Ana Saldanha Uma Questão de Cor Ilustrações de José Miguel Hibciro Livros do Dia e da Noite Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Novembro de 2008 para uso exclusivo de deficientes visuais. contracapa: Narrativa juvenil Uma Questão de Cor Quando a prenda de Natal é um computador, quem quer saber do trabalho de casa de Matemática? Todos os momentos livres são necessários para jogar uns jogos malucos. Os pais da Nina é que não concordam. Nem o Danny, o primo que vem vier para casa dela. Por que teve o Danny de mudar de escola; O que fazer em casos de ataques de criancice? E quando há falhas no sistema. E o Vítor, por que começa a comportar-se de forma tão palerma? Será que os amigos da Nina não compreendem que somos todos diferentes. mas todos iguais? Ana Saldanha Ana Saldanha nasceu no Porto. onde se licenciou em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês:. Doutorou-se na Universidade de Glasgow com uma tese sobre Budyard Kipling e a sua obra infantil. Ganhou o Premio Literário Cidade de Almacia com o seu romance Círculo Imperfeito e tem-se também dedicado à tradução. Mas é sobretudo conhecida como uma das melhores escritoras portuguesas para jovens, Esta edição especial do livro Uma Questão de Cor faz parte integrante dos manuais de Língua Portuguesa - 8.º ano da Porto Editora, Com Todas as Letras e A Casa da Língua, e não pode ser comercializada separadamente. DA AUTORA Cinco Tempos, Quatro Intervalos, Editorial Caminho, 2002 Para o Meio da Rua, Editorial Caminho, 2002 Como Outro Qualquer, Editorial Caminho, 2002 Uma Questão de Cor, Editorial Caminho, 2002 Um espelho sá meu, Editorial Caminho, 2002 O gorro vermelho, Editorial Caminho, 2002 UMA QUESTÃO DE COR Autor: Ana Saldanha Ilustrações: José Miguel Ribeiro Design Gráfico: José Senão (c) Editorial Caminho, SA, Lisboa - 2002 ISBN 972-21-1501-4 Edição especial executada por Bloco Gráfico, Lda., 2006 Índice Arrebatamentos (como controlar) 9 Bocas (quando mandar) 21 Criancices (o que fazer em caso de ataques de) 33 Doença (diagnóstico de) 43 Estupidez (como contornar a) 51 Falhas no Sistema (avisos e soluções) 61 Girinos (e outros seres em estádios intermédios) 71 Herói (breve história de um) 79 Inferno (uma descida ao) 87 Juízo final 97 Arrebatamentos (como controlar) - Nina, o jantar está na mesa. Já vou. - Nina, vem jantar. Só mais um bocadinho. Estou quase a conseguir acabar a paciência. - Nina, olha que o jantar está a arrefecer. Ainda não consegui resolver uma única paciência desde que tenho o jogo no computador. É uma verdadeira obsessão, um arrebatamento de todo o tamanho. Ao mesmo tempo, irritante. O pai diz que é facílimo; que, ao fim e ao cabo, o computador só distribui as cartas em combinações mais ou menos 9 complicadas. O que é certo é que ele próprio - o pai, quero eu dizer - ainda não foi capaz de alinhar as cartas todas, em quatro filas, por ordem descendente. - Não ouves, Nina? Anda jantar, filha. Bom, lá tenho que responder, senão a mãe zanga-se. Ou pior ainda, amua, e lá temos de aguentar com ernpadão de arroz de couves (ughl) pré-cozinhado: - Já vou, mãe. Estou só aqui a acabar uma coisa no computador. Se pusesse esta dama de copas em cima do rei de paus, e tirasse o dois de espadas de cima do sete... Noutra encarnação a mãe deve ter sido gato. Como é que conseguiu chegar ao meu quarto sem eu a ouvir? Deve ter vindo pé ante pé pelo corredor fora, empurrou a porta do meu quarto com toda a suavidade e, de repente, a sua voz soou-me quase junto aos ouvidos. Mas aos berros. - É nisto que passas o tempo? Achas bem? Achas? Não, diz-me lá, achas que é uma maneira útil de passar o tempo? Ó Jorge, chega aqui. O pai devia estar já sentado à mesa na cozinha, por isso é que a mãe berrou por ele. Chegou à porta do meu quarto com um ar meio atarantado: - O que foi? A mãe apontou para mim: - A tua filha... 10 Olhou para o pai: -... passa a vida... E, por fim, esticou o dedo em riste para o computador: -... a-ga-rra-da ao computador. Respirámos os dois, o pai e eu, de alívio. Era só isso, então? Não, engano. - A tua filha só joga joguinhos imbecis, dá cabo dos olhos a olhar para aquele ecrã que brilha como um sol. .. O pai interrompeu: - Não, desculpa, eu pus-lhe um filtro, está provado que faz menos mal do que... - Eu não quero saber se está ou deixa de estar provado; o que eu sei é que o jantar está a arrefecer, e aposto contigo o que quiseres que esta menina ainda não fez os trabalhos de casa. A mãe nem sempre acerta. - Ó mãe - disse eu -, por acaso estás enganada. Não tenho nada para fazer. Bem, faltam-me duas equações de Matemática, mas são canja, resolvo-as no primeiro intervalo da manhã. A minha mãe tem uns olhos muito bonitos e grandes; são cor de avelã, como as sobrancelhas, que costumava depilar e agora anda a deixar naturais, porque é moda, ou talvez porque não tem tempo para tratar delas. Mas usa óculos, nunca se conseguiu habituar às lentes de contacto; 11 e, como é bastante míope, as lentes grossas fazem-lhe uns olhos pequeninos e dão-lhe um olhar frio. Se está bem-disposta, e a sorrir, não se nota. Mas, quando se zanga, até parece que o seu olhar mata. - Estás a ver? Estás a ver? Eu que te digo? E a culpa é toda tua. A tua filha vai chumbar este ano, e a culpa é toda tua. Não é bem assim. A ideia foi do pai, que é técnico de informática e acha que o futuro está na cibernética. Mas a prenda era de ambos. O que eles passaram para a esconderem de mim! Quinze dias antes, já eu os assaltava com perguntas de manhã à noite: - Ó mãe, o que me vão dar no Natal? Resposta da mãe: - Como é que eu hei-de saber? É o Pai Natal quem traz as prendas. - Oh, vá lá! Diz-me. Dizes? - Não sei, a sério. Ainda não falei com o Pai Natal. Esta piada repete-se ano após ano, desde que me recordo. Desde muito novinha que deixei de acreditar no Pai Natal. (Foi a tia Luís quem me tirou as ilusões, quando eu tinha cinco anos. - Pai Natal? - disse-me ela. - Mas tu acreditas nessa treta?) Abordei também o pai, nas alturas em que o apanhava mais distraído. Por exemplo, ele pegava no maço de cigarros, abria-o, tirava um cigarro, 12 procurava um cinzeiro às apalpadelas, sem despregar os olhos do jornal, e, quando já estava de fósforo na mão e cigarro na boca, pronto a ser aceso, eu dizia: - Pai, não ias deixar de fumar? Ele atrapalhava-se todo. Voltava a meter o cigarro no maço e resmungava: - É verdade. E eu atacava então: - Por falar nisso, o que me vais dar no Natal. Nem dava a entoação de pergunta à frase. Dizia-a como se fosse uma frase incompleta, para ele acabar. - É uma ida ao Inferno? O Inferno é um restaurante do outro mundo, que abriu há pouco tempo. Parece que é o máximo. - Não, é um... Mas a mãe, como se adivinhasse, aparecia nos momentos cruciais, e dizia: - É segredo, sua curiosa. Só nós e o Pai Natal é que sabemos. Por isso achei que a mãe estava a ser injusta, ao acusar o pai de me ter dado o computador. Tinha sido uma prenda dos dois, dos três se contar com o senhor de barbas brancas e roupa espalhafatosa em cuja existência não acredito. A caixa tinha vindo embrulhada em papel vermelho (reciclado), com um laçarote doirado, e rodeada por muitas recomendações e várias ameaças: 13 - Não há mais prendas nos próximos quinze anos! Só voltas a receber um presente quando te casares. A mãe disse isto com um sorriso malandro, e eu entrei no jogo: - Mas eu não vou casar nunca. A encolher os ombros, a mãe respondeu: - Não sei, não sei. É lá contigo. Tu é que sabes. Ainda mal tínhamos desembrulhado as prendas todas, e eu já recebera ofertas de lições de informática: da tia Luís; do meu primo Daniel, que me telefonou na manhã do dia de Natal, a comparar prendas, o invejoso; da avó, que dizia: - Ó Catarina, eu de computadores não entendo nada. Mas, se quiseres, estudamos as duas juntas. Lá na Universidade da Terceira Idade há um curso de informática. É de um Tupperware qualquer. O pai riu a bandeiras-despregadas: - De Tupperware! Ah, ah, ah, ah! De Tupperware! Essa é boa. A avó já estava a ficar um bocadinho abespinhada: - Sim, de Tupperware, o que é que eu disse? Tupperware, pois. O pai explicou à avó que ela estava a confundir uma marca de plásticos com a palavra inglesa para os programas dos computadores: Tupperware é marca de bacias e caixas herméticas de plástico, e software 14 são os programas que nos permitem usar o computador. Por exemplo, os meus jogos são software. A minha avó tem um sentido de humor muito apurado; é a melhor contadora de anedotas da família, e sabe apreciar o ridículo de situações que podem parecer sérias. Mas não tem nem pinga de sentido de humor quando a põem em xeque: - Não sei que graça tem! Uma pessoa já não se pode enganar? Valha-te não sei o quê, filho. Foi o pai quem acabou por se encarregar da minha introdução à informática. Ele, que normalmente não tem tempo para nada, nem para ver televisão, que era o meu passatempo preferido até há pouco tempo, dispôs-se logo a dar-me uma lição de quinze minutos por dia, até eu compreender perfeitamente o meu computador. Resultou. Fui uma aluna brilhante, principalmente nos programas de jogos. Em menos de nada, era eu a explicá-los ao meu pai e também à avó, que é viciada em jogos de azar. Por isso me pareceu um pouco injusto que o pai cerrasse fileiras com a mãe, e me dissesse, na voz grossa que usa uma vez de dois em dois anos: - Já fazer as equações de Matemática! Imediatamente! Não foi para seres uma aluna desleixada que te demos o computador. A mãe, que antes parecia tão ansiosa por ter um aliado, tentou amenizar a situação: 15 - Também não é assim, Jorge! O jantar está na mesa. O pai é uma fera, quando quer: - Nem jantar, nem meio jantar. Já fazer as equações. Estávamos numa Crise Familiar. Eu lembrava-me de poucas, três ou quatro Uma tinha sido Quando Eu Não Queria Comer a Sopa, ainda era pequena. Cheguei a passar uma tarde com um prato de sopa à minha frente, aquecido de meia em meia hora, com o pai a vigiar-me como um carcereiro. Foi num dia de semana, até faltou ao trabalho. Outra que recordava tinha sido o Divórcio da Tia Luís. Meu Deus, que desgraça, o que vale é que não têm filhos, sim que nestas coisas as crianças são o pior, mas ele não se portou bem, também deixa lá que ela... Outra ainda, quando a avó começou a ir ao Casino da Póvoa todos os sábados, com as amigas: Vai-se desgraçar, ai valha-nos sei lá o quê, o que é que havemos de fazer, é melhor falar com o pai. A avó gastava uma ninharia por semana nas máquinas, muitas vezes até ganhava para a despesa da gasolina. Que pais tão ansiosos que eu tenho! Não ia fazer as equações coisíssima nenhuma! 16 Tinha a paciência para acabar, um programa na televisão para ver, já para não falar no célebre jantar que arrefecia a termómetro visto: - Não faço, pronto. O pai, de cabelo em pé, sobrancelhas em pé, óculos descaídos, como os ombros, voz erguida, repetia: - Não quê? Não quê? Não quê? Virou-se para a mãe: - Olha como educaste a tua filha. Já viste bem? Não sei como vai ser com o Daniel cá em casa. Eu estava sentada na berma da cama, a piscar os olhos para esmagar umas lágrimas que teimavam em se balouçarem nas minhas pestanas; ao ouvir isto, levantei a cabeça e disse: - Mas o Daniel vem cá para casa? Quando? Como? Porquê? Onde vai ficar? Parecia a lista das questões a que deve responder uma notícia, mas era só curiosidade. Ficou esquecido o jantar que arrefecia, as equações por fazer, a paciência que não havia maneira de completar. O ecrã do computador mostrava umas elipses em várias cores. Ainda não compreendi muito bem que vantagem há em substituir uma imagem por outra; mas os técnicos lá sabem. O pai tinha-se aproximado do computador. É sempre assim: sítio onde esteja o "bicho" parece ter um íman para ele. Em vez de responder às minhas perguntas, pôs a mão por cima do rato e ofereceu: 17 - Queres que desligue o computador? Ao princípio, levou-me imenso tempo, quase meia hora, a habituar-me ao rato. É necessário coordenar o que se vê no ecrã com os movimentos da mão, o que nem sempre é fácil. Mas saber usar o rato é fundamental, com ele realizam-se, de uma forma muito mais prática, um sem-número de operações. Quer-se mudar o tipo de letra de uma parte de um texto, por exemplo, e basta, com a ajuda do rato, colocar o cursor no início da parte a seleccionar, e depois ir por ali abaixo, parando onde se quer. Muito fácil. Clic... e já está. - Não, pai. Ainda não acabei a paciência. Quando se mexe no rato, desaparecem as elipses malucas e a imagem com que se estava a trabalhar aparece de novo. O pai já estava embrenhado na resolução da minha paciência, e a mãe deu meia volta sobre os calcanhares e saiu do quarto. Fui atrás dela. *** - Ó mãe, para que é que o Daniel vem cá para casa? A mãe virou-se para o fogão, como se procurasse onde se esconder, e murmurou: - Fica-lhe mais perto da escola. Mais perto da escola? Tenta outra vez, mãe. 18 - Quer dizer, ele vai mudar de escola, e já agora, vem para a tua, que tem muito boa reputação. - E o que é que a dele tem de mal? - Nada. Quer dizer, não é grande coisa. Vamos mas é jantar, que já são oito e meia. Vais chamar o teu pai? Deixei-me ficar encostada à ombreira da porta da cozinha: - E onde é que ele vai dormir? - No escritório. Tira-se a secretária grande, põe-se a mesinha que está guardada na cave e uma cama, e serve muito bem. Quando o fui chamar, o pai estava com um sorriso de satisfação horrendo Não, paizinho, por favor, não quero ouvir! - Consegui acabar-te a paciência. Há uma lista de opções no canto superior esquerdo do ecrã, muito útil para situações humilhantes como esta; dirigi o cursor nessa direcção, ele transformou-se numa seta, premi a bola do rato duas vezes no comando Ficheiro, seleccionei Fechar e (finalmente') desapareceu a maldita paciência resolvida pelo pai. No menu Iniciar seleccionei Encerrar. O computador fez uma espécie de "ufa" de alívio, e eu também. - Um destes dias tenho de ensinar-te a usar uma base de dados. Até podes manter um registo das vezes que te resolvo as paciências. Ah, ah, ah, ah, muito engraçadinho! 19 Bocas (quando mandar) Em todas as turmas de todas as escolas secundárias do mundo deve haver um aluno como o Vítor. Talvez se chame Victor Lazlo na Hungria e Victor Braun na Alemanha, Vítor Li Ping na China ou Vítor Lambretti na Itália. O nosso chama-se Vítor Salema e tem os treze anos que são de bom-tom na nossa turma. (Aos dois que têm catorze, a Linda e o Rui, chamamos-lhes Papá e Mamã, e a única que tem doze, a Sara, não se livra de ser a Bebé.) A idade é a única coisa em que o Vítor é normal; em tudo o resto é uma verdadeira aberração, mais esquisito do que as personagens de um jogo de 21 computador de que também gosto muito e que se chama ShujJlePuck Café. O Vítor sabe sempre as soluções de todos os problemas de Matemática, embora só faça os trabalhos de casa nos intervalos; tem na ponta da língua as datas e os nomes da História (nacional, mundial e cósmica, do futebol e dos transportes aéreos entre as duas Guerras); vem para a escola numa bicicleta de montanha que é a inveja de todos, até do meu professor de Educação Visual; é bonito, é loiro, é alto, é bem-educado, bom filho, bom amigo, prestável para com os professores sem ser serviçal, cómico sem desrespeitar ninguém; e, como diz a minha avó, "engraça" comigo. Que pesadelo, que agonia, que sufocação! - Nina, queres que te leve os livros a casa? - Mas tu achas que eu não tenho mãos? - Não é isso; é que me pareces cansada. - Deixa-me, que seca. - Nina, por acaso a minha mãe comprou um bilhete a mais para o último filme do Spielberg. Parece que é o máximo. Queres vir? - Mas a tua mãe compra assim bilhetes de cinema à toa? - Olha, ó Nina, não sei como foi mas tenho aqui duas redacções para Português. Queres uma? Podes escolher. Finalmente, uma oferta que eu podia aceitar! 22 - Ora deixa lá ver. Comecei a ler a primeira. Era sobre corridas de automóveis, os prós e os contras, a linha de partida, os acidentes, motores, pneus. A minha professora nunca iria acreditar que eu tinha de repente passado a escrever assim, com tanta elegância, lógica e estilo, sobre um assunto tão especializado e enfadonho. - Não tens aí uma coisa piorzinha? Num estilo mais fraco? E com um tema mais engraçado? Quando a nossa professora de Português nos manda fazer uma redacção como trabalho de casa, é porque se zangou connosco perto do fim da aula. O desespero dá-lhe para nos castigar: - E agora, para castigo, vão fazer uma composição de duzentas palavras. Há sempre alguém, normalmente a Mafalda ou o Rui, os nossos colegas mais aflitos, que reclamam: - Ó professora, em cinco minutos? E a professora, esverdeada de nervos: - Ouviram o que eu disse? Duzentas palavras! Vem a seguir a pergunta sacramental: - Têm de ser mesmo duzentas palavras ao certo? A professora já nem nos vê: - Mas vocês são surdos? Duzentas, já disse. Vira-se para o quadro, onde escreve em algarismos do tamanho do pescoço de uma girafa: 200 23 O guião desta cena tem mais diálogo. É a Bebé que pergunta: - Professora, posso escrever a lápis? E a professora, levada aos extremos da impaciência: - Quantas vezes já vos disse que é a tinta? Vá, digam-me, quantas? Nesta altura, quando o Pedro está para dizer: "Ao certo não sei, talvez umas cento e vinte vezes", é costume ouvir-se o toque para a saída. Começamos logo todos a arrumar os livros, para sairmos da sala, mas a professora pergunta, olhando-nos com um ar demente: - Onde é que julgam que vão? Em seguida, a voz dela ribomba como um trovão: - Já aqui! E bate com o tacão alto no chão de madeira carunchosa: - Aqui! A acabar a composição. Um dos favoritos, o Pedro ou a Mafalda, imploram: - Ó professora, deixe ficar para trabalho de casa. A professora cede sempre. Quando eu estava a deitar uma vista de olhos pela segunda redacção do Vítor (sobre baleias nos mares dos Açores), a Júlia passou por nós com um croissant a escorrer gordura; estávamos à porta do bar da escola. 24 - Olá, pinga-amores! - disse ela. - Para quando é o casamento? Detesto aquela megera. Virei-me para o Vítor e disse: - Por que não me deixas em paz? Também, não me largas! * * * Isto foi há uma semana. O Vítor tentava todos os dias aproximar-se de mim, mas eu fazia-me de novas. Por muito que a avó me diga que nunca é cedo de mais para começar a ter namorados (para escândalo da mãe e do pai, que são muito conservadores), não me convence. - Olha, filha, sabes quantos namorados tive antes de casar com o teu avô? Cinquenta e três! A mãe, que é avessa a estas franquezas, repreendeu logo a avó: - Ó senhora dona Olga, que exagero! Por favor, não diga dessas coisas, que até parece mal. - Não é exagero nenhum, filha. E chama-me Olga e trata-me por tu, não sei o que me parece falares-me como uma estranha. Não é exagero, não senhor. Um, o Antímio, dois o Juvenal, três o Gurmesindo, quatro, o Asdrúbal... agora reparo, tinham todos nomes bem esquisitos! Cinquenta e três. 27 Alguns namoros duravam dois dias, outros três semanas. Ainda tenho as cartas todas que me mandaram. E postais. E olha que o teu avô nunca teve autorização para as ler. Tem-me cá uns ciúmes! A avó é realmente o máximo, mas nisto do Vítor não tem razão. Por exemplo, hoje de manhã, no intervalo antes de Matemática, enquanto eu me inspirava nas suas belas equações, ele ofereceu-me uma disquete de jogos. - Olha, trago-te aqui uma disquete com uns jogos fabulosos para te emprestar: um de xadrez, outro de... Levantei a cabeça do caderno de Matemática dele, olhei-o nos olhos, muito séria: - Mas tu julgas que eu sou alguma inocente? Tu achas que eu ia aceitar assim uma disquete que vem sei lá bem de onde? Eu sei que parece impossível, e é muito fácil cair nessa asneira, mas um quadradinho da grossura da minha capa de argolas e com nove centímetros, ou seja, uma disquete, pode destruir o sistema de qualquer computador. - Não sabias? Ou julgavas que eu não sabia e querias pregar-me uma partida? O Vítor até ficou pálido. O Sebastião, que vinha todo ofegante de jogar futebol, perguntou: - O que foi, pá? Viste algum fantasma? O Vítor nem lhe respondeu. Virou-se para mim e disse: 26 - Mas tu achas que eu te fazia uma coisa dessas? Achas? A bufar com os lábios arreganhados, como um bull-dog, para afastar a franja que se lhe estava a colar à testa, e enquanto saltitava à nossa volta, o Sebastião meteu-se na conversa mais uma vez: - Fazias o quê? O Vítor continuava a recriminar-me, indiferente à assistência. - Tu achas que eu te trazia a disquete se fosse para te passar um vírus? É preciso teres mesmo muito má impressão de mim! Francamente! Desencostou-se da parede e começou a afastar-se, cabisbaixo. Realmente, eu tinha sido um bocadinho brusca: - Desculpa lá. Eu sei que não fazias uma coisa dessas de propósito. Mas é tão fácil dar cabo do sistema operativo com uma simples disquete! Desculpa, está bem? O Sebastião ficou encantado. Embora seja gordíssimo, é também muito ágil: começou aos saltos e às piruetas, e a cantarolar: - A Ni-na, da Ar-gen-ti-na, a Niiiiina; a tra-tar bem o Viiiii-tor, Tocou para a entrada. À porta da nossa sala já estava a turma toda reunida. Ouviam-se vozes intrigadas: - O que foi, o que foi? Tratou-o bem? 26 7 - Falou-lhe? Não! Nem lhe rosnou nem nada? Incrível! - Desculpas? Não acredito! Mas isso é o fim da civilização ocidental! Têm imensa graça os meus colegas. Não se pode. Morro de riso. Poupem-me, por favor. Ofendi o Vítor, é claro que tinha de lhe pedir desculpa. Ele ainda teve tempo de me dizer, enquanto não começou a barafunda da entrada na sala de aulas, que eu de certeza tinha instalado no meu computador um detector de vírus e que, portanto, o que havia a fazer era examinar a disquete que ele me queria dar. Já o fiz, é muito fácil. Mete-se a disquete na ranhura e imediatamente aparece, num rectângulo no centro do ecrã, um texto a perguntar se quero verificar a disquete. Escolhi a opção OK e, em menos de nada, o "médico" do computador deu alta à disquete de jogos do Vítor, * * * - O que é isso, filha? É um trabalho de Educação Visual? Se esta pergunta me tivesse sido feita pela mãe, era bem capaz de lhe mentir e dizer que sim. Mas a avó, que não vê grande interesse em eu ser uma aluna muito cumpridora, merece a verdade: 28 - Não, avozinha, é um jogo. A avó ficou a olhar para o ecrã, com o queixo descaído, a subir e a descer o olhar, acompanhando os tijolos que uma barra fina vai demolindo. É uma seca, este jogo - e lentíssimo. A avó até estava com cara de dor de dentes. - Ó avó, não precisas de estar a olhar para esta seca. Eu é que tenho de esperar até ao fim do jogo para passar para outro. É que, sabes, não faço ideia de como se interrompe esta maçada. A avó puxou uma cadeira para o lado da minha, desalojando o Silvestre, e eu apercebi-me que já lhe devia ter oferecido o meu lugar e pedi-lhe desculpa. - Desculpa por nada, Nininha. Eu é que estou a ficar uma velhota, sabes? Não conseguíamos despregar os olhos do ecrã; embora este jogo seja muito aborrecido, sempre é um jogo. Mas a avó parecia que não estava bem. - Ó avó, que tens? Estás pálida. Dói-te alguma coisa? Ouviu-se o toque da campainha. Devia ser o avô Gerardo. A avó levantou-se de um salto, toda animada, e disse: - Finalmente chega o velhote! O que terá andado a fazer? O avô tem mais cinco anos do que a minha avó Olga, mas ela diz-lhe sempre que ele está um caco, que não o quer, e riem-se os dois muito. 27 - Com que então, no vício? Mas que duas que eu arranjei! O avô Gerardo tem para cima de um metro e oitenta, e anda sempre com umas roupas muito desleixadas e desportivas, ao contrário da avó, que se arranja muito bem. Quando a minha mãe faz algum reparo (-Também, a senhora dona Olga podia dizer-lhe alguma coisa; aquelas calças de bombazine já estão todas esfiapadas! E não sei que me parece ele andar de boina basca. Ainda se fosse algum pintor. .. ) a avó responde: - Para vaidosa basto eu! Deixa-o lá, filha, que anda à vontade dele. E olha que, à sua maneira, é um artista. Ainda no outro dia, para os meus anos, me fez uns versinhos muito bonitos. Queres ouvir? O avô deu-me um beijo, outro à avó, e comentou: - Olguinha, acho-te com má cara. O pai, que tinha acabado de entrar também, veio na direcção das vozes, e a mãe chegou da cozinha, para nos mandar para a mesa. Ficámos os quatro a olhar para a avó, e dissemos: - É verdade. Estás pálida. - É, é; e com os olhos mortiços. - Será alguma gripe, filha? - E pareces cansada. Que fizeste hoje, avozinha? A avó começava a ficar irritada: 30 - Ora, deixem-se de coisas. Estão de tal maneira habituados a ver-me sempre toda arranjada que já não posso, um dia por outro, andar mais à vontade. O avô disse, a medo: - Não é isso, Olguinha. É que estás com má cara. Estás com a tez baça, e os olhos mortiços. O avô gosta de usar palavras que só aparecem nos livros. A avó começava a ficar zangada. Compreendi-a bem, porque sou parecida com ela: não gosto que me dêem demasiada importância. As luzes da ribalta só quando eu quero. Mas o avô, que conhece a sua mulher há quarenta anos, e devia saber como ela gosta de ser tratada, continuou a insistir. Até que a avó teve de recorrer a uma daquelas ameaças de fazer arrepiar: - Se não se calam com essa ideia estapafúrdia de que eu estou doente, eu grito! Grito a plenos pulmões! Realmente, a avó estava como sempre: bem-disposta e senhora de si; o ar de cansaço devia ser por causa da maquilhagem menos cuidada. Fomos jantar; estávamos todos animados porque no fim-de-semana - só faltam dois dias - o Daniel muda-se cá para casa. - A ver no que isto dá - disse a mãe com o seu ar de catástrofe. 31 - Em que é que há-de dar, Dora, não estejas já a preocupar-te. - Não é isso, mas corremos um risco, ou não? - Risco, risco, não corremos. Pode dar problemas, lá isso pode. - Que risco, mãe? Que risco, pai? - Nada, filha. - A sério, que risco? A avó atalhou: - Sabes, é que o teu primo Daniel vive lá nas profundezas do campo; os teus pais receiam que lhe faça mal o ar da cidade. Rimo-nos. O Daniel vive nuns subúrbios do Porto, mesmo ao lado de uma auto-estrada. Já são dez e meia, hora de ir para a cama. Mas, primeiro, desligar o computador. Ficheiro: Guardar, Fechar. Iniciar: Encerrar. 32 Criancices (o que fazer em caso de ataques de) Pronto, já sei que é uma infantilidade. Não é preciso que ninguém me venha com recriminações. Eu conheço-me muito bem, melhor do que qualquer pessoa. É não, pronto. Por outro lado, se aceito, ele vai ficar todo chateado o que, claro, é mais um motivo para dizer que sim. Foi assim: o Daniel chegou no sábado de manhã, com uma mala de viagem onde cabia, à vontade, um adulto forte, mais cinco caixotes do tamanho da mesa da cozinha, sacolas e sacos e sacos de plástico. Será que vinha para se instalar até à reforma aos sessenta e cinco anos? A sala ficou toda atravancada, e 33 eu tive de saltar por cima de três (!?) raquetas de ténis para me poder ir sentar no sofá do canto. A mãe do Daniel, a tia Lizbeth, fartou-se de dar os seus gritinhos estrangeiros, de pedir café forte e "uma ou dois" bolachas, de se espantar, em português estropiado, com a minha altura, a minha beleza estonteante, a minha descomunal inteligência, a minha bondade de santa. Como se já não me visse há dez anos, quando ainda nem passou um mês desde a sua última visita cá a casa, num intervalo das compras. É o que dá morarmos perto da Baixa. - Ó tia Liz, por que é que o Danny vem cá para casa? A tia olhou para a minha mãe, depois para o meu pai; eles pigarrearam ao mesmo tempo, como se tivessem combinado, e respondeu o pai: - Nós já te dissemos, Nina. Não sejas assim! - Assim como? - Assim. A tia Liz meteu mais quatro bolachas de chocolate à boca e disse: - Mnhachenhnhnsabeetimmm, qué delícia, que a verdade mnhmm. Non é, Nina? A tia Liz é da África do Sul. Viveu cinco anos em Moçambique, onde conheceu o tio André, que era médico num hospital do Maputo. Vieram para o Porto há mais de quinze anos. E ainda fala português como uma estrangeira empedernida. De 34 tal maneira que o Daniel, meio envergonhado, lhe disse: - Ó mãe, não fales em português. Já sabes que não dizes nada que se entenda. Eu quis ser simpática, e acorri em defesa da tia Liz: - Não, não se entende por causa das bolachas todas que tem na boca. E o Daniel, a deitar-me uns olhares reprovadores: - Muito obrigado por chamares a atenção para a falta de maneiras da minha mãe. Ficámos todos embaraçados. Cá em casa não estamos habituados a repreensões às claras, em frente às visitas, por mais justificadas que sejam. Muito menos que sejam as visitas a repreender-nos. Ou que o façam com cinismo. O pai levantou-se do braço do meu sofá, deitou uma mão à asa da mala, a outra às três raquetas, e disse para o Daniel: - Vamos lá ver o teu quarto? Já te aviso que é pequeno. O Daniel tem quase quinze anos e já é mais alto do que o meu pai. Foram os dois pelo corredor fora, enquanto nós as três ficámos na sala. Eu disse à tia Liz, esperançada que ela, com o seu fraco domínio da língua portuguesa, não tivesse compreendido a troca de palavras entre mim e o Daniel: 35 - Tia, queres mais uma bolacha? A tia respondeu-me com um grande sorriso plácido (talvez afinal o seu vocabulário não chegue para entender insultos e tiradas cínicas): - Não querrida, estrraga a minha apetite. Som deliciossos, pórém. Reparei ainda num pedaço de chocolate que se tinha agarrado ao veludo azul-claro do sofá onde a tia estava sentada. Olhei para a mãe, para ver se ela já se tinha apercebido da asneira que fizera a mulher do seu irmão preferido, como ela lhe chama, o único que tem. Talvez sim, talvez só estivesse à espera de ela se ir embora para desabafar: - Tão caro que foi este veludo; e é que as nódoas de chocolate não saem com nada. Também, parece uma criança! Que mania das bolachas. E se começássemos todos a dizer aos outros o que realmente pensamos deles? - 6 Sebastião, pareces um bull-dog, sabias? - Cala-te, Júlia! És uma despeitada azeda, e quanto mais falas menos te ouço. - Ó professora, já reparou que se veste como um espantalho? Não me parece que seja boa política dizer sempre o que se pensa dos outros, pelo menos as coisas que são mais ofensivas. A tia Lizbeth não fala bem português e mete demasiadas bolachas à boca de uma só vez. E depois? 36 No silêncio momentâneo que se fez, enquanto eu tinha estes pensamentos brilhantes, ouviram-se vários espirros de seguida e a voz do Daniel, lá para a zona dos quartos: - Não posso! Não, de maneira nenhuma. Levantei-me do sofá, dei dois passos na direcção da porta da sala, saltei por cima de um caixote e fui estatelar-me nos braços do Daniel que, com o pai, tinha voltado à sala. - O que é que não podes, Daniel? - Ficar naquele quarto. Com os livros todos, ia ter ataques de asma todas as noites. A mãe sobressaltou-se: - Mas tu sofres de asma? - Mais ou menos, Com um ar perplexo, a mãe voltou à carga: - Mais ou menos? Como é isso? Eu julguei que ou se era asmático ou não. A tia Liz deu uma das suas gargalhadas que parecem vir de um poço sem fundo, levantou-se do sofá, sacudiu as migalhas da saia, e disse: - Non, non é assemático. Poich non, meu darling? Só prroblemazinhas de respiraçom. O Daniel, com um ar todo satisfeito, disse: - Vês? Eu não te disse que não era boa ideia? Tenho de voltar para casa. A não ser que a Nina me ceda o quarto dela. Sabes bem que problemas tenho em qualquer parte, nesta escola ou na outra. 37 O espertinho! Sabia que eu ia dizer que não. - O meu quarto?! Nem por sombras! Era só o que faltava! E acrescentei: - Que problemas? Por que é que tens de sair da tua escola? A mãe tirou os óculos, olhou-me com o seu olhar mais doce, com os seus olhos de avelã que fazem a tia Liz chamar-lhe Hazelnut (avelã em inglês) ou só Hazel, e disse: - Nina, querida, não vês que o teu primo tem asma? Que te custa cederes-lhe o teu quarto? É só por meia dúzia de meses. Olha, combinamos assim: hoje, o Danny fica aqui na sala, e amanhã fazemos a mudança. Que achas? Concordas? A mãe é irresistível quando me trata como uma pessoa crescida. O que vale é que temos um sofá-cama de três lugares (com uma nódoa de chocolate, a marca da tia Liz). De outra maneira, não vejo onde é que o meu primo podia ter dormido. Aliás, nem compreendo como é que ele acha que vai caber na minha cama. É que a mobília do meu quarto é para pessoas de tamanho normal, não é para gigantes como ele. - Gigantes? Tu é que és uma minorca. Que mentira! Eu sou altíssima! Para a minha idade, quer dizer. Sou mais alta do que a minha professora de Matemática. 38 Vou ser mais alta do que a mãe, pelo menos é o que diz a avó. Já é meia-noite e ainda ando às voltas na cama. Na minha cama. Tenho até amanhã para me decidir. Se digo que sim, o Daniel fica pior que uma barata, porque o que ele quer é voltar para a sua casa. Se digo que não, vou ficar com a fama de ser a megera da família, que não se comove com a doença do primo. Ainda lhe perguntei: - Mas então, se és alérgico aos livros, como é que estudas? O Daniel respondeu com um sorriso escarninho, passando uma perna de metro e meio por cima do braço do cadeirão de cetim bege, e encostando a sola das suas botas sujíssimas (ai se a mãe descobre!): - Não se está mesmo a ver que é pela telescola? Cínico! * * * Acendi a luz; reclinada contra uma almofada com um estampado de flores pequeninas, abraçando o meu Silvestre - o melhor gato possível para quem está proibida de ter um gato de verdade - ponderei: Digo que sim - tenho de mudar para um quarto atravancado, com umas estantes tão cheias que estão 39 sempre em riscos de se desmoronarem, para uma cama estreita e desconfortável; o meu computador fica no meio da maior confusão, e toda a gente sabe que os computadores novos são alérgicos ao pó dos livros e não gostam de ficar juntos com outro computador maior e mais potente (o do pai). E sua excelência fica instalado que nem um príncipe. Passo a ser a Santa Maria Nina. Digo que não - o meu Silvestre não tem de se habituar a outro ambiente, livramo-nos ambos da pestezinha do Daniel, que certamente volta para a casa dele; a mãe passa a deitar-me uns olhares de censura, proíbe-me de jogar no meu computador, a avó Olga, se calhar, diz-me que nunca é cedo de mais para mudar de quarto. Nunca mais deixo de ser a Bruxa Má. Que fazer? Entretanto, o Daniel está a dormir todo sossegado no sofá-cama da sala. Que raiva! Esteve para voltar para a sua casa até se decidir este problema. A tia Liz chegou a oferecer-se para encaixotar os livros todos e levá-los com ela, mas a mãe e o pai disseram-lhe que tudo ia resolver-se da melhor maneira, olhando para mim com ternura. Até houve mousse de chocolate ao jantar. Fui pé-ante-pé até ao escritório; abri lentamente a porta, que rangeu como o portão de uma quinta. Decidi ligar o computador do pai, só para ver se sabia mexer nele. Afinal, é mais ou menos como o meu, só é um modelo muito mais caro. Que quantidade 40 de jogos! Se calhar, é com isto que o pai está às vezes muito ocupado, "não-me-interrompam-por-favor" até de madrugada. E eu que tinha tanta pena dele, porque julgava que estava a actualizar os ficheiros dos clientes, ou a "programar", verbo mágico que não sei bem o que quer dizer. Estes adultos são uns espertalhões. Põem ar de "estou a trabalhar, não me incomodem", e passam mas é umas horas bem passadas. É como com as doçarias: - Eu não vou daqui ali por doces - diz a mãe. - Fazem tão mal! E come três taças de mousse num abrir e fechar de olhos. - Ó Nina, não comas mais bombons, querida, olha os dentes - conselhos dados com a boca cheia, e os dentes todos castanhos do chocolate. Às duas da manhã, já a tombar de sono, desliguei finalmente o computador, voltei para o meu quarto e meti-me na cama com o Silvestre, que vai acordar com olheiras. Às vezes talvez pareça infantil, mas sou até muito adulta para a idade que tenho. Cheguei a uma decisão quanto ao caso do Daniel: decidi que não sei se é sim, se não. Depois se verá. 41 Doença (diagnóstico de) À distância, como se filtrado por um almofadão fofo, ouço um trrim-trrirn, pés descalços a correrem por toda a casa, e a voz, primeiro da mãe, depois do pai, a exclamarem: - Ai, não. Oh, não. Afinal, a minha cama não é lá muito confortável. Eu já devia ter dormido umas dez horas e ainda estava cheia de sono. Os passos aproximavam-se, bateu uma porta, caiu com estrondo uma cadeira, ou outro objecto igualmente grande. Virei-me para o lado da rnesinha-de-cabcceira, onde tenho o meu relógio despertador 43 em forma de arco-íris, que o pai me trouxe da Suíça, e vi, horrorizada, que eram sete e meia. Às sete e meia de uma manhã de domingo aqueles dois já andavam pela casa a fazer barulho! Um destes dias vem cá a polícia, que os vizinhos não vão aturar isto muito mais tempo. Deitam-se ao amanhecer, levantam-se com as galinhas, batem com as portas, atiram com tudo ao chão; que inferno! Rastejei para fora da cama, cambaleei na direcção da porta, com a intenção de os fazer sentirem-se culpados por me acordarem assim de madrugada. Os pais têm a obrigação de gostar que os filhos durmam bem e muito. Quando cheguei ao corredor, estava a mãe a andar aflita de um lado para o outro, ainda em roupão. - O que foi, mãe? - Nada, filha, volta para a cama. Insisti: - Ó mãe, o que é que aconteceu? A mãe murmurou: - A avó Olga está no hospital. Teve um ataque de coração. O pai saía nesse momento da casa de banho. - Não te preocupes, Nina. Está tudo bem. Não é grave. Vou agora ter com o avô, que está à minha espera à porta da urgência do hospital. Mas o pai estava quase a chorar, enquanto me dizia estas coisas. 44 - Ó Nina, querida, não te preocupes! Nininha, va... A serio. O Daniel também já estava no corredor, com um ar de sono e uma t-shirt com um boneco a rir-se e a perguntar Guapo, yo? Mesmo parvo. O pai saiu, ficámos os três, a mãe, o Daniel e eu, na sala ao lado da cozinha a tomar o pequeno-almoço. Que mal que sabia tudo, o leite e os croissants quentes e a compota. Até o sumo de laranja parece que tinha sabor a remédios. * * * - Está nos cuidados intensivos. O médico mandou-nos embora. Disse que não estava para nos aturar. - Para vos quê? - Isso mesmo. Aturar. Para chegarmos até onde está a mãe foi preciso falar grosso ao porteiro, ir pelas traseiras. Quase tinha sido mais fácil escalarmos as paredes do hospital. E depois estivemos duas horas na sala de espera, com os doentes de outras secções a virem fumar para cima de nós. Quando, por fim, decidimos ir saber notícias da mãe, fomos recebidos com insultos e ameaças veladas. O pai estava furioso; a aflição com que saíra de casa tinha-se transformado em raiva: 45 - Se o próprio filho e o próprio marido de uma doente não podem aguardar, muito civilizadamente, na sala de espera, quem pode? Se não podem, de vez em quando, perguntar pelo estado da doente, quem pode? Isto está tudo podre! Aquele hospital é velho, é sujo, não inspira confiança nenhuma, na urgência parecia que se estava num matadouro, com gente a morrer pelos corredores em macas; e, ainda por cima, tratam-nos mal, como a ciganos. A mãe pôs um café forte ao pai e ao avô, tentava acalmá-los: - Não é assim, tu sabes que não é assim. O hospital onde está a tua mãe até tem muito boa reputação. - Realmente somos tratados como ciganos insistia o pai -, ou como cães! Ao que uma pessoa tem de se sujeitar. Como se não bastasse ter um parente chegado em perigo de vida! A mãe fazia sinais ao pai para não continuar a dizer aquelas coisas; o avô Gerardo ainda não tinha pronunciado uma palavra, e via-se que estava a custar-lhe ouvir o desabafo cheio de azedume do seu filho. O avô foi encostar-se ao vidro da janela da cozinha, em silêncio. Começou a chover, uma chuva grossa que fazia barulho ao bater nos vidros. A casa estava quentinha, as luzes todas acesas, mas era como se estivéssemos à chuva. Eu tinha frio e estava cansada, cheia de vontade de me meter na cama dos meus pais, como quando 46 era pequena, e ficar lá para sempre, aconchegada contra a mãe, com o braço do pai por cima do meu ombro. Fui buscar o Silvestre, trouxe-o para a sala do pequeno-almoço e sentei-me ao colo do avô, no cadeirão com almofadas às riscas brancas e azuis, junto à janela, agarrada ao meu gato. O Daniel olhou-me com ar de troça. Deixá-lo! O pai continuava nos seus desabafos: - Somos tratados como cães, como ciganos, realmente. O Daniel fez o seu primeiro comentário: - Desses racismos se faz a tolerância portuguesa. Ciganos, pretos, todos os que não são como a maioria, são vítimas de discriminação e insultos. Sem querer, o meu pai é às vezes pouco sensível. Não é defeito, ele até tem muito respeito pelas pessoas. Mas custa-lhe pôr-se no lugar dos outros e imaginar o que sentiriam ao ouvir certas coisas. Por isso, o que respondeu ao Daniel foi: - Há quem esteja pior. Em Portugal, pelo menos, as minorias vivem em segurança. Olha para o caso da África do Sul. Matam-se como doidos. Dantes, com o apartheid, nada disso acontecia. O Danny está a revelar uma grande qualidade: tem uma paciência verdadeiramente colossal. É como se tivesse molas: estas frases do meu pai, recebeu-as em silêncio, dando assim tempo a que ecoassem pela 47 sala. Assim, o pai teve tempo de ouvir as próprias palavras e de sentir vergonha. - Desafio-te para uma partida de xadrezdisse, a sua forma um bocadinho óbvia de pedir desculpa. E o Danny respondeu: - Não, obrigado. Vou telefonar aos meus pais, se não se importam. Levantou-se cheio de dignidade, e o pai seguiu-o. Ouviam-se as vozes de ambos, num murmúrio. Passámos o resto do dia a caminhar à borda de um precipício num dia de tempestade. A vez, o pai, a mãe e o avô Gerardo iam ao hospital saber notícias da avó. As sete da noite, deram licença ao avô para ver a avó a dormir. Pareceu-lhe bem, com um ar muito calmo. Em casa, demos todos gritinhos de alívio, menos o Danny, que estava num canto da sala a ler um calhamaço. Perguntei-lhe, para ser simpática: - O que estás a ler? Respondeu-me: - Um livro. Eu estava a sentir-me tão generosa! Acabara por ceder, e o meu quarto ia ser ocupado por aquele gigante antipático. Tinha passado todo o dia a fazer a mudança e a admirar-me imenso pela minha abnegação. Por momentos, agora, pensei que, se não fosse por já ter mudado as minhas coisas para o escritório, 48 lhe diria: "E se o fosses ler para tua casa?" Mas sou superior a estas provocações. Em vez disso, atirei-lhe: - Pensei que fosse um dicionário, para aprenderes a falar. E o parvo retorquiu, sem sequer levantar os olhos da página: - Para quem, como tu, está na fase dos álbuns para colorir, um livro a sério como este deve parecer estranho. Desandei, fui aprender com o pai a usar uma base de dados, embora estivesse a cair de sono. A primeira ficha que fiz foi a seguinte: para título do ficheiro escolhi Ódios de Estimação. Defini os campos: nome, idade, estado de idiotia, principais abjecções, tratamento. E fiz logo a ficha do bruto do meu primo: nome: Daniel Sakwe Sousa Santos idade: mental 2 meses; real 14 anos estado de idiotia: avançado principais abjecções: piadas estúpidas; lê com a boca aberta; gigantismo (?) tratamento: desdém; tarântulas no meio dos lençóis (?) Quando tiver várias fichas, posso consultá-las em alturas em que precise de saber, por exemplo, a quem meter tarântulas na cama, ou quem tem dois meses de idade mental. Facílimo, diz o pai. É só escolher procurar, e escrever a informação que se pretende obter. 49 Imediatamente se fica a saber em quantas fichas aparece a palavra procurada, e podem consultar-se essas fichas todas. Não é que eu tencione pôr animais perigosos entre os lençóis de muita gente... O pai passou-me um braço pelo ombro: - Ó filha, embirras assim tanto com o teu primo? Estava tristinho; eu respondi: - Embirrar, eu? Nem por sombras! Isto é a brincar. Eu adoro-o! Uma mentirinha de vez em quando não faz mal nenhum. É o que a avó diz sempre. Passei à ficha do Vítor: nome: Vítor Salema idade: não tem estado de idiotia: terminal principais abjecções: carneirismo galopante; perfeição nauseante tratamento: desdém; meter-lhe erros nos problemas de Matemática. Mais aliviada, fui para a sala ver desenhos animados, com o som no máximo, para incomodar o Danny. Sem olhar para mim, saiu da sala com um dedo metido no livro, a marcar a página. Intelectual! 50 Estupidez (como contornar a) - O que é que interessa se o cozinheiro elogia a comida que prepara? O que é preciso é perguntar aos que têm de a comer o que acham dela. - Que comparação interessante! Saiu da tua cabeça levezinha? - Não, para tua informação foi o Fernando Ka quem a fez, numa revista de língua inglesa. - Ai, mas que sofisticação! O rapazinho até lê revistas inglesas. Quem é esse tal Cá? É de cá ou de lá? - Não tens piada nenhuma, sabias? O Fernando Ka é o único deputado negro da Assembleia da República. 51 - Estás-me a dar uma grande novidade. Nem me passava pela cabeça que houvesse pretos na política; também, não admira, a política é cada vez mais uma questão de negócios escuros, ah!, ah!, ah! Esta conversa entre o meu primo e o Vítor estava a justificar o desdém que sempre senti por ele. Tinha de me lembrar de lhe modificar a ficha. É de mais. Quem é que ele julga que é? - Olha lá, quem é que tu julgas que és? Estás parvo? Vi bem que o primeiro impulso do Vítor foi responder-me à letra. Mas controlou-se, e disse: - Mas o que é que eu fiz? Nada. Só estou aqui a conversar com o teu primo escurinho. Não sabia que tinhas disto na família. O Daniel virou-se para mim e aconselhou: - É melhor não dar mais confiança a esta inteligência descomunal. Nem sei por que é que caí na asneira de lhe falar. É teu amigo? O Vítor: - Sou, pois. Eu: - Não, que ideia! Eu não tenho amigos assim estúpidos. A primeira manhã do Daniel na sua nova escola, a minha, não foi um grande sucesso. Ele anda no ano a seguir ao meu, mas combinámos encontrarmo-nos nos intervalos, para eu lhe ir mostrando os cantos à casa. 52 A Mafalda, depois do primeiro intervalo, perguntou-me, ao entrarmos para a aula: - Quem é aquele pão? E eu respondi-lhe, toda orgulhosa: - É o meu primo Daniel. Está a morar em minha casa. E veio logo a parva da Júlia: - Pode ser um pão, mas é bem tostadinho, ah!, ah!, ah! Que graça! O Sebastião, a bufar como de costume, perguntou-me: - Há muitos gigantes na tua família? Podiam montar um circo, ó Nina da Argentina. Eu, que normalmente aturo muito ao Sebastião, respondi-lhe com maus modos: - Cala-te, ó monte de banhas. Tu é que devias estar num circo. E ele afastou-se todo corado, ainda mais do que o habitual. Fui má; mas também, para que é que ele se veio meter comigo? Durante o resto da manhã, várias pessoas me foram perguntando quem era aquele rapaz com quem eu estava a passar os intervalos. Até a professora de História: - Catarina, quem é aquele rapaz com quem estavas no bar? É cá da escola? Olha que é proibido ter cá dentro pessoas que não pertençam à escola. 53 Eu tinha-a sossegado: - É meu primo, professora. E ela, com ar de dúvida: - Tens a certeza? Apeteceu-me responder-lhe mal. Mas tem de se dar um desconto aos professores; coitados, não fazem por mal. - É, professora, é meu primo e está a viver em minha casa. - Donde é que ele é? Disse-lhe o nome do subúrbio onde vivem a tia Liz e o tio André. A professora voltou à carga: - Não, eu pergunto donde é que ele é mesmo. Já um bocado enfastiada, disse-lhe que o meu primo era mesmo de onde era, mas que tinha nascido na maternidade. - Faz-me o favor de não seres mal-educada, está bem? Eu, mal-educada? Mas o que é que eu fiz? - Não tarda nada, estou a zangar-me, Catarina! Isso não são modos de falar a uma professora. Ora bem, vamos lá ver se nos entendemos: aquele rapaz negro é mesmo teu primo? Não estarás a esconder-me nada? Entretanto, a turma toda aproveitava para atirar aviõezinhos, dar risadas, uivar, cacarejar. .. - Já todos calados! Olhem que eu chamo o Directivo! 54 - Uau! Está mesmo fera! Deve ter sido o Sebastião. É claro que a aula de História não acabou bem. A professora tocou à campainha, veio a dona Dolores, a arrastar as socas ortopédicas, e a professora pediu-lhe que fosse chamar o presidente do Conselho Directivo. O professor Rodrigo é uma pessoa bem-disposta, sempre com uma palavra simpática para todos os alunos, e até traz laranjada e bolos para as reuniões com a associação de estudantes. Eu pensei: "Que seca, para que é que a professora de História o vai incomodar por uma coisa de nada. De certeza que ele vai dar uma das suas gargalhadas alegres e dizer: "Ó colega, francamente! Chamou-me por uma coisa destas?"" Não tinha contado com um pormenor importante: a solidariedade da classe. Assim como eu nunca me poria do lado de um professor contra um coleguinha meu, assim também o professor Rodrigo se viu na obrigação de alinhar com a professora de História: - Não têm vergonha? Isso são modos de se comportarem? E tu, Catarina, tu, que és tão responsável e madura! Francamente! Estou a ver que precisamos de ter uma conversa a sério. Às duas e meia, no meu gabinete. 55 * * * Nem o Daniel nem eu temos aulas à segunda-feira à tarde. Mas, como é o dia em que o pai está fora da cidade, a visitar os clientes da província, e a mãe nunca vai a casa à hora do almoço, o meu primo e eu ficámos na cantina da escola a almoçar. Um destes dias, sem os pais saberem, vou ao Inferno. Se poupar durante quinze dias o dinheiro da semanada dá de certeza para uma refeição. De qualquer modo, eu tinha de me apresentar no Directivo às duas e meia, e o Inferno fecha à segunda-feira. Na fila da cantina, com o tabuleiro nas mãos, enquanto esperávamos pela nossa vez, fomos ouvindo: - Quem é aquele pretinho tão giro que está com a Nina? - A Nina virou-se para África. - Um abraço a Moçambique, é? Francamente, estou com vergonha dos meus colegas. Se ontem me tivessem dito que eles eram uns racistas malcriados, eu teria respondido: - Mas isto não é a América, muito menos a África do Sul no tempo do apartheid. As pessoas em Portugal não são nada racistas. Depois do primeiro dia do meu primo na escola, já não sei o que dizer. Ele faz de conta que não ouve estas piadas, o que se torna ainda mais embaraçoso. Também, não sei para que é que ele é assim alto e bonito; 56 se fosse pequeno e feioso talvez desse menos nas vistas... Ai, que estupidez! O que eu já penso! A estupidez racista deve ser contagiante. Salto por cima da entrevista no Directivo. Há coisas em que é melhor nem pensar. Entrei, o professor Rodrigo falou, eu pedi desculpa e saí. Nem digo mais nada. Na paragem do autocarro estava, excepcionalmente, o Vítor. Ele vem sempre de bicicleta para a escola, mas hoje, por qualquer razão que nem cheguei a averiguar, não a trouxe. É que ele não me deu tempo de começar uma conversa normal, disse logo: - Mas agora esse aí não te larga? - Olha lá, esse aí tem nome. Chama-se Daniel. O Daniel, calado. - Pensei que fosse assim qualquer coisa como Quintundo ou Jimbindi. Lá em África só há nomes desses, assim estapafúrdios. E eu que cheguei a achar este animal inteligentíssimo! - Queres nome mais estapafúrdio que o teu? Tu és Salema ou Palerma? Isso é nome de gente? Envolvemo-nos numa daquelas discussões sem pés nem cabeça, que me fez perder a paciência e, por pouco, o autocarro. - Não me venhas dizer que esses países todos de África têm nomes normais. Cabo Verde. Rodésia. Timor, que parece "temor" mal pronunciado. 57 E eu que gabava os conhecimentos do Vítor a toda a gente! O Daniel sabe muito mais do que ele: - Que ignorante que tu és! Primeiro, a Rodésia era uma colónia, nãoé o nome de nenhum país actual. E deriva do nome de um colonizador, Sir Cecil Rhodes. Se era um nome estapafúrdio, isso deve-se aos europeus. Segundo, Timor fica no sudeste asiático. E o que é que Cabo Verde tem de estranho? Se calhar, achas mais apropriado cabo Espichel, ou cabo da Roca? Tu alguma vez estudaste Geografia? A partir daquele momento, o meu primo desinteressou-se da discussão, e ficámos, o Vítor e eu, a trocar palavras azedas. Ele, que costumava ser tão bem-educado para comigo, estava quase a mandar-me passear: - Olha, sabes que mais? És uma careta, é o que és. Se não fosse o Daniel arrastar-me por um braço, ainda tinha ficado na paragem a argumentar com o palerma do Vítor. Para cúmulo do azar, as vare tas do guarda-chuva do Daniel prenderam-se nos meus collants novos, giríssimos, que convenci a mãe a comprar-me, embora fossem mais caros do que o leite e o pão para uma semana (disse ela, que eu não sei o preço dessas coisas): - Também, que parvo! Olha o que fizeste! Estragaste-me os collants! 58 Este meu primo só me traz problemas: repreensões dos professores, chacota dos meus colegas, um ralhete da mãe, de certeza. O Daniel nem me respondeu; avançou pelo autocarro, como se não me conhecesse de lado nenhum, e uma senhora de bigode e com uma bata florida por baixo de um casaco de malha grosso, que estava sentada num dos lugares da frente, com as pernas afastadas e os pés firmemente assentes no chão do autocarro, consolou-me: - Deixa lá, filha. Não vale a pena dizer nada, que eles deviam ir era p'rà terra deles. E voltando-se para a passageira do lado: - Que eu não tenho nada contra os pretos, mas que é que eles estão cá a fazer? A senhora viu no noticiário, aquela pretalhada toda a manifestar-se? Queriam dinheiro, que vão para a terra deles. Eu também tinha visto a manifestação de estudantes angolanos no noticiário; não resisti: - Mas a senhora não sabe que são estudantes com bolsas do governo deles, e que se estavam a manifestar à porta da embaixada? A senhora ficou toda indignada: - Estudantes? E o que é que eles têm de andar a estudar à minha custa? Olha, filha, aprende que eu não duro sempre: que eu tenho três lá em casa que desde a idade de catorze anos que dão ali no duro, trabalham de sol a sol. E vêm para aí os pretos tirar-nos o lugar. 59 Ouviam-se vozes no autocarro a apoiar esta tirada: - É, é. Andámos nós em África para o outro dar as colónias de mão-beijada. - E têm-me cá um despi ante! Ainda outro dia, ia eu a passar na Baixa.. - Trabalhar de pá e pica! Malandros! Os passageiros estavam todos animados; falavam ao mesmo tempo e, como diziam mais ou menos a mesma coisa, nem se davam ao trabalho de se ouvirem uns aos outros. Um senhor de idade batia com a bengala nas costas do banco da frente, a sublinhar a originalidade das suas ideias. - Ó santinho, cuidado! Não vê que me está a dar com a bengala? - Julgam que somos todos pretos, é o que é. Já não há respeito nem educação; isto digo eu. Que ignorância! Virei-me para a senhora e disse: - Mas se os seus filhos trabalham desde os catorze anos, os estudantes negros não lhes estão a tirar os lugares na Universidade. Já alterada com o ambiente no autocarro, a senhora berrou-me: - Olha a serigaita! Ó sua mal-educada! É isso que andas a aprender na escola, é? Tinha chegado a minha paragem. Saí a toda a pressa; o meu primo esperava-me na rua. Já quase concordo com o Daniel. Para quê falar? 60 Falhas no sistema (avisos e soluções) O tio André veio visitar-nos hoje à noite. Ele é médico de medicina interna, o que quer dizer que sabe tratar de todas as doenças do corpo. Veio para nos sossegar quanto à avó, e trazer ao Danny umas gotas para a sinusite. Este rapaz é um poço de maleitas! - Sabes que o que aconteceu à tua avó não é grave; é um aviso apenas. - Um aviso? - perguntei, sem perceber muito bem. - Sim. Olha, tu agora tens um computador teu, não tens? 61 Aproveitei logo a oportunidade: - Tenho, tio. Queres jogar um jogo comigo? O Daniel não se interessa minimamente pelos meus jogos. Diz que são muito infantis. Não que eu o tenha desafiado para uma partida. Quer dizer, posso ter feito uma sugestão discreta, mais nada O tio respondeu-me: - Não, obrigado, Nina. O que eu queria dizer é que o que aconteceu à tua avó tem certas semelhanças com uma coisa que acontece por vezes nos computadores. Nunca te apareceu uma bomba no ecrã? Uma bomba no meu computador? Nem por sombras, que horror! - Ó pai, eu não sabia que os computadores explodiam. O tio André virou-se para o pai e, por entre gargalhadas, pediu-lhe: - Explica aqui à tua filha o que são as bombas que aparecem às vezes nos computadores. O pai recostou-se no sofá, pegou no maço de cigarros que nunca anda por longe, embora ele tenha deixado de fumar há quatro meses, e começou a falar: - Quando aparece uma bomba no ecrã, é sinal de que... Acendeu um fósforo, pôs um cigarro na boca, e o tio André interrompeu-o, virando-se para mim: 62 - Por exemplo, este gesto do teu pai contribui para que apareçam os tais sinais de aviso no nosso corpo, à semelhança das bombas dos computadores. O pai apagou o fósforo imediatamente, esmagou o cigarro no cinzeiro, embora não o tivesse chegado a acender, e prosseguiu: - Ora bem, quando o sistema operativo do computador está sobrecarregado, porque há pouca memória para o que se está a fazer, por exemplo, pode acontecer que apareça o desenho de uma bomba e o aviso de que o sistema não está a conseguir aguentar com tanta carga. O tio André completou a explicação: - E com o corpo humano passa-se o mesmo. A avó Olga tem o sistema sobrecarregado, e o coração, que é o núcleo desse sistema, deu o seu aviso. O que ela tem agora a fazer é aliviar a carga. O meu tio é uma pessoa inteligentíssima, um médico muito conceituado. Mas, neste caso, a explicação dele parece-me pouco provável: - Mas a avó não trabalha muito! Ela nunca fez esforços excessivos! Ela nem trabalha! A mãe, que tinha entrado na sala à procura dos óculos, emendou-me: - Não trabalha? Farta-se de trabalhar, menina! É dona de casa. O tio André gosta muito da sua irmã; e de a arreliar: 63 - Como tu, minha Dorinha, que és uma fada do lar e ainda tens aqueles milhões todos a passarem-te pelas mãos diariamente. Há poucas coisas que ponham a mãe tão bem-disposta como estes duelos verbais com o irmão: - Já para não falar do apoio moral e psicológico que tenho de dar a certos curandeiros que conheço. Eles os dois encontram-se todas as quintas-feiras para almoçar, e a mãe vem sempre cheia de histórias de doenças terríveis e das curas milagrosas que o tio André consegue. O tio continuou a falar sobre o problema da avó, depois de beber mais um gole do uísque: - Pois é, mas, mesmo que não fizesse nada, os erros no sistema não ocorrem apenas quando ele está sobrecarregado de trabalho. Também podem acontecer por se usar software inadequado - quer dizer, por a tua avó ter comportamentos que, noutra pessoa, com outro sistema, não causariam problemas. Comportamentos, como? - Hábitos, quero dizer. Pouco exercício, fumar, alimentação incorrecta para o seu tipo de vida, stress... O tio André não conhece bem a minha avó. - Stress, tio? A avó é uma pessoa calmíssima, não uma yuppie a trabalhar na Bolsa de Nova Iorque. Até o Daniel se riu, perante a perspectiva da avó Olga no meio daqueles homens de mangas arregaçadas a fazerem gestos frenéticos e aos gritos uns 64 com os outros. Pensando bem, era capaz de não destoar muito. Já eram dez e meia, o tio André tinha de se ir embora. Mas antes, ainda disse: - Pode viver-se no campo, com passarinhos a pipilarem e as árvores a adejarem na brisa, e estar sob stress mesmo assim. De qualquer maneira, quero que fiques a saber que fui ver a tua avó, e que ela está muitíssimo bem, a recuperar lindamente. Mal o tio saiu, tive uma ideia luminosa: fui para o escritório, liguei o computador e abri um jogo; em seguida, sem o fechar, abri o programa de processamento de texto; depois, o programa de desenho. Não me fiquei por aí: abri o programa de ficheiros que ando a aprender a usar. Não aconteceu nada. Nada de nada, nem bomba nem mensagem de aviso. Nada. Afinal, o tio André não devia ter razão, pensei; pelo menos, no que diz respeito a computadores e o que eles conseguem aguentar. Os adultos nem sempre sabem tudo. Decidi abrir também o programa de cálculo. Alto! Uma mensagem: Não existe memória suficiente para abrir o programa de cálculo. Abandonar o Ficheiro, que não apresenta qualquer janela aberta, e abrir programa de cálculo? Cancelar Abandonar aplicação 65 Era isto então, embora sem a bombinha. Cancelei a operação, e desliguei, um a um, os programas que tinha ligado. Pensando melhor, voltei a abrir o processador de texto. Agora que durmo no escritório, tenho a impressora do pai à minha disposição. Também, alguma vantagem havia de ter na mudança. O cabo do computador do pai estava ligado à impressora, que é de jacto de tinta, mas parece laser: os textos saem com um ar tão perfeito que parecem páginas de livros. Liguei o cabo do meu computador e a impressora. Escolhi um papel bonito, cor-de-rosa. A avó ia gostar de ter uma carta minha para ler enquanto está a recuperar no hospital. - Nina! Já para a cama! - 6 mãe, estou a escrever uma carta à avó. - Estou farta das tuas mentirinhas. Que coisa! Não sei a quem tu sais. A mim é que não é. Já para a cama, já disse. Não ouves? Já apagar a luz. Que injusta que é a minha mãe! E é de ideias fixas. Antes de eu ter o computador, detestava que visse televisão, e andava sempre a ralhar-me por passar horas a perder tempo, como dizia. Agora, é isto que se vê. Um destes dias, só para experimentar, vou passar a ler muito: pode ser que ralhe e me proíba também de ler. - Eu não estou a mentir, mãe. Olha, queres ler? A mãe aproximou-se da secretária e começou a ler a minha carta para a avó. 66 Querida avozinha Estou a escrever-te esta carta no escritório, que é agora o meu quarto. O Silvestre está sentado em cima da secretária ao lado do computador e manda-te muitos beijinhos. Pois, avó, o Daniel já está a viver connosco há mais de uma semana, e parece que se habituou aos cozinhados da mãe e aos horários esquisitos do pai. Também, está instalado que nem um príncipe no quarto mais bonito do mundo. Lembras-te quando fomos as duas escolher o tecido para os cortinados? Eu queria um padrão com o Michael Jackson, mas tu aconselhaste-me a escolher antes borboletas, ou flores, que não cansam, disseste tu. E tinhas razão. O Michael Jackson é uma seca. Avozinha, põe-te boa depressa, que tenho vários jogos giros para mostrar, e queria pedir-te a opnião sobre um trabalho para Educação Visual. O tio André disse que tiveste uma falha no sistema, mas que é só um aviso, e que já estás boa. Não te stresses com nada, olha que não faz bem! Já sei, já sei, stress não é uma palavra portuguesa. Mas faz muito jeito por isso a uso. Vou mandar-te esta carta com letra que imita uma caligrafia bonita como a tua; o tipo de letra chama-se Bickley Script. No fim, com uma lágrima a pôr-lhe os olhos brilhantes, disse: - Desculpa, filhinha. Às vezes sou mesmo indecente. Agarrei-me à minha mãe: - Não és nada. E a mãe, a fazer-me festas no cabelo, o que normalmente detesto: - Agora vai-te deitar, minha querida, que já é tarde. Mas antes imprimi a carta da avó, no papel reciclado cor-de-rosa, muito bonito, que recebi da tia Luís como prenda de Natal; meti a folha num envelope da mesma cor e dei-o à mãe, que vai visitar a avó amanhã. Ainda tentei: - Posso ir contigo, mãe? Assim levava a carta em mão. A mãe respondeu-me como de costume: - Já sabes que não pode ser. Não entram crianças no hospital. E eu reclamei da forma habitual: - Mas eu já não sou nenhuma criança. Tenho treze anos. E é verdade. Com a minha idade, já é tempo de encarar as coisas da vida, a doença, o sofrimento, até mesmo a morte. Se não for agora, quando? Quando já for de meia-idade, aos vinte e cinco? Nunca? Se a avó morrer, será que o pai ou a mãe me vão dizer: 68 - Para ti, a avó ainda não morreu. És muito novinha. Para ti, a avó ainda continua viva. Eu não consigo compreender isto das doenças graves e da morte: parece-me uma partida das que os meus colegas mais parvos gostam de pregar, mas amplificada para umas proporções grotescas. A avó estava bem, tinha uma vida agradável, com actividades simples, que lhe davam prazer e não prejudicavam ninguém De um momento para o outro, praticamente sem aviso, sofre, arrisca-se a morrer, se calhar vai ter de mudar de estilo de vida, como disse o tio André. Assim, sem mais nem menos. É injusto. 69 Girinos (e outros seres em estádios intermédios) O Vítor tem pontos negros no nariz, e eu nunca tinha reparado. Tenho de confessar que, por mais que aparentasse ignorá-lo e por muito que o enxotasse, não desgostava dele. Quer dizer, não era assim uma paixão louca nem nada, mas, se não lhe ligava era mais para me tornar interessante aos olhos dos meus amigos - e de mim própria - do que por realmente não gostar dele. Que profunda que eu estou, e que bem que me exprimo! A psicóloga da minha escola disse-me, depois da entrevista que tive com ela no princípio do 71 ano, que eu tinha uma grande capacidade de verbalização. Ia rir-me, porque julguei que me estava a falar da conjugação de verbos, ou qualquer coisa do género; mas ainda bem que parei a tempo, se não tinha-me envergonhado das minhas gargalhadas alarves. Depois de conversarmos sobre a escola, as minhas disciplinas preferidas e a minha família, ela tinha-me perguntado: - Lês muito? E eu respondera, pouco à-vontade: - Depende. Se forem coisas interessantes, leio. Continuou o interrogatório: - E escrever? Escreves? Um diário, por exemplo? Que pires! Um diário, era só o que faltava! - Não, eu?! Eu nunca escrevo nada, nem cartas. E ela: - Pois olha que não parece. Tens uma grande capacidade de verbalização. Acrescentou, antes de eu ter tempo de me rir: - Quer dizer que te exprimes muito bem, que manejas a língua com muita facilidade. Apeteceu-me deitar a língua de fora, retorcê-la e olhar para a psicóloga com os olhos em bico. Mas sabia que o momento não era o mais indicado para mostrar os meus dotes. Não aqueles, pelo menos. Voltando ao Vítor: tem pontos negros no nariz, e eu nunca me tinha apercebido. Ou se calhar tinha, mas, quando ele era um rapaz simpático, nem 72 notava. Agora, desde que o Daniel veio cá para a escola, o Vítor teve uma metamorfose mais repelente do que a das rãs, e os pontos negros parecem os charcos em que vivem os anfíbios. O seu comportamento degenerou a uma velocidade tal que mal tive tempo de me adaptar ao novo Vítor: ontem, por exemplo, estavam dez ou doze rapazes à porta da escola à espera dele. Amigos de outras escolas, a quem o Vítor marcou encontro na nossa. O Dannye eu íamos a sair e eles começaram a esguichar na nossa direcção um líquido nojento de umas bisnagas de Carnaval. Se calhar era só água misturada com coca-cola, mas de qualquer maneira... Riam-se e diziam graçolas grosseiras, e o Vítor era dos mais animados. Depois, vieram pela rua abaixo atrás de nós, a cantarem umas cantigas com as letras alteradas; já não tinham mais líquido nas bisnagas, mas iam rebentando bombinhas de Carnaval. As pessoas que passavam na rua afastavam-se, ninguém, nenhum dos adultos, se atreveu a metê-los na ordem. Nós íamos a casa da avó Olga, que veio ontem do hospital. Pedi ao Danny: - Não contes nada disto à avó, não? Podia incomodar-se, e o stress não lhe faz nada bem. É uma pena as vítimas não serem sempre umas pessoas queridas. O Danny, por exemplo, tem umas reacções tão bruscas que dá pouca vontade de uma pessoa se mostrar solidária. Disse-me: 73 - Vê lá se aprendes a falar português de gente. Stress! Já quase pareces a minha mãe. É indecente. Que culpa tem a tia Liz de a língua portuguesa ser das mais difíceis? E de se usarem tantas palavras inglesas na nossa língua? E ela nem fala nada mal, só quando se entusiasma com algum assunto é que perde um bocado de vista as regras da gramática, principalmente a conjugação dos verbos e o género das palavras. Mas é fácil compreender por que razão o faz: em inglês os verbos não têm formas diferentes para todas as pessoas, e os nomes dos objectos não têm género feminino ou masculino. Que detestável que é o Daniel! - É como os pobres, por exemplo. A pobreza não facilita atitudes bonitas, nem provoca palavras agradáveis. A pobreza é quase automaticamente vista como um defeito, de que o pobre é culpado; tratamo-lo com desaprovação, e ele retribui-nos na mesma moeda, o que só confirma o nosso desprazer. Sem te aperceberes, tu achas que ser negro, ou mulato, é uma desvantagem; e que, por isso, o Daniel tem obrigação de te estar muito agradecido por te pores do lado dele. O pior é que, se calhar, o Danny também sente a sua raça como um inconveniente. Essa é uma das piores consequências do racismo, o autodesprezo. Foi o avô Gerardo quem me disse isto. Enquanto a avó e o Danny conversavam na saleta do primeiro andar, o avô e eu estávamos na cozinha a preparar 74 o lanche da avó, que tem de ter uma dieta muito rigorosa, e eu tinha desabafado com ele sobre o meu primo, já que agora não se pode incomodar a avó. O avô é bem capaz de ter razão. Mas por que é que o Daniel nem sequer me ajuda a fazer o trabalho de casa de Matemática? Ou, pelo menos, por que não deixa a casa de banho, que partilhamos, menos enevoada de manhã? - E nem disse nada, avô, nem se voltou para trás para responder ao palerma do Vítor e aos amigos dele. O avô barrava uma fatia de pão escuro com um bocadinho de nada de manteiga; antes de me responder, comentou: - Só um bocadinho de manteiga de certeza que não faz mal - e perguntou-me em seguida: - Então tu querias que o Danny fosse um rufião, e desatasse a fazer ameaças e a bater nas pessoas? Surpreendeu-me que o avô não me tivesse compreendido: - Ó avô, eu sempre ouvi dizer que quem não se sente não é filho de boa gente. O avô riu-se: - Não estava a contar com uma neta tão retrógrada! Então tu agora pensas com frases feitas? - E que mal é que tem? Se as pessoas acreditam nestas frases há séculos, é porque elas têm algum fundo de verdade. Ou não? 75 O leite começou a ferver e o avô afadigou-se por momentos à procura de uma pega, a tirar o fervedor do fogão e a deitar o leite na chávena branca às pintinhas azuis da avó. Não sei o que me parece não ser ela a fazer estas coisas! O avô disse: - É leite magro, não faz mal nenhum. O problema é que também não sabe a nada, a avó não gosta. E, a caminho da sala, subindo as escadas à minha frente, respondeu à minha pergunta: - Não sei, Nina, não sei se há verdade nas frases feitas, ou se elas são apenas uma maneira de nos poupar o esforço de pensar a sério. As pessoas acreditaram durante séculos que os negros eram seres inferiores, que podiam tratar como animais de carga. A mim parece-me um pouco limitado pensar pela cabeça dos outros. Se o Danny não reagiu aos insultos de um grupo de adolescentes perturbados, deve ter as suas razões; se calhar acredita na resistência passiva. Por que não lhe perguntas? - Para quê, avô? Ele quase não me fala. Não fala a ninguém. Nem mesmo quando o Vítor lhe começou a passar rasteiras no campo de jogos. Eu tinha sugerido ao meu primo: - Por que não fazes queixa ao presidente do Directivo? 76 E o Danny só encolhera os ombros. Quando tentei contar em casa o que se passava na escola, o Daniel desmentiu-me com o seu silêncio. O avô ainda me disse, antes de empurrar a porta da sala com o tabuleiro do lanche da avó: -Tu é que estás numa boa posição para conseguires que ele desabafe. São quase da mesma idade, andam na mesma escola, vivem na mesma casa. Os adultos têm cada ilusão! 77 Herói (breve história de um) Imaginem uma pessoa que: - só usou o primeiro par de sapatos quando foi para o liceu; - na primeira vez que manejou faca e garfo, já estava em idade de namorar; - ia a pé para o emprego, distante dez quilómetros, por não ter dinheiro para o bilhete de autocarro; - quando já era advogado, ajudou uma vez uma senhora a estacionar o carro dela, e recebeu uma moeda em paga, como se fosse um garoto; 79 - quando ia a um restaurante, tinha de ir comprar a comida à cozinha e vir comê-la cá para fora. Imaginem uma pessoa: - a quem chamavam "rapaz" quando já era pai de filhos; - cuja casa era frequentemente invadida pela polícia, a meio da noite; - que foi condenado por crimes como o de sair do país sem autorização (que não lha dariam, se a pedisse), e incitar as pessoas a reclamarem por não terem sapatos, serem tratadas com desprezo, não poderem entrar em todos os restaurantes, ou piscinas, ou autocarros, não lhes permitirem votar, nem residir onde quisessem, nem trabalhar no que mais lhes agradasse, tudo por não terem a cor de pele certa. Imaginem que esse homem passa quase trinta anos na prisão, onde o obrigam a partir pedra e lhe dão papas de milho e legumes podres para comer e calções para vestir, porque é um "rapaz" de cinquenta, sessenta anos. Nesses quase trinta anos, praticamente não vê a família, poucas cartas lhe deixam receber e as que recebe vêm todas riscadas pelos censores, ou retalhadas. Imaginem-no agora a ser por fim libertado: em toda a parte é recebido por multidões em delírio, os chefes de Estado de todo o mundo acolhem-no como 80 um alto dignitário, e o presidente do seu país tem de se vergar às condições que ele impõe. Ambos recebem o Prémio Nobel da Paz. Parece uma história mirabolante, não parece? Mas é toda verdadeira, a que anda a ler o Danny. Está entusiasmadíssimo com a autobiografia de Nelson Mandela, aquele calhamaço do tamanho de um dicionário. Não admira. - Se eu fosse à minha mãe, não tinha saído da África do Sul. A avó Olga, com um novo penteado e uma roupa alegre que a faz parecer dez anos mais nova, pergunta: - Mas não achas que qualquer pessoa no lugar da tua mãe quereria escapar de um sistema tão injusto como era o do apartheid? O Danny é sempre do contra: - Não, não acho. Deve ficar-se no próprio país, e lutar contra o que está mal. Como o Nelson Mandela. - Está bem, mas se não se tem vocação para a política? O Daniel respondeu, todo sério: - Num regime ditatorial, toda a gente tem a obrigação de se empenhar na luta política. O pai, que nos vinha buscar, entrou a tempo de ouvir esta tirada grandiosa, e exclamou: - Temos aqui um comunistazinho! Ora boa tarde. 81 Não acredito que faça por mal, mas tem imenso azar em praticamente tudo o que diz ao Danny. O meu primo não respondeu, olhou para o chão com um ar contrafeito e, no silêncio embaraçado, ouviram-se umas gargalhadas estrondosas. - Ah' ah! ah' ah! Essa é muito boa! Ah! Ah! ah!, ah! Era o avô ao telefone. Sorrimos todos, à espera que nos viesse contar o que o fizera rir. Chegou à porta da saleta e disse-me: - Nina, é para ti. É um teu colega, que tem uma mensagem pessoal e intransmissível para te comunicar. - Quem é? - perguntei, baralhada. O avô respondeu-me: - Não quis dizer o nome. Se calhar também é pessoalo e intrasmissível. Ah! Ah! Ah! Ah! Têm muita graça os teus amigos. Ah! Ah! Ah!... Eu já não estava a achar piada nenhuma àquilo: - Então se não sabes quem é, não atendo, pronto. A avó acotovelou o avô Gerardo: - Não sejas assim! Não vês que a pequena está a ficar irritada? - Assim, como? é que tem uns amigos ah!. .. - Que seca! Não vou atender, pronto. O pai fez voz grossa: 82 - Mas que má educação é essa? Já pedir desculpa ao seu avô! - O que é que eu fiz? Não, digam-me, o que é que eu fiz? A avó perguntou, toda irritada: - Mas o que é que a pequena fez? Não, digam-me, o que é que ela fez? Tem toda a razão em não atender uma chamada incógnita. E, também, não sei que graça acham à situação! O meu pai murmurou: - Está bem, mãezinha, deixe lá. Não se enerve. E a avó foi aos arames, como ela gosta de dizer: - Não me enerve? Não me enerve? Não me enerve? - Pronto, pronto, pronto... Todo enfiado, o avô foi dizer ao meu colega anónimo que eu não podia atender. Veio do telefone com a novidade que se tratava de um tal Vítor. Bem feita! Um-zero. - Como é que descobriste o número de telefone dos meus avós? Tinha de ralhar à mãe. - Desembucha; ou julgas que tenho o dia todo? - Nem morta! Era só o que me faltava. - Já te disse que não. Não... ouve lá, tu estarás parvo... Então insultas-me e ao meu primo... - Fazes anos no Carnaval? Bem me queria parecer. 83 - Eu? Na tua festa? Ah!, ah!, ah!, deixa-me rir. - Nem penses, já te disse. -Vinte pessoas? A Júlia? O Sebastião? E quem mais? - No Inferno? Bem... Vou pensar. Voltei para a sala, onde o avô, a avó, o pai e o Daniel estavam todos sorumbáticos. - O que foi? Por que estão todos com cara de caso? O Daniel olhou para o chão, e o pai respondeu: - Acho que já incomodámos a avozinha o suficiente por hoje. Vamos lá embora. No carro, o Danny atirou-se para o banco de trás, pôs os auscultadores nos ouvidos e eu voltei a perguntar ao pai: - O que é que aconteceu enquanto eu fui atender o telefone? O pai fez um sorriso contrafeito, ligou o rádio e disse: - Olha, Catarina, eu acho que temos de ter cuidado para não incomodar a avó; ela agora tem de ter muito sossego, e não lhe faz nada bem assistir a discussões e ouvir respostas mal-educadas. Compreendeste? Eu insisti: - Mas o que é que aconteceu enquanto eu fui atender o telefone? 84 - Nada. Pedi desculpa à avó por ti. Mas espero que estas cenas não se voltem a repetir. - Que cenas? O que é que eu fiz? O pai estava enervado: - O lha, minha menina, só te digo que o teu comportamento não me anda a agradar nada. Apetecia-me chorar. Há dez minutos atrás estava tudo bem. Eu tinha vindo para o carro com a intenção de falar ao pai e ao Danny no convite estapafúrdio do Vítor, contando fazê-los rir, e convencer o pai a deixar-me ir à festa. Em vez disso, sem saber bem como, fui repreendida pelo meu comportamento. 85 Inferno (uma descida ao) - Olha que estou mesmo aflita. Deixa-me entrar. Com o seu vozeirão desagradável, o meu primo respondeu: - Vai à outra. Colei a orelha à porta da casa de banho e ouvi-o sussurrar: - Eu vou pensar. Muito obrigado pelos conselhos. Adeus. Desligou, e eu afastei-me, a tempo de disfarçar e deixá-lo sair da casa de banho com o telefone na mão. 87 O Danny está cada vez mais esquisito. É claro que insisti com ele: - Não, mas diz-me lá, agora vais telefonar para a casa de banho? - E depois? Encaminhou-se para o meu quarto, que é agora dele, e eu, seguindo-o, voltei a atacar: - Para quem era? - E o que é que tu tens a ver com isso? Era de mais! - Então tu estás quase uma hora ao telefone, e não me queres dizer com quem estiveste a falar? Espapaçado em cima da minha cama, com os ténis calçados (ai se a mãe vê!), o Danny disse com maus modos, sem tirar os olhos da autobiografia do Nelson Mandela: - E eu agora tenho que te manter informada? Era só o que me faltava. Supliquei: - Anda lá! Diz-me. E o bruto do meu primo só respondeu: - Deixa-me! Não vês que estou a ler? Decididamente, o Daniel não ia satisfazer-me a curiosidade. O melhor era ir vestir a roupa nova que convenci a mãe a comprar-me para levar à festa do Vítor: saia, t-shirt cor-de-rosa, botas de sola de borracha branca, collants às riscas cinzentas e cor-de-rosa. 88 - Achas que fica bem este colar? - De uma vez por todas: deixas-me em paz? Não sei para que continuo a insistir em falar com o Danny. Ele nem quis saber por que é que eu acabei por aceitar o convite do Vítor. E persistia em não vir comigo, quando sabia muito bem que o Vítor mandou pedir desculpa e o convidou expressamente para ir à festa no Inferno. No dia a seguir ao convite do Vítor, eu expliquei à mãe: - Sabes, o Vítor não faz por mal; é parvo de nascença. Mas não é má pessoa. E até me disse para convidar também o Danny. Só que ele não quer ir. Diz que não está para se dar com racistas mentecaptos. Deixas-me ir, mãe? A mãe pareceu-me um pouco incomodada: - E tu aceitaste o convite? Não te parece mal? - Mal? Mal como? - Então ele e os amigos fazem pouco do teu primo, perseguem-vos na rua e tudo, e tu não vês mal nenhum nisso? Tentei explicar à mãe que não era por uma coisa assim sem importância que ia deixar de ir a um jantar no Inferno, o restaurante mais louco da cidade. - Sem importância? - a mãe parecia cada vez mais preocupada. - Sim, não vês que o Vítor não fez por mal? Foi uma palermice. 89 Olha, e se telefonasses à avó Olga para saber a opinião dela? O pai, que até àquela altura parecia muito absorvido na leitura do jornal, disse calmamente, com a falsa calma dos seus piores momentos: - Não telefona à avó coisa nenhuma. Já bem basta o que a arreliou ontem. - Eu, eu? O que é que eu fiz? O pai deu-me a resposta mais irritante do mundo: - Tu bem sabes o que fizeste. Não te venhas dar ares de inocente. Parece-me que a mãe teria gostado de discutir este assunto, mas só me disse: - Está bem, podes ir à festa do Vítor. Afinal, já tens quase catorze anos, sabes bem o que andas a fazer. Aproveitei a onda de benevolência para pedir dinheiro para roupa, e sugeri ao mesmo tempo: - Não precisas de vir comigo às compras. Posso ir com a Linda. O pai dobrou o jornal ao meio, atirou-o para o chão, o que a mãe detesta, e disse, com um cigarro na boca: - Quem é essa Linda? A mãe não me deu tempo a responder: - Mas isto agora é a Inquisição? E não me digas que vais fumar. O ambiente cá em casa começa a ficar um bocado pesado. 90 Eu sei que o pai está bastante preocupado com o estado de saúde da avó Olga, mas nem eu nem a mãe devíamos sofrer as consequências dessa aflição. O pior é que não se pode falar ao pai, ele não está em si. O que interessa é que comprei a roupa nova, pus um colar surripiado à mãe, passei por casa da avó para ela me ver toda bem vestida e às sete e meia cheguei ao Inferno. O diabo-porteiro, ao lado do Vítor, que esperava os seus convidados, deu-me uns chifres de plástico com uma cinta de cartolina, para por na testa, e o Vítor perguntou-me: - Então o Daniel sempre vem? Por que não veio contigo? Eu estava a inventar uma desculpa, quando o carro do pai parou à porta do restaurante, e dele saiu o Danny, macambúzio como sempre. O pai acenou-me e arrancou imediatamente - Sempre vieste? - Que te parece? O Vítor, com um ar todo arrependido (o grande actor!), virou-se para o Danny, a quem o diabo estava a dar uns chifres, e disse: - Desculpa lá, pá. Eu às vezes sou um bocado parvo. Desculpas? O Danny, com o primeiro sorriso que lhe vi em semanas, respondeu: - Estás desculpado. 91 E, com o dedo indicador em riste, e o sorriso colado à cara, ameaçou: - Mas que não se repita, ouviste? Riram-se os dois, e deixaram-me especada à porta. Ofertas de serviços, bilhetes de cinema, redacções, equações, onde estais vós? Será que o Vítor não me ia ligar mais, agora que tinha um novo amigo? E os pontos negros do nariz, que já mal se viam! Também, o Danny é um catavento. * * * - Não achas, avô? No domingo seguinte, enquanto metíamos a loiça na máquina, perguntei ao avô a sua opinião sobre a mudança súbita do Daniel. Sorriu. - Diz lá, não achas? - insisti. - Afinal, o Vítor tratou o Danny pessimamente, fez comentários racistas, perseguiu-nos na rua e tudo. O avô raspou os restos de arroz de um prato e, com a colher na mão, a apontar para mim, comentou calmamente: - Tu perdoaste ao Vítor; por que é que o Daniel não havia de te seguir o exemplo? - corei, tenho a certeza. O avô continuou: - É claro que tu não esqueceste o comportamento do Vítor porque te convinha. Foi porque compreendeste que o teu colega 92 estava apenas a chamar a atenção sobre si, não foi? E decidiste dar-lhe uma oportunidade de se redimir. Ora bem, a avó teve uma conversa com o Daniel, e fez-lhe ver que, se ele queria mostrar a sua superioridade moral, não devia jogar o jogo do inimigo. Tinha então sido a avó a interlocutora misteriosa do Daniel! Para falaràs escondidas com ela tinha ido meter-se um ror de tempo na casa de banho. Que infan tilidade! O avô atirou com a colher para dentro da pia e fez o sinal de aspas com os dedos. Prosseguiu: - "Inimigo", digo bem. Por que não seguir o exemplo do ídolo do Danny, o Nelson Mandela? Ele também perdoou aos que o insultaram, falou com eles e chegaram a acordo. Com tão bons resultados que no governo de que é primeiro-ministro há brancos que em tempos o mantiveram na prisão. Eu deixei-me ficar calada. O que é que podia dizer? Tinha-me apercebido da minha hipocrisia, e da coragem do Danny. * * * Voltando à festa no Inferno, a melhor a que alguma vez fui. A comida era toda infernal, frango assado no espeto (trazido por diabos vestidos de vermelho, com chifres e rabos), batatas fritas e salada de milho, 93 dúzias de sobremesas pecaminosas, música altíssima, como a mãe e o pai não me deixam ouvir em casa. O Sebastião, embora seja demasiado gorducho e bonacheirão para parecer um verdadeiro diabo, vinha vestido de vermelho da cabeça aos pés e, com os chifres de plástico e uma cauda improvisada com três cintos de pele pretos, parecia verdadeiramente mefistofélico: - Nina da Argentina, confessa-me já os teus pecados. Dava saltinhos à minha volta, com o prato a transbordar de comida numa mão e o garfo na outra, enquanto metia quantidades descomunais de comida à boca. - Eu? Pecados? Não tenho, sou um anjo. Gargalhada geral. Havia estalinhos a rebentarem por todo o lado, labaredas pintadas nas paredes, e uma grande lareira mesmo no meio da sala. Depois de comermos, o nosso grupo dançou ao som de música diabólica, enquanto os outros rapazes e raparigas que também estavam no restaurante se mantiveram muito sentados, como bons meninos: uns anjinhos. O Danny fez sucesso, e a mole da Júlia fartou-se de falar com ele, para desespero da Linda, que está mortinha por conhecer melhor o meu primo. Às onze e meia, os diabos de serviço escolheram as almas que queriam levar com eles para os seus infernos respectivos. 94 Eu fui escolhida por um diabo muito giro, quase tão alto como o meu primo e com uns olhos azuis muito pouco infernais. Em grupos de dez, seguimos o nosso diabo-chefe a trote à volta da sala, entrámos numa barca que nos levaria para atravessarmos o rio Letes, se o dono do Inferno já tivesse montado essa parte do restaurante (só lá para o Verão) e, cada grupo num canto da sala, na sua respectiva barca, cantou à vez, e muito afinadinho, a canção diabólica, com a melodia de Todos os Patinhos Sabem Bem Nadar: Somos diabos diabólicos infernais Temos forquilhas, espetos e muito mais Na nossa barca entram todos os pecadores Não entram anjos, nem arcanjos não senhor! Já passava da meia-noite quando a mãe nos veio buscar. Que noite bem passada! 95 Juízo final Pensando bem, que primo simpático que eu tenho! Até já me prometeu que um destes dias faz um jogo comigo. Mais cedo ou mais tarde, hei-de descobrir por que mudou para a minha escola. A tia Lizbeth, que telefona todos os dias a saber como vão as coisas, e aparece cá por casa pelo menos uma vez por semana, já me explicou várias vezes a razão da transferência; mas fala sempre de maneira que não se entende nada: . - Schluuk mmm que bons bolachas. É, foi por isso querrida. A avó aconselhou: 97 - Se o Danny não te quer dizer a razão, mais vale não insistires. Mas mudou logo de assunto: - Não queres jogar às cartas comigo? O avô está tão medricas que não quer que eu vá ao casino tão cedo. Nem ao menos que convide umas amigas para jogar bridge. Estou a ver que tenho de começar a jogar xadrez com ele. Eu fiz uma careta de aflição: - Não, por favor, avó! Não te estou a ver a calculares a próxima jogada durante um dia inteiro. O Vítor, quando veio há bocado trazer a sua bicicleta de montanha para emprestar ao Danny, disse-me: - Se calhar, na outra escola havia racistas parvos que lhe tornavam a vida difícil. Apeteceu-me responder-lhe com uma pergunta: - Como tu, ao princípio? Mas o Vítor não é racista, é só ignorante; e, como eu precisava de parceiro para o Jogo do Galo, disse-lhe: - Queres jogar ao Jogo do Galo comigo? Resposta: - Não, não posso. Fiquei de ir à piscina com o Daniel. Nem mais! - 6 mãe, por que é que os rapazes são tão parvos? 98 A mãe sorriu, tirou os óculos para os limpar e respondeu, olhando-me com os seus olhos de avelã: - Deve ser para nos arreliarem. E, voltando-se para o pai, que acabava de entrar, perguntou: - Não é, querido? Não sei. O melhor é ir para o meu quarto, que continua a ser no escritório por mais três meses pelo menos, e fazer o trabalho de casa de Matemática. Da maneira como estão as coisas, duvido que o Vítor se lembre de me oferecer os seus exercícios para eu me inspirar. Liguei o computador. - Vamos lá, Silvestre. Ao trabalho! Mas o Silvestre estava todo molengão, enroscado na almofada. Pensando melhor: - Ó Danny, ó Vítor. Vocês a que piscina vão? Os dois em coro: - Queres vir? É já. Em vez de perder um admirador, ganho dois amigos. Até logo, Silvestre. Ah, é verdade: Ficheiro: Fechar. Iniciar: Encerrar. 99 Livros do Dia e da Noite Cinco Tempos, Quatro Intervalos, Ana Saldanha Narrativa juvenil O Saco de Mentiras, Vergílio Alberto Vieira Teatro para crianças Diário Secreto de Camila, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada Diário de adolescentes Versos com Reversos, João.Pedro Mésseder Poesia para crianças e jovens Doze de Inglaterra seguido de O Guarda- Vento, António Torrado T eatro para crianças Segredos e Brinquedos, Matilde Rosa Araújo Poesia para crianças e jovens O Peixinho Folha-de-Água, Vergílio Alberto Vieira Narrativa juvenil Diário Cruzado de João e Joana, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada Diário de adolescentes Para o Meio da Rua, Ana Saldanha Narrativa juvenil A Guerra dos Sinais, Natércia Rocha Narrativa juvenil Do Alto do Cavalo Azul, Vergílio Alberto Vieira Poesia para crianças e jovens De Que Cor é o Desejo?, João Pedro Mésseder Poesia para crianças e jovens A Semana dos Nove Dias, Vergílio Alberto Vieira Narrativa Juvenil Caras e Bichos Caretas, Arsénio Mora Narrativa Juvenil O Adorável Homem das Neves, António Torrado Teatro para crianças Como Outro Qualquer, Ana Saldanha Narrativa Juvenil O Livro dos Enganos, Vergílio Alberto Vieira Narrativa Juvenil Breviário do Sol, Francisco Duarte Mangas e João Pedra Mésseder Poesia para crianças e jovens Em Branco, Teresa Guedes Poesia para crianças e jovens Uma Questão de Cor, Ana Saldanha Narrativa Juvenil Um Pássaro na Mão, Outro a Voar, Vergílio Alberto Vieira Narrativa Juvenil