HUME FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Antonio Manoel dos Santos Silva Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Assessor Editorial Jézio Hernani Bornfirn Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Aguinaldo José Gonçalves, Álvaro Oscar Carnpana, Antonio Celso Wagner Zanin, Carlos Erivany Fantinati, Fausto Foresti, José Aluysio Reis de Andrade, José Roberto Ferreira, Marco Aurélio Nogueira, Maria Sueli Parreira de Arruda, Roberto Kraenkel e Rosa Maria Feiteiro Cavalari. Editor Executivo Tulio y, Kawata Editoras Assistentes Maria Apparecida F. M. Bussolotti e Maria Dolores Prades Anthony Quinton HUME Tradução José Oscar de Almeida Marques Departamento de Filosofia -Unicamp Editora Unesp Copyright @ 1998 by Anthony Quinton Titulo original em inglês: Hume, publicado em 1998 pela Phoenix, uma divisão da Orion Publishing Group Ltda. Copyright @ 1999 da tradução brasileira: Fundação Editora da UNESP Praça da Sé, 108 01001-900 -São Paulo -SP Tel.: (011) 232-7171 Fax: (011) 232-7172 Home page: www.editora.unesp.br E-mail: feu@editora.unesp.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Quinton, Anthony. Hume / Anthony Quinton; tradução José Oscar de Almeida Marques - São Paulo: Editora UNESP (FEU), 1999. - (Coleção Grandes Filósofos) Título original: Hume. ISBN 85-7139-234-4 1. Hume, David, 1711-1776 I. Título. II. Série. Índice para catálogo sistemático: I. Filósofos ingleses: Biografia e obra 192 ABREVIAÇÕES DAS OBRAS DE HUME E Enquiries Concerning Human Understanding and Concerning the Principles of Morais. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). 2.ed. Oxford, 1902. D Dialogues Concerning Natural Religion. KEMP SMITH, N. (Ed.). Oxford, 1935. Ess Essays. Oxford, 1963. N The Natural History of Religion and Dialogues Concerning Natural Religion. GLYN, A. W., PRICE,J. V. (Ed.). Oxford, 1976. T Treatise of Human Nature. SELBY -BIGGE, L. A. (Ed.). Oxford, 1888 e posteriores. Pág. 07 INTRODUÇÃO Hume é o maior dos filósofos britânicos: o mais profundo, penetrante e abrangente. Seu trabalho é o ponto alto da tradição empirista dominante na filosofia britânica que começa com Guilherme de Ockham no século XIV, passa por Bacon e Hobbes, Locke e Berkeley, prossegue, depois de Hume, com Bentham e J. S. Mill e culmina na filosofia analítica do presente século, que Bertrand Russell inaugurou e, postumamente, ainda preside. Ele não foi um filósofo tão razoável nem - em parte por essa razão - tão influente quanto Locke. Enquanto este recomendava, quanto às crenças, uma atitude cautelosa ou reservada que era bem-vinda após um século de horríveis conflitos religiosos, Hume parecia comprazer-se em paradoxos e chegar a um ceticismo total que só a frivolidade podia aliviar. As doutrinas políticas de Locke contribuíram em alguma medida, particularmente pela aprovação entusiástica de Voltaire, para a corrente de pensamento que inspirou a Revolução Francesa e desempenhou um papel muito maior no projeto da Constituição americana. Os utilitaristas do século XIX fizeram de uma versão simplificada da teoria moral e política de Hume a base efetiva de uma variedade radical de liberalismo que ele dificilmente teria aprovado. Até o século XX, o principal efeito de sua filosofia teórica foi negativo, provocando numerosos filósofos ao desafio de refuta-lo. Kant disse que Hume o tinha "despertado de seu sono dogmático". Thomas Reid, o filósofo escocês do senso comum, viu Hume como tendo demonstrado de maneira brilhante o absurdo implícito da "teoria das idéias" de Locke. T. H. Green escreveu uma enorme introdução a uma edição das obras de Hume, Pág. 08 rastreando seus supostos erros com inabalável resolução. Só o século XX o reconheceu como um importante filósofo no sentido construtivo. Hume era profundamente escocês, pelo nascimento, residência preferencial, lealdade, sotaque e maneiras. Foi o mais notável expoente do Iluminismo escocês do século XVIII, que também incluiu Adam Smith, o grande economista, Adam Ferguson, o fundador da sociologia, o historiador William Robertson e muitos outros. Esses homens criaram um ambiente intelectual admiravelmente vivo e estimulante no qual se cultivaram todas as ciências humanas: filosofia, história, política, economia, crítica e o estudo não-dogmático da religião. O estilo desses escoceses do século XVIII compara-se muito favoravelmente, em seu rigor e generalidade, com os modos de pensamento mais descuidados de seus contemporâneos ingleses. (Há a exceção de Samuel Johnson, mas ele poderia ter-se beneficiado de um pouco mais de sistematicidade e de pessoas menos insípidas com quem debater). Hume compartilhava com seus associados, e, na verdade, com a maioria dos filósofos de sua época, duas qualidades que o distinguiam, e a eles, dos filósofos dos dias de hoje. Em primeiro lugar, a esfera de seus interesses era extraordinariamente ampla. Não se limitou a escrever sobre filosofia - tanto teórica como moral -, teoria política, economia e o estudo histórico e doutrinário da religião, mas trouxe, para essas áreas, contribuições de decisiva importância, escrevendo de forma memorável sobre milagres, sobre a liberdade da vontade, sobre a imortalidade da alma e o suicídio, e devastando ao mesmo tempo o tipo de religião racional ou natural, o deísmo, que era a posição mais avançada que a maioria dos pensadores das Luzes julgaram razoável atingir em termos práticos ou teóricos. Ele foi, contudo, muito mais conhecido em sua época como um historiador, e muito mais bem recompensado por essa atividade. Sua obra-prima filosófica de juventude, o Tratado sobre a natureza humana, embora não tenha, como ele Pág. 09 tristemente proclamou, "saído do prelo natimorto", levou décadas para esgotar sua pequena primeira edição. Mas sua posterior História da Inglaterra em seis volumes foi um best-seller. A outra qualidade que distingue Hume profissionalmente dos filósofos contemporâneos é o caráter literário de suas ambições. Em sua breve Autobiografia ele se refere à "minha paixão dominante, meu amor pela fama literária". Foi um escritor consciente, elegante, de um tipo Augustino, produzindo sentenças polidas e equilibradas, coloridas com exemplos e analogias concretas. Samuel Johnson disse "ora, senhor, o estilo dele não é inglês. A estrutura de suas sentenças é francesa". O que não constitui, evidentemente, um defeito. Hume escreveu o Tratado durante uma longa estada na França, e esse pode ser o trabalho que Johnson tinha em mente. A filosofia no século XVIII fazia parte das belas letras; e, nas universidades, aparecia apenas como uma tímida auxiliar da teologia e dos estudos clássicos. Hume se dirigia a leitores providos de uma educação geral, não a acadêmicos, os quais em sua maior parte nunca o apreciaram. Trata-se, de fato, de um escritor despreocupado, demasiado tolerante para ficar se preocupando em amarrar todas as pontas de seu texto. Em particular, do ponto de vista do estilo, ele está bem abaixo do quase perfeito Berkeley, mas não se poderia considerar isso uma fraqueza, e é difícil pensar em algum filósofo britânico posterior que tenha escrito tão bem quanto ele, com a possível exceção de F. H. Bradley. Há uma importante limitação na bagagem intelectual de Hume. Possuidor de um conhecimento espantoso sobre as humanidades, ele parece não ter sabido quase nada de matemática e ciência natural, nem ter tido qualquer interesse por essas disciplinas. Mas isso não trouxe muito prejuízo. O que ele escreveu sobre matemática está perfeitamente dotado de Pág. 10 um bom senso mais ou menos leibniziano. Se é verdade que ele supôs erroneamente que toda ciência natural é causal, pelo menos suas partes mais elementares o são. Onde sua fragilidade matemática o põe a perder é na parte 2 do Tratado, na qual coisas muito estranhas são ditas sobre espaço e tempo. Ele afirma, por exemplo, que um todo extenso deve ser composto de partes inextensas, que são não obstante finitas em número e dotadas de qualidades perceptíveis, tais como cores. Os comentadores, quase universalmente, lançam um véu sobre essa parte do trabalho de Hume. Pág. 11 VIDA Hume nasceu em Edimburgo em 1711. Originária das Borders, sua família lá viveu a maior parte do tempo, na propriedade que possuía em Ninewells, situada entre Berwick, a leste, e Duns (onde Duns Escoto pode ter nascido, mas provavelmente não nasceu) a oeste. Seu pai morreu quando ele tinha dois anos, de modo que sua mãe, dedicada e intensamente calvinista, foi a principal influência em seus primeiros anos. O lar e a religião da família teriam-no tornado profundamente antipático à tentativa jacobita, em 1715, de instalar no trono o monarca católico legítimo, que teria sido James III. Hume ingressou na Universidade de Edimburgo com a precoce idade de 12 anos, o que era bastante usual à época, deixando-a três anos mais tarde. Voltou-se então, de má vontade, para os estudos jurídicos, embora dedicando a maior parte de sua atenção a Cícero e outros autores clássicos. Depois de um tipo de colapso nervoso e de um breve período no escritório de um comerciante de Bristol, ele isolou-se por dois anos em uma área rural da França, vivendo frugalmente e escrevendo seu Tratado. Publicou suas duas primeiras partes em 1739, dois anos após seu retorno, e a terceira parte em 1740. Dois volumes de ensaios, publicados em 1741 e 1742, tiveram sorte um pouco melhor. Candidatou-se sem sucesso a uma cátedra de filosofia em Edimburgo e, necessitando de algum rendimento, tornou-se tutor, por um ano, do insano marquês de Annandale. Em 1746 acompanhou o general St. Clair em uma invasão da Bretanha, que acabou sendo cancelada, e, um pouco mais tarde, viajou com St. Clair a Viena e a Pág. 12 Turim. Nessa época, em 1749, veio à luz sua Investigação sobre o entendimento humano, uma revisão um tanto mutilada do livro 1 do Tratado, e ele retornou a Escócia para concluir a obra-irmã daquela, a Investigação sobre os princípios da moral, sua favorita entre todas as que produziu. De 1751 a 1757 Hume administrou a Biblioteca dos advogados em Edimburgo, a melhor biblioteca do país e o ambiente ideal para o projeto de grande envergadura a que então deu início: os seis volumes de sua História da Inglaterra. Os volumes sobre os Stuarts - que geraram alguma controvérsia pela tentativa de fazer justiça à família - saíram em 1754 e 1756; em 1759 foram publicados aqueles dedicados aos Tudors, e, em 1772, os volumes sobre as dinastias anteriores, remontando a Júlio César. Hume visitou Londres em 1758 e 1761, mas, de todas as viagens ao exterior, a mais prazerosa foi sua estada em Paris de 1763 a 1766 como secretário do conde de Hertford. Ele foi agradavelmente festejado pelos philosophes, teve um sério romance, do qual se desconhece o grau de intimidade, com a condessa de Boufflers e esteve diversas vezes com Rousseau, que trouxe consigo, como refugiado, em sua volta à Inglaterra. Rousseau logo retomou, disseminando implausíveis fantasias paranóicas sobre Hume. Sua carreira pública atingiu o ponto culminante com sua nomeação como subsecretário de Estado da província setentrional entre 1767 e 1769. Essa foi a época dos últimos estertores políticos de William Pitt senior, idoso, doente e mentalmente perturbado. Hume parece ter desempenhado suas funções a contento. Em 1769 ele retomou a Edimburgo e a seu círculo de amigos para seus últimos e felizes oito anos de existência. Antes de morrer de câncer de estômago em 1776, ele teve o prazer de irritar Boswell com seu bem-humorado destemor diante da morte. Hume era um homem de grande estatura, magro e ossudo quando jovem, mas cada vez mais corpulento e rubicundo à medida que passaram os anos. Simpático e gentil, sociável e de bom temperamento, era um excelente amigo e um inimigo Pág. 13 fácil de aplacar. Pôde ver méritos em um oponente sério e honesto como Thomas Reid, e dispensou um néscio presunçoso como James Beattie com o ameno comentário "um camarada tolo e intolerante". Nasci no dia 26 de abril, datação antiga, em Edimburgo. Vim de uma boa família, tanto do lado paterno como materno: a família de meu pai descende do conde de Home, ou Hume, e meus ancestrais foram, por muitas gerações, proprietários das terras que hoje meu irmão possui... Passei com sucesso pelos estágios usuais de educação e fui desde muito cedo tomado de um amor pela literatura que tem sido a paixão dominante em minha vida, e a grande fonte de meus prazeres. Minha disposição para os estudos, minha sobriedade e aplicação, deram a minha família a idéia de que o Direito era uma profissão adequada para mim, mas eu sentia uma aversão insuperável a tudo exceto a ocupar-me da filosofia e da erudição em geral; e enquanto eles imaginavam que eu me debruçava sobre Voet e Vinnius, eram Cícero e Virgílio os autores que eu estava devorando. (Ess 607-8) Nunca um empreendimento literário foi mais infortunado que meu Tratado sobre a natureza humana. Ele saiu natimorto do prelo, sem alcançar sequer a distinção de provocar murmúrios entre os fanáticos. Mas como eu era de temperamento naturalmente animado e otimista, muito pronto recuperei-me do golpe e, tendo ido viver no interior, retomei com grande ardor meus estudos. Em 1742 fiz imprimir em Edimburgo a primeira parte de meus Ensaios; o trabalho foi favoravelmente recebido e logo me fez esquecer inteiramente meu desapontamento anterior. Continuei morando no campo com minha mãe e meu irmão e nesse período recuperei o conhecimento da língua grega, que havia negligenciado demasiadamente em minha juventude. (Ess 608-9) Mas não obstante essa variedade de intempéries a que meus escritos haviam sido expostos, eles ainda continuaram a fazer tamanho progresso que o dinheiro que me foi pago pelos livreiros Pág. 14 excedia em muito qualquer coisa anteriormente vista na Inglaterra; eu tornei-me não apenas independente, mas opulento. (Ess 613) Aqueles que não conhecem os estranhos efeitos das modas jamais imaginarão a recepção que tive em Paris, por parte de homens e mulheres de todas as posições sociais. Quanto mais eu me esquivava de suas excessivas cortesias, mais era cumulado delas. Há, entretanto, uma genuína satisfação em morar em Paris, pelo grande número de pessoas sensatas, instruídas e refinadas que aquela cidade possui, em grau maior que qualquer outro lugar no Universo. Cheguei a pensar em instalar-me ali definitivamente. (Ess 614) Para concluir historicamente com meu próprio caráter, sou, ou antes, era (pois esse é o estilo que devo agora usar ao falar de mim mesmo, o qual me encoraja a expressar mais meus sentimentos); eu era, dizia, um homem de disposições brandas, de temperamento controlado, de gênio franco, sociável e bem-humorado, capaz de afeiçoar-se, mas pouco suscetível de inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões. Mesmo meu amor pela fama literária, minha paixão predominante, nunca amargou meu temperamento, apesar dos desapontamentos freqüentes. Minha companhia não era desagradável para os jovens e despreocupados, nem para os estudiosos e homens de letras; e como eu tinha um prazer especial na companhia de mulheres recatadas, nunca houve razões para sentir-me descontente com a recepção que me concederam. Em suma, enquanto a maioria dos homens de alguma eminência teve motivos para queixar-se da calúnia, eu nunca fui atingido ou mesmo atacado por suas garras malignas; e embora tenha me exposto temerariamente à ira das facções civis e religiosas, elas pareceram, em relação a mim, desarmadas de sua fúria costumeira. Meus amigos nunca precisaram justificar qualquer circunstância de meu caráter ou conduta; não que os fanáticos, como bem podemos supor, não tivessem ficado felizes em inventar e propagar qualquer história que me prejudicasse, mas jamais puderam encontrar alguma que julgassem capaz de assumir ares de plausibilidade. Não posso dizer que não haja vaidade nesta oração fúnebre que faço para mim mesmo, mas espero que não seja fora de propósito, essas são questões de fato que podem ser facilmente elucidadas e verificadas. (Ess 615-6) Pág. 15 PRESSUPOSIÇÕES FILOSÓFICAS Hume é um empirista em dois sentidos. Em primeiro lugar, ele considera que a filosofia é uma ciência empírica. Essa é posição anunciada no subtítulo do Tratado: "uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio em assuntos morais". O método experimental é o que está na base da sublime façanha de Newton (embora a matemática tenha também muito a ver com isso), de modo que é razoável atribuir a Hume a ambição de ser o Newton das ciências morais (isto é, humanas). Seu procedimento, em boa medida, concorda com essa declaração de intenções. Ele procura mostrar como o complexo detalhamento de nossa vida intelectual produz-se de acordo com as leis de associação de seus elementos primitivos, os átomos de pensamento que ele chama impressões e idéias. Mas não é por essa psicologia cognitiva geral, baseada em princípios associacionistas, que ele é usualmente considerado importante. Hume é, em segundo lugar, um empirista em uma acepção mais familiar, ao sustentar que toda a matéria-prima de nossos pensamentos e crenças provém da experiência, sensorial e introspectiva. Ele aplica esse princípio, de fato, como um critério de significação. Nossos pensamentos estão desprovidos de conteúdo, e nossas palavras, de significado, a menos que estejam conectados com a experiência. Hume também sustenta que a maior parte de nosso conhecimento funda-se na experiência, ou - visto que o único conhecimento certo de que dispomos é de natureza matemática e diz respeito a relações entre idéias -, que todas as nossas crenças prováveis têm esse fundamento na experiência. Pode parecer que ele estava comprometido com sua concepção de que a filosofia é uma ciência Pág. 16 empírica em função de sua idéia de que todas as crenças factuais são empíricas, mas uma coisa não se segue da outra. Em sua maioria, os modernos simpatizantes de Hume diriam que a filosofia - a "verdadeira" filosofia - é conceitual, não factual, e está, tanto quanto a matemática, dedicada ao exame de relações entre idéias. Hume afirma ousadamente que a filosofia é a primeira ciência, ou a ciência mestra. Todas as ciências, ou corpos de conhecimento admitido são obra do entendimento humano. Portanto, o estudo do entendimento humano é anterior a todos os outros. Enquanto Newton, na visão de Hume, havia explicado o universo material por meio da lei da atração gravitacional, seu objetivo é explicar o funcionamento da mente por uma semelhante lei de associação. As matérias-primas do pensamento, que é o ofício do entendimento, são as impressões e suas cópias, as idéias, de graus variados de vivacidade. As impressões dividem-se em impressões de sensação, tais como cores e sons, e de reflexão, tais como emoções e desejos. Elas podem também ser simples -homogêneas e não-analisáveis - ou complexas. Toda idéia simples pressupõe uma impressão simples correspondente. Isso não é necessário no caso das idéias complexas: todos nós reconheceríamos um dragão se um deles cruzasse nossa frente. As idéias se distinguem das impressões por sua vivacidade menor. Se não têm nenhuma vivacidade, são idéias de imaginação. Se são mais vívidas e preservam sua "forma e ordem", são idéias de memória. Do mesmo grau de vivacidade, parece, são as idéias de expectativa, que são a forma elementar de nossas crenças causais. A crença, em contraste com o mero exercício da imaginação, é uma característica das idéias de memória e de expectativa. Ela não é uma idéia adicional dado que, se o fosse, poderia ser adicionada a qualquer outra idéia, por mais fantástica que fosse, produzindo-se a crença nessa idéia. Um ponto relacionado, estabelecido em um estágio posterior, é que não há idéia de existência. A idéia de uma coisa é o Pág. 17 mesmo que a idéia dessa coisa enquanto existindo. Hume procuraria estabelecer as credenciais empíricas da existência dizendo que ela está presente em toda impressão, dado que impressões envolvem a infalível consciência de alguma coisa (mesmo que seja apenas uma mancha colorida no campo visual privado). Hume admite que seu princípio da dependência universal que as idéias mantêm com as impressões é imperfeito. Alguém poderia reconhecer um tom de azul mesmo que nunca o tivesse visto antes, apenas seus vizinhos imediatos no espectro. Mas essa é uma admissão desnecessária. O tom faltante poderia ser explicado como uma idéia complexa produzida a partir do tom de azul próximo a ele, e da idéia, empiricamente bem exemplificada, de "um pouco mais azul que". Há, na explicação humana das impressões e idéias, equívocos muito mais graves que esse. Uma idéia, para ele, é uma figura ou imagem mental. É verdade que pensamos, até certo ponto, por meio de imagens, mas pensamos também com palavras, e com diagramas e esquemas que são, de certo modo, similares a imagens, embora não se possa dizer que sejam cópias. O ponto crucial é que todos esses itens são veículos de conceitos ou significados. É fácil pensar em imaginações (sonhos e alucinações, por exemplo) que são muito mais vívidas do que a maior parte do que percebemos, para não dizer do que meramente lembramos. A posição de Hume de que imagens são os veículos primários do pensamento pode ter sido auxiliada por sua adesão à recusa de Berkeley das "idéias abstratas". Uma impressão é uma impressão de uma coisa particular, inteiramente determinada. Como pensá-la como uma impressão de uma espécie, à qual algum termo geral apropriadamente se aplicaria? Locke julgou que abstraímos as qualidades comuns a todas as laranjas e usamos a idéia abstrata resultante para reconhecer uma laranja particular como sendo uma laranja. Berkeley rejeitou isso, dado que diferentes laranjas têm qualidades incompatíveis. Usamos uma imagem particular para "representar" Pág. 18 todos os membros da espécie, mas uma imagem qualquer pode representar um sem- número de espécies: laranjas, mas também coisas redondas, coisas alaranjadas etc. Hume enfrentou essa dificuldade dizendo que, quando alocamos algo a uma espécie em razão de sua similaridade com alguma imagem padrão, temos à nossa disposição muitas outras imagens que podemos trazer à mente para guiar nossa classificação na direção correta. Finalmente, nessa primeira parte do Tratado, Hume antecipa, com uma recusa geral da legitimidade da idéia de substância, pontos que irá desenvolver mais extensamente à frente, ao tratar de objetos materiais e pessoas. Não há impressão da qual a idéia de substância possa ser derivada. Tudo que percebemos é uma coleção de qualidades, persistentemente associadas umas às outras. Se substância for definida como aquilo que é capaz de existência independente, então as únicas substâncias são as impressões e idéias. É evidente que todas as ciências têm, em maior ou menor grau, uma relação com a natureza humana, e que por mais que qualquer delas pareça afastar-se, sempre retornam a ela em uma ou outra passagem. Mesmo a matemática, a filosofia natural e a religião natural são em alguma medida dependentes da ciência do homem, dado que caem sob a alçada do conhecimento humano e são julgadas pelos poderes e faculdades deste... Se as ciências da matemática, filosofia natural e religião natural exibem essa dependência do conhecimento do homem, que se pode esperar nas outras ciências, cuja conexão com a natureza humana é ainda mais íntima e profunda? (T XIX) Não há nenhuma questão importante cuja resolução não esteja compreendida na ciência do homem; e nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de nos tornarmos familiarizados com essa ciência. Ao pretender, portanto, explicar os princípios da natureza humana, estamos com efeito propondo um sistema completo das ciências, construído sobre uma fundação que é a única sobre a qual elas podem se erguer com alguma segurança. E como a ciência do homem é a única fundação sólida das demais ciências, a única fundação sólida que ela própria pode receber deve provir da experiência e da observação. (T xix-xx) Pag. 19 Todas as percepções da mente humana resolvem-se em duas diferentes espécies que chamarei impressões e idéias. A diferença entre elas consiste nos graus de força e vivacidade com que afetam a mente e abrem seu caminho até nosso pensamento e consciência. As percepções que adentram com maior força e violência podem ser denominadas impressões, e por esse nome entendo todas as nossas sensações, paixões e emoções, ao aparecerem à alma pela primeira vez. Por idéias entendo as tênues imagens das anteriores, presentes no pensamento e no raciocínio, assim como o são, por exemplo, todas as percepções excitadas pelo presente discurso, com exceção apenas daquelas que provêm da visão e do tato, e do prazer ou desconforto imediatos que ele pode provocar. Acredito que não será necessário empregar muitas palavras para explicar essa distinção. Cada um de nós, por si mesmo, perceberá prontamente a diferença entre sentir e pensar. (T 1) Para cada idéia simples há uma impressão simples que a ela se assemelha, e para cada impressão simples, uma idéia correspondente. (T 3) Uma questão muito importante foi levantada em relação a idéias abstratas ou gerais, a saber, se elas são gerais ou particulares na concepção que a mente tem delas. Um grande filósofo [Berkeley] contestou a opinião corrente quanto a esse ponto e afirmou que todas as idéias gerais nada mais são que idéias particulares anexadas a um certo termo, que lhes dá uma significação mais abrangente e as faz evocar, quando preciso, outros indivíduos semelhantes a elas. Como considero esta uma das maiores e mais valiosas descobertas feitas nos últimos anos na república das letras, vou esforçar-me aqui para confirmá-la por meio de alguns argumentos, os quais, segundo espero, vão colocá-la além de toda dúvida e controvérsia. É evidente que, ao formar a maioria de nossas idéias gerais, se não mesmo todas elas, fazemos abstração de cada grau particular de qualidade ou quantidade, e que um objeto não deixa de ser de uma certa espécie particular em virtude de alguma pequena mudança em sua extensão, duração ou outras propriedades. Pode-se pensar, portanto, que há aqui um claro dilema quanto à natureza dessas idéias abstratas que têm dado aos filósofos tantos motivos de especulação. A idéia abstrata de um homem representa homens de todos os tamanhos e qualidades, do que se conclui que Pág. 20 ela só pode fazê-lo seja representando de imediato todos os possíveis tamanhos e qualidades seja não representando nenhum deles em particular. Ora, uma vez que se considera absurdo defender a primeira alternativa, já que ela implica uma capacidade infinita da mente, tem-se decidido usualmente a questão em favor da segunda, tomando-se nossas idéias abstratas como não representando nenhum grau particular de quantidade ou qualidade. Tentarei mostrar, porém, que essa inferência é errônea, provando, em primeiro lugar, que é absolutamente impossível conceber qualquer quantidade ou qualidade sem formar uma noção precisa de seus graus; e, em segundo, mostrando que, mesmo que a capacidade da mente não seja infinita, podemos formar de imediato uma noção de todas as possíveis qualidades e quantidades, pelo menos de uma maneira que, embora muito imperfeita, pode servir a todos os propósitos da reflexão e conversação. (T 17-18) Todos os objetos da razão ou investigação humanas podem ser naturalmente divididos em duas espécies, a saber, relações de idéias e questões de fato. Do primeiro tipo são as ciências da geometria, álgebra e aritmética, e, em suma, toda afirmação que é ou intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual ao quadrado dos dois lados é uma proposição que expressa uma relação entre essas grandezas. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta expressa uma relação entre esses números. Proposições dessa espécie podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte do universo. Mesmo que jamais houvesse existido um círculo ou triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza e evidência. Questões de fato, que são o segundo tipo de objetos da razão humana, não são apuradas da mesma maneira, e tampouco nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é da mesma natureza que a precedente. O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, porque não pode jamais implicar contradição e a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá. (E 25-26) Pág. 21 CAUSAÇÃO A explicação que Hume deu da causação é, com justiça, a parte mais bem conhecida e mais influente de sua filosofia. Enquanto outras de suas principais afirmações são no máximo interessantemente provocativas, esta continua sendo um forçoso objeto de preocupação para os filósofos. Hume trata a causação como uma relação entre objetos antes de expor suas desconcertantes opiniões céticas sobre nosso conhecimento dos objetos, mas isso é porque ele considera que todas as nossas crenças sobre questões de fato - à medida que avançam para além das impressões que estão imediatamente presentes à mente, como o fazem todas exceto as mais elementares - são produto de inferências causais. Isso, rigorosamente, não é correto. O gosto doce que eu infiro que se pode obter da laranja que vejo não é a causa nem o efeito da laranja vista. Mas continua sendo uma "existência distinta", que poderia ter deixado de ocorrer mesmo estando a laranja presente. A inferência factual, da qual a inferência causal é o principal exemplo, é o liame universal entre o observado e o inobservado, entre o que percebemos que acontece e o que deve ter acontecido ou deve vir a acontecer. A característica de ser uma causa, ou um efeito, não é uma qualidade das coisas, como ser vermelha ou redonda. Se o fosse, seria uma propriedade de todas as coisas, assim como a existência, e não teríamos nenhuma impressão dela. Ela é, de forma bastante simples, uma relação: um complexo, tríplice, composto de contigüidade no espaço e tempo, sucessão e conexão necessária. Nem a contigüidade, nem a sucessão são, de fato, essenciais à causação. Pode haver ação à distância, e causa e efeito podem ser simultâneos (Hume tem um Pág. 22 argumento engenhoso porém inválido para provar que não podem). A questão não é importante e, em todo caso, os exemplos mais diretos de relações causais têm termos que são contíguos e sucessivos. Não é importante porque contigüidade e sucessão são empiricamente não-problemáticas; temos impressões de ambas. A conexão necessária é o indispensável embora perturbador. Por mais atentamente que examinemos um suposto exemplo de relação causal (a bola branca entrando em contato com a vermelha e a vermelha partindo em direção à caçapa), não observamos uma conexão necessária entre elas, embora acreditemos que exista. Hume propõe duas questões. Por que pensamos que todo evento deve ter uma causa e por que pensamos que cada causa particular deve ter o efeito que supomos que tem? O princípio causal geral não é nem auto-evidente nem demonstrável. Com destreza típica, ele despacha algumas das tentativas de provas. Locke, por exemplo, disse que se o princípio fosse falso, alguma coisa teria sido causada por nada, mas o nada é muito fraco para causar qualquer coisa. Mostra-se facilmente que essa antecipação de Lewis Carroll envolve uma petição de princípio. Tampouco se pode provar que um evento particular qualquer é causa daquilo que se toma como seu efeito. Causa e efeito são existências distintas; não há jamais contradição, portanto, em supor que a primeira ocorra e o segundo não. Quando acreditamos que dois tipos de eventos estão causalmente relacionados, acreditamos que estão constantemente conjugados em todos os tempos com base em nossa lembrança de que estiveram constantemente conjugados em nossa experiência. A inferência da conjunção limitada que observamos para a conjunção universal envolvida em nossa crença causal assume que o inobservado assemelha-se ao observado ou, de forma mais vaga, que a natureza é uniforme. Mas esta suposição, assim como o princípio geral, não é auto-evidente nem demonstrável. O inobservado é "distinto" do observado; ele pode tomar qualquer forma que seja, e continuar compatível com o observado ser do jeito que é. Pág. 23 Tampouco podemos estabelecê-la indutivamente com base na evidência de que até agora, pelo menos, o inobservado tem se assemelhado em larga medida ao observado. Fazer isso seria argumentar em círculo, assumir a validade da suposição em sua própria prova. Escondida em meio a uma discussão sobre probabilidade, está uma interessante distinção entre conclusões prováveis baseadas em evidência insuficiente (conheci cinco holandeses todos eles gostavam de enguia) e aquelas baseadas em evidência contrária (conheci cem holandeses e noventa e cinco deles gostavam de enguia). Em qualquer dos casos, ao encontrar um novo holandês, concluirei que ele provavelmente gosta de enguia, mas não vou afirmar nada mais que isso. No segundo caso, estou confiando na proposição geral de que dezenove entre vinte holandeses gostam de enguia, que é o produto de uma inferência indutiva a partir da proporção de apreciadores de enguia que observei. A crítica de Hume, portanto, não pode ser contornada argumentando-se que a natureza provavelmente é uniforme, ou que o inobservado irá provavelmente assemelhar-se ao observado, se for este segundo tipo de probabilidade que estiver em questão. Pois essa argumentação só poderia estar baseada na constância das freqüências ou proporções observadas. Mas o primeiro tipo de probabilidade, que Hume põe de lado como figurando apenas nos primeiros anos de vida, o que é certamente incorreto, não está sujeito a essa objeção. Tem-se argumentado que a proposição "se todos os As conhecidos são Bs então é provável que (ou seja, há alguma evidência, mesmo que insuficiente, de que) todos e quaisquer As são Bs" é demonstrável. É por causa do significado da palavra "evidência" que a proposição acima sobre As e Bs é verdadeira; ela enuncia uma "relação abstrata de idéias", não uma questão de fato. Convencido, em todo caso, de que a inferência indutiva que está envolvida em nossas crenças causais, e em todas as demais crenças factuais que avançam além das impressões presentes, não pode ser racionalmente justificada, Hume Pág. 24 volta-se para o problema de explicar por que recorremos a ela de forma tão inveterada. Sua resposta é que, por influência da associação, nossa experiência de uma conjunção constante leva-nos, por uma questão de costume ou hábito, a ter uma vívida expectativa de uma vidraça se despedaçando quando vemos um tijolo voando em sua direção. A impressão da qual se deriva nossa idéia de conexão necessária não é uma impressão de sensação, mas de reflexão, de nos sentirmos compelidos a esperar que a vidraça se quebre ao perceber o tijolo voando em direção a ela. Hume conclui sua discussão principal sobre o tema oferecendo duas definições de "causa", que são definições de duas coisas completamente diferentes, ainda que relacionadas. A primeira é dada em termos da conjunção constante dos dois fatores, a segunda, em termos do fato de que a impressão de um dos fatores determina a mente a formar uma idéia vívida do outro. A segunda dessas definições parece exprimir o que Hume pensa que ocorre em nossas mentes quando temos ou formamos uma crença causal; a primeira, o que efetivamente acreditamos. Elas não podem ser ambas corretas. A primeira é o que acreditamos, a segunda explica a crença e exprime, talvez, tudo o que nos é lícito acreditar. Até o século XX, a maioria dos comentadores de Hume tomavam-no como, seja a sério, seja frivolamente, um completo cético acerca de crenças causais e indutivas (e acerca de muitas outras coisas mais). Hume, entretanto, expõe "regras para julgar causas e efeitos", assume claramente como verdadeiro que todo evento tem uma causa (ao insistir, por exemplo que os eventos frutos do acaso são, na realidade, todos eles efeitos de causas desconhecidas) e, é claro, entrega-se, ele próprio, a um bom número de inferências indutivas ao aplicar o "método experimental" ao funcionamento da mente humana. Todos os raciocínios referentes a questões de fato parecem fundar-se na relação de causa e efeito. É somente por meio dessa relação Pág. 25 que podemos ir além da evidência de nossa memória e nossos sentidos. Se perguntássemos a um homem por que ele acredita em uma questão de fato qualquer que não está presente - por exemplo, que seu amigo acha-se no interior, ou na França, ele nos daria uma razão, e essa razão seria algum outro fato, como uma carta recebida desse amigo, ou o conhecimento de seus anteriores compromissos e resoluções. Um homem que encontre um relógio ou qualquer outra máquina em uma ilha deserta concluirá que homens estiveram anteriormente nessa ilha. Todos os nossos raciocínios relativos a fatos são da mesma natureza. E aqui se supõe invariavelmente que há uma conexão entre o fato presente e o fato que dele se infere. Se nada houvesse que os ligasse, a inferência seria completamente incerta. (E 26-27) Assim, se quisermos nos convencer quanto à natureza dessa evidência que nos dá garantias sobre questões de fato, devemos investigar como chegamos ao conhecimento de causas e efeitos. Arrisco-me a afirmar, a título de uma proposta geral que não admite exceções, que o conhecimento dessa relação não é em nenhum caso alcançado por meio de raciocínios a priori, mas provém inteiramente da experiência, quando descobrimos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros. Apresente-se um objeto a um homem dotado das mais poderosas capacidades naturais de raciocínio e percepção - se esse objeto for algo de inteiramente novo para ele, mesmo o exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis não lhe permitirá descobrir nenhuma de suas causas ou efeitos. Adão, ainda que supuséssemos que suas faculdades racionais estivessem inteiramente perfeitas desde o início, não poderia ter inferido da fluidez e transparência da água que ela o sufocaria, nem da luminosidade e calor do fogo que este iria consumi-lo. Nenhum objeto revela jamais, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão; e nossa razão tampouco é capaz de extrair, sem auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou questões de fato. (E 27) Lancemos, portanto nosso olhar sobre dois objetos quaisquer, que chamaremos causa e efeito, e viremo-los de todos os lados, a fim de encontrar aquela impressão que produz uma idéia de tão Pág. 26 grandiosa importância. Percebo, à primeira vista, que não devo procurar por ela em nenhuma das qualidades particulares dos objetos, dado que, para qualquer uma dessas qualidades que eu determine, encontro algum objeto que não a possui e, contudo, cai sob a denominação causa ou efeito. E não há, na verdade, nada que exista, seja internamente ou externamente, que não deva ser considerado ou uma causa ou um efeito, embora seja claro que não há nenhuma qualidade singular que pertença universalmente a todos os seres e lhes dê o direito a essa denominação. Assim, a idéia de causação deve derivar-se de alguma relação entre objetos, e é essa relação que devemos agora esforçar-nos por descobrir. Vejo, em primeiro lugar, que quaisquer objetos considerados como causas ou efeitos são contíguos, e que nada pode operar em um tempo ou lugar distante, ainda que minimamente, do tempo ou lugar em que existe. Embora objetos distantes possam algumas vezes parecer atuar uns sobre os outros, o exame comumente revela que estão ligados por uma cadeia de causas que são contíguas umas às outras e aos objetos distantes; e quando em algum caso particular não conseguimos descobrir essa conexão, presumimos ainda assim que ela existe. Podemos, portanto, considerar a relação de contigüidade como essencial para a relação de causação, ou pelo menos podemos supô-la assim de acordo com a opinião geral, até que possamos encontrar uma ocasião mais apropriada para esclarecer essa questão, examinando quais objetos são ou não são suscetíveis de justaposição e conjunção. A segunda relação que observo como essencial para causas e efeitos não é tão universalmente admitida, estando sujeita a alguma controvérsia. Ela é a de prioridade no tempo da causa em relação ao efeito. Alguns alegam que não é absolutamente necessário que uma causa deva preceder seu efeito, mas que qualquer objeto ou ação, no exato primeiro instante de sua existência, pode exercer sua qualidade produtiva e dar origem a outro objeto ou ação perfeitamente contemporâneos consigo mesmo. Mas, além do - ato de que a experiência na maioria dos casos parece contradizer essa opinião, podemos estabelecer a relação de prioridade por uma espécie de inferência ou raciocínio. É um principio estabelecido tanto em filosofia natural quanto em filosofia moral que um objeto que exista por um certo tempo em sua plena perfeição sem produzir um outro, não é sua única causa, mas é assistido por algum outro principio que o desloca de seu estado de inatividade e faz exercer aquela energia que secretamente possuía. Ora, se alguma causa for perfeitamente contemporânea a seu efeito, é certo, Pág. 27 de acordo com esse princípio, que todos eles devem sê-lo, dado que qualquer um deles que retarde sua operação por um único momento, não se exerce naquele exato tempo individual no qual poderia ter operado, e portanto não é propriamente causa. A conseqüência disso seria nada menos que a destruição daquela sucessão de causas que observamos no mundo, e, na verdade, a completa aniquilação do tempo. Pois se uma causa fosse contemporânea com seu efeito, e esse efeito com seu efeito, e assim por diante, é claro que não poderia haver nenhuma sucessão, e todos os objetos deveriam ser coexistentes. Se este argumento parecer satisfatório, está tudo bem. Se não, peço ao leitor permitir-me a mesma liberdade, que usei no caso anterior, de supor que as coisas são assim. Pois ele descobrirá que o assunto não tem muita importância. Tendo assim descoberto, ou assumido, que as duas relações de contigüidade e sucessão são essenciais para a existência de causas e efeitos, sinto que cheguei a um limite e que a consideração de qualquer caso singular de causa e efeito não me permite avançar mais. O movimento de um corpo é tomado, na ocasião do impulso, como a causa do movimento de outro. Ao considerarmos com a máxima atenção esses objetos, vemos apenas que o primeiro corpo se aproxima do outro, e que seu movimento precede o movimento do outro, embora sem nenhum intervalo perceptível. É inútil atormentarmo-nos com pensamentos e reflexões adicionais sobre o assunto. Não podemos ir mais longe a partir da consideração deste caso particular. (T 75-77) Temos, portanto de proceder como aqueles que, estando à procura de alguma coisa oculta e não a encontrando no lugar em que esperavam, vagueiam por todas as áreas vizinhas, sem nenhum pIano ou propósito definido, na esperança de que sua boa sorte vá finalmente guiá-los para o que procuram. É necessário que abandonemos a inspeção direta dessa questão concernente à natureza da conexão necessária que participa de nossa idéia de causa e efeito, e esforcemo-nos para descobrir algumas outras questões cujo exame pode talvez proporcionar uma pista para esclarecer a presente dificuldade. Dessas questões, há duas que passarei a examinar, a saber: Primeiro, por que razão declaramos necessário que tudo cuja existência tem um começo deva ter também uma causa? Segundo, por que concluímos que tais e tais causas particulares devam necessariamente ter tais e tais efeitos particulares, e qual Pág. 28 é a natureza dessa inferência que fazemos das primeiras aos segundos, e da crença que nela depositamos? (T 77-8) Não se pode demonstrar que é necessária uma causa para cada nova existência ou nova modificação de existência sem mostrar, ao mesmo tempo, a impossibilidade de que alguma coisa possa começar a existir sem algum princípio produtivo; e caso esta última proposição não possa ser provada, não poderemos esperar conseguir provar a primeira. Ora, é possível convencermo-nos de que essa última proposição é totalmente incapaz de receber uma prova demonstrativa observando que, já que todas as idéias distintas são separáveis umas das outras e já que as idéias de causa e efeito são evidentemente distintas, é fácil para nós conceber um objeto qualquer como inexistente nesse momento e existente no momento seguinte sem juntar-lhe a idéia distinta de uma causa ou princípio produtivo. Assim, a separação entre a idéia de uma causa e a de um início de existência é claramente possível para a imaginação, e, conseqüentemente, a separação real desses objetos é possível à medida que não implica contradição nem absurdo, e é, portanto incapaz de ser refutada por qualquer raciocínio a partir de meras idéias, sem o que é impossível demonstrar a necessidade de uma causa. (T 79-80) Só a experiência, portanto, permite-nos inferir a existência de um objeto a partir da existência de um outro. A natureza da experiência é esta: lembramo-nos de ter observado freqüentes exemplos da existência de uma espécie de objetos, lembramo- nos também de que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre os acompanharam e sempre existiram segundo uma ordem regular de contigüidade e sucessão com relação a eles. Lembramo-nos assim de ter visto essa espécie de objeto que denominamos chama, e de ter sentido essa espécie de sensação que denominamos calor. Temos igualmente a lembrança da constante conjunção desses objetos em todos os casos passados. E, sem cerimônias, chamamos em causa a um efeito a outro, e, da existência de um, inferimos a existência do outro. Em todos os casos que nos instruem sobre a conjunção de causas e efeitos particulares, tanto umas como outros foram percebidos pelos sentidos e lembrados, mas nos casos em que raciocinamos acerca deles, apenas um é percebido ou lembrado, sendo o outro suprido em conformidade com nossa experiência passada. Pág. 29 Avançando dessa maneira, descobrimos insensivelmente uma nova relação entre causa e efeito lá onde menos a esperávamos, e enquanto estávamos inteiramente ocupados com outro assunto. Essa relação é sua conjunção constante. A contigüidade e a sucessão não são suficientes para fazer-nos julgar que dois objetos quaisquer são causa e efeito, a menos que percebamos que essas duas relações são preservadas em vários casos. Vemos agora a vantagem de ter abandonado o exame direto dessa relação para descobrir a natureza daquela conexão necessária, que forma uma parte tão essencial dela. (T 86-7) Tendo assim explicado o modo pelo qual raciocinamos para além de nossas impressões imediatas e concluímos que tais e tais causas particulares devem ter tido tais e tais efeitos particulares, devemos agora retroceder sobre nossos passos para examinar a questão que primeiramente nos ocorreu e que abandonamos pelo caminho, a saber: Qual é nossa idéia de necessidade quando dizemos que dois objetos estão necessariamente conectados um ao outro? Sobre esse ponto repito o que já tive freqüentemente ocasião de observar: que, como não temos nenhuma idéia que não seja derivada de uma impressão, devemos encontrar alguma impressão que dê origem a essa idéia de necessidade. (T 155) [Devemos] repetir para nós mesmos que a simples observação de dois objetos ou ações quaisquer, por mais relacionados que sejam, jamais nos dá qualquer idéia de poder ou de uma conexão entre eles; que essa idéia surge da repetição de sua união; que a repetição nem revela nem causa coisa alguma nos objetos, mas tem uma influência apenas sobre a mente, pela transição habitual que produz; que essa transição habitual é, portanto, o mesmo que o poder ou a necessidade, que são conseqüentemente qualidades das percepções, não dos objetos, e são sentidas internamente pela alma, não percebidas externamente nos corpos. (T 166) Podemos definir uma causa como "Um objeto precedente e contíguo a outro, quando todos os objetos semelhantes ao primeiro exibem essas mesmas relações de precedência e contigüidade com os objetos semelhantes ao segundo". Se essa definição for julgada imperfeita porque recorre a objetos estranhos à causa, podemos substituí-Ia por esta outra: "Uma causa é um objeto precedente e contíguo a outro, e tão unido a este que a idéia de um leva a mente a formar a idéia do outro, e a impressão de um, a formar uma idéia mais vívida do outro". (T 170) Pág. 30 COISAS MATERIAIS Tendo argumentado que todas as crenças em questões de fato - à parte nossa consciência imediata de nossas presentes impressões e, presumivelmente, as lembranças destas - Fundadas em crenças causais, Hume tentou mostrar que essas crenças não estão justificadas. Não estão justificadas pela experiência, dado que não temos nenhuma impressão de conexão necessária, nem pela razão, dado que o contraditório de qualquer princípio causal ou indutivo geral, ou de qualquer particular crença causal, é sempre possível. Tudo o que se pode esperar fazer é explicar como chegamos a ter as crenças causais que temos, e a fazer as previsões às quais elas nos conduzem; a saber, pela experiência da conjunção constante que instila em nós o hábito da expectativa. A mesma estratégia é bastante empregada em suas explicações de nossa crença em um mundo externo de coisas materiais, e nossa crença em nós mesmos enquanto existências continuadas. Ele abre uma discussão das coisas materiais distinguindo duas questões. Uma delas, a questão sobre "se há ou não há corpos" é, ele diz, "fútil levantar". Contudo, "podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na existência de corpos?". Acreditar na existência de corpos ou coisas materiais é acreditar em algo que tem uma existência distinta e continuada, alguma coisa que existe em ocasiões nas quais não temos impressões dela e que, portanto, existe independentemente de nós. Supor que os sentidos nos revelam a existência de coisas despercebidas (ou de segmentos despercebidos de sua história) é uma patente contradição. E essa crença tampouco pode estar baseada em uma inferência causal a partir de nossas impressões, que é o que isso significa Pág. 31 nessas circunstâncias, como na "filosofia moderna" de Locke. Não podemos experimentar uma conjunção constante entre D percebido e o impercebido, muito menos comparar um com o outro para descobrir a semelhança (parcial) que Locke declara existir entre eles. A questão "se há ou não há corpos" resulta "fútil" em dois sentidos. Dado que nem a experiência nem a razão podem respondê-la, não há resposta justificada que pudéssemos oferecer à questão. Mas Hume também diz que "a natureza não deixou isso à [nossa] escolha e sem dúvida considerou o assunto de demasiada importância para ser confiado a nossos incertos raciocínios e especulações". Não podemos justificar nossa crença em um mundo de coisas materiais distintas e continuadas, mas tampouco podemos evitar essa crença. O que podemos fazer é explicar como ela se impõe a nós. A explicação reside na constância e coerência exibidas pelas impressões dos sentidos. Levantamos da mesa para olhar pela janela e, quando retomamos, coisas exatamente iguais às coisas que antes apareciam sobre a mesa lá aparecem mais uma vez (constância). O fogo que ardia na lareira quando saímos para fazer um longo telefonema está agora reduzido a brasas, do mesmo modo que outros fogos observados sem interrupção foram vistos extinguir-se progressivamente em outras ocasiões (coerência). A concepção ordinária, "vulgar", do assunto imagina ou "finge" percepções não percebidas para preencher as lacunas uniformes ou graduais. Isso é uma contradição, mas a mente irrefletida passa por cima disso. O "sistema dos filósofos" (isto é, de Locke) é ainda pior, dado que supõe a existência de coisas que não estão causalmente relacionadas, nem se assemelham, às impressões apresentadas como testemunho de sua existência. Podemos muito bem perguntar que causas induzem-nos a acreditar na existência de corpos? Mas é fútil perguntar se há ou não há corpos. Pág. 32 Esse é um ponto que devemos assumir como certo em todos os nossos raciocínios. O assunto, portanto, de nossa presente investigação, concerne às causas que nos induzem a acreditar na existência dos corpos, e abro minha discussão desse tópico com uma distinção que à primeira vista pode parecer supérflua, mas que contribuirá em muito para o perfeito entendimento do que segue. Devemos examinar separadamente estas duas questões que são comumente confundidas, a saber, por que atribuímos uma existência continuada a objetos, mesmo quando não estão presentes à sensação; e por que supomos que eles têm uma existência distinta da mente e da percepção? Sob esta última rubrica compreendo sua situação bem como suas relações, sua posição externa bem como a independência de sua existência e operação. (T 186-7) É evidente que nossos sentidos não nos oferecem suas impressões como imagens de algo distinto, ou independente, e externo; porque o que nos transmitem não é nada mais que uma percepção singular, e nunca nos dão a menor sugestão de algo além dela. Uma percepção singular não pode jamais produzir a idéia de uma dupla existência, a não ser por influência da razão ou da imaginação. Quando a mente olha além do que lhe aparece imediatamente, suas conclusões não podem ser creditadas aos sentidos, e ela está certamente olhando além quando infere, de uma percepção singular, uma existência dupla, e supõe relações de semelhança e causação entre elas. (T 189) Podemos observar, então, que não é nem em virtude do caráter involuntário de certas impressões, como comumente se supõe, nem de sua grande força e impetuosidade, que atribuímos a elas uma realidade e uma existência continuada que recusamos a outras que são voluntárias ou tênues. Pois é evidente que nossas dores e prazeres, nossas paixões e afecções, que nunca supomos como existindo fora de nossa percepção, são tão involuntárias quanto as impressões de figura e extensão, cor e som, que supomos serem entes permanentes. O calor de uma chama, quando moderado, é tomado como existindo na própria chama, mas a dor que ele causa ao nos aproximarmos não é considerada como tendo qualquer existência exceto na percepção. Tendo rejeitado essas opiniões vulgares, devemos procurar alguma outra hipótese que nos permita descobrir quais são as qualidades peculiares de nossas percepções que nos fazem atribuir-lhes uma existência distinta e continuada. Pág. 33 Após um breve exame, descobriremos que todos os objetos aos quais atribuímos uma existência continuada têm uma peculiar constância, que os distingue das impressões cuja existência depende de nossas percepções. Estas montanhas, casas e árvores que caem agora sob meu olhar, sempre apareceram a mim na mesma ordem; e quando deixo de vê-Ias porque fechei os olhos ou voltei a cabeça, verifico logo em seguida que elas retomam sem a menor alteração. Minha cama e minha mesa, meus livros e papéis, apresentam-se da mesma maneira uniforme, e não se modificam com a interrupção de minha visão ou percepção deles. O mesmo ocorre com todas as impressões cujos objetos são tomados como tendo uma existência externa, e não ocorre com nenhuma outra impressão, seja branda ou violenta, voluntária ou involuntária. Essa constância, entretanto, não é tão perfeita que não admita exceções muito consideráveis. Corpos muitas vezes mudam suas posições e qualidades, e, após uma pequena ausência ou interrupção, podem tomar-se dificilmente reconhecíveis. Mas aqui se observa que, mesmo nessas mudanças, eles preservam uma coerência, e mantêm uma dependência regular uns dos outros, que é o Fundamento de uma espécie de raciocínio a partir da causação e produz a opinião de sua existência continuada. Quando retorno à minha câmara após uma ausência de uma hora, não encontro minha lareira na mesma situação em que a deixei, mas já estou acostumado, em outras ocasiões, a observar uma alteração semelhante produzida em um período equivalente, quer eu esteja presente ou ausente, próximo ou distante. Esta coerência em suas mudanças é, portanto, uma das características dos objetos externos, assim como sua constância. (r 194-5) Pág. 34 O EU O eu, considerado como algo dotado de uma contínua ao longo do tempo, também é vítima do estilo bidentado de ataque característico de Hume. Sei que estou tendo agora certas experiências e lembro-me de ter tido outras. Mas não tenho nenhuma impressão de um item imutável ao qual todas essas coisas pertençam. Dado que esse teria de ser um conteúdo inalterável e invariante de minha consciência, ele não poderia se fazer sentir, e teria o mesmo caráter empiricamente evasivo que tem a existência. De fato, argumenta Hume, sempre que olho mais atentamente para mim mesmo, tudo que encontro é uma seqüência mais ou menos caótica de percepções, impressões e idéias de sensação e de reflexão, sentimentos e pensamentos particulares. A razão, por sua vez, requer tão pouco quanto a experiência essa suposição de um portador persistente de minha identidade através do tempo, um suporte ao qual inserissem minhas experiências. Cada experiência ou "percepção" é uma existência distinta, da qual não se segue necessariamente a de nenhuma outra coisa. Esta é, de todas as ousadas eliminações realizadas por Hume, a que os filósofos têm julgado a mais difícil de engolir. Não está ele refutando a si próprio quando diz "de minha parte, quando entro no mais profundo disso que chamo eu mesmo, sempre tropeço em uma ou outra percepção particular?" Que é essa coisa que está fazendo a entrada? J.S. Mill e outros julgaram impossível que uma simples série pudesse ter consciência de si mesma como uma série. Contra isso se poderia argumentar que um estado presente de consciência poderia conter, ou ser, uma reminiscência de estados anteriores de consciência, a ele de algum modo relacionados. Pág. 35 E, na verdade, tem parecido a muitos, particularmente a Locke, que a memória, no sentido de uma lembrança pessoal direta, é a relação que conecta um feixe temporalmente espalhado de experiências ou estados mentais em um eu, mente ou pessoa, contínuo e singular. Hume rejeitou essa teoria, fiando-se no argumento de Butler de que, como Hume o expõe, a memória não constitui a identidade pessoal, mas a descobre. Não posso julgar que uma certa idéia é uma idéia de memória e não de imaginação a menos que já tenha descoberto primeiramente que a experiência supostamente lembrada era uma experiência minha. Hume permaneceu insatisfeito com a explicação que ele ofereceu no Tratado para a relação que une uma série de experiências em um eu, a saber, que ela é um composto de semelhança e causação. Talvez o argumento de Butler seja um pouco brusco demais. Decidir que alguma experiência passada é minha e que a idéia que tenho dela é uma idéia de memória não são duas coisas das quais a primeira deva preceder a segunda; parecem muito mais ser uma e a mesma coisa. Hume tem um longo e intrincado argumento sobre a imaterialidade da alma, uma tese de teólogo que ele maldosamente assimila ao monismo de Espinosa. O argumento depende da suposição de que a alma é uma substância imaterial. Mas a alma ou o eu, mesmo se não concebidos como uma substância, mas como uma série, podem ser tomados como não-materiais, como o próprio Hume parece fazer, e isso deixa aberta a possibilidade de sua sobrevivência após a morte do corpo. Ele retoma o problema em um atraente ensaio. Se nossas mentes são feitas de algum estofo espiritual, por que esse estofo não poderia compor diversas mentes, do mesmo modo que a matéria entra na composição de diversos corpos? Além disso, "a alma, se imortal, existia antes de nosso nascimento, e se essa existência anterior nada teve a ver conosco, tampouco o terá a seguinte". Há filósofos que imaginam que estamos a todo instante intimamente conscientes disso que chamamos nosso eu; que sentimos Pág. 36 sua existência e sua continuidade de existência, e que estamos certos, para além de qualquer comprovação demonstrativa de sua perfeita identidade e simplicidade. A sensação mais forte, a mais impetuosa paixão, dizem eles, em vez de desviar- nos dessa concepção, apenas a firmam mais intensamente e fazem-nos considerar a influência que exercem sobre o eu, pela dor ou prazer que produzem. Buscar uma prova adicional disso seria enfraquecer sua evidência, pois nenhuma prova pode ser derivada de algum fato do qual estejamos tão intimamente conscientes, e nem haveria nada de que pudéssemos estar certos se viéssemos a duvidar disso. Infelizmente, todas essas confiantes asserções são contrárias à própria experiência que é invocada em seu favor, além de não dispormos de qualquer idéia do eu segundo a maneira aqui explicada, Pois de que impressão poderia essa idéia ser derivada? É impossível responder a essa questão sem incorrer em patente absurdo e contradição, e, contudo, é uma questão que deve necessariamente ser respondida se quisermos que a idéia do eu apareça como clara e inteligível. Deve haver uma impressão determinada para dar origem a cada idéia real; mas o eu, ou pessoa, não é uma impressão determinada, mas aquilo a que nossas diversas impressões e idéias supostamente têm uma referência. Se há alguma impressão que dá origem à idéia do eu, essa impressão deve continuar invariavelmente a mesma ao longo de todo o curso de nossas vidas, pois supõe-se que essa é a maneira pela qual o eu existe. Mas não há nenhuma impressão que seja constante e invariável. Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-se umas às outras e nunca existem todas ao mesmo tempo. Portanto, a idéia do eu não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões, nem de qualquer outra; e, conseqüentemente, tal idéia não existe. (T 251-2) Arrisco-me a afirmar que todas as demais pessoas nada mais são que um feixe ou coleção de diferentes percepções sucedendo-se umas às outras com inconcebível rapidez, em perpétuo fluxo e movimento. Nossos olhos não podem girar em suas órbitas sem que mudem nossas percepções. Nosso pensamento é ainda mais variável que a visão, e todos os outros sentidos e faculdades contribuem para essa mudança, não havendo um único poder da alma que permaneça inalteravelmente o mesmo sequer por um instante. A mente é uma espécie de teatro no qual diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição, passam, repassam, Pág. 37 esvaem-se e misturam-se em uma infinita variedade de posturas e situações. Nela não há, propriamente, nem simplicidade em um mesmo momento nem identidade em momentos diversos, seja qual for a propensão natural que tivermos para imaginar essa simplicidade e identidade. A comparação com o teatro não nos deve iludir: são as sucessivas percepções, e só elas, que constituem a mente, e não temos a mais remota noção do lugar em que essas cenas são representadas nem dos materiais que entram em sua composição. (T 252-3) Como apenas a memória nos informa da continuidade e extensão dessa sucessão de percepções, ela deve ser considerada, principalmente por essa razão, como a origem da identidade pessoal. Se não tivéssemos memória, não teríamos qualquer noção de causação, nem, conseqüentemente, dessa cadeia de causas e efeitos que constitui nosso eu ou nossa pessoa. Mas uma vez que tenhamos adquirido essa noção de causação a partir da memória, podemos estender essa mesma cadeia de causas, e conseqüentemente a identidade de nossas pessoas, para além de nossa memória, e podemos compreender ocasiões, circunstâncias e ações que esquecemos completamente, mas supomos, em geral, que existiram. Pois quão poucas, dentre nossas ações, são aquelas das quais temos alguma lembrança? Quem pode dizer-me, por exemplo, quais foram seus pensamentos e ações em 10 de janeiro de 1715, 11 de março de 1719 e 3 de agosto de 1733? Ou será que ele vai afirmar que, dado que esqueceu-se totalmente dos incidentes ocorridos nesses dias, seu eu presente não é a mesma pessoa que o eu daquela época, subvertendo com isso todas as concepções mais bem estabelecidas sobre identidade pessoal? Nesta perspectiva, portanto, não é bem que a memória produza a identidade pessoal, mas sim que a descobre, ao mostrar-nos a relação de causa e efeito entre nossas diferentes percepções. Cabe àqueles que afirmam que a memória produz inteiramente nossa identidade pessoal explicar como podemos estender desse modo nossa identidade para além de nossa memória. (T 261-2) Pág. 38 CETICISMO Como já mencionado. Hume foi tradicionalmente, como um cético extremado, alguém que solapou as pretensões de validade de todo o corpo de nossas crenças no mundo exterior, no eu e na causação. Mais recentemente tem ganhado terreno a idéia de que ele estabeleceu ceticamente os limites da justificação racional, que ele voltou a razão sobre si mesma para mostrar que essas crenças são não obstante naturais, instintivas e inevitáveis. Ao explicar de fato, a ter as crenças que temos, ele mostra que estamos constituídos de tal modo que não nos é possível evitar ter essas crenças. Afinal, a menos que houvesse algo a dizer em favor delas, que pensa ele estar fazendo ao explicá-las, dado que explicação consiste em subsumir coisas a leis causais? A interpretação de Hume é dificultada por uma espécie de oscilação entre duas posturas que ele assume ao contemplar os resultados de sua própria investigação. Em uma delas, ele se mostra deprimido e sem esperança diante desses resultados, sem saber para onde voltar-se. Em outra, mais bem-humorada, ele observa que, tão pronto mergulhamos novamente em nossa vida quotidiana, os danos infligidos pela razão a si mesma desvanecem-se e retomamos confortavelmente a nossos hábitos de crença costumeiros e naturais. Não devemos procurar algum suporte externo para esses hábitos, essa é uma missão fadada a um deprimente fracasso. Devemos perseverar neles com moderação, conscientes de que não há certeza fora do reino das relações abstratas de idéias, ajustando-os perifericamente pela adesão aos "princípios estabelecidos do entendimento" e a recusa às formas incultas e supersticiosas de formação de crenças. Pág. 39 Filósofos analíticos do século XX (antecipados por J. S. Mill) tomaram os aspectos de nossa experiência que Hume usou para explicar nossas crenças acerca de objetos, eus e causas como - apesar das aparências - características definidoras do que essas crenças realmente significam. Esses filósofos definiram objetos como sistemas de impressões, reais e possíveis, cuja estrutura é indicada pelos fragmentos constantes e coerentes efetivamente experimentados (fenomenalismo); os eus como uma série inter-relacionada de eventos mentais (a teoria do "feixe") , e a causalidade como sucessão regular (teoria da regularidade). Isso é menos chocante, enquanto ceticismo, que a posição de Hume. Mas essa estratégia deixa-nos com o que parece ser um resíduo significativamente reduzido daquilo em que originalmente acreditávamos. E o que é mais: no caso de objetos e causas, dado que a crença nessas entidades, mesmo nesta forma atenuada, é uma inferência aberta e generalizada a partir de uma evidência parcial, ela permanece exposta à dúvida quanto à indução. Tem sido sugerido que Hume estava realmente mais interessado nos tópicos práticos, concretos, dos últimos livros do Tratado do que na filosofia teórica do Livro I; mais interessado em moral, política e psicologia do que na teoria do conhecimento. Como exibição pirotécnica dos limites de nossas mentes enquanto fonte de conhecimento seguro, seu propósito era neutralizar o dogmatismo naqueles domínios de crença em que as paixões tinham forte participação. Essa dúvida cética, tanto com respeito à razão como aos sentidos, é uma doença que nunca pode ser radicalmente curada mas sempre irá acometer-nos a cada momento, por mais que a expulsemos e julguemos, às vezes, estar inteiramente livres dela. Não é possível defender, em nenhum sistema, nem nosso entendimento nem nossos sentidos, e apenas os desmascaramos ainda mais quando tentamos assim justificá-los. Visto que a dúvida cética surge naturalmente de uma reflexão profunda e intensa sobre esses assuntos, ela aumenta cada vez mais à medida que levamos mais longe nossas reflexões, quer em oposição, quer em conformidade Pág. 40 com ela. Só a negligência e a desatenção podem prover-nos de algum remédio. Por essa razão, confio neles inteiramente e tomo como certo, seja qual for a opinião do leitor no momento presente, que daqui a uma hora ele estará persuadido tanto de que há um mundo externo como um interno. (T 218) A intensa contemplação dessas múltiplas contradições e imperfeições na razão humana tanto afetou-me e inflamou meu cérebro que estou pronto a rejeitar toda crença e raciocínio, e não posso considerar nenhuma opinião como mais provável ou plausível que qualquer outra. Onde estou eu, ou o que sou? De que causas derivo minha existência e a que condição irei retornar? De quem devo solicitar favores, e de quem devo temer a cólera? Que seres me circundam? Quem posso de algum modo influenciar, ou pode de algum modo influenciar-me? Fico perplexo com todas essas questões e começo a sentir-me na mais deplorável das condições concebíveis, envolto na mais profunda escuridão e totalmente privado do uso de todos os membros e faculdades. Mas ocorre felizmente que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria Natureza basta para esse propósito e cura-me dessa tristeza e delírio filosóficos, quer relaxando essa inclinação da mente, quer por meio de alguma ocupação e impressão vívida de meus sentidos que obliteram todas essas quimeras. Faço minha refeição, jogo uma partida de gamão, converso e divirto-me com meus amigos, e quando, após uma distração de três ou quatro horas, retorno a essas especulações, elas me parecem tão frias, e forçadas, e ridículas, que não me animo a penetrar nelas nOVamente. (T 268-9) Pag. 41 M0RALIDADE E AS PAIXÕES Hume dedicou às paixões o segundo dos três livros do Tratado. Nisto ele estava seguindo o exemplo de seus grandes predecessores sistemáticos, Descartes, Hobbes e Espinosa. Mas enquanto o procedimento destes era analítico, quase algébrico, um trabalho de classificação de sentimentos e emoções seguido de uma definição do conjunto deles em termos de itens elementares como prazer, dor e desejo, o de Hume era mais descritivo, e mais explicativo do ponto de vista psicológico. Embora cheia de idéias brilhantes, sua exposição é em geral aborrecida e tediosa; uma balbúrdia de especulação associacionista, que alguns insights luminosos aliviam ocasionalmente. Ela nunca provocou o mesmo interesse e discussão que foram estimulados por seus trabalhos sobre o conhecimento e a moralidade. Há, não obstante, três coisas importantes nessa exposição. A primeira é um conjunto de distinções amplas e gerais no campo que ela cobre. As paixões são divididas em violentas e calmas (o que mostra que ele não entende por "paixão" o mesmo que nós entendemos, a saber, uma emoção violenta), em diretas (isto é, naturais ou instintivas) e indiretas, e em fortes e fracas. Uma paixão calma (como a prudência) pode superar uma paixão violenta (como a luxúria) e mostrar-se, assim, como mais forte que esta. Em segundo lugar, há um tratamento interessante e influente do problema da liberdade da vontade. O terceiro ponto, de maior importância para a subseqüente teoria da moralidade, é sua insistência de que a razão é "inerte", que ela não pode nunca, por si só e sem o auxílio da paixão, mover-nos à ação. A aceitação por Hume na prática, apesar de todas as suas dúvidas teóricas, da lei da causação universal, é indicada por Pág. 42 sua afirmação de que nossas ações são causadas por nossas paixões, da mesma forma e com a mesma abrangência que eventos naturais são o produto de causas naturais. Isso exclui a "liberdade da indiferença". Mas a inexistência de ações imotivadas não é algo que nos deva preocupar muito. É comum sentirmo-nos livres em nossas ações, e isso ocorre porque algumas vezes agimos sem coerção ou constrangimento, isto é, agimos de acordo com nossos desejos. Esse é o tipo de liberdade a que devemos dar atenção, pois só é razoável atribuir-nos responsabilidade por ações que tivermos causado, elas serão suscetíveis das sanções de louvor ou repreensão, recompensa ou punição. Hume proclama o caráter inerte da razão em sua notável declaração "a razão é, e só deve ser, a escrava das paixões". "Só deve ser" é um floreio retórico irrelevante. O mesmo vale para "escrava", que deve ser entendida como "serve como instrumento para a satisfação de", bem-como "paixão", sentido que hoje damos à palavra. Convicções morais movem-nos à ação; a razão, sozinha, não é capaz de fazê-lo; por tanto, convicções morais não são produto da razão. Um bom número de outros argumentos, bastante elaborados e não muito persuasivos, são oferecidos para essa conclusão. Mas há um importante argumento de que ele dispõe para mostrar que a moralidade de uma ação não é uma questão factual. Tomemos qualquer ação considerada viciosa; por mais atentamente que a examinemos jamais encontraremos vício nela. Muito disso está presente em sua afirmação de que a passagem do é para o deve, que se acha por toda parte no discurso moral, deve ser explicada ou justificada. A origem da moralidade nas paixões é a simpatia, a inclinação natural de agradarmo-nos com a felicidade dos outros e sentirmos desconforto com seu sofrimento. Isso explica, associativamente, o impulso natural da benevolência. O interesse próprio também é natural ou instintivo, mas não é nossa forma exclusiva de motivação. A simpatia subjaz à prática da contemplação desinteressada de ações e caracteres das Pág. 43 pessoas. Quando o resultado dessa contemplação é agradável, temos a aprovação moral; quando desagradável, a desaprovação. O que é, nos caracteres e ações das pessoas, que causa essas reações emocionais (que, sendo emoções, não são nem verdadeiras nem falsas)? A resposta de Hume é que reagimos com aprovação ao que é útil ou agradável ao agente ou a outros. Mas qualidades úteis ou agradáveis ao agente parecem antes virtudes naturais que morais; dotes de caráter como a prudência ou a coragem, mais que virtudes em sentido estrito. Mas Hume não se prende a essa fórmula demasiado abrangente. Na maior parte das vezes ele explica as virtudes por sua contribuição à utilidade da sociedade em geral. Só um pequeno passo separa essa posição - um passo que Hume, entretanto, não dá - da tese de que a aprovação moral não é apenas explicada pela utilidade daquilo a que é conferida, mas implica e é justificada pela utilidade do que se aprova. Isso abriria um espaço - que Hume não abre - para corrigir como errôneas as aprovações caso se baseiem em falsos julgamentos de utilidade. Ele parece não pôr em dúvida que a utilidade, o "bem da sociedade", é uma simples questão de fato. Essa é claro, é a posição dos utilitaristas propriamente ditos, Bentham, sobretudo, e, com algumas restrições, John Stuart Mill. Hume reconhece que nosso instinto natural de benevolência, embora um princípio independente de ação ao lado do interesse próprio, não tem um alcance tão longo, e tende a prevalecer apenas em nossas relações com aqueles que nos são próximos. Mas, além da virtude natural da benevolência, há também a virtude artificial da justiça. Na sociedade humana dependemos crucialmente uns dos outros, muito mais do que outros animais que dependem mais de si próprios. Pela cooperação, porém, podemos aumentar nossa força, pela divisão do trabalho nossas habilidades, e pela ajuda mútua nossa segurança contra os infortúnios. Para estabelecer esses arranjos desejáveis, criamos instituições tais como o cumprimento das promessas, a propriedade e o Estado. Pág. 44 Os deveres de respeito pela propriedade, fidelidade e obediência produzem conseqüências benéficas apenas se recebem uma adesão geral. Um ato isolado de benevolência pode produzir, por si só, um bem, mas é fútil respeitar uma propriedade ou obedecer a um Estado que ninguém mais respeita ou obedece. Hume, de maneira geral, identifica a justiça com o respeito à propriedade. A escassez dos bens em relação a força do desejo que as pessoas têm por eles leva ao conflito. Regras definidas para a aquisição, posse e transferência de propriedade são necessárias para a paz social. As regras da justiça são úteis apenas como um sistema; deve- se, portanto, obedecer às regras mesmo quando sua aplicação produz excepcionalmente um mau resultado. A justiça e as outras virtudes artificiais não têm um respaldo direto nas paixões. Todos nós temos um forte motivo, de natureza auto-interessada, para que sejam respeitadas de forma geral auto-interessada para uma aprovação desinteressada, moral, dessas virtudes enquanto benéficas à sociedade; um efeito de simpatia. Provarei em primeiro lugar pela experiência que nossas ações mantêm uma constante união com nossos motivos, temperamento e circunstâncias, antes de considerar as inferências que retiramos disso. Para isso, uma apreciação muito geral e superficial do curso comum dos afazeres humanos já será suficiente. Não há perspectiva sob a qual o examinemos que não confirme esse princípio. Quer consideremos a humanidade de acordo com diferenças de sexo, idade, formas de governo, condições ou métodos de educação, são discerníveis a mesma uniformidade e a mesma operação regular dos princípios naturais. Causas semelhantes continuam a produzir efeitos semelhantes, da mesma maneira que na ação mútua dos elementos e poderes da natureza. (T 401) Depois de termos realizado uma ação qualquer, ainda que admitamos que fomos influenciados por motivos e opiniões particulares, é difícil persuadir-nos que fomos governados pela necessidade, Pág. 45 e que era absolutamente impossível para nós ter agido de outro modo, pois a idéia de necessidade parece implicar alguma Força, violência, e coerção que não sentimos na ocasião. Poucos são capazes de distinguir entre a liberdade da espontaneidade, como é chamada pelos escolásticos, e a liberdade da indiferença; entre a liberdade que se opõe à violência e a que significa uma negação da necessidade e das causas. A primeira é, mesmo, o sentido mais comum da palavra, e como é a única espécie de liberdade que nos interessa preservar, nossos pensamentos têm-se voltado principalmente para ela, e têm-na quase universalmente confundido com a segunda. (T 410) Os homens não são censurados pelas ações que realizam na ignorância ou de forma casual, quaisquer que possam ser suas conseqüências. Qual é a razão disso, a não ser o fato de que os princípios dessas ações são apenas momentâneos, e esgotam- se com as próprias ações? Os homens são menos censurados pelas ações que realizam de forma abrupta e sem premeditação do que por aquelas que procedem da deliberação. E por qual razão, a não ser porque um temperamento precipitado, embora seja uma causa ou princípio constante na mente, opera apenas por intervalos e não contamina o caráter como um todo? Além disso, o arrependimento apaga todos os crimes, se acompanhado por uma reforma da vida e dos costumes. Como explicar isso, a não ser declarando que as ações tornam uma pessoa criminosa meramente por provarem a existência de princípios criminosos na mente; e quando uma alteração desses princípios faz com que deixem de ser provas legítimas, elas deixam igualmente de ser criminosas? Mas, amenos que se admita a doutrina da necessidade, elas nunca teriam sido provas legítimas, e, conseqüentemente, nunca teriam sido criminosas. (E 98-9) Nada é mais usual em filosofia, e mesmo na vida comum, do que falar sobre o combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e asseverar que os homens só são virtuosos na medida em que se conformem a seus ditames. Toda criatura racional, diz-se, está obrigada a regular suas ações pela razão, e se algum outro motivo ou princípio desafia a direção de sua conduta, ela deve opor-se a ele, até estar inteiramente submetida ou pelo menos posta de acordo com aquele princípio superior. Pág. 46 É sobre este modo de pensar que a maior parte da filosofia moral, antiga e moderna, parece estar fundada... A fim de mostrar a falácia de toda essa filosofia, vou procurar provar, primeiro, que a razão, por si só, não pode jamais ser um motivo para qualquer ação voluntária; e segundo, que ela jamais pode fazer frente à paixão no direcionamento da vontade. (T 413) É óbvio que quando algum objeto nos traz a expectativa de dor ou prazer, sentimos em conseqüência uma emoção de aversão ou propensão, e somos levados a evitar ou a buscar aquilo que nos trará esse desconforto ou essa satisfação. É também óbvio que essa emoção não se detém aqui, mas, fazendo-nos voltar os olhos para todos os lados, inclui todos os objetos que estão conectados com o objeto original pela relação de causa e efeito. Aqui, então, entra em cena o raciocínio, para descobrir essa relação; e conforme varie nosso raciocínio, nossas ações recebem uma variação subseqüente. Mas é evidente neste caso que o impulso não provém da razão, mas é apenas dirigido por ela. É da expectativa de dor ou prazer que surge a aversão ou propensão em relação a qualquer objeto, e essas emoções se estendem às causas e efeitos desse objeto, tal como nos são indicados pela razão e experiência. Não teríamos o mínimo interesse em saber que certos objetos são causas e outros são efeitos, se tanto as causas como os efeitos fossem indiferentes. Quando os próprios objetos não nos afetam, sua conexão não pode dar-Ihes jamais alguma influência, e é claro que, como a razão nada mais é que a descoberta dessa conexão, não pode ser por seu intermédio que os objetos são capazes de nos afetar. Dado que a razão, sozinha, não pode jamais produzir nenhuma ação ou dar origem a uma volição, infiro que essa mesma faculdade é incapaz de evitar a volição ou de disputar a preferência com alguma paixão ou emoção... Parece, assim, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão, e é assim chamado apenas de maneira imprópria. Não falamos de forma rigorosa e filosófica quando nos referimos ao combate entre a razão e a paixão. A razão é, e só deve ser, a escrava das paixões, e não pode almejar outro ofício que o de servi-Ias e obedecê-las. (T414-5) Se a moralidade não tivesse naturalmente uma influência sobre as paixões e ações humanas, seria vão empregar tanto esforço Pág. 47 para inculcá-la, e nada haveria de mais infrutífero que a multidão de regras e preceitos que abundam em todos os moralistas. É comum dividir a filosofia em filosofia especulativa e filosofia prática, e como a moralidade é sempre incluída nesta última divisão, supõe-se que ela influencie nossas paixões e ações e que vá além dos julgamentos calmos e indolentes do entendimento. E isso se confirma pela experiência ordinária, que nos informa que os homens são muitas vezes governados por seus deveres, dissuadidos de algumas ações pela opinião de injustiça e impelidos a outras pela de obrigação. Dado que a moral, portanto, tem uma influência nas ações e afecções, segue-se que ela não pode ser derivada da razão, e isso porque a razão, por si só, como já provamos, não pode ter uma tal influência. A moral excita paixões, e produz ou evita ações. A razão, por si só, é completamente impotente a esse respeito. As regras da moralidade, portanto, não são conclusões de nossa razão. (T 457) Mas pode haver qualquer dificuldade em provar que o vício e a virtude são questões de fato, cuja existência podemos inferir pela razão? Tome-se qualquer ação considerada viciosa; um assassinato deliberado, por exemplo. Examinemo-lo de todos os ângulos e vejamos se podemos encontrar qualquer fato ou existência real que pudéssemos chamar vício. Seja como for que o consideremos, encontraremos apenas certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não há, no caso, nenhum outro fato. O vício nos escapa inteiramente quando consideramos o objeto. Jamais poderemos encontrá- lo até que voltemos nossa reflexão para nosso próprio peito, encontrando lá um sentimento de desaprovação, que surge em nós perante essa ação. Eis aqui uma questão de fato, mas ela é objeto do sentimento, não da razão. Ela jaz em nós mesmos, não no objeto. Assim, quando declaramos que alguma ação ou caráter viciosos, não estamos dizendo nada a não ser que, pela constituição de nossa natureza, temos um sentimento ou percepção de aprovação diante deles. Vício e virtude podem ser comparados, portanto, a sons, cores, calor e frio, os quais, de acordo com a moderna filosofia, não são qualidades no objeto mas percepções na mente; e essa descoberta em moral, tal como a anterior em física, deve ser considerada um avanço considerável das ciências especulativas; embora, como aquela, tenha pouca ou nenhuma influência na prática. Nada pode ser mais real, ou dizer-nos mais Pág. 48 respeito que nossos próprios sentimentos de prazer e desconforto, e se esses forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, não há mais o que requerer para a regulação de nossa conduta e comportamento. Não posso abster-me de acrescentar a estes raciocínios uma observação que se poderia, talvez, julgar de alguma importância. Em todos os sistemas de moralidade que encontrei até agora, sempre observei que o autor procede durante algum tempo segundo a maneira ordinária de raciocínio, e estabelece a existência de um Deus, ou faz observações relativas aos assuntos humanos, quando de repente surpreendo-me observando que, ao invés das cópulas proposicionais usuais é e não é, não encontro mais nenhuma proposição que não esteja articulada por meio de um deve ou um não deve. A mudança é imperceptível, mas é, contudo, de máxima importância. Pois como esse deve, ou não deve, expressa uma nova relação ou afirmação, é preciso que ele seja indicado e explicado; e, ao mesmo tempo, que se dê uma razão para aquilo que parece totalmente inconcebível: como derivar essa nova relação de outras que são inteiramente diferentes dela. (T 468-9) Podemos observar que todas as circunstâncias requeridas para sua operação [da simpatia] encontram-se na maior parte das virtudes, que têm, em sua maioria, uma tendência a produzir o bem da sociedade ou da pessoa que as possui. Se compararmos todas essas circunstâncias, não teremos dúvidas de que a simpatia é a principal fonte das distinções morais, especialmente quando refletimos que nenhuma objeção pode ser levantada contra essa hipótese, em um caso, sem que se estenda a todos os outros casos. A aprovação que a justiça recebe certamente não decorre de outra razão senão a de que ela tem uma tendência a produzir o bem público, e o bem público nos é indiferente exceto na medida em que a simpatia nos torna interessados nele. Podemos supor o mesmo com relação a todas as outras virtudes que tendem igualmente ao bem público. Todas elas devem derivar o seu mérito de nossa simpatia para com aqueles que colhem delas alguma vantagem, assim como as virtudes que têm uma tendência ao bem da pessoa que as possui derivam seu mérito de nossa simpatia para com essa pessoa. (T 618) A única diferença entre as virtudes naturais e a justiça reside em que o bem que resulta das primeiras decorre de cada ato singular e é objeto de alguma paixão natural, ao passo que um ato Pág. 49 isolado de justiça, considerado em si mesmo, pode muitas vezes ser contrário ao bem público, e é apenas a colaboração da humanidade em um esquema ou sistema geral de ação que é vantajosa. Quando socorro pessoas em situação aflitiva, minha natural humanidade é meu motivo, e terei promovido a felicidade de meus semelhantes até onde meu auxílio se estender. Mas se examinar- mos todos os litígios que são levados a qualquer tribunal de justiça, descobriremos que, considerando cada caso isoladamente, seriam igualmente freqüentes as situações em que seria humanitário decidir contrariamente às leis da justiça quanto em conformidade com elas. Juízes tiram de um homem pobre para dar a um rico, conferem ao dissoluto o trabalho do industrioso, e põem nas mãos dos malévolos os meios para prejudicar tanto a si mesmos quanto aos outros. O esquema da lei e da justiça como um todo é, contudo, vantajoso para a sociedade, e foi com vistas a essa vantagem que os homens o estabeleceram por meio de suas convenções arbitrárias. Uma vez estabelecido por meio dessas convenções, ele é naturalmente acompanhado de um forte sentimento de moralidade, que não pode proceder senão de nossa simpatia para com os interesses da sociedade. Não precisamos de nenhuma outra explicação para aquela estima que acompanha as virtudes naturais que têm uma tendência a produzir o bem público. (T 579-80) Para evitar ofensas, devo aqui observar que quando nego que a justiça seja uma virtude natural, uso a palavra natural apenas enquanto oposta a artificial. Em outro sentido da palavra, como nenhum princípio da mente humana é mais natural que um sentido de virtude, nenhuma virtude, conseqüentemente, é mais natural que a justiça. A humanidade é uma espécie inventiva, e quando uma invenção é óbvia e absolutamente necessária, ela pode ser dita natural tão apropriadamente quanto qualquer outra coisa que proceda imediatamente de princípios originais, sem a intervenção do pensamento ou reflexão. Embora as regras da justiça sejam artificiais, elas não são arbitrárias. E tampouco é inapropriado chamá-las Leis de Natureza, se por natural entendemos o que é comum a uma espécie qualquer, ou mesmo se o limitarmos a designar o que é inseparável da espécie. (T 484) Em seu conjunto, portanto, temos de considerar essa distinção entre justiça e injustiça como tendo dois diferentes fundamentos Pág. 50 a saber: o do interesse, quando os homens observam que é impossível viver em sociedade sem refrear-se por certas regras; e o da moralidade, logo que esse interesse é observado e os homens passam a obter prazer da contemplação das ações que tendem à paz da sociedade, e desconforto das que são contrárias a ela. É a convenção e o artifício voluntários dos homens que levam o primeiro interesse a ter lugar, e nessa medida, portanto, as leis da justiça devem ser consideradas artificiais. Depois que esse interesse foi estabelecido e reconhecido, o sentido da moralidade na observância dessas regras segue-se naturalmente e por si mesmo, embora seja certo que ele é aumentado por um novo artifício, e que a instrução pública pelos políticos e a educação privada pelos pais contribuem para nos dar um sentido de honra e de dever na regulação estrita de nossas ações com relação às propriedades dos demais. (T 533-4) Pág. 51 POLÍTICA Hume interessou-se de forma bastante isenta pela política de sua época, bem como pelas generalidades mais amplas da teoria política. Seu principal resultado neste segundo campo foi sua exemplar demolição da teoria contratual do governo. Em oposição a teorias de obediência passiva e direito divino, Hobbes e Locke, cada qual a sua maneira muito distinta e peculiar, declararam que o dever de obedecer ao governo era de natureza contratual. A obediência prometida não era incondicional (foi muito próxima disso em Hobbes, e bem afastada em Locke). O argumento de Hume contra a teoria contratual acha-se exposto mais ou menos longamente na segunda parte do livro III do Tratado e repetido de forma condensada em seu texto mais acessível "Do contrato original". Ninguém acredita ter prometido obedecer ao governo. A posição de Locke de que o consentimento é "tácito" é abalada pelo fato de que pessoas nascidas em uma sociedade têm tão pouco a opção de deixá-la quanto um marinheiro trazido dopado para bordo tem de escapar das ordens do capitão saltando ao mar. Quase todos os governos existentes originaram-se de conquista ou usurpação, embora seja possível que as primeiras sociedades tenham investido seus governantes - que seriam chefes guerreiros - em resultado de um acordo. Sua objeção decisiva é que, se a resposta à questão "por que obedecer ao governo?" for "porque prometi fazê-lo", surgirá imediatamente a outra questão "por que cumprir promessas?". A resposta é que cumprir as promessas serve ao interesse geral da sociedade. Mas essa resposta já pode ser dada também à questão sobre por que obedecer ao governo. Dizer Pág. 52 que a obediência está baseada em uma promessa é fazer um "rodeio desnecessário". Cumprimento de promessas e obediência estão em pé de igualdade, juntamente com o respeito à propriedade. Todos são justificados, enquanto virtudes artificiais ou sistemáticas, pela contribuição que sua observância geral traz ao bem-estar de todos. Deste princípio utilitarista segue-se que a recusa à obediência ou rebelião estão justificadas se o governo é demasiado fraco para prover proteção e segurança - a função que o define - ou tão opressivo que todos estariam melhor sem ele. Hume, contudo, não era nenhum revolucionário e faz fortes advertências contra isso. Hume tampouco tem muito de liberal, certamente não em um sentido retórico. "A liberdade é a perfeição da sociedade civil", ele diz, "mas ainda assim a autoridade deve ser reconhecida como essencial para sua própria existência". Ele não - é de modo algum um democrata, e pensa que uma elite educada, na qual predominam as paixões calmas, deve governar os ignorantes e imprudentes. Suas concepções conservadoras de cunho cético e racional permeiam os seis volumes de sua História da Inglaterra, a primeira história razoavelmente imparcial da Inglaterra, que indignou os Whigs doutrinários pelo ataque ao delírio irracional dos puritanos e dos reformistas protestantes de quem eles derivavam, foi simpática às vicissitudes de Carlos I, e não antipática ao arcebispo Laud. Carlos I, para Hume, não foi iníquo, mas incompetente ao reivindicar prerrogativas às quais tinha pleno direito sem assegurar que teria força para levar a cabo essas reivindicações. Não se pode negar que todo governo está inicialmente fundado em um contrato e que os mais antigos e rudes grupamentos de seres humanos formaram-se, sobretudo por esse principio. (Ess 454) Pág. 53 Quase todos os governos que existem no presente, ou dos quais resta algum registro histórico, fundaram-se originalmente, a usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem qualquer pretensão a um honesto consentimento ou sujeição voluntária do povo. (Ess 457) Que necessidade há, portanto, de fundar o dever de lealdade ou obediência a magistrados no de probidade ou consideração pelas promessas, e supor que é o consentimento de cada indivíduo que o sujeita ao governo, quando tanto a lealdade como a probidade aparecem repousando precisamente na mesma fundação, e são ambas respeitadas pela humanidade em vista dos manifestos interesses e necessidades da sociedade humana? Estamos obrigados a obedecer nosso soberano, diz-se, porque fizemos uma promessa tácita nesse sentido. Mas por que estamos obrigados a cumprir nossa promessa? Aqui se insistirá em que o comércio e as "relações sociais da humanidade, que tantas vantagens proporcionam, não teriam nenhuma segurança se as pessoas não se importassem com seus compromissos. De maneira semelhante, é lícito dizer que os homens não poderiam absolutamente viver em sociedade, pelo menos em uma sociedade civilizada, sem leis, magistrados e juízes para impedir que os fortes abusem dos fracos ou os violentos dos justos e honestos. Como a obrigação de obediência tem a mesma força e autoridade da obrigação de cumprimento das promessas, nada se ganha analisando um em termos da outra. Os interesses ou necessidades gerais da sociedade são suficientes para estabelecer ambas. Se perguntado pela razão dessa obediência que temos de prestar ao governo, respondo prontamente: porque de outro modo a sociedade não poderia subsistir; e essa resposta é clara e inteligível para todo mundo. A resposta que você propõe é: porque devemos cumprir nossa palavra. Mas, além do fato de que ninguém, até ser treinado em um sistema filosófico, pode compreender ou aceitar essa resposta; além disso, eu digo, você se sentirá embaraçado se lhe perguntarem por que somos obrigados a manter nossa palavra? E não poderá apresentar nenhuma resposta que não venha também a explicar imediatamente, sem nenhum rodeio, nossa obrigação de obediência ao governo. (Ess 468-9) Noto que promessas procedem inteiramente das convenções manas, e são inventados com vistas a um certo interesses. Pág. 54 Procuro, então, algum interesse desse tipo mais imediatamente conectado ao governo, e que possa ser ao mesmo tempo o motivo original de sua instituição e a fonte da obediência que lhe devemos. Descubro que esse interesse consiste da segurança e proteção de que gozamos na sociedade civil e que jamais podemos obter enquanto perfeitamente livres e independentes. Como o interesse, portanto, é a sanção imediata do governo, um não pode ter maior extensão que o outro, e sempre que um magistrado civil leve tão longe sua opressão a ponto de tornar sua autoridade completamente intolerável, não estamos mais obrigados a submeter-nos a ela. A causa cessa, e o efeito também deve cessar. (r 550-1) Lá onde o bem público não requer visivelmente uma mudança, é certo que a confluência de todos estes títulos: contrato original, posse prolongada, posse presente, sucessão e leis positivas constituem o mais forte direito à soberania, e é considerada com justiça como sagrada e inviolável. (T 562) Em todos os governos há uma perpétua luta interna, aberta ou camuflada, entre Autoridade e Liberdade; e nenhuma delas pode jamais ser a vencedora absoluta da disputa. Um grande sacrifício da liberdade deve necessariamente ser feito em todo governo; contudo, mesmo a autoridade que restringe a liberdade não pode, e talvez nem deva, em nenhuma constituição, tornar-se total e incontrolável. O sultão é senhor da vida e da fortuna de cada indivíduo, mas não lhe é permitido impor novos tributos a seus súditos; um monarca francês pode impor tributos à vontade, mas ser-Ihe-ia perigoso atentar contra a vida e a fortuna dos indivíduos. Também a religião, na maioria dos paises, mostra-se comumente como um princípio intratável, e outros princípios e preconceitos resistem freqüentemente a toda a autoridade do magistrado civil, cujo poder, estando fundado na opinião, não é jamais capaz de subverter outras opiniões tão bem enraizadas quanto seu próprio direito de domínio. O governo que, segundo a denominação comum, é chamado livre, é aquele que admite uma repartição do poder entre diversos membros cuja autoridade não oficial não é menor, ou é comumente maior, que a de qualquer monarca, mas que, no curso habitual da administração, devem agir segundo leis gerais e eqüitativas previamente conhecidas por todos os membros e todos os seus súditos. Nesse sentido, deve-se Pág. 55 admitir que a liberdade é a perfeição da sociedade civil, mas ainda assim a autoridade deve ser reconhecida como essencial para sua própria existência; e nessas disputas que tão freqüentemente têm lugar entre uma e outra, esta última deve, por essa razão, reivindicar a preferência. A menos, talvez, que se possa dizer (e há alguma razão para dizê-lo) que um fator que é essencial para a existência da sociedade civil sempre será capaz de se sustentar, e precisa ser resguardado com menos dedicação do que outro que contribui para sua perfeição, que a indolência dos homens está tão propensa a negligenciar, ou sua ignorância a desconhecer. (Ess 38-9) Pág.56 RELIGIÃO Os escritos de Hume sobre a religião são tão brilhantes quanto quaisquer outros que ele tenha produzido, e parece razoável supor que formam uma grande parte do objetivo prático (que nunca esteve longe de seus pensamentos) de suas investigações mais teóricas. O menos substancial, mas de modo algum o menos interessante, é a História natural da religião. Seu tema central são as causas e conseqüências do desenvolvimento religioso da humanidade do politeísmo para o monoteísmo. Que houve um tal desenvolvimento está mostrado, ele acredita, pelo politeísmo dos selvagens contemporâneos, aos quais nossos remotos ancestrais primitivos devem ter se assemelhado. Eles foram impelidos à crença nos deuses por certos acontecimentos terríveis e calamitosos, não por alguma sofisticada reflexão sobre as origens do universo como um todo ordenado. Uma preocupação especial em exaltar e promover um certo deus sobre todos os restantes deu origem ao monoteísmo. Este é menos tolerante que seu predecessor selvagem. Outra deficiência moral do monoteísmo é sua preferência por "virtudes monásticas" tais como a humildade em oposição à coragem e à autoconfiança de nossos ancestrais. A crença em um deus ou em deuses não é natural como a crença em um mundo exterior, dado que há raças nas quais não se encontra essa crença. Os Diálogos sobre a religião natural, cuja publicação Hume prudentemente deixou para depois de sua morte, é talvez o mais arguto e brilhante de seus trabalhos. Com certeza é o mais irônico, tanto que alguns leitores procuraram identificar o autor não com o mais cético dos participantes, Philo, mas com o devoto, mas não fanático Cleanthes, porta-voz do arcebispo Butler. Pág. 57 O alvo principal dos Diálogos é o argumento do desígnio, aquele estratagema intelectual tão querido do século XVIII que infere a existência de Deus da evidência de ordem e da adaptação de meios a fins encontradas na natureza. Hume desmonta o argumento com a máxima perseverança. A analogia entre o homem e suas produções, de um lado, e Deus e a natureza, de outro, está mutilada por numerosos defeitos. Já vimos muitos homens construindo edifícios, mas não temos nenhum acesso direto a deuses construindo naturezas. É errôneo atribuir perfeições tais como poder ilimitado, sabedoria e bondade à hipotética causa de alguma coisa tão coberta de imperfeições como o mundo natural. E não se assemelha ele, em todo caso, a um vegetal em crescimento, tanto quanto a um dispositivo mecânico? Talvez, se ele for mesmo produto do artifício divino, ele seja o resultado do trabalho de vários deuses, ou de um deus imaturo, ou de um deus decrépito. Sejam quais forem as qualidades que sua produção nos justifica atribuir ao autor da natureza, elas não podem ter conseqüências para nossa conduta. Nunca uma doutrina tão vasta, tão amplamente acreditada e intelectualmente respeitada foi reduzida a ruínas de forma tão elegante e devastadora. Hume recusa as pretensões da revelação, enquanto oposta à razão, em seu ensaio sobre os milagres na primeira Investigação. O argumento central é conciso, mas muito difícil de responder. Confrontados com o testemunho de um suposto milagre, diz Hume, devemos perguntar se é ainda mais miraculoso que o testemunho seja falso. Dado que os supostos milagres do Novo Testamento, observados por pessoas incultas e emocionalmente interessadas em sua aceitação, chegaram até nós através de uma longa cadeia de intermediários de limitada confiabilidade, não é nem um pouco miraculoso que esses relatos sejam errôneos. Parece-me que, se considerarmos o aprimoramento da sociedade humana, de seus rudes inícios até um estado de maior perfeição, o politeísmo ou idolatria foi, e deve necessariamente ter sido, a primeira e mais antiga religião da humanidade. Pág. 58 O politeísmo, ou adoração idólatra, estando fundado inteiramente em tradições vulgares, está sujeito ao grande inconveniente de que qualquer prática ou opinião, por mais bárbara ou corrupta que seja, pode ser por ele autorizada, e o campo fica completamente aberto para que a patifaria se aproveite da credulidade, até que a moral e a humanidade sejam expelidas do sistema religioso. Ao mesmo tempo, a idolatria possui a evidente vantagem de que, ao limitar os poderes e funções de suas deidades, ela naturalmente admite que os deuses de outras seitas e nações recebam seu quinhão de divindade, e tornam compatíveis umas com as outras todas as diversas deidades, assim como ritos, cerimônias ou tradições. O teísmo é oposto tanto em suas vantagens como em suas desvantagens. Como esse sistema supõe uma única deidade, a perfeição da razão e bondade, ele deve, se corretamente seguido, banir dos cultos religiosos tudo que é frívolo, não razoável e desumano, e colocar aos olhos da humanidade os exemplos mais ilustres, bem como os mais imperiosos motivos, de justiça e benevolência. Essas poderosas vantagens não são, é certo, contrabalançadas (pois isso não seria possível), mas um pouco diminuídas por certas inconveniências que provêm dos vícios e preconceitos da humanidade. Quando se admite um único objeto de devoção, a adoração de outras deidades é considerada ímpia e absurda. Mais ainda, essa unidade de objeto parece naturalmente requerer a unidade de fé e de cerimônias, e proporciona a homens astuciosos um pretexto para retratar seus adversários como profanos, e alvos da vingança tanto divina quanto humana. Pois como cada seita está convencida de que sua própria fé e culto são totalmente agradáveis à divindade, e como ninguém pode conceber que o mesmo ser deva comprazer-se com ritos e preceitos diferentes e opostos, as diversas seitas criam naturalmente animosidades recíprocas e descarregam umas nas outras aquele zelo e rancor sagrados, a mais furiosa e implacável de todas as paixões humanas. (N 60) Há um evidente absurdo em pretender demonstrar uma questão de fato, ou prová-la por quaisquer argumentos a priori. Nada é demonstrável, a menos que o contrário implique uma contradição. Tudo que concebemos como existente podemos também conceber como inexistente. Não há nenhum ser, portanto, cuja inexistência implique uma contradição. Conseqüentemente, não há nenhum ser cuja existência seja demonstrável. Proponho esse Pág. 59 argumento como inteiramente conclusivo, e estou disposto a basear nele toda a controvérsia. (D 232-3). Vós, então, que sois meus acusadores, reconhecestes que o principal ou único argumento para uma existência divina (a qual nunca pus em questão) deriva-se da ordem da natureza, que contém tantos e tais indícios de inteligência e desígnio que considerais extravagante apresentar como sua causa quer o acaso quer a força cega e não dirigida da matéria... Quando inferimos qualquer causa particular de um efeito, devemos guardar a proporção entre eles, não nos sendo jamais permitido atribuir à causa quaisquer qualidades que não sejam aquelas precisamente suficientes para a produção do efeito. Um peso de dez onças que se eleve em um dos pratos de urna balança pode servir como prova de que o contrapeso excede dez onças, mas não provê uma razão para que exceda cem. Se a causa atribuída a algum efeito não for suficiente para produzi-lo, devemos ou rejeitar essa causa ou acrescentar-lhe qualidades tais que a tomem corretamente proporcional ao efeito. Mas se lhe atribuirmos qualidades adicionais, ou a declararmos capaz de produzir outros efeitos, estamos simplesmente entregando-nos à conjetura e supondo arbitrariamente a existência de qualidades ou energias sem qualquer razão ou autoridade. (E 135-6) Duvido muito que seja possível conhecer uma causa apenas por seus efeitos (como você supôs o tempo todo), ou que uma causa tenha uma natureza tão única e particular a ponto de não ter paralelo ou similaridade com qualquer outra causa ou objeto que já tenha sido dado a nossa observação. É apenas quando duas espécies de objetos se mostram constantemente conjugadas que podemos inferir uma da outra; e se nos fosse apresentado um efeito inteiramente único, que não pudesse ser subsumido a nenhuma espécie conhecida, não vejo como poderíamos fazer qualquer conjetura ou inferência relativa a sua causa. Se a experiência, observação e analogia forem de fato os únicos guias que pudermos racionalmente seguir em inferências dessa natureza, tanto o efeito quanto a causa devem guardar uma similaridade e semelhança com outros efeitos e causas que conhecemos e que verificamos, em muitos casos, estarem conjugados uns aos outros. (E 148) Esta contrariedade de evidências no caso presente [milagres] pode ser conseqüência de várias causas distintas: da oposição de Pág. 60 testemunhos contrários, do caráter ou número dos espectadores, da maneira pela qual prestam seu depoimento, ou da união de todas estas circunstâncias. Alimentamos uma suspeita relativamente a qualquer questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando são muito poucas ou de caráter duvidoso, quando têm um interesse naquilo que afirmam, quando prestam seu depoimento de forma hesitante ou, ao contrário, com afirmações muito exaltadas. Há muitas outras particularidades do mesmo tipo que podem diminuir ou destruir a força de qualquer argumento derivado do testemunho humano. (Ess 522-3; E 112-3) Suponhamos que o fato que afirmam, em vez de ser apenas admirável, é realmente miraculoso; e suponhamos igualmente que o testemunho, considerado separadamente e em si mesmo, equivale a uma prova cabal. Nesse caso haverá prova contra prova, das quais a mais forte deve prevalecer, embora com uma diminuição de sua força proporcional à força da antagonista. Um milagre é uma violação das leis da natureza, e como essas leis foram estabelecidas por uma experiência firme e imutável, a prova contra um milagre, pela própria natureza do fato, é tão cabal quanto qualquer argumento a partir da experiência que se possa imaginar. (Ess 524; E 114) Nada que alguma vez ocorra no curso comum da natureza é considerado um milagre. Não é um milagre que um homem, aparentemente em boa saúde, venha a morrer repentinamente, porque esse tipo de morte, embora menos usual que qualquer outra, tem sido, ainda assim, freqüentemente observada. Mas é um milagre que um homem morto retome à vida, porque isso nunca foi observado em nenhuma época ou lugar. Deve existir, portanto, uma experiência uniforme contra cada acontecimento milagroso, caso contrário ele não mereceria essa denominação. E como uma experiência uniforme equivale a uma prova, temos aqui uma prova direta e cabal contra a existência de qualquer milagre, pela própria natureza do fato; e uma prova como essa não pode ser destruída, nem o milagre tornar-se digno de crédito, a não ser por efeito de uma prova oposta que lhe seja superior. A conseqüência simples disso tudo (e trata-se aqui de uma máxima geral digna de nossa atenção) é "que nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre a menos que seja de um tipo tal que sua falsidade fosse ainda mais milagrosa que Pag. 61 O fato que se propõe a estabelecer; e mesmo assim ocorre uma destruição mútua de argumentos, de sorte que o mais forte só nos dá uma confiança apropriada ao grau de força que resta após subtrair-se dele o mais fraco". Se alguém me diz que viu um homem morto ser trazido de volta à vida, de imediato pondero comigo mesmo se é mais provável que essa pessoa esteja enganando-me ou sendo enganada, ou que o fato que ela relata tenha realmente ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a superioridade que descubro, enuncio minha decisão, sempre rejeitando o maior milagre. Se a falsidade do testemunho dessa pessoa for mais miraculosa que o acontecimento que ela relata então sim - mas não até então - ela pode pretender contar com minha crença ou assentimento. (Ess 525-6; E 115-6) Podemos concluir, levando-se tudo em conta, que a religião cristã não apenas esteve acompanhada de milagres em suas origens, mas, mesmo nos dias de hoje, nenhuma pessoa razoável pode dar-lhe crédito sem um deles. (Ess 554; E 131). Pág. 62 EPÍLOGO Numa breve revisão como esta não há espaço para mais que uma simples menção a dois outros campos em que Hume esteve ativo: economia e estética. Diversos de seus ensaios tratam de assuntos econômicos. Em sua poderosa defesa do livre comércio e em sua refutação das superstições mercantilistas sobre a medida da riqueza de um país pelo ouro e prata acumulados, ele antecipou, e talvez tenha influenciado, seu dedicado amigo Adam Smith, cuja Riqueza das nações veio à luz no ano da morte de Hume, ainda em tempo de ser lida por ele. Suas posições sobre o "gosto" são as que se poderia esperar de sua explicação da moralidade. A beleza não é uma propriedade intrínseca das coisas, mas é projetada nelas pelo observador desinteressado que acha agradáveis sua "forma e disposição". A associação nos leva dessas respostas imediatas a outras que têm em conta a utilidade das coisas. Uma coluna afilada nos agrada, pois sua base mais larga sugere maior força e solidez. Ele tenta com grande engenhosidade responder a questão de por que a tragédia nos dá prazer. Hume foi um homem magnífico. Nele se combinavam dois pares de qualidades que têm uma certa afinidade, mas raramente são encontradas juntas. Do lado cognitivo, ele foi imensamente inteligente e extraordinariamente vivaz, dotes que se excluíam, poder-se-ia sugerir, em Aristóteles e Jean Cocteau. No domínio do caráter e da conduta ele foi moralmente virtuoso (Adam Smith julgava-o o homem mais perfeitamente virtuoso que já havia encontrado) e inesgotavelmente bondoso e sociável (características, respectivamente, de Johnson e Boswell). Ele é ao mesmo tempo o mais admirável e o mais adorável dos filósofos, exceto na opinião de pedantes Pág. 63 e pretensiosos. E, também, por sua imponente estatura, rubra face e forte sotaque escocês, o menos ridículo deles. Em sua época ele foi respeitado por sua História, mas sua filosofia foi ignorada, e suas idéias sobre religião vistas com horror. Kant alegou ter sido despertado de seu "sono dogmático" ao lê-lo, mas Hume não teria aceito nenhuma responsabilidade pelo resultado. Bentham também ficou fascinado por Hume, mas de forma mais direta e fiel, ainda que tenha extraído conseqüências socialmente radicais de seus princípios. Ele não foi solene o bastante para atrair John Stuart Mill, cuja teoria do conhecimento é, ainda assim, uma espécie de domesticação de Hume. Russell, tão travesso e espirituoso quanto Hume, considerou sua própria filosofia como uma combinação de Hume com a lógica moderna. Onde quer que a filosofia analítica esteja viva, como ainda está em um bom número de lugares, Hume, mais que qualquer outro grande filósofo do passado, é ainda uma força que se tem de levar em conta.