anterior para ele entregar a César. César não o leu. Neste *dossier* figuram os nomes dos conspiradores. Encontra-os a todos -- Bruto, Cássio, toda a *jeunesse dorée* de Roma, entre eles muitos que César considera seus amigos. E imprescindível que ele leia o *dossier* imediatamente, ainda esta noite. Isso convencê-lo-á a procurar o carro de bois de Terentius Scaper. Pega no *dossier* e põe-se a caminho. Os corredores estão mergulhados numa semi-obscuridade; da outra ala chega-lhe o som de cânticos entoados por vozes embriagadas. A entrada do átrio estão de sentinela dois negros gigantescos. Não o querem deixar passar. Não percebem o que ele diz. Tenta prosseguir noutra direcção, de tal maneira o palácio é vasto. Também por aí há guardas negros a barrarem-lhe a passagem. Tenta corredores e jardins da frente pelos quais se pode penetrar trepando a uma janela, mas tudo está trancado. Ao regressar esgotado ao seu quarto, julga :, avistar o vulto de um homem ao fundo do corredor. É um dos seus perseguidores. Tomado de pânico, precipita-se no aposento e tranca a porta. Não acende qualquer luz e espreita da janela para o pátio. Avista, sentado diante da sua janela, o segundo perseguidor. É inundado por suores frios. Fica sentado no quarto às escuras durante muito tempo, de ouvido alerta. Uma vez, bateram à porta. Rarus não abre. Não vê assim o homem que, depois de ter esperado algum tempo, se afasta da porta: César. Desde a meia-noite que Terentius Scaper aguarda com o carro de bois junto ao Pórtico do Sul. O veterano disse apenas à mulher e aos filhos que aceitara transportar uma carga, o que o levaria a ausentar-se de Roma por alguns dias. Lucília e a mãe deveriam ir ter com Rarus, que cuidaria delas. No entanto, ninguém compareceu essa noite junto ao Pórtico do Sul para tomar lugar no carro de bois. Na madrugada de 15 de Março, o ditador é informado de que o seu secretário foi assassinado no palácio durante a noite. A lista com os nomes dos conspiradores desapareceu. César irá encontrar-se no Senado, na manhã desse mesmo dia, com os titulares desses nomes e sucumbirá às suas punhaladas. :, Um carro de bois, conduzido por um velho soldado que é também um caseiro arruinado, fará o caminho de volta até uma estalagem dos arrabaldes, onde o aguarda uma pequena família a quem o grande César deve trezentos sestércios... O Soldado de la Ciotat Depois da Primeira Guerra Mundial, vimos na pequena cidade portuária de La Ciotat, no Sul da França, junto de uma feira, numa praça pública, por ocasião do lançamento à água de um navio, a estátua de bronze de um soldado do exército francês, em volta da qual a multidão se comprimia. Aproximámo-nos e descobrimos que se tratava de um homem vivo, imóvel sobre um pedestal de pedra ao tórrido sol de Junho, com um capote cor de terra, o capacete na cabeça, uma baioneta no braço. Tinha a cara e as mãos pintadas de uma cor de bronze. Não mexia um único músculo, nem sequer pestanejava. A seus pés, na base, via-se um cartão em que se podia ler o seguinte: "O Homem Estátua *_Homme Statue* :, Eu, Charles Louis Franchard, soldado do Regimento Y, adquiri, como consequência de ter estado enterrado em Verdun, a invulgar capacidade de ficar completamente imóvel e de me comportar pelo tempo que quiser *como uma estátua*. Muitos professores atestaram este meu dom e caracterizaram-no como sendo uma doença inexplicável. Dêem, por favor, uma esmola a um pai de família sem emprego!" Lançámos uma moeda para o prato que estava junto do cartão e continuámos o nosso caminho, abanando a cabeça. Ora aqui está ele, pensamos nós, armado até aos dentes, o soldado indestrutível de muitos milénios; ele, com quem se fez a História, ele que tornou possível todos os grandes feitos de Alexandre, de César, de Napoleão, de que nos falam os manuais escolares. Ali está ele. Não pestaneja. E o besteiro de Ciro, o auriga de Cambises, que a areia do deserto não conseguiu enterrar definitivamente, o legionário de César, o lanceiro de Gengis-_Kan, o suíço de Luís XIV e o granadeiro de Napoleão I. Possui a capacidade, não tão invulgar como isso, de não se fazer notado, quando se usam contra ele todos os instrumentos inimagináveis de extermínio. Permanece insensível como uma pedra (diz ele), quando o mandam para a morte. Trespassado por lanças das :, mais variadas idades -- da pedra, do bronze, do ferro --, colhido por carros de assalto, desde os de Artaxerxes aos do general Ludendorff, espezinhado pelos elefantes de Aníbal e pelos esquadrões de cavaleiros de Atila, fulminado pelos estilhaços esvoaçantes dos canhões cada vez mais perfeitos de século para século, mas também pelas pedras lançadas pelas catapultas; despedaçado pelas balas das espingardas, grandes como ovos de pomba e pequenas como abelhas, ali está ele, indestrutível, sempre de novo, cumprindo ordens em não sei quantas línguas, mas sempre sem saber o porquê e o para quê. As terras que conquistou não ficaram para ele, tal como o pedreiro não irá habitar a casa que construiu. Nem porventura lhe pertencia a terra que defendeu. Nem sequer a arma ou o uniforme lhe pertencem. Mas ele está de pé -- por cima, a chuva mortífera dos aviões e o pez a arder lançado das muralhas da cidade; por baixo, minas e trápolas; em volta, a peste e o gás vesicante, carcaz de carne para dardos e lanças, alvo, carne para canhão -- à sua frente o inimigo, atrás de si o general. Incontáveis mãos teceram-lhe o gibão, martelaram-lhe a couraça, talharam-lhe as botas! Não têm conta os bolsos que se encheram à sua custa! Imensos os gritos que em *todas* as línguas do mundo o exortaram! Não houve deus que o não abençoasse! A ele, que está atingido pela horrível lepra da paciência, mimado pela doença incurável da insensibilidade. Que espécie de enterro será esse, pensámos nós, que lhe provocou essa doença, essa doença temível, monstruosa e altamente contagiosa? Será que ela é mesmo incurável, perguntámo-nos? Sócrates Ferido dedicado a Georg Kaiser* Sócrates, o filho da parteira, que nos seus diálogos com tanta perícia e por entre piadas tão contundentes levava os amigos a darem à luz pensamentos escorreitos, e que assim os presenteava com os próprios filhos, em vez de, como outros professores, os aldrabar com bastardos, era tido não só como o mais sábio de todos os Gregos, mas também como um dos mais corajosos. A fama da sua coragem afigura-se-nos inteiramente justificada quando lemos em Platão com quanto brio e bom humor ele esvaziou a taça de cicuta que as autoridades finalmente o obrigaram a beber em paga dos serviços prestados aos seus concidadãos. Alguns dos seus admiradores, porém, consideraram necessário fazer igualmente referência à sua valentia no campo de batalha. Ele participou efectivamente na batalha que teve lugar junto de Delion, incorporado na infantaria ligeira, pois quer a sua posição :, -- social ele era sapateiro --, quer os seus rendimentos -- Sócrates era filósofo -- impediam a sua aceitação nas armas mais nobres e caras. A sua coragem, porém, como se pode imaginar, era de um género muito especial. Sócrates preparara-se o melhor possível na manhã da batalha para o sangrento acontecimento mastigando cebolas, o que espicaçava a intrepidez na opinião dos soldados. O seu cepticismo em relação a muitos domínios inclinava-o para a credulidade relativamente a outras áreas; era contrário à especulação e a favor da experiência prática, pelo que não acreditava nos deuses, mas sim nas cebolas. Infelizmente, não sentiu qualquer efeito, pelo menos imediato, e foi com ar sombrio ocupar o seu lugar num contingente de soldados armados com espadas que marchavam em passo de ganso para o seu posto algures num restolhal. Atrás e à frente dele tropeçavam rapazes atenienses dos subúrbios, que lhe chamaram a atenção para o facto dos escudos dos arsenais atenienses serem demasiado pequenos para gente gorda como ele. Ocorrera-lhe a mesma ideia, simplesmente para ele tratava-se de pessoas *fortes* aquelas a quem os escudos, ridiculamente pequenos, não chegavam a proteger metade do corpo. A troca de ideias entre o homem que seguia à sua frente e o soldado da sua retaguarda sobre os lucros que os grandes armeiros obtinham com escudos tão exíguos foi interrompida por uma voz de comando: "Acampar." Os homens sentaram-se no chão de restolho, e um capitão repreendeu Sócrates porque este procurara sentar-se em cima do escudo. Mais do que a descompostura, inquietou-o a voz abafada com que ela foi feita. Parecia suspeitar-se de que o inimigo estivesse nas proximidades. Uma neblina matinal leitosa impedia qualquer vista. No entanto, o ruído de passos e o tinir de armas indicavam que havia gente na planície. Sócrates recordou com profundo desprazer uma conversa que tivera na noite anterior com um jovem nobre, que ele tinha encontrado uma vez atrás dos bastidores e que era oficial de cavalaria. "Um plano excelente!", explicara o toleirão. "A infantaria dispõe-se simplesmente no terreno e limita-se a aguentar sem voltar a cara ao inimigo. Entretanto, a cavalaria avança pelo terreno baixo e ataca-o pelas costas." O terreno baixo devia ficar muito para a direita, algures no nevoeiro. Por ali avançava agora a cavalaria. :, O plano afigurara-se bom a Sócrates, ou pelo menos não lhe parecera mau. Faziam-se sempre planos, especialmente quando se era inferior em número ao inimigo. Na realidade, combatia-se simplesmente, ou seja, tudo a monte. E não se avançava para onde o plano prescrevia, mas para onde o inimigo o consentia. Agora, à claridade da manhã, o plano afigurou-se a Sócrates de uma indigência completa. Que significado poderia ter: a infantaria aguenta o embate do inimigo? De uma maneira geral, já se ficava contente se se conseguia esquivar um golpe, mas agora a arte estaria toda em apará-lo! Era muito mau que o general fosse ele próprio um cavaleiro. Não havia no mercado cebolas suficientes para as necessidades do homem comum. E como era pouco natural, em vez de ficar na cama, encontrar-se ali tão cedo no meio de um descampado sentado sobre o chão nu, com pelos menos cinco quilos de ferro em cima do corpo e uma faca de guerra na mão! Era justo que se defendesse a cidade no caso desta ser atacada, pois de outro modo ficava-se exposto a grandes contrariedades; mas porque é que a cidade estava a ser atacada? Porque os armadores, os proprietários de vinhas e os traficantes :, de escravos da Ásia Menor se tinham metido com os armadores, os proprietários de vinhas e os traficantes de escravos persas! Um lindo motivo! Subitamente todos ficaram como que paralisados. Da esquerda da neblina chegou-lhes uma vozearia abafada, acompanhada de uma sonoridade metálica. O ruído propagava-se a grande velocidade. Tinha começado o ataque do inimigo. O contingente militar pôs-se de pé. Olhos desorbitados tentavam perfurar a bruma. A dez passos dali um homem caiu de joelhos murmurando o nome dos deuses. A invocação vinha tarde de mais, afigurou-se a Sócrates. De repente, como uma resposta, ecoou da direita uma gritaria medonha. O grito de socorro parecia transformar-se num grito de agonia. Sócrates viu sair pelo ar da névoa uma haste de ferro. Um dardo! Assomaram então, indistintas na bruma, formas maciças: os inimigos. Sócrates, dominado pela impressão de que talvez já tivesse esperado tempo demasiado, voltou-se com dificuldade e desatou a correr. A couraça e as pesadas caneleiras estorvavam-no consideravelmente. Eram bem mais perigosas do que os escudos, pois não se podiam atirar fora. Ofegante, o filósofo corria por sobre o restolhal. Oxalá os valentes rapazes que ele deixara para trás aguentassem o embate por algum tempo. Subitamente, trespassou-o uma dor diabólica. A planta do pé esquerdo ardia-lhe de uma maneira insuportável. Deixou-se cair no chão com um gemido, mas logo se tornou a erguer com novo grito de dor. Lançou à sua volta um olhar espavorido e compreendeu tudo. Fora dar a um campo de espinhos! Era um emaranhado de sebes baixas com espinhos muito aguçados. Um deles cravara-se-lhe no pé. Cautelosamente, com lágrimas nos olhos, procurou um sítio no chão onde se pudesse sentar. Apoiando-se no pé são, coxeou alguns metros em círculo até que se sentou pela segunda vez. Tinha de arrancar imediatamente o espinho. Tenso, apurou o ouvido para escutar o fragor da batalha: o ruído espraiara-se bastante pelas duas alas, mas em profundidade estaria pelo menos a cem passos de distância. Ainda assim, parecia aproximar-se, lenta mas inconfundivelmente. Sócrates não conseguia suportar a sandália. O espinho perfurara a fina sola de couro e penetrara profundamente na carne. Como era possível que fornecessem sapatos com solas tão finas aos soldados que :, tinham o dever de defender a pátria contra o inimigo! Cada solavanco na sandália era seguido de uma dor lancinante. Cansado, o pobre homem deixou cair os ombros sólidos. O que fazer? Os seus olhos turvos repararam na espada que lhe pendia no flanco. Uma ideia atravessou-lhe o cérebro, mais oportuna do que qualquer outra que lhe tivesse ocorrido numa discussão. Poderia utilizar-se a espada como um canivete? Pegou na espada. Nesse instante, ouviu passos abafados. Um pequeno destacamento irrompeu pelas brenhas. Louvados sejam os deuses, eram dos nossos! Os homens, ao avistá-lo, ficaram alguns segundos parados. "É o sapateiro", ouviu-os ele dizerem. Seguiram depois o seu caminho. À esquerda deles, porém, ouvia-se também agora barulho. E ali ressoavam vozes de comando numa língua estrangeira. Os persas! Sócrates tentou pôr-se novamente de pé, ou seja, sobre a perna direita. Apoiou-se na espada, que era no entanto um pouco curta para o efeito. E viu então, à esquerda, emergir na clareira uma multidão de combatentes. Ouviu gemidos e o golpear embotado de ferro sobre ferro ou couro. Desesperado, pulou para trás sobre o pé são. Com um estalido, firmou-se novamente no pé ferido e sucumbiu com um gemido. Quando a turba de combatentes, que não era numerosa, talvez uns vinte ou trinta homens, se encontrava a poucos passos de distancia, estava o filósofo sentado sobre o traseiro entre dois arbustos espinhosos, contemplando indefeso o inimigo. Era-lhe impossível mover-se. Tudo era preferível a ter de experimentar uma vez mais aquela dor no joanete. Não sabia o que fazer, e desatou de repente a gritar. Mais rigorosamente, ouviu-se a si gritando. Ouviu-se a si gritando como uma trompa com todas as forças do tórax potente: -- Aqui, terceira divisão! Dêem-lhes com força, rapazes! E ao mesmo tempo viu-se a empunhar a espada e a fazê-la girar em círculo à sua volta, já que lhe aparecera pela frente, saído das brenhas, um soldado persa com uma lança. A lança voou para um dos lados e arrastou consigo o homem. E Sócrates ouviu-se a gritar pela segunda vez e a dizer: -- Não recuem nem mais um passo, rapazes! Temo-los agora onde queríamos que eles estivessem, os filhos de um cão! Krapolus, para a frente com a sexta! Nullos, para a direita! Eu faço em pedaços aquele que recuar! Viu com espanto junto de si dois dos nossos que o fitavam embasbacados. "Gritem", disse ele em voz baixa, "gritem, pelo amor de Deus!" Um deixou pender a maxila com o susto, mas o outro começou efectivamente a gritar qualquer coisa. E o persa que estava diante deles ergueu-se a custo e correu em direcção às brenhas. Pela clareira avançavam aos tombos uma dúzia de homens exaustos. Os gritos tinham levado os persas a pôr-se em fuga, receosos de uma emboscada. -- O que se passa aqui? -- perguntou um dos compatriotas de Sócrates, que continuava sentado no chão. -- Nada -- disse este. -- Não fiquem aí especados a olhar para mim. Será melhor que corram de um lado para o outro a dar ordens, para que do outro lado não se apercebam de que somos muito poucos. -- Melhor do que isso será recuarmos -- retorquiu o homem hesitando. -- Nem um passo sequer -- protestou Sócrates. -- Acaso sois poltrões? E como não basta aos soldados ter medo, também precisam de sorte, ouviu-se de repente muito longe, mas distintamente, um tropel de cavalos e gritos selvagens, e estes em grego! E sobejamente conhecida a derrota esmagadora que os Persas sofreram nesse dia. Ela pôs termo à guerra. :, Quando Alcibíades, à cabeça da cavalaria, chegou ao campo de espinhos, avistou um bando de soldados de infantaria que levavam em ombros um homem gordo. Detendo o cavalo, reconheceu Sócrates, e os soldados explicaram-lhe depois que ele conseguira evitar a debandada das fileiras desmoralizadas com o exemplo da sua resistência inabalável. Levaram-no em triunfo até ao trem. Ali, instalaram-no, apesar dos seus protestos, num dos carros da forragem e assim foi conduzido até à capital, rodeado por um soldadesca suada e que gritava de excitacão. Levaram-no em ombros até à sua modesta casa. Xantipa, a sua mulher, preparou-lhe uma sopa de feijão. Ajoelhada em frente do fogão e atiçando o lume com as bochechas cheias, ela olhava de vez em quando na direcção dele. Ele continuava sentado na cadeira onde os seus camaradas o tinham posto. -- O que é que passou *contigo*? -- perguntou ela, desconfiada. -- Comigo? -- murmurou ele. -- Nada. -- Que palavreado é esse então sobre os teus feitos heróicos? -- quis ela saber. -- Exageros -- disse ele. -- Ela tem um cheiro excelente. -- Como pode ela cheirar, se eu ainda :, não ateei o lume? Tornaste a fazer figura de bobo, não é assim? -- disse ela encolerizada. -- Amanhã, terei outra vez de enfrentar a risota, quando for comprar pão. -- Não fiz qualquer figura de bobo. Bati-me. -- Estavas bêbedo. -- Não. Eu consegui detê-los, quando eles recuavam. -- Tu nem sequer és capaz de te aguentar em pé -- retorquiu ela erguendo-se, pois o fogo já pegara. -- Passa-me o salteiro da mesa. -- Não sei -- disse ele lentamente e com ar pensativo --, não sei se não será preferível que eu não coma nada. Estou um tanto indisposto do estômago. -- O que tu estás é bêbedo, digo-te eu. Tenta pôr-te de pé e andar pelo quarto, e logo veremos. A injustiça dela exasperava-o. Mas ele não queria de modo algum levantar-se e mostrar-lhe assim que não podia andar. Ela era de uma esperteza medonha quando se tratava de descobrir qualquer coisa que lhe fosse desfavorável. E ser-lhe-ia prejudicial se se tornasse conhecida a razão mais profunda da sua firmeza durante a batalha. Ela continuou a ocupar-se da panela junto do fogão, dizendo-lhe ao mesmo tempo o que pensava que teria acontecido. :, -- Estou convencida que os teus belos amigos te voltaram a arranjar uma sinecura bem na retaguarda, junto da cozinha de campanha. Tudo o que aí se faz é candonga. Ele espreitou para a rua, com ar preocupado, pela fresta da janela; por ali vagueava uma multidão empunhando lampiões brancos a festejar a vitória. Os seus amigos nobres não lhe tinham proposto isso, e ele próprio o não teria aceite, pelo menos não sem outras condições. -- Ou acharam perfeitamente natural que o sapateiro marchasse juntamente com os outros? Eles não mexem um dedo por ti. Ele é sapateiro, dizem eles, e sapateiro deve continuar a ser. Como poderemos de outro modo procurá-lo na sua pocilga, cavaquear com ele horas a fio e ouvir toda a gente dizer: Vejam lá como, apesar dele ser sapateiro, estes senhores finos se sentam em casa dele e conversam com ele sobre filasofia. Uma canalha suja. -- Chama-se filafobia -- emendou ele. Ela lançou-lhe um olhar carrancudo. -- Não estejas sempre a corrigir-me. Eu sei que não tenho instrução. Se assim não fosse, não terias ninguém que te trouxesse de vez em quando uma bacia com água para lavares os pés. Ele estremeceu, não fosse ela lembrar-se disso agora. :, Era impensável, hoje, qualquer lavagem de pés. Graças aos deuses, já ela prosseguia o seu pequeno discurso: -- Portanto, tu não estavas bêbedo e eles também não te arranjaram qualquer sinecura. Deves ter procedido então como um carniceiro. Não é verdade que tens as mãos sujas de sangue? Mas quando eu esmago uma aranha, tu pões-te logo a gritar. Não que eu acredite que tenhas estado à altura dos acontecimentos, mas lá terás feito qualquer coisa pela calada para que eles te dêem agora pancadinhas nas costas. Mas podes estar certo de que eu hei-de sabê-lo, não tarda muito. A sopa estava agora pronta a ser servida. Tinha um cheiro tentador. A mulher pegou na panela, segurando-a pelas asas com a saia, pô-la em cima da mesa e começou a servir a sopa com a colher. Ele reflectiu sobre se não deveria recuperar o apetite. A ideia de que se teria de aproximar da mesa deteve-o a tempo. Não se sentia bem. Sentia claramente que o assunto ainda não estava resolvido. Por certo que nos tempos mais próximos iria acontecer muita coisa desagradável. Não se podia ter um papel decisivo numa batalha contra os Persas e esperar que nos deixassem em paz. Agora, no primeiro júbilo da :, vitória, era natural que não se desse atenção a quem cabiam os méritos. Todos estavam inteiramente ocupados em apregoar os seus próprios feitos gloriosos.: Mas amanhã ou depois de amanhã cada um havia de ver que o seu companheiro reivindicava para si próprio toda a glória, e seria então a altura de se lembrarem dele. Muitos poderiam assim cortar na casaca a muitos, ao apresentarem o sapateiro como o autêntico e principal herói. Em todo o caso, não eram lá muito afeiçoados a Alcibíades. Lançar-lhe-iam em rosto deliciados: Tu venceste a batalha, mas foi um sapateiro que combateu até ao fim. O espinho doía-lhe mais do que nunca. Se não descalçasse a sandália o mais depressa possível, podia sobrevir uma septicemia. -- Não faças ruído a comer -- disse ele distraído. A mulher imobilizou a colher na boca. -- O que é que eu faço? -- Nada -- apressou-se ele a afirmar, atemorizado. -- Estava a pensar. Ela levantou-se fora de si, pôs a panela sobre o fogão e saiu. Ele teve um suspiro fundo de alívio. Ergueu-se precipitadamente da cadeira e pulou, olhando à sua volta com ar medroso, até à cama. Quando ela entrou de novo a :, buscar o xaile para sair à rua, olhou com ar desconfiado para a rede de dormir forrada a couro onde ele jazia imóvel. Por momentos, ela pensou que lhe faltava alguma coisa. Pensou até em perguntar-lho, pois era-lhe muito dedicada. Mas mudou de ideias e saiu do quarto para ir assistir às festividades com a vizinha. Sócrates dormiu mal e desassossegado e acordou cheio de cuidados. Descalçara a sandália, mas não conseguira agarrar o espinho. O pé estava muito inchado. A mulher mostrou-se hoje de manhã menos irascível. Ouvira na noite anterior toda a cidade falar do seu homem. Devia ter efectivamente acontecido alguma coisa para as pessoas estarem assim tão impressionadas. Que ele tivesse conseguido deter toda uma hoste persa é o que não lhe cabia na cabeça. Ele era incapaz de o fazer, pensou ela. Imobilizar toda uma assembleia com as suas perguntas, isso podia ele fazer. Mas não um exército. O que se tinha então passado? Estava tão confundida, que lhe levou à cama o leite de cabra. Ele não deu sinais de se querer levantar. -- Não queres sair? -- perguntou ela. -- Não me apetece -- resmungou ele. Não era resposta que se desse a uma pergunta delicada da esposa, mas ela pensou que :, ele talvez apenas se quisesse furtar aos olhares das pessoas, e deixou passar a resposta. De manhã cedo apareceram logo visitas. Eram dois jovens, filhos de gente abastada, a sua companhia habitual. Tratavam-no sempre como o seu professor, e alguns até iam escrevendo o que ele lhes dizia, como se fosse alguma coisa de especial. Hoje, informaram-no imediatamente de que a sua fama enchia Atenas. Era uma data histórica para a filosofia (ela estava dentro da razão ao chamar-lhe filasofia, e não outra coisa). Sócrates demonstrara que aquele que é grande na contemplação pode também ser grande na acção. Sócrates escutou-os sem o habitual ricto irónico. Enquanto eles falavam, era como se ouvisse, ainda muito afastada, como se pode ouvir uma trovoada distante, uma gargalhada monstruosa -- a gargalhada de uma cidade inteira, de todo um país, muito afastada mas aproximando-se, aproximando-se irresistivelmente, contagiando toda a gente, os transeuntes nas ruas, os mercadores e os políticos na praça, os artífices nas suas pequenas lojas. -- _é tudo um disparate o que vocês estão para aí a dizer -- disse ele com súbita resolução. -- Eu não fiz coisa alguma. Eles entreolharam-se sorrindo. Um deles disse então: :, -- Exactamente o que nós também dizíamos. Estávamos certos que encararias a coisa dessa maneira. Que súbita gritaria é esta agora, perguntámos a Eusópulos em frente dos ginásios. Durante dez anos Sócrates realizou as maiores proezas do espírito e não houve alguém que se dignasse voltar a cabeça na sua direcção. Ganhou agora uma batalha, e Atenas em peso fala dele. Não compreende, dissemos-lhe nós, que isto é vergonhoso? Sócrates gemeu. -- Mas não fui eu que a ganhei. Limitei-me a defender-me porque me atacaram. Esta batalha não me interessava. Eu não sou negociante de armas, nem possuo vinhas nos arredores. Eu não sabia por que razão devia participar em batalhas. Segui juntamente com gente simples dos arredores que não está nada interessada em batalhas e fiz exactamente o que todos eles também fizeram, quando muito alguns instantes antes deles. Eles ficaram como que siderados. -- É bem verdade - exclamaram --, nós também dissemos isso. Ele nada mais fez do que defender-se. É essa a sua maneira de ganhar batalhas. Permite que nos apressemos a regressar aos ginásios. Deixámos interrompido um diálogo sobre este assunto, apenas para te virmos dar os bons-dias. :, E afastaram-se, voluptuosamente concentrados no diálogo. Sócrates estava deitado em silêncio, apoiado no cotovelo e olhava para o tecto enegrecido pelo fumo. Sentia-se confirmado nos seus pressentimentos mais sombrios. A mulher espiava-o do canto do quarto, enquanto remendava mecanicamente uma saia velha. Subitamente, disse em voz baixa: -- Aí há coisa, não é verdade? Ele estremeceu. Olhou-a inseguro. Era uma criatura gasta, com um peito que mais parecia uma tábua e olhos tristes. Ele sabia que podia confiar nela. Ela seria capaz de o ajudar, quando os seus alunos começassem a dizer: Sócrates? Não é esse sapateiro perverso que não acredita nos deuses? Ela tivera pouca sorte com ele, mas não se queixava a ninguém a não ser a ele. E não se passara ainda uma noite sem que o não aguardasse em cima da cornija uma fatia de pão com toucinho, quando ele regressava esfomeado de casa dos seus abastados discípulos. Interrogava-se sobre se haveria de contar-lhe tudo. Ocorreu-lhe depois que, nos tempos mais próximos, teria de dizer na presença dela muita coisa falsa e hipócrita, quando as pessoas o viessem procurar, como ainda há pouco, para falarem dos :, seus feitos heróicos, o que ele não seria capaz de fazer se ela soubesse a verdade, pois tinha por ela o maior respeito. Limitou-se, assim, a dizer: -- A sopa de feijão fria de ontem à noite fede que tresanda. Ela apenas lhe lançou um novo olhar desconfiado. É evidente que eles não estavam em situação de desperdiçar comida. Ele apenas procurava desviar-lhe a atenção. Cresceu nela a convicção de que alguma coisa se passava com ele. Porque é que ele não se levantava? E certo que se levantava sempre tarde, mas isso é porque também se deitava tarde. Ontem tinha ido para a cama muito cedo. E hoje a cidade inteira estava a pé, por causa dos festejos da vitória. Todas as lojas da viela estavam fechadas. Parte da cavalaria regressara de perseguir o inimigo pelas cinco horas da madrugada -- ouvira-se o tropel dos cavalos. Aglomerações de pessoas eram uma das paixões dele. Nesses dias ele corria de um lado para outro desde manhãzinha até muito tarde e metia conversa em toda a parte. Porque é que agora não se levantava? Uma sombra cobriu a porta e entraram quatro magistrados. Imobilizaram-se no meio do quarto e um deles disse, com palavras frias mas corteses, que fora encarregado :, de conduzir Sócrates ao Areópago. O general Alcibíades em pessoa apresentara a proposta para que lhe fosse feita5uma homenagem pelos seus feitos públicos. Um murmúrio que chegava da rua indicava que os vizinhos se apinhavam diante da casa. Sócrates sentiu-se inundado de suor. Sabia que tinha agora de se levantar e, mesmo que se recusasse a acompanhá-los, tinha ao menos de proferir de pé algumas palavras atenciosas e de acompanhar os senhores até à porta. E também sabia que não conseguiria movimentar-se mais do que uns dois passos. Eles olhariam então para o seu pé e ficariam a saber tudo. E a grande gargalhada começaria a fazer-se ouvir, aqui e agora. Por conseguinte, em vez de se levantar, reclinou-se na almofada dura e disse mal-humorado: -- Dispenso quaisquer homenagens. Dizei ao Areópago que combinei encontrar-me com alguns amigos às onze horas para discutirmos um problema filosófico que nos interessa, pelo que com grande pena minha não posso comparecer. Eu não sirvo para cerimónias oficiais e, além disso, sinto-me demasiado cansado. Acrescentou a última frase, pois aborrecia-o ter comprometido a filosofia; proferira :, a primeira por esperar ver-se livre deles mais facilmente com uma grosseria. Os magistrados perceberam a sua linguagem. Rodaram nos calcanhares e saíram pisando os pés dos populares que se aglomeravam da parte de fora. -- Eles hão-de-te ensinar a ser educado com as autoridades -- disse-lhe a mulher irritada, antes de se dirigir para a cozinha. Sócrates esperou que eles saíssem, virou depois na cama o corpo pesado, sentou-se na beira da rede olhando de soslaio para a porta e tentou com infinitos cuidados pôr-se de pé sobre o pé doente. Todos os esforços foram inúteis. Alagado em suor, deixou-se cair para trás. Passou meia hora. Pegou num livro e pôs-se a ler. Se mantinha o pé quieto, quase não sentia nada. Chegou então o seu amigo Antístenes. Não tirou o espesso capote, parou aos pés da cama sem se sentar, tossiu convulsivamente e coçou a barba hirsuta junto ao pescoço, ao mesmo tempo que olhava para Sócrates. -- Ainda estás deitado? Pensava que vinha encontrar apenas Xantipa. Levantei-me expressamente para vir saber de ti. Estava muito constipado, pelo que não pude aparecer ontem. :, -- Senta-te -- disse Sócrates laconicamente. Antístenes foi buscar uma cadeira a um canto e sentou-se junto do amigo. -- Retomo hoje à tarde as lições. Não há motivo para as suspender por mais tempo. -- Não há. -- Perguntei-me, naturalmente, se eles viriam. Hoje são os grandes banquetes. No entanto, quando me dirigi para cá, encontrei o jovem Feston, e quando lhe comuniquei que dava uma aula de álgebra hoje à tarde, ele ficou simplesmente entusiasmado. Disse-lhe que ele podia vir com o capacete. Protágoras e os outros vão estoirar de raiva quando souberem que em casa de Antístenes se continuou a estudar álgebra na tarde a seguir à batalha. Sócrates baloiçava-se suavemente na rede, impelindo-a com a palma da mão apoiada na parede ligeiramente inclinada. Com os seus olhos salientes examinava o amigo. -- Não encontraste mais ninguém? -- Uma quantidade de gente. Sócrates olhou mal disposto para o tecto. Devia ele servir vinho puro a Antístenes? Tinha bastante confiança nele. Ele próprio não se fazia pagar pelas lições, e não era assim um concorrente de Antístenes. Talvez lhe devesse contar a difícil verdade. :, Antístenes fixou no amigo, com ar curioso, os seus brilhantes olhos de grilo e informou: -- Górgias anda por aí a contar a quem o queira ouvir que tu te puseste em fuga, mas que com a confusão tomaste a direcção errada, ou seja, para a frente. Alguns dos melhores jovens já querem por isso dar-lhe uma sova. Sócrates fitou-o desagradavelmente surpreendido. -- Absurdo -- disse ele irritado. Tornava-se-lhe subitamente claro o que os seus adversários poderiam alegar em seu desfavor, quando ele definisse a sua posição. Durante a noite, pela madrugada, pensou que talvez pudesse apresentar a coisa como uma experiência e afirmar que tinha querido certificar-se de como era grande a credulidade de todos. "Durante vinte anos preguei o pacifismo por todas as travessas, e bastou um boato para que os meus próprios discípulos me tomem por um guerreiro feroz, etc., etc." Mas para isso era preciso não ter ganho a batalha. Evidentemente não era esta a melhor altura para o pacifismo. Depois de uma derrota, até os chefes eram durante algum tempo pacifistas; depois de uma vitória, até os subordinados se mostram partidários da guerra, pelo menos por algum tempo, até se aperceberem de que :, para eles vitória ou derrota não são muito diferentes. Não, ele não podia agora dar-se ao luxo de alardear pacifismo. Ouviu-se na ruela um tropear de cavalos. Os cavaleiros pararam diante da casa, e Alcibíades entrou com passo vivo. -- Bom dia, Antístenes, como vai o negócio da filosofia? Eles estão furiosos -- disse ele radiante. -- A tua resposta, Sócrates pô-los fora de si no Areópago. Por chalaça, substituí a minha moção para que te fosse concedida a coroa de louros pela proposta de te administrarem cinquenta bastonadas. O que os deixou naturalmente embatucados, de tal modo correspondia ao estado de espírito deles. Mas tu tens de vir. Iremos os dois, a pé. Sócrates suspirou. Estava em muito boas relações com o jovem Alcibíades. Tinham muitas vezes bebido juntos. Era um gesto simpático da parte dele o ter vindo procurá-lo. Certamente que não o movia apenas o desejo de escandalizar o Areópago. E mesmo este desejo era honroso para ele e merecia ser apoiado. Disse por fim com prudência, continuando a baloiçar-se na rede de dormir: -- Pressa é o nome do vento que derruba o andaime. Senta-te. Alcibíades riu e aproximou uma cadeira. Antes de se sentar, cumprimentou respeitosamente :, Xantipa, que estava de pé junto à porta da cozinha enxugando na saia as mãos molhadas. -- Vocês, filósofos, são uns tipos cómicos -- disse ele com alguma impaciência. -- Talvez te lastimes já por teres ajudado a ganhar a batalha. Por certo que Antístenes já te chamou a atenção para o facto de não existirem razões suficientes que o justificassem? -- Estivemos a falar de álgebra -- apressou-se a dizer Antístenes e tossiu de novo. Alcibíades teve um sorriso irónico. -- Não esperava outra coisa. Mas para quê fazer um grande barulho por causa disso? Quanto a mim, foi apenas valentia. Se quiserem, nada de especial, mas o que terão de especial um punhado de folhas de louro? Cerra os dentes, e suporta a coisa com paciência, meu velho. Passa num instante e não dói. E depois vamos beber. Olhou com curiosidade para a forma dilatada que agora oscilava energicamente na rede. Sócrates reflectiu depressa. Ocorrera-lhe o que podia dizer. Podia dizer que ontem à noite ou hoje de manhã tinha torcido o pé. Por exemplo, no momento em que os soldados o baixaram dos ombros. O que até tinha a sua piada. O acidente demonstrava como através das homenagens dos concidadãos se pode ser prejudicado. :, Continuando a balouçar-se, curvou-se para a frente de modo a ficar sentado direito, coçou com a mão direita o braço esquerdo desnudado, e disse lentamente: -- O caso passou-se assim. O meu pé... Ao proferir esta palavra, o seu olhar, algo incerto, procurou Xantipa que estava junto à porta da cozinha, pois ia agora dizer a primeira verdadeira mentira relacionada com este assunto; até agora tinha-se limitado a ficar calado. Sócrates não conseguiu falar. Passou-lhe de repente a vontade de expor a sua história. Não tinha torcido o pé. A rede de dormir imobilizou-se. -- Escuta, Alcibíades -- disse ele energicamente, com uma nova vivacidade na voz. -- Não se pode falar de valentia neste caso. Mal a batalha principiou, ou seja, assim que vi aparecer os primeiros persas, deitei logo a fugir, e fi-lo na direcção certa, para trás. Mas meti por um campo de cardos. Um espinho cravou-se-me no pé e não pude ir mais longe. Desferi então golpes à minha volta como um selvagem e por pouco não atingi alguns dos nossos. Desesperado, pus-me a gritar ordens para outras divisões, para que os Persas acreditassem que elas se encontravam ali, o que era absurdo, já que eles não entendem grego. Por outro lado, parece que eles também estavam :, extremamente nervosos. Talvez não conseguissem suportar mais a gritaria, depois de tudo o que tiveram de sofrer durante a ofensiva. Hesitaram alguns instantes, e depois apareceu a nossa cavalaria. E é tudo. Fez-se um grande silêncio no quarto durante alguns segundos. Alcibíades olhou-o fixamente. Antístenes tossiu por trás da mão erguida, desta vez com toda a naturalidade. Da porta da cozinha, onde se encontrava Xantipa, ecoou uma sonora gargalhada. Antístenes disse então secamente: -- Por essa razão não podias ir até ao Areópago e subir as escadas a coxear para receberes a coroa de louros. Compreendo. Alcibíades reclinou-se na cadeira e observou semicerrando os olhos o filósofo deitado na rede. Nem Sócrates nem Antístenes levantaram os olhos para ele. Curvou-se para a frente e agarrou com as mãos um dos joelhos. O seu rosto magro de rapaz estremeceu um pouco, mas nada revelou dos seus pensamentos ou dos seus sentimentos. -- Porque não disseste que tinhas outra ferida qualquer? -- perguntou ele. -- Porque tenho um espinho cravado no pé -- retorquiu Sócrates desabridamente. -- Oh! por isso? -- contestou Alcibíades. -- Compreendo. :, Levantou-se de um salto e aproximou-se do catre. -- É pena que eu não tivesse trazido comigo a minha própria coroa. Dei-a a guardar a um dos meus homens. Senão dar-ta-ia agora. Podes acreditar que te considero bastante corajoso. Não conheço ninguém que, nestas circunstâncias, tivesse contado o que tu acabas de contar. E apressou-se a sair. Quando Xantipa lhe lavava os pés e lhe arrancou o espinho, disse mal-humorada: -- Podia ter provocado uma septicemia. -- Pelo menos -- retorquiu o filósofo. (*) O episódio do espinho fora já apresentado por Georg Kaiser no seu drama *_Der gerettete Alkibiades*. A Velha Senhora Indigna A minha avó tinha setenta e dois anos quando o meu avô faleceu. Ele tinha uma pequena oficina de litografia numa vila de Bade e trabalhou nela com dois ou três ajudantes até à morte. A minha avó encarregava-se do governo da casa sem o auxílio de uma criada; cuidava da casa velha e a cair, e cozinhava para os adultos e para as crianças. Era uma mulher pequenina e magra, com olhos vivos de lagarto, mas um modo de falar pausado. Criara, com recursos muito parcos, cinco filhos -- dos sete que tinha dado à luz. Por isso diminuíra de tamanho com os anos. Dos filhos, as duas raparigas foram para a América, e dois dos filhos também partiram. Só o mais novo, de saúde delicada, ficou na vila. Fez-se tipógrafo e arranjou uma família demasiado numerosa. Ela ficou pois sozinha em casa, quando o meu avô morreu. :, Os filhos trocaram cartas sobre o problema de saber qual o destino a dar-lhe. Um podia oferecer-lhe um lar em sua casa, e o tipógrafo queria ir viver para casa dela com a família. A velha, porém, recusou todas as sugestões e apenas queria que cada um dos filhos, que estivesse em condições de o fazer, lhe concedesse um pequeno subsídio em dinheiro. A litografia, há muito desactualizada, quase nada rendeu ao ser vendida, além de que havia dívidas a pagar. Os filhos escreveram-lhe a dizer que ela não podia viver sozinha, mas como não houve maneira de a convencer, acabaram por ceder e passaram a enviar-lhe algum dinheiro todos os meses. Pelo menos, pensaram, o tipógrafo sempre tinha ficado na vila. O tipógrafo comprometeu-se também a informar regularmente os irmãos sobre o que se passasse com a mãe. As cartas que ele escreveu ao meu pai e o que este mesmo viu quando uma vez a foi visitar e o que eu soube dois anos mais tarde depois do funeral da minha avó, permitem-me fazer uma ideia do que aconteceu nesses dois anos. Parece que o tipógrafo ficou desde logo muito frustrado com o facto de a minha avó se recusar a recebê-lo na sua casa enorme e, agora, vazia. Ele vivia, com os quatro filhos, em três quartos. A velha, porém, mantinha com ele uma relação muito ténue. :, Convidava as crianças todas as tardes de domingo para lá irem tomar café, e era tudo. Visitava o filho uma ou duas vezes por trimestre, e ajudava a nora a fazer compota. A mulher percebeu, por alguns dos comentários da velha, que ela se sentia demasiado apertada na casinha do tipógrafo. Este, ao relatar o facto, não resistia a rematar a frase com um ponto de exclamação. A uma pergunta escrita do meu pai sobre o que é que a velhota agora fazia, ele respondeu secamente que ela ia ao cinema. Tem de se compreender que isso nada tinha de vulgar, pelo menos aos olhos dos filhos. Há trinta anos o cinema não era o que é hoje. Tratava-se de locais miseráveis, mal arejados, muitas vezes velhas salas de jogo com anúncios gritantes, à entrada, de assassínios e de dramas passionais. De facto, só adolescentes é que lá iam, ou então parzinhos de namorados, por causa da escuridão. Uma senhora de idade, sozinha, devia certamente dar nas vistas. E havia ainda que considerar um outro aspecto destas idas ao cinema. A entrada era por certo barata, mas como aquele divertimento era mais ou menos considerado como uma frivolidade, significava "dinheiro deitado à rua". E não era de bom-tom deitar dinheiro à rua. :, A isto acrescia que a minha avó além de não manter contactos regulares com o filho que vivia na vila, também não visitava nem convidava para sua casa nenhum dos seus conhecidos. Não frequentava nenhuma casa de chá da cidadezinha. Em compensação, ia muitas vezes à oficina de um sapateiro remendão situada numa ruela pobre e até mal afamada, onde, em especial durante a tarde, se reunia gente pouco respeitável, desde criadas a aprendizes sem emprego. O sapateiro era um homem de meia-idade, que viajara pelo mundo inteiro, sem que isso lhe tivesse adiantado alguma coisa. Também diziam que ele bebia. Estava longe de ser uma boa companhia para a minha avó. O tipógrafo referiu numa das suas cartas que chamara a atenção da mãe para esse facto, e que esta lhe respondera com grande frieza. "Ele viu umas coisas", fora a resposta dela, e a conversa ficara por ali. Não era fácil falar com a minha avó sobre assuntos que ela não queria discutir. Decorrido cerca de meio ano sobre a morte do meu avô, o tipógrafo escreveu ao meu pai a dizer que a mãe comia agora no restaurante dia sim dia não. Mas que notícia! A avó, que durante a vida inteira tinha cozinhado para uma dúzia de pessoas e :, sempre comera os restos, ia agora comer ao restaurante! O que é que lhe tinha dado? Pouco tempo depois, o meu pai deslocou-se em negócios às redondezas, e aproveitou para ir visitar a mãe. Foi encontrá-la de saída. Ela voltou a tirar o chapéu e serviu-lhe um copo de vinho e biscoitos. Tinha um ar muito equilibrado, nem demasiado expansiva nem particularmente silenciosa. Perguntou por nós, sem de resto entrar em pormenores, e quis sobretudo saber se ainda havia cerejas para as crianças. Era a mesma de sempre. O quarto estava, como era de esperar, impecavelmente limpo, e ela aparentava estar de boa saúde. A única coisa que denunciava o seu novo estilo de vida foi o facto de ela não querer acompanhar o meu pai ao cemitério a visitar a campa do marido. "Podes lá ir sozinho", disse ela casualmente, "é a terceira à esquerda na décima primeira fila. Eu tenho onde ir." O tipógrafo explicou depois que ela naturalmente fora ter com o sapateiro. Ele queixava-se muito. "Eu para aqui metido neste buraco com os meus, e ainda tenho mais cinco horas de trabalho, por sinal bem mal pagas, pela frente, para cúmulo com a asma a afligir-me de novo, e a casa na rua principal vazia." :, Meu pai reservara um quarto no hotel, mas tinha esperado que a mãe o convidasse a ficar em casa, pelo menos *pro forma*, mas ela não tocou no assunto. Dantes, mesmo quando a casa estava cheia, ela opunha-se a que ele não pernoitasse lá e fosse assim gastar dinheiro com um quarto de hotel! Mas ela parecia ter encerrado a sua vida de família, e percorrer agora novos caminhos para os quais se sentia inclinada. Meu pai, que tinha um bom sentido de humor, achou-a "bastante animada" e disse ao meu tio para deixar a velhota fazer o que muito bem lhe apetecesse. Mas o que é que lhe apetecia? A primeira coisa a ser relatada a seguir foi que ela mandara vir um coche e que tinha partido em excursão, numa vulgar quinta-feira. Um coche era um veículo grande, de rodas altas, puxado a cavalos e com lugares para uma família inteira. Nas raras ocasiões em que nós, os netos, tínhamos ido visitar a família, o avô alugara um desses carros. A avó ficava sempre em casa. Recusava-se a acompanhar-nos com um movimento desdenhoso da mão. E depois do coche veio a viagem até K., uma cidade maior, a cerca de duas horas de comboio. Realizava-se lá uma corrida de cavalos, e a minha avó foi assistir à corrida. O tipógrafo estava agora alarmadíssimo. :, Queria chamar um médico. O meu pai abanou a cabeça ao ler a carta, mas opôs-se a que se consultasse um médico. A minha avó não fora sozinha a K. Levara consigo uma rapariga meio idiota, como dizia o tipógrafo na carta, a criada da cozinha do hotel onde a velha comia dia sim dia não. Este "aborto" passou a desempenhar um papel a partir de então. A minha avó parecia ter um fraquinho por ela. Levava-a consigo ao cinema e à oficina do sapateiro remendão, que de resto se provara ser um social-democrata, e constava que as duas mulheres, sentadas na cozinha diante do seu copo de vinho tinto, jogavam às cartas. "Ela comprou agora àquele aborto um chapéu enfeitado com rosas", escrevia, desesperado, o tipógrafo. "E a nossa Ana que não tem um vestido para a comunhão!" As cartas do meu tio tornaram-se histéricas -- falavam exclusivamente do "comportamento indigno da nossa querida mãe". O resto soube eu pelo meu pai. O estalajeiro segredara-lhe ao ouvido, enquanto lhe piscava o olho: "Então a Sra. B. anda agora a divertir-se, pelo que consta." Não se pode dizer que a minha avó tivesse vivido estes últimos anos na abastança. :, Quando não ia ao restaurante, comia geralmente uns ovos em casa, com um pouco de café e, sobretudo, os seus biscoitos preferidos. Dava-se ao luxo de comprar um vinho tinto barato e todas as refeições tomava o seu copinho. Mantinha a casa muito limpa, e não apenas o quarto de dormir e a cozinha que utilizava. Aceitou, porém, sem que os filhos soubessem, uma hipoteca sobre a casa. Nunca se soube qual o destino que ela deu ao dinheiro. Parece que o terá dado ao sapateiro. Depois da morte dela, ele mudou-se para outra cidade e consta que montou aí um importante negócio de sapatos por medida. Bem vistas as coisas, ela viveu duas vidas, uma a seguir à outra. Uma, a primeira, como filha, mulher e mãe, e a segunda simplesmente como Sra. B., uma pessoa só, sem obrigações e com recursos modestos mas suficientes. A primeira vida durou cerca de seis décadas, a segunda não mais do que dois anos. Chegou aos ouvidos do meu pai que, durante os últimos seis meses de vida, ela se permitia certas liberdades, que não passam pela cabeça das pessoas normais. Era bem capaz de se levantar no Verão pelas três da madrugada e ir passear pelas ruas desertas da vila, que assim como que lhe pertencia por inteiro. E uma vez que o :, padre a foi visitar para fazer um pouco de companhia à velha na sua solidão, dizia-se que ela o convidara a ir ao cinema! Ela estava longe de viver no isolamento. Pela casa do sapateiro aparecia gente alegre e divertida e contavam-se muitas histórias. Ela tinha lá sempre uma garrafa do seu vinho tinto e bebia o seu copinho, enquanto os outros contavam histórias e davam à língua sobre as dignas autoridades da cidade. Este vinho tinto ficava reservado para ela, mas de vez quando ela contribuía para a animação da tertúlia com bebidas mais fortes. Morreu repentinamente, numa tarde de Outono, no quarto de cama, não no leito, mas numa cadeira de pau junto da janela. Tinha convidado o "aborto" para irem essa noite ao cinema, pelo que a rapariga estava em sua casa quando ela morreu. Tinha setenta e quatro anos. Vi uma fotografia dela, que a mostra no leito de morte, e que fora tirada para os filhos. Vê-se um rostozinho miúdo com muitas rugas e uma boca de lábios finos, mas rasgada. Muita coisa pequena, mas nada de mesquinho. Sofrera os longos anos de servidão e gozara os breves anos de liberdade -- tinha consumido o pão da vida até às últimas migalhas.