OS CORUMBAS Amando Fontes - O consagrado romance de Amando Fontes- na opinião de ANTÔNIO DE ALCÂNTARA MACHADO: estr‚ia com um romance que ‚ excelente por mais de um motivo. Primeiro, porque ‚ um romance. Quero dizer: tŠcnicamente constru¡- do e bem construido. Não h demasias. Tam- b‚m não h hiatos. Tem a‡ão. As persona- gens vivem, possuem vida interior e exterior, se apresentam por si mesmas, não ‚ pre- ciso que o autor se esbofe em explic -las e gaste em coment rios um tempo precioso para o leitor e sobretudo para as figuras do romance. Segundo, porque desce um degrau na errada escala social e abandona a pequena burguesia (em t"rno da qual tem girado quase t"da a nossa literatura de fic‡ão) pelo prole- tariado. Abre um n"vo caminho para o nosso romance: com muitos anos de atraso chega ... f brica. Ali s o livro de A. F. não conduz ao interior dela. As poucas cenas que ai se passam não tˆm grande importƒncia para a a‡ão. Figuram entre os epis¢dios secund rios. É 1 romance do prolet rio (sem ser romance prolet rio) e não da f brica. A mis‚ria que vive nas cercanias dela e dela se sustenta.- (Di rio de São Paulo, 1933) MARIO DE ANDRADE: "Venho felicit -lo pelo seu livro Os Carumbas. J Ant"nio de Alcƒntara Machado me tinha falado muito bem dele... Seu livro não carece OS CORUMBAS COLE€ÃO GRANDES SUCESSOS do SAGARANA POPULARES E LITERÁRIOS UMA SRIE VARIADA, DE FEI€ÃO GRÁFICA MODERNA E FORMATO CÔMODO, REUNINDO LIVROS ESCOLHIDOS DA LITERATURA BRASILEIRA E ES- TRANGEIRA (PRECEDIDOS DE NOTAS BIBLIOGRÁFICAS E ESTUDOS CRITICOS).-LIVROS DE TODOS OS GÊNEROS. UMA COLE€ÃO ORGANIZADA PARA DISTRAIR E INSTRUIR VOLUMES PUBLICADOS - 1-SAGARANA, de João Guimarães Rosa. Ilustra‡ões de Poty. 13ª edi‡ão. Pref. de Oscar Lopes e poesia de Carlos Drummond de Andrade. 2-TERRA DOS HOMENS, de Antoine de Saint-Exup‚ry-Grande Prˆmio de Literatura da Academia Francesa. Trad. de Rubem Braga. 15ª edi‡ão. 3-MINHA VIDA DE MENINA, di rio de Helena Morley. 1 1ª edi‡ão. Pref cio de Alexandre Eul lio. 4--QUATRO GIGANTES DA ALMA, de Mira y L¢pez. (O Medo- A Ira--O Amor-O Dever.) 9ª edi‡ão. 5-VILA DOS CONFINS, romance de M rio Palm‚rio. 12ª edi‡ão. Pre- f cios de Rachel de Queiroz e Wilson Martins. 6-PSICOLOGIA DA VIDA MODERNA, de Mira y L¢pez. 3ª edi‡ão. 7-A ARVORE -DE-JUDAS, de Cronin. Trad. de Ol¡via Krhenbhl. 4ª edi‡ão. 8-O DIQUE, romance de Frank Yerby. Trad. de João Távora. 9-MARCOR, romance de Ant"nio Olavo Pereira. Prˆmio da Academia Brasileira de Letras. 4ª edi‡ão. 1O-A MISSÃO DO DR. MURRAY, de Cronin. Trad. de L£cia Jordão Vilela. 4ª edi‡ão. 11-LI€ÃO DE COISAS, poesias de Carlos Drummond de Andrade. 2ª edi‡ão. 12-MANUELZÃO E MIGUILIM (CORPO DE BAILE), novelas de João Guimarães Rosa. 4ª edi‡ão. 13-NO URUBOQUAQUÁ, NO PINHM (CORPO DE BAILE), novelas de João Guimarães Rosa. 4ª edi‡ão. 14-NOITES DO SERTÃO (CORPO DE BAILE), de João Guimarães Rosa. 4ª edi‡ão. 15-O AMANUENSE BELMIRO, de Ciro dos Anjos. 6ª edi‡ão. Pref cio de Ant"nio Cƒndido. 16-TROPAS E BOIADAS, contos de Hugo de Carvalho Ramos. Pref cio de M. Cavalcanti Proen‡a, nota biogr fica por Victor de Carvalho Ramos. 5ª edi‡ão. 17-JOS E OUTROS (Jos‚, Novos Poemas, Fazendeiro do Ar, A Vida Passada a Limpo, 4 Poemas, Viola de B"lso II), poesias de Carlos Drummond de Andrade. Pref. de Paulo R¢nai. 18-O QUINZE, romance de Rachel de Queiroz. 13ª edi‡ão. Estudos de Augusto Frederico Schmidt e Adonias Filho; poesia de Manuel Bandeira. ils, de Poty. 19-A MORTE DA PORTA-ESTANDARTE E OUTRAS HIST¢RIAS, de An¡bal Machado. Pref. de M. Cavalcanti Proen‡a. 3ª edi‡ão. 2O-TIZIU E OUTRAS EST¢RIAS, de Nelson de Faria. 2ª ed., ils. de Lu¡s Jardim e Lu¡s Garcia. Pref. de Virginius da Gama e Meio. Prˆmio da Academia Brasileira. 21-O MORRO DO VENTO UIVANTE, romance de Emily Brontˆ. Trad. de Rachel de Queiroz. Ilustra‡ões de Fritz Eichenberg. 4ª edi‡ão. 22-MENINO DE ENGENHO, romance de Jos‚ Lins do Rˆgo. Introdu‡ão de Jos‚ Aderaldo Castello; estudo de João Ribeiro. 1 6ª edi‡ão. 23--CADEIRA DE BALAN€O, cr"nicas de Carlos Drummond de Andrade. 4ª edi‡ão. Pref cio de Angela Vaz Leão. 24-FOGO MORTO, romance de Jos‚ Lins do Rˆgo. 1Oª edi‡ão. Estudos de S‚rgio Milliet, Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, Álvaro Lins e Ant"nio Cƒndido. 25-JOÃO MIGUEL, de Rachel de Queiroz. Poesia de Manuel Bandeira. 5ª edi‡ão. 26-DOIDINHO, de Jos‚ Lins do Rˆgo. Pref. de Rolando Morei Pinto. 9ª edi‡ão. 27-AS CONFISSÕES DO MEU TIO GONZAGA, romance de Lu¡s Jardim. Pref cio de Wilson Martins, 2ª edi‡ão, 28-A CIDADELA, romance de A. J. Cronin. Trad. de Genolino Amado. 22ª edi‡ão. 29-BANGÜ, de Jos‚ Lins do Rêgo. Pref. de Ol¡vio Montenegro. 7ª edi‡ão. 3O-AS CHAVES DO REINO, romance de A. J. Cronin. Trad. de Ilka Labarthe e R. Magalhães J£nior. 15ª edi‡ão. 31--CAMINHO DE PEDRAS, romance de Rachel de Queiroz. Pref cio de Ol¡vio Montenegro. 5ª edi‡ão. 32-ALMAS EM CONFLITO, romance de A. J. Cronin. Trad. de Guinara Lobato de Morais Pereira. 9ª edi‡ão. 33-O MOLEQUE RICARDO, romance de Jos‚ Lins do Rêgo. Pref cio de M. Cavalcanti Proen‡a. 8ª edi‡ão. 34-ANOS DE TERNURA, de Cronin. Trad. de Rachel de Queiroz. 14ª ed. 35--O CA€ADOR DE TATU, de Rachel de Queiroz. Novas cr"nicas sele- cionadas por Herman Lima. 36-MAIS FORTE QUE O AMOR, de Cronin. Trad. de João T vora. 6ª edi‡ão. 37-A BAGACEIRA, romance de Jos‚ Am‚rico de Almeida, Pref cio de M. Cavalcanti Proen‡a. Estudos de Tristão de Athayde. Nota biogr fica de Juarez da Gama Batista. 1Oª edi‡ão. 38-ENCONTRO DE AMOR, de Cronin. Trad. de Adalgisa Nery. 12ª ed. 39-USINA, de Jos‚ L¡ns do Rˆgo. Introdu‡ão de Wilson Mart¡ns. 6ª edi‡ão. 4O-ANOS DE TORMENTA, de Cronin. Trad. de Wanda Murgel de Castro. 11ª edi‡ão. 41-AS TRÊS MARIAS, romance de Rachel de Queiroz. 5ª edi‡ão. Estudo cr¡tico de Jos‚ Aderaldo Castello. 42-A DAMA DOS CRAVOS, romance de Cronin. Trad. de Osório Borba. 43-ALGEMAS PARTIDAS, romance de A. J. Cronin. Trad. de Gulnara Lobato de Morais Pereira. 7ª edi‡ão. 44-PUREZA de Jos‚ Lins do Rˆgo. Pref. de V¡rginius da Gama e Melo, 45-UMA ESTRANHA MULHER, romance de A. J. Cronin. 7ª edi‡ão. 46-O FAROL DO NORTE, romance de Cronin. Trad. de João Távora. 47-AGUA-MÃE, de Jos‚ Lins do Rˆgo. Pref. de Eugˆnio Gomes. 6ª edi‡ão. 48-NOITES DE VIGÍLIA, romance de A. J. Cronin. Trad. de Gulnara Lobato de Morais Pereira. 12ª edi‡ão. 49- OSDEUSES RIEM, de A. J. Cronin. Trad. de Rachel de Queiroz. 5O-HISTÓRIA DA MINHA INFÂNCIA, mem¢rias de Gilberto Amado. Pref. de Odylo Costa Filho. 3ª edi‡ão. 51-TRÊS AMORES, de Cronin.. Trad. de S. Martins Lojaes Corrˆa, 52-PELOS CAMINHOS DE MINHA VIDA, mem¢rias de A. J. Cron¡n. Trad. de Gu¡nara Lobato de Morais Pereira. 7ª edi‡ão. 53-PEDRA BONITA, de Jos‚ Lins do Rˆgo. Pref. de Paulo Ronai. 7ª d. 54-O CASTELO DO HOMEM SEM ALMA, romance de A. J. Cron¡n, Trad. de Rachel de Queiroz. 13ª edi‡ão. 55-SOB A LUZ DAS ESTRELAS, romance de A. J. Cronin. Trad. de Beren¡ce Xavier. 11ª edi‡ão. 56-EURIDICE, de Jos‚ Lins do Rˆgo. Pref. de Nelson Werneck Sodr‚. 57-RIACHO DOCE, de Jos‚ Lins do Rêgo. Estudo cr¡tico de M rio de Andrade. 5ª edi‡ão. 58--CANGACEIROS, de Jos‚ Lins do Rˆgo. 4ª edi‡ão. Estudo de Nertan Macedo. 59-OS CORUMBAS, romance de Amando Fontes. Pref. de João Ribeiro, 6O-RUBAIYAT, de OMar Kh yyam. Trad. de Oct v¡o Tarq¡nio de Sousa Pref cio de Tristão de Athayde. 14ª edi‡ão. 61-PARA FORMAR O CARÁTER, de Fr. W. Foerster. Trad. de Aires da Mata Machado F.O. Pref. do Pe. Negromonte. 3ª edi‡ão. 62--O ETRUSCO. romance de Mika 63-VERSIPROSA, de Carlos Drummond. (7O crônicas em verso.) 64-RETRATOS DE FAMILIA, de Francisco de Assis Barbosa. Pref cio de Josu‚ Montello. 2ª edi‡ão. 65-A VIDA TRÁGICA DE VAN GOGH, por Irving Stone. Trad. de L£cia Miguel Pereira, 4ª edi‡ão. 66--CI£ME, romance de Ren‚-Albert Guzman. Trad. de Gastão Cruls. 67--OS DIREITOS DO HOMEM, de Jacques Maritain. Trad. de Afrânio Coutinho. Pref. de Tristão de Athayde. 3ª edi‡ão. 68-HIST¢RIA DE MINHA VIDA, de Helena Keller. 69-A VIDA ERRANTE DE JACK LONDON, de Irving Stone. Trad. de Genol¡no Amado e Geraldo Cavalcanti. 4ª edi‡ão. 7O-POR ONDE ANDOU MEU CORA€ÃO, de Maria Helena Cardoso- Pref. de Ot vio de Faria, 2ª edi‡ão. 71-JOÃO TERNURA, de An¡bal M. Machado. Pref cio de Otto Maria Carpeaux. Poesia de Drummond. 2ª edi‡ão. 72--OS SANTOS QUE ABALARAM O MUNDO, de Fllõp-Miller. Trad. de Oscar Mendes. 7ª edi‡ão. 73-JEREMIAS SEM-CHORAR, poesias de Cassiano Ricardo. 2ª edi‡ão, revista. Estudo de Oswaldo Mariano. 74-1OO CRÔNICAS ESCOLHIDAS, de Rachel de Queiroz. Pref cio de Gilberto Amado. 2ª edi‡ão. - 75-TEMAS ATUAIS DE PSICOLOGIA, de Mira y L pez. 76-FLORADAS NA SERRA, romance de Dinah Silveira de Queiroz. Prˆmio da Academia Paulista de Letras. 1 1ª edi‡ão. 77-DONA SINHÁ E O FILHO PADRE, sem¡novela de Gilberto Freyre. Nota de Osmar Pimentel. 2ª edi‡ão. 78-ISADORA, mem¢rias de Isadora Durican. Trad. de Gastão Cruls. 79-A CHAVE DE SALOMÃO E OUTROS ESCRITOS, de GILBERTO Amado. 4ª edi‡ão. Estudo de P‚ricles Madureira de Pinho, 8O--CHAPADÃO DO BUGRE, romance de M rio Palm‚rio. 4ª edi‡ão. Ils. de Poty. 81-FALA, AMENDOEIRA, cr"nicas de Carlos Drummond. 4ª edi‡ão. 82-O CORONEL E O LOBISOMEM, romance de Jos‚ Cƒndido de Car- valho. PrÊmio da Academia Brasileira de Letras. 6ª edi‡ão. Nota de Rachel de Queiroz. Ils. de Poty. 83-A INUGINÁRIA, Elsie Lessa. romance de Adalg¡sa Nery. 3ª edi‡ão. Nota de 84-NOVELAS PAULISTANAS, de Ant"nio de Alcântara Machado. 2ª ed. Introdu‡ão de Francisco de Assis Barbosa. 85-ESTRÊLA DA VIDA INTEIRA, poesias reunidas de Manuel Bandeira. 2ª edi‡ão. Introdu‡ão de Gilda e Ant"nio Cƒndido. 86-PORQUE LULU BERGANTIM NÇO ATRAVESSOU O RUBICON. de Jos‚ Cƒndido de Carvalho. (Contados, astuciados, sucedidos e acon- tecidos do povinho do Brasil). Pref cio de Gilberto Amado. 87-ANTES DO BAILE VERDE, contos de L¡gia Fagundes Teles, 2ª revista e aumentada. 88-RA€A, de Guilherme de Almeida. Introdu‡ão de L‚do Ivo. 89-MARIA PERIGOSA, contos de Lu¡s Jardim. 3ª ed. Ilustra‡ões de autor. Estudo de Paulo Ronai. Prˆmio Humberto de Campos. AMANDO FONTES bico-de-pena de Lu¡s jard¡m AMANDO FONTES OS CORUMBAS romance nona edi‡ão Pr‚mio Felipe d'Oliveira Estudo de João Ribeiro LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA wC em convˆnio com o VOLUME N.O 59 INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO MEC OBRAS DO AUTOR Os Corumbas-romance Prˆmio Felipe d'Ol¡veira 1ª ed., Schmidt Edit"ra, Rio, 1933 Rua do Siriri-romance Edit"ra Jos‚ Olympio, Rio, 1937 9ª edi‡ão: 1971 capa de EUGÊNIO HIRSCH Fontes, Amando, 1899-1967 Os Corumbas, romance, ilustra‡ões de Santa Rosa, Poty e desenho de capa de Eugˆnio Hirsch, nota de João Ribeiro. 9ª edi‡ão, Rio de Janeiro, Edit"ra Jos‚ Olympio, 1971. 1 a XVI + 172 pp. Publicado em convˆnio com o Instituto Nacional do Livro -MEC. ¡ndice geral de OS CORUMBAS NOTA BIBLIOGRÁFICA SOBRE O AUTOR p gina x a xiii NOTA DE JOÃO RIBEIRO p gina xv a xvii OS CORUMBAS PRIMEIRA PARTE p gina 3 a 12 SEGUNDA PARTE p gina 13 a 166 TERCEIRA PARTE p gina 167 a 172 NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR AMANDO FONTEs nasceu a 15 de maio de 1899, em Santos, Estado de São Paulo, onde residiam seus pais, O farmacˆutico Tur¡bio da Silveira Fontes e D. Rosa do Nascimento Fontes. Amando Fontes fica ¢rfão de Pai aos cinco meses de idade, em seguida a fam¡lia volta Para Aracaju, de onde era oriunda. A partir da¡ Os av¢s Paternos tomam conta da crian‡a, que passa a viver ora na Fazenda Aguiar, de propriedade daque- les, ora na Capital do Estado. Nesta cidade foi que estudou as primeiras letras, na escola particular de D. Zizi Cabral. Revelou-se crian‡a precoce, e aos dez anos de idade j era admitido no Ateneu Sergipense. Não se conservou, por‚m, aplicado aos estudos, e perdeu o 3º ano, por haver sido reprovado em álgebra. Aban- dOnOu O gin sio, então, para se dedicar apenas ao estudo de POrtuguˆs e Inglˆs. Aos 15 anos come‡a a trabalhar como revisor do Di rio da Manhã, de Aracaju. Pouco depois, seguia para Belo Horizonte, onde morava um tio seu, com o objetivo de servir em uma fun‡ão p£blica que lhe per- mitisse custear os estudos. Sem grandes rela‡ões no meio, o relativo isolamento lhe acentuou a ten- dˆncia para as letras, j revelada desde os 12 anos, quando come‡ara a ler Alencar, Cam¡lo, E‡a, Zola, Ramalho Ortigão, Fialho. E passou então a ler tudo quanto conseguia adquirir na filial da Livraria Francisco Alves. Neste per¡odo, interessou-se por Comte, Schope- nhauer Spencer, de mistura com Flaubert, Maupassant, ???~det, Os Goncourt, A natole, os cl ssicos portugueses, os poetas ???Pwrionais. Pouco depois, descobria Machado de Assis, e leu t"da a sua obra, a partir de Br s Cubas. x O ROMANCISTA DE OS CORUMBAS ENTRE OS ESCRITORES LOURIVAL FONTES, · DIREITA, E AFONSO PENA J£NIOR. Por motivo de sa£de, em princ¡pios de 1917 regres- sou a Aracaju, isolando-se por mais de um ano na fazenda onde transcorrera parte de sua infƒncia. Em 1919, ap¢s fazer, de uma s¢ vez, todos os pre- parat¢rios que lhe faltavam, seguiu para o Rio de Janei- ro, onde se matriculou na Escola Nacional de Medicina. Por ˆsse tempo, freqentou assiduamente a roda lite- r ria que se agitava em redor de Jackson de F¡guei- redo, de quem era amigo desde a meninice. Ainda por motivo de doen‡a, teve que abandonar o curso, antes de terminar o ano, retornando a Sergipe. Associou-se, então, a um de seus tios, para explorar a Fazenda Aguiar e algumas salinas situadas nos arre- dores de Aracaju. Foi ˆsse o tempo em que mais se dedicou ... leitura, orientada, agora, pelo fino g"sto do poeta Garcia Rosa, em t"rno do qual se reunia t"da a juventude intelectual sergipana.- Foi ˆle quem lhe revelou a grandeza de Shakespeare, de Goethe, de Dan- te, de Cervantes. Durante ˆsse per¡odo, publicou umas poucas poesias na imprensa local, e teve a id‚ia de escrever Os Corumbas, do qual chegou a redigir os dois primeiros cap¡tulos. Em meados de 1922 submeteu-se a um concurso para agente fiscal do imp"sto de consumo, em Salvador. Tendo sido classificado em primeiro lugar, foi nomea- do, em novembro de 1922, para exercer ˆsse cargo no interior da Bahia. Voltou a Sergipe para se casar com D. Cor lia Leal Teixeira, a 31 de julho de 1923. No ano seguinte matriculou-se na Faculdade de Direito da Bahia, bacharelando-se em 1928. Durante o curso, sem- pre que se encontrava em Salvador freqentava o grupo de Carlos Chiachio, Artur de Sales, Rafael Barbosa, Herman Lima e outros. Logo depois de formado, trans- feriu-se para Curitiba, onde se dedicou a atividades industriais. XI Ap¢s a Revolu‡ão de 193O, foi morar no Rio de Janeiro, dedicando-se ... advocacia, e retomando a com- posi‡ão de Os Corumbas, interrompida doze anos atr s. Publicado em 1933, ˆsse livro foi recebido com aplau- so pela cr¡tica, tendo sido o primeiro a obter o Prˆmio Felipe d'Oliveira, que acabava de ser institu¡do. Nomeado, por essa ‚poca, professor de Portuguˆs da Prefeitura do Distrito Federal, logo depois tamb‚m era convocado ...s lides pol¡ticas em seu Estado de ado‡ão, que em 1934 lhe conferia o mandato de deputado fede- ral. Enquanto o exercia, at‚ 1937, escreveu Rua do Siriri, publicado em fins dˆsse ano. Em 1938 reverteu ao cargo de agente fiscal, com exerc¡cio no interior do Estado do Rio. Em 1946 torna a eleger-se deputado federal pelo Estado de Sergipe, o ano da Constitui‡ão, da qual ‚ um dos signat rios. Teve atua‡ão destacada nessa legislatura, atrav‚s de discursos, projetos, emendas, pareceres. Reeleito em 195O, foi membro da Mesa, e depois participou ativa- mente dos trabalhos da Comissão de Economia, onde elaborou longo e fundamentado parecer, que conclu¡a pela rejei‡ão do projeto do -Estatuto do Petr¢leo", proposto pelo Executivo, e oferecendo em seu lugar um substitutivo, no qual vela Primeira vez se aven- tava a cria‡ão de uma Sociedade de Economia Mista, com maioria do capital da União (51%). Não concorreu ... elei‡ão de 1954, tendo voltado ao exerc¡cio das fun‡ões de seu cargo efetivo, no Minis- t‚rio da Fazenda. Amando Fontes faleceu na noite de 1º de dezembro de 1967. Deixou quase pronto n"vo romance, intitulado O Deputado Santos Lima, no qual virão retratados os £ltimos anos da "Rep£blica Velha" e os que se lhe seguiram, at‚ 1933. xiii OS CORUMBAS João RIBEIRO foi o primeiro cr¡tico a manifes- tar-se na imprensa brasileira s"bre o n"vo roman- cista que estreou em 1933. Sua nota cr¡tica apa- receu no dia 3 de ag"sto dˆsse ano na coluna que então mantinha no jornal do Brasil ("Registro Liter rio"). Reproduzimo-la aqui como home- nagem de nossa Casa e do Autor ao velho mes- tre brasileiro. "£LTIMAMENTE, registramo-lo com agrado, tˆm apa- recido alguns romances das terras do Norte, dignos de excepcional acolhimento. Os Corumbas merecem, sem favor algum, essa rara distin‡ão. um romance admir vel, sem ret¢rico pe- dantismo, sem ˆnfase, sem literatura (como soem di- zer os papalvos do estilo arrevesado e de puro artif¡cio) e que ‚ a literatura melhor. um romance forte, de aguda observa‡ão, de rea- lismo sem agruras in£teis, de entrecho admir...velmente urdido na vida real da gente pobre, v¡tima inexperta de todos os exploradores da mis‚ria honesta dos que trabalham sem nenhuma garantia do bem-estar e ain- da menos da felicidade. um romance do prolet rio infeliz e desesperan‡a- do, vivendo entre ilusões e desenganos mortais. Uma pobre fam¡lia, a dos Corumbas, vivendo na escassez, emigra de uma cidade do interior para a capital, o pequeno Aracaju, onde encontrar trabalho e onde os pais retirantes esperam colocar os filhos numa ou duas das f bricas de fia‡ão. xiv Trˆs filhas dotadas de beleza despertam a cupidez daquele meio vicioso e brutalmente sensual. Dessas trˆs meninas uma de sa£de fr gil, doente e in£til su- cumbe e desaparece. As outras duas vão ser colhidas em breve pelo Moloc: de deprava‡ões a que resistem quanto podem. Mas afinal a mis‚ria não tem f"r‡as bastantes para resistir ... cupidez dos homens. Alber- tina sucumbe ...s mãos de um s tiro que a seduz e, de- pois de farto e satisfeito, lan‡a-a ... prostitui‡ão. A ou- tra, a Ca‡ulinha, que era a esperan‡a da fam¡lia, co- me‡ou a freqentar a escola normal pensando que ela s¢ poderia mais tarde ser o amparo dos velhos pais. As condi‡ões de vida apertada e insustent vel atiram- -na ... f brica, onde oper ria e indefesa sucumbe como a outra. Um filho, o £nico homem, desnorteado pelo anar- quismo emigra para o sul. Enfim, os velhos pais que não podem suportar essa deser‡ão da honra e do lar, vendo todos desmandados, extraviados e perdidos, sentem uma grande resigna‡ão que não ‚ mais que a dura conformidade do destino. Entreolham-se e resolvem voltar ... terra nativa donde não deveriam ter sa¡do nunca na esperan‡a falaz de melhor sorte. Essa volta pat‚tica ‚ o ep¡logo da hist¢ria. Poucos livros temos que seja tão bem arquitetado como os Corumbas. As paisagens são de colorido largo e absolutamente verdadeiro no seu naturalismo. A vida de Aracaju (que deve ser conhecida do autor) ‚ flagrante de realidade e de vida. As trˆs raparigas de- vem. ter existido ou existem acaso, tal ‚ a vida que respiram no ambiente das suas terras. Não h uma s¢ falha de realismo, como não h nenhuma passagem que repugne ... delicadeza dos leitores a quem reco- xv mendamos ˆsse extraordin rio romance que ‚ uma pin- tura de inexced¡vel fidelidade. Não conhecemos o autor, o Sr. Amando Fontes, mas bem se vˆ que os Corumbas foram escritos por um sergipano conhecedor da sua terra e observador da vida e dos costumes de campo e da cidade. Quem escreve o folhetim dˆsse registro ‚ um sergi- pano tamb‚m e sente o cheiro e a visão das paisagens e um pouco a psicologia daquela gente pobre, n"made por mis‚ria, e v¡tima da destrui‡ão menos por in‚pcia do que por inocˆncia incauta. Por isso mesmo, Os Corumbas pareceu-nos um dos raros documentos do comunismo incipiente e fatal. o retrato bem parecido da sociedade que se dissolve sob a erosão funesta da civiliza‡ão. Para que sa¡mos da nossa terra e da nossa pobreza? dizem os velhos pais desconsolados diante da fam¡lia destru¡da e desonrada. triste ˆsse livro que ‚ uma esp‚cie de Evangelho da simplicidade sertaneja. Esse romance forte ‚ realmente um milagre da nossa literatura tão preocupada de futilidades e de lux£ria. O Sr. Amando Fontes ‚ um escritor raro e destinado a ser um dos mestres da gera‡ão nova. Tudo ‚ belo nesse livro, os personagens, a alma que os aviventa, o c‚u, a terra, os campos, as rvores e o rio que sussurra levando para o mar as l grimas dos homens e das coisas. Sergipe ‚ uma terra esquecida, pequenina. Amando Fontes f -la viver e amar na sua trag‚dia ¡ntima e a sua terra deve-lhe essa maravilhosa evoca‡ão, uma das mais impressionantes que conhecemos." XVI OS CORUMBAS AMANDO FONTES os CORUMBAS (ROMANCE) RIO DE JANEIRO 1 9 3 3 Para JUCA MAGALHÃES JÚLIO, SAMPAIO e JACKSON DE FIGUEIREDO os grandes amigos mortos AS EDI€õES DE OS CORUMBAS 1ª:julho de 1933 editada no Rio por Schmidt,* nome que est na capa, mas não foi reproduzido na f"lha de rosto, como se observa nos fac- s¡miles estampados no in¡cio desta edi‡ão. 2ª, 3ª e 4ª: t"das de 1933 e tamb‚m editadas por Schmidt. 5ª: 1935, - 6ª, 1946 - 7ª revista 1961, (juntamente com a 2ª ed., revista, de Rua do Sir¡ri, em volume intitulado 2 Romances) - 8ª edi- ‡ão, 1967 - 9ª, 1971. Todas publi- cadas pela Livraria Jos‚ Olympio Edit"ra, Rio. o texto da 8ª edi‡ão reproduz, sem altera‡ões, o da 7ª, que foi revista pelo Autor. O grande poeta que tamb‚m foi figura destacada na ind£stria editorial brasileira: em 193O, estabelecendo-se com livraria na Rua Sachet, (hoje Travessa do Ouvidor) come‡ou a editar escritores bra- sileiros, sendo o respons vel pelo lan‡amento de muitos estreantes, que mais tarde seriam famosos no cen rio das letras nacionais. - N. da E. - OS CORUMBAS - 1 zzz PRIMEIRA PARTE SETEMBRO j f"ra escasso de chuvas. Os "comboieiros do S. Francisco", infal¡veis em outubro, falharam dessa vez. E assim, sem que do c‚u pingasse uma s¢ g"ta d' gua, chegou-se a mar‡o. -Se não chover agora, vamos ter sˆca, e da brabal-excla- mavam os sertanejos, temerosos. Mas, ainda na primeira semana dˆsse mes, os ventos, que vinham soprando invari...velmente do Nordeste, cambiaram de repente para o Sul. Bandos de nuvens negras, a‡oitadas com extrema violˆncia, deram de percorrer o espa‡o em todos os sentidos. Um, dois dias de ansiosa espera. Afinal, certa hora em que o sol estava a pino, escureceu de s£bito. Relƒmpagos corta- ram o espa‡o. E dentro de minutos as guas desabavam, fartas, lavando a terra esbraseada. Parece que o verde estava escondido ... flor do chão, espe- rando apenas o momento de apontar. Pois s¢ assim se pode explicar a extraordin ria rapidez com que se alastrou por t"da a parte. As velhas rvores, os arbustos raqu¡ticos das caatingas, tabuleiros agrestes, as vastas s"ltas, sem cˆrca e sem limite, tudo, como que por encanto, se vestira de verde. Era o milagre do inverno, que chegava. 3 O velho João Pianc¢ manteve firme a sua "promessa". E entusiasmado com o ver os c‚us atenderem ao seu apˆlo, a todo o mundo proclamava que o "pagamento" seria maior do que o dissera. Com efeito, mostrava-se incans vel, preparando tudo para a festa. Foi ao Lagarto fazer provisão de p¢lvora, de foguetes, de bebidas. Comprou roupas novas para a fam¡lia e enfeites v rios para a imagem do Santo. Escolheu, a dedo, os mais destemidos bacamartistas das redondezas. Chamou as mulheres que melhor sabiam tirar as ladainhas. Preocupava-o, sobretudo, a organiza‡ão da caceteira. Tinha, j certos, dois batedores de caixa admir veis, um zabumba esplˆndido, trˆs gaitas fin¡ssimas. Ainda assim, não conside- rava a banda completa. Desejava reunir umas dez figuras, pelo menos. No Saco do Moreira, a quatro l‚guas de sua fazendola, mo- rava um certo Geraldo Corumba. Não havia, em todo o Vaza- -Barris, tocador mais afamado. Lembraram-no a João Pianc¢, que logo para l seguiu a convid -lo. O gaitista não se fˆz de rogado. E pressuroso acedeu: -Pode contar na certa. Nem que chova canivete, antes das onze eu risco na Urubutinga. Dezenove de mar‡o. Dia de S. Jos‚. A casa de João Pianc¢ amanheceu engalanada, pronta para o grande festejo. A sala principal resplandecia, muito branca, pintada de n"vo a tabatinga. Pelas paredes e janelas, ramos verdes de camarão, bandeirinhas de papel, fitas vermelhas. No fundo, em um nicho azul, recamado de fl"res, repousava a imagem do Santo. No terreiro da frente, limpo e areado, um arco triunfal, tran‡ado das palmas verdes do imburi, marcava o ponto de partida do cortejo. Cedo ainda, de todos os lados come‡aram de chegar os cOn- vidados. Vinham palreiros, folientos. João Pianc¢ recebia-os do lado de fora, oferecendo vinho branco ...s mulheres e obri- gando os homens a bebˆrem um gole da pinda¡ba, 4 amando fontes justamente pelas onze da manhã foi que chegou Geraldo, cavalgando um ru‡o magro e perereca. Era moreno-claro, de estatura mediana, corpo delgado e gil. Estava sem casaco, na sua camisa nova de riscado, cal‡as brancas seguras por um largo cinturão de couro, com vistosas fivelas de metal. À ca- be‡a, um largo chap‚u de palha de carna£ba, circulado por uma fita escarlate, quebrado atr s e empinado na frente, em- prestava-lhe um ar pimpão e alegre. Os outros participantes, reunidos na sala, receberam-no entre aclama‡ões: -Viva Seu Geraldo! Vivoo"1 E logo uma desenvolta rapariga, meio loira, os olhos claros e fulgentes, saiu ao encontro do tocador, apresentando-lhe um pequeno copo de vinho. Era josefa, a filha mais nova do Pianc¢, que todos chama- vam "a flor da casa". Geraldo, um tanto perturbado porque o servia uma mo‡a, engoliu o l¡quido de um trago. Em seguida, olhando-a terna- mente: -Agradecido. Não precisava se incomodar... Seus olhos encontraram os de Josefa, que baixou a cabe‡a, sorrindo. Nesse instante, a voz forte do fazendeiro j gritava l de dentro: -Chega, pessoal. Os convivas receberam essa not¡cia em algazarra, e logo, sem a menor cerim"nia, se lan‡aram para a sala do fundo, na disputa dos lugares. S"bre largas esteiras de piri servira-se a refei‡ão. Uns, sentados, outros, de c¢coras, comiam e palravam a um tempo s¢. Alguns, mais folguentos, excediam-se nas be- bidas. Seriam duas horas quando o grande acompanhamento p"s-se em marcha, ... descarga estrondosa dos bacamartes e roqueiras, cheios os ares do pipocar incessante dos foguetes. A banda musical marchava ... frente; em seguida, josefa, carregando a imagem nos bra‡os, vinha cercada das mulheres que entoavam as rezas dolentes; atr s caminhavam os homens os corumbas 5 dos fogos, e outros, que riam e falavam alto, erguendo, de quando em quando, vivas a S. Jos‚. Seguiam, devagar, pelas largas estradas, entre velames e can- deias. Às vˆzes, para encurtar distƒncias, metiam-se pelas ve- redas entrecruzadas dos mandiocais cheios de brotos. Tarde de inverno, sem sol e sem beleza. O verde forte dos arbustos punha manchas destacadas no vermelho esbranqui- cento da terra. O c‚u, recamado de nuvens brancas, agrupadas em frocos, lembrava um imenso algodoal, que tivesse desabro- chado por inteiro. João Pianc¢, radiante, corria para todos os lados, explicando o itiner rio: Iriam ao João das Dores, primeiro, que ˆste tinha um voto a cumprir. Dali, rumariam a casa do Pedro Ant"nio, paral¡tico h muitos anos. Mais duas ou trˆs visitas, se hou- vesse tempo, e tornariam ... Fazenda. Ao entrar nas ro‡as do João das Dores, o cortejo estacou. Calaram-se as rezas. Entre os homens, o garrafão de cacha‡a passou de mão em mão. Houve foguetes e vivas. Os bacamartes roncaram. Josefa ia passar a imagem a Isabel, uma sua irmã j casada; e, nessa hora, tamb‚m a caceteira deveria prestar a S. Jos‚ as vˆnias habituais. Depois de um curto silˆncio, os m£sicos come‡aram de tocar uma marcha nova e deram princ¡pio ... cerim"nia. Caminhando de costas, nas pontas dos p‚s, distanciavam-se do grupo; a uns dez metros, paravam por uns instantes e logo retrocediam, em ziguezagues, bamboleando-se, saltitando, gingando os quadris; chegados junto ao Santo, curvavam-se, reverentes, e de n"vo se afastavam. Assim fizeram um sem-n£mero de vˆzes, at‚ que um tiro de roqueira anunciou o momento de o s‚quito continuar a ca- minhada. João das Dores recebeu-os com foguetes. O acompanhamento fˆz trˆs vˆzes a volta da casa, ao ru¡do dos tiros e vivas a cada hora. Parou, depois, no terreiro principal, enquanto da casa vinham os copos e as bebidas. Um prˆto velho, metido num vasto gibão de couro, prendia agora as aten‡ões. Estava bˆbedo a, cair e queria, a t"da f"r‡a, 6 amando fontes disparar um bacamarte. Os outros, em gargalhadas, ati‡avam- -no, jurando que o recuo violento da arma o atiraria de pernas para o ar. Mas o vaqueiro teimava, e dizia-lhes, num tom de alto desprˆzo: -Dˆsses trastezinhos pica-pau eu disparo at‚ dez de uma vez... No tempo de m"‡o, como vocˆs, eu lidava era com b"ca-de-sino, meia chave de carrˆgo - - . Um negro jovem, de alvos dentes limados, chalaceou: -Que o quˆ, Seu Filipe. .. Assim cheio da branca, vosmec‚ não atira com uma besta de menino... Nesse ponto, uma mo‡oila baixa e gorda veio p"r tˆrmo ... questão, arrastando o velho por um bra‡o: -Vamos, meu pai, deixe dessas tolices... Estão lhe cha- mando ali, vamos. A um canto, João Pianc¢ conversava com o Das Dores. Es- tava exultante com o bom ˆxito da festa. E afirmava para o vizinho, convencido: -Est uma beleza! S¢ a procissão do Bom Jesus no Ara- caju! ... Depois, dirigindo-se ao bando: -Vamos, vamos, minha gente, que est ficando tarde. A £ltima casa em que pararam ficava no p¡ncaro de um morro. Quando retomaram o caminho, o sol, por sob as nuvens, já se escondera detr s do vulto dominador da Itabaiana. Iam descendo a encosta. Geraldo, que nessa hora não to- cava, viu-se, por acaso, ombro a ombro com Josefa. Sentiu um desejo irresist¡vel de falar-lhe, dizer-lhe qualquer coisa. E, ven- cendo a natural timidez, animou-se a perguntar-lhe, COM VOZ não muito firme: -Est gostando da m£sica? Ao que ela, surpreendida, respondeu: -Oh1 ... Estou... Muito bonita... Nesse momento passavam duas mulheres ...s risadas. Abra- ‡aram-se a Josefa, chamando-lhe de sonsinha, e arrastaram-na para o meio das outras companheiras. Geraldo ainda ficou de p‚, vendo-a afastar-se. E s¢ correu a se juntar ... banda quando ouviu que lhe gritavam pelo nome. os corumbas 7 Escurecia. Nos troncos das rvores as cigarras cantavam sem parar. Um magote de novilhas brancas, amalhado na estrada, levantou-se, pregui‡oso, e foi-se afastando de manso, ao ba- dalar mon¢tono dos chocalhos. De espa‡o a espa‡o, um tiro perdido de roqueira fazia estremecer os arredores... Ladeira abaixo, lento e lento, o cortejo distanciava-se. O som melanc¢lico das rezas morria sem eco nas quebradas; e as gaitas assoviavam tristemente, acompanhadas pelo ritmo sel- vagem dos zabumbas. Foi dˆsse dia-em que josefa lhe pareceu tão bela, vestida de n"vo, os cabelos em tran‡a-, que Geraldo a amou por t"da a vida. No domingo seguinte tornou, risonho, ... Urubutinga, ven- cendo a p‚ as l‚guas que os separavam. Voltou no outro do- mingo, voltou muitas vˆzes. Ao fim de dois anos se casavam. DOIS TÃO VIOLENTA foi a sˆca de 9O5, que o capim cresceu e secou no leito estorricado dos ribeiros. Assolou tudo, matou tudo! João Pianc¢, doente, não p"de salvar as reduzidas cria‡ões. E morreu de desg"sto. Geraldo, a ˆsse tempo, tinha j trˆs filhos. Lutou contra a mis‚ria o quanto p"de. Josefa o ajudava dia e noite. Mas tiveram de desanimar, como outros tantos. Perceberam que s¢ lhes restava o recurso de desertar, fugir para sempre daquele torrão maldito. Arrumaram alguns objetos indispens veis, as poucas roupas que ainda tinham, e puseram-se na estrada. Destino certo, não levavam. A Cotinguiba, o vale rico do Japaratuba, qualquer lugar onde houvesse gua e onde não se morresse de fome. 8 amando fontes Foram andando, foram andando... O Engenho Ribeira, no munic¡pio da Capela, estava aco- lhendo retirantes. Pediram pouso, e ali ficaram. TRÊS VIVERAm dezessete anos na Ribeira. No decorrer dˆsse tempo, tiveram mais trˆs filhos; duas meninas e um varão. Mas ˆste, que era o segundo homem que lhes vinha, morreu, pequenino ainda, de um ataque de sezões. Eles consideravam uma verdadeira calamidade-e a cada mo- mento o repetiam-cˆ fato de a Providˆncia lhes haver enchido a casa de mulheres. Porque estas, em verdade, pouco poderiam ajud -los na rude labuta do campo. Contudo, nunca desanimaram um s¢ instante. Sempre joga- dos ... luta, com uma vontade firme de vencer. Todos da fam¡lia trabalhavam. Uma das raparigas chegava a fazer quatro mil-r‚is por semana, como botadeira de cana na moenda. A mais velha se ocupava em ralar a mandioca de todos os roceiros do lugar, recebendo, como paga, entre dez a quinze litros da farinha preparada. O rapaz, que exercera j uma meia d£zia de empregos, servia agora como auxiliar do maquinista do Engenho. At‚ as duas menores sempre faziam alguma coisa, ajudando em casa ou na ro‡a. Se os filhos assim procediam, os pais não tinham um mi- nuto de descanso. Geraldo carreava do primeiro ao £ltimo dia do verão; e durante o inverno não largava a enxada, ora lim- pando os canaviais da patroa, ora plantando para si quatro ou cinco tarefas de caiana. josefa, da madrugada ... b"ca da noite, não parava. Cosia, lavava, mexia nas panelas, amanhava a terra nos ro‡ados, cortava cana de empreitada. Mas, o pior de tudo era que, ao cabo de tanto esf"r‡o, de tanta energia despendida, s¢ conseguiam reunir umas migalhas, que as despesas ordin rias consumiam. Naquele ano, a baixa do a‡£car veio agravar-lhes, mais e mais a situa‡ão, de si j tão prec ria. Os usineiros e senhores de engenho reduziram ... metade o jornal da sua gente; e pas- os corumbas 9 saram a pagar a tonelada de cana por tal pre‡o, que nem valia a pena plant -la. QUATRO oi Josefa quem aventou a id‚ia de se mudarem para o Ara- Fcaju. E enumerava suas razões: "Na Capital, havia emprˆgo decente para as duas meninas mais velhas. Era nas F bricas de Tecidos. Estavam assim de m"‡as, t"das ganhando bom dinheiro... Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro ou maquinista... Uma outra vida, enfim. Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente... Depois, tinha assim uma certeza, uma esp‚cie de pressentimento, de que l as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As duas mais novas iriam para a escola. Nem preci- savam at‚ de trabalhar. Ca‡ulinha, que era tão viva e inteli- gente, bem poderia chegar a profess"ra. . . " Geraldo ouviu-a em silˆncio. Em verdade, sentia-se j bas- tante velho para mudar de vida e de lugar. Hesitou por muito tempo. E s¢ se decidiu, afinal, pelo muito amor que tinha aos seus, pelo desejo de vˆ-los com mais conf"rto e mais felizes. Mas, antes de assentarem em definitivo a partida, Josefa julgou prudente escrever a mestre Almerindo, um seu irmão que servia como foguista numa das f bricas da cidade. Pe- diu-lhe informa‡ões detalhadas s"bre tudo, terminando por solicitar que lhes dissesse, com franqueza, o seu pensar a res- peito. Não tardou que chegasse a resposta. Mestre Almerindo era um homem rude e pr tico, que via tudo em seus lugares. Entre outras passagens, escreveu: "Aconselhar, não aconselho, que as coisas por c tamb‚m não andam muito boas. Mas que ‚ melhor do que a vida sem futuro a¡ do mato, principalmente quando a gente tem a casa cheia de filhas m"‡as, isso at‚ um menino sabe que ‚. Se resolverem vir, o trabalho para as duas mais velhas est garantido, que isso eu mesmo posso arranjar." 1O amando fontes Venderam as galinhas, os dois cavalos, a ro‡a, h pouco re- plantada. Como ningu‚m quisesse lhes comprar a casinha, que com suas pr¢prias mãos haviam erguido, deram-na para morar a uns compadres. E num dia de sol, alegre e lindo, demandaram a Esta‡ão da Murta, para aguardar a passagem do comboio. Levavam saudades dos amigos, da vida pl cida do Engenho, da pr¢pria terra que deixavam; mas iam risonhos e contentes. Aos seus cora‡ões alvoro‡ados parecia que a Felicidade, l em- baixo, os esperava... os corumbas 11 - OS CORUMBAS - SEGUNDA PARTE um QUATRo horas acabavam de soar, lentamente, no grande re- l¢gio da Sergipana. Era uma madrugada fria de julho, em pleno inverno. Desde a v‚spera uma chuvinha mi£da, rarefeita, ca¡a tris- temente s"bre as ruas alagadas e desertas. E t"da a noite assim chovera, sem parar. Na Rua da Estrada Nova, meio em declive, formara-se um pequeno riacho, por onde as guas desciam mansamente, le- vando a areia e as sujeiras que encontravam. Àquela hora, ainda reinava o mais completo silˆncio em casa de Geraldo. Sá Josefa (era assim que a tratava todo o bairro), p"sto j estivesse acordada, deixara-se ficar s"bre as t buas duras da cama, t"da encolhida de frio, debaixo da sua desbotada coberta de retalhos. O sudoeste soprou mais forte, a‡oitando a chuva por entre as frestas do telhado. Então, a mulher abriu os olhos, dis- tendeu os bra‡os e as pernas, e murmurou, num bocejo: -Santo Deus, Ainda chove! Como não devem estar essas ruas?... Permaneceu ainda uns momentos estirada s"bre a enxˆrga. De repente, lembrando-se das mil ocupa‡ões que a esperavam, levantou-se ...s carreiras, falando consigo mesma: -Virgem Maria, de hoje que o rel¢gio deu quatro ho- ras! ... Deixe-me fazer o caf‚, para acordar o pessoal. 13 Apanhou do chão a caixa de f¢sforos e acendeu o pavio de algodão do alcoviteiro. Uma luz morti‡a espalhou-se pelo quar- to, mobiliado apenas pela cama de pinho sem verniz, uma cadeira de peroba mal lavrada, e, a um canto, o ba£ de f"lha- -de-flandres, pintado de verde, com umas florzinhas amarelas. Antes de enfiar o vestido que jazia s"bre a cadeira ao lado, a velha deixou-se ficar por uns instantes no meio do quarto, em camisa, espregui‡ando-se. Alta e magra. O rosto, com alguns sulcos profundos, era de uma palidez emba‡ada. Costumava dizer que "tinha ficado assim depois das febres". Do que f"ra, na sua mocidade, sobreviviam apenas poucos tra‡os: os grandes olhos azuis, hoje sem brilho; o nariz curto e afilado; duas carreiras de ¢timos dentes, esverdeados pelo abandono em que andavam, mas bem conformados e certos. Tudo o mais se arruinara ... vida de penosos trabalhos que levava. Tão logo se achou vestida, apanhou do chão o candeeiro e foi at‚ a sala da frente para acordar o filho, que dormia numa esteira de tabua, estendida s"bre o chão. Mas não teve necessi- dade de cham -lo. Vendo-a entrar, Pedro ergueu-se e lhe falou: -j estou acordado, mãe. Pode ir preparando a minha lata. Era um jovem de dezoito anos, a tez branca, cabelos aloira- dos, de estatura mediana. Trabalhava como ajudante de tor- neiro nas oficinas da Estrada de Ferro, situadas muito longe, no bairro do Arib‚. Tinha, por isso, de sair de casa muito cedo, levando a refei‡ão numa latinha, para s¢ regressar j noite feita. A velha fˆz-lhe ainda umas perguntas: "Se iria mesmo para o servi‡o; se o largara a febre que desde trˆs dias o minava." Em seguida, atravessou o corredor apertado, a sala de jantar (onde, numa cama de ferro estreit¡ssima, dormiam as duas filhas menores), e entrou no apertado cub¡culo a que chama- vam a "cozinha". Trˆs grandes pedras brutas serviam-lhe de fogão. P"s alguns cavacos entre elas. Feito o fogo, colocou em cima a velha cha- leira que usavam desde o Engenho, e onde iria ferver a gua para o caf‚. 14 amando fontes Estava deitando feijão com farinha e um peda‡o de lingi‡a na vasilha que Pedro ia levar, quando ˆste se aproximou, o chap‚u j na cabe‡a. -Que ‚ isso?-perguntou-lhe a mãe, meio surprˆsa.-Não to- ma nada antes de ir? -A constipa‡ão me tirou a vontade de comer-respondeu ˆle sˆcamente.-Pode ser que eu -compre um pão a¡ pelo ca- minho... P"s a lata sob o bra‡o e foi saindo. Fora, a chuva continuava, ininterrupta, mon¢tona. Uma ba- dalada soou. Ouvindo-a, Sá Josefa saiu da cozinha a resmungar: -Quatro e meia! Como o tempo est voando! Deixe-me cha- mar estas meninas, que o b£zio apita j . Encaminhou-se para o quarto que ficava entre o seu e a sala de jantar. Nalgumas t buas, estendidas s"bre quatro caixões de quero- sene, dormia Albertina, a segunda filha do casal, morena clara, olhos negros e vivos, um grande corpo bem-feito e transbor- dante de sa£de. A um canto, numa rˆdezinha "tran‡ada", de fios brancos e vermelhos, Rosenda ressonava, a dormir profundamente. Era a mais velha de t"das. Morenoria, cabelos pretos escorridos, o rosto pontilhado de espinhas, baixa e grossa. Tão gorda, que as irmãs lhe chamavam a B"lo-F"fo, apelido que sempre a deixava exasperada. Sá Josefa segurou os cadilhos da rˆde e sacudiu-a. -Avia-te, acorda! j ‚ mais de quatro e meia. Rosenda abriu uns olhos estremunhados, bocejou, e, viran- do-se de bru‡os, continuou a dormir. -Vamos, Albertina! hora. Levante-se. Esta havia acordado desde que a velha pusera os p‚s no quarto. Mas conservava-se calada e muito quˆda, para por mais uns minutos gozar a tepidez reconfortante da cama. Em voz spera, a mãe chamou-a de n"vo. E s¢ então saltou da cama, num movimento brusco, como se houvesse obedecido ao impulso de uma mola. Antes de retirar-se, a velha recomendou, apontando a rˆde de Rosenda: os corumbas 15 -Não se esque‡a daquela dorminhoca. Senão, fica a¡ até seis horas... Albertina viu naquilo um p‚ para a galhofa. E p"s-se a can- tarolar, embalando a irmã com violˆncia: 1 -"Tru-lu-lu, Menina calu. . . " -Largue dˆsse brinquedo-reclamou Rosenda, que desper- tara enfuriada. E, enquanto Albertina ia trocar de roupa, sentou-se em sua rˆde, a resmunkar: -Vida do inferno. Nem se pode dormir um bocadinho des- cansada. Se não ‚ mãe, sempre tem uma qualquer pra andar futucando a gente... Mas a outra nem fˆz caso da indireta. Agora, entre pilh‚rica e tristonha, se queixava de que sua camisa "estava uma pin¢ia, t"da esburacada, imprest vel". Mirou-se de cima a baixo, cons- ternada; e vendo um rasgão maior, por onde o seio esquerdo violentamente apontava - um seio moreno, muito rijo-, disse: -Mas vejam s¢ pra isto. Parece que eu vou dar de mamar ...s meninas do Tecido! ... E desatou numa gargalhada, que fazia t"da a sua firme car- nadura estremecer. Rosenda não se conteve. E, num ar escarninho, censurou-a: -Vocˆ ainda ri, vendo uma coisa dessas! Pois eu tenho ‚ ¢dio. Trabalhar que nem formiga e viver assim esmolamba- da... Albertina encolheu os ombros com desd‚m e saiu em di- re‡ão ... sala de jantar. Rosenda não tardou a acompanh -la. Faziam tudo ...s pressas. Passaram um pouco d' gua nos olhos; limparam os dentes com carvão; deram duas pentea- delas ao cabelo e estavam prontas. A velha tinha preparado o caf‚. Trouxe-o, na mesma lata em que o coara, e encheu pelas bordas duas grandes tigelas. Fingindo espanto, e dando ao rosto um tom de falsa tristeza, Albertina perguntou: - pra gente tomar caf‚ com ˆstes bolachões duros que nem pedra? 16 amando fontes E aditou, procurando imprimir um acento lamentoso ... sua fala: -Eu quero um pedacinho de carne, mãe... Sá Josefa levantou os bra‡os para o ar e quase em gritos respondeu-lhe: -¢ xente, gente! Temos aqui esta "papa-carne". Quer co- mer s¢lido cada passo e cada hora!. . . Vocˆ sabe por quanto est um quilo de jab ? Não, sã fidalga, vocˆ s¢ come carne ...s sete e meia, quando voltar pro alm"‡o. E não ‚ pouco! Est ouvindo? Albertina não se melindrou. Estava acostumada ...queles lon- gos falat¢rios da velha, acompanhados de grandes gestos, que não significavam c¢lera, ou, sequer, um aborrecimento mais profundo: eram pr¢prios do seu temperamento irritadi‡o. E foi com um sorriso malicioso que tro‡ou: -Então, mãe, arranje a¡ um machado, que ou são feitos de pau ou são de pedra. Estavam na sala de jantar e tomavam a sua refei‡ão de p‚, encostadas a algumas t buas de jata¡, colocadas s"bre varas, que lhes serviam de mesa. Perto delas, Bela e Ca‡ulinha, que j tinham despertado, conservavam-se quietas, os olhos cravados no teto, escutando, muito apuradas, o ru¡do que l fora a gua fazia, caindo das biqueiras. Rosenda ouvira aquelas queixas de Albertina sem Proferir uma palavra. Mas quando a mãe se afastou para a cozinha, p"s-se a reclamar, dentes cerrados: - assim! assim! A gente se mata como burro e depois s¢ tem direito a caf‚ com bolachão, a carne-sˆca com faTi- nha... -Queria um pedacinho de presunto, não era, B"lo-F"fo?- grunhiu uma vozinha sumida, da cama de ferro ao lado. Foi como se desencadeasse uma tempestade. A filha mais velha dos Corumbas largou o caf‚ e gritou, os bei‡os trˆmulos de raiva: -At‚ tu, grismela? Essa coisinha est magra ‚ de ruim que ‚... Esse diabo! ˆstes bolachões os corumbas 17 Referia-se a Bela, a pen£ltima das irmãs, p...lidazinha e ra- qu¡tica, sempre atacada de doen‡as. -j estão brigando, que nem bichos do mato, dispamparou Sá Josefa, l de dentro- melhor que se aviem. O povo est passando. Na rua, o povo ia passando... Madrugada. Tudo escuro ainda. Bandos e bandos de rapa- rigas, falando alto, desciam a Estrada Nova. Dos recantos e vielas que ali desembocavam, de momento a momento, sur- giam vultos apressados. Todo o bairro de S. Ant"nio parecia levantado, a correr para o trabalho. Os outros arrabaldes tamb‚m davam grandes levas. Do Ani- puni, do Arib‚, do Saco, de mais longe, vinham operarios. A parte sul da cidade, para os lados do Carro Quebrado e Fundi‡ão, fornecia numerosos contingentes. Ainda embrulhada nas sombras da noite, Aracaju ia desper- tando, ao ru¡do dos grupos que passavam, palradores. Eram mulheres, na sua maioria. Velhas, m"‡as, crian‡as. Donzelas, casadas, prostitutas. Caminhavam de mistura, em algazarra, batendo os tamancos com f"r‡a na areia acamada dos caminhos, nas pedras irregulares das ruas. Algumas, embrulhavam-se nos xales; aquelas, cobriam-se com o avental esburacado; outras, ainda, se apadrinhavam sob um velho guarda-chuva. As que não dispunham do mais leve aga- salho, vinham molhadas, e tremiam, com frio. Os homens, em muito menor n£mero, misturavam-se com as mulheres. Raros acompanhavam alguma parenta ou irmã. Quase todos se en- costavam ...s namoradas. O vento fustigava-lhes o rosto: a chuva fria arrepiava-lhes a epiderme. E, no entretanto, marchavam, marchavam sem pa- rar... Iam em busca do pão. Um negro pão, que, a tr"co de tra- balho, lhes forneciam as F bricas de Tecidos. Elas estavam l , aca‡apadas e enormes. Eram duas: a da Companhia Sergipana de Fia‡ão, que o povo cognominava a 18 amando fontes Sergipana, e a Emprˆsa Tˆxtil do Norte, apelidada sim- plesmente de Tˆxtil. Todos os dias, os seus grandes portões, escancarados, tra- gavam para mais de trˆs milhares de oper rios. Mais de trˆs milhares ... Gente de t"das as c"res, de v rios tipos, lembrando as ra‡as mais diversas. Poucos homens fortes. Mulheres feias, quase t"das. Eram praieiros de S. Crist¢vão e Itaporanga; camponeses do Vaza-Barris, da Cotingulba; sertanejos de Itabaiana e das Caatingas-que, num dia ou noutro, tangidos pela mais spera mis‚ria, haviam desertado de seus lares, na esperan‡a de uma vida melhor pelas cidades ... Dez pa‡a cinco. Um som prolongado e rouco veio quebrar o meio silˆncio em que estava mergulhada a manhã. Era a Sergipana que apitava. Como um eco, a Tˆxtil a acompanhou. As filhas de Sá Josefa engoliram ...s pressas o £ltimo bocado e sa¡ram a correr. Desceram a Estrada Nova at‚ a Rua do Arame. A¡, vendo uma rapariga encostada aos moirões da cˆrca, justamente na esquina, Albertina estacou para dizer-lhe: -Escute aqui, Maria: vocˆ est esperando Odilon? ... Vir- gem. muita coragem uma pessoa ficar assim na chuva, pro mode um troncho daqueles.. . -Largue de gra‡a-fˆz a outra- melhor que v s'embora. Quando ˆle chega primeiro, espera sempre por mim... Albertina fˆz um mux"xo e gritou-lhe, num riso de man- ga‡ão: -T"la! ... A ‚sse instante, Rosenda j dobrava o Beco da Cerim"nia. A irmã estugou os passos com o objetivo de alcan‡ -la. Mais adiante, encontraram algumas amigas e com elas seguiram, em palestra animada, ...s chufas e aos empurrões. Ao lado de uma cabo-verde espigada e magr¡ssima-os ossos salientes sob a pele luzidia-a B"lo-F"fo conversava agitada, com o mau humor de costume. Queixava-se da vida: "Estava ganhando um quase-nada. Sete mil-r‚is por semana! Um hor. os corumbas 19 ror. Nem podia comprar um sapato melhor, um vestidinho mais assim... Tamb‚m, dava tudo ... mãe, para cevar duas pre‡onhas que tinha em casa, com folias de ir pra escola. . . Por cima, ainda queriam que se levantasse madrugada, pra se matar no trabalho." E rematava, furiosa: -Isso ‚ uma peste. Não ‚ vida. Andar suja assim, que nem cadela de senzala... Animada pelas queixas que escutava, a outra tamb‚m se lamentou: -Ora. Vocˆ inda ‚ feliz. Tem pai e irmãos que lhe ajudam. E a pobre de mim, que sou s¢ pra sustentar minha mãe e um sobrinho ainda pequeno? ... O quˆ? O pai dˆle? Esse não d um dez-r‚is de mel coado. ... Tudo sai do meu suor. Albertina percebeu essas £ltimas palavras e logo se saiu a galhofar: -Est chorando, Desid‚ria? V chorar na cama, que ‚ lugar quente... Terminou numa gargalhada met lica, com todos os dentes ... mostra. Outras riram com ela. A mulatinha, meio encabulada, ati- rou-lhe: -Esse diabo, porque est alegre t"da hora, pensa que os outros tamb‚m não tˆm de que sofrer... Passa a vida inteira rindo, essa doida. ... -Boa, essa. Não ‚ s¢ vocˆ. Eu tamb‚m tenho razão pra vi- ver triste. Mas não me entrego. Nem sou t"la pra andar me lastimando. Lastimar, pra quˆ? Não d rem‚dio... Se chorar consolasse, meus olhos viravam fonte... -Faz bem, Albertina, exclamou uma sardenta, dos cabelos c"r de fogo.-Se todo pobre andasse contando suas m goas, o mundo se acabava em pouco tempo. Ningu‚m trabalhava mais e a fome vinha, danada. -E fiquem sabendo que os pequenos esticavam a canela antes dos grandes... Essa frase, dita com entona‡ão sentenciosa por um velhote que passava, de gorro e de cachimbo, veio cortar o fio ... con- versa das mulheres. 20 amando fontes Deixando para tr s os apicuns amarelentos, caminhavam to- dos agora pelo apertado at‚rro, feito de lama e cinza, que liga S. Ant"nio ao Bairro Industrial. Não cessara de cair a chuva fina. £mido e retalhante, o sudoeste soprava. Dentro daquela ondulante massa humana movia-se uma ra- pariguita muito branca, de treze anos apenas. Era um fran- galhozinho de gente, delgada como um vime; a carne, de tão sem sangue, transparente; os l bios arroxeados de frio. Cha- mava-se Clarinha e servia, como ajudante, na se‡ão dos teares da Sergipana, vencendo o ordenado de quatrocentos r‚is por dia. Fazia-se tarde. Todos se apressavam, a passos largos, para não perder o primeiro quarto. O rosto embrulhado no seu pequeno xale de algodão, Cla- rinha tentava acompanh -los, num esf"r‡o superior ...s suas f"r‡as. Corria quase. E foi assim que, ao saltar uma po‡a, tro- pe‡ou caindo em cheio na lama. Albertina correu a levant -la, exclamando: -Coitadinha. Sujou-se t"da. Outras oper rias acudiram. Dentro em pouco, j era grande o ajuntamento em t"rno da pequena. Algumas mulheres mur- muravam palavras de comisera‡ão. Uma preta quarentona, baixa e gorda, ajudava Albertina, limpando os tamancos enla- meados da que ca¡ra. A certa altura, arrebatada pela c¢lera, resmungou: -Mas isso ‚ mesmo uma judia‡ão. Como se manda uma pessoa trabalhar, assim doente? Acocorada junto ... po‡a, a menina enxugava os joelhos, desa- jeitada e trˆmula. Fazia-lhe mal ouvir as lamenta‡ões de que era alvo. Estava excitada, os olhos cintilantes. Afinal, não se p"de mais conter e p"s-se a chorar baixinho, escondendo o rosto nos trapos do xale. Um prˆto espada£do, rosto eri‡ado de espinhas, parou e disse, num ar de grande pena: os corumbas 21 - Pobrezinha! Olhou, curioso, para ver quem era, E logo ajuntou, em tom de tro‡a: - Bem que estava vendo! a filha de Sá Maria Pirambu. Mas aquela velha ‚ mesmo uma peseta. Parece uma caninana azougada... Vive a chupar o sangue da bichinha... Houve um zunzum de risotas, que ainda mais veio aumen- tar o vexame de Clarinha. Encheu-se de vergonha. Quis re- plicar, talvez defender a mãe, injuriada, assim de p£blico. Mas nem p"de falar, assaltada por um acesso de tosse, que ...s vˆzes a sufocava. A¡, ainda foi Albertina quem veio em seu aux¡lio. Ergueu-se, de um pulo, e as mãos nos quadris, um jeito desdenhoso na b"ca, gritou para o crioulo: -Agora, vamos ver quanto Vossa Senhoria quer pela gra- cinha, seu cara de ralo! Clareava o dia. A mar‚ quase cobrira o Atˆrro. Ao s"pro da ventania, pequenas maretas se formavam e vinham reben- tar bem aos p‚s das raparigas. Emergindo das guas transpa- rentes, as copas verdes dos mais altos mangues pareciam rvo- res flutuantes. O Atˆrro que liga o Bairro Industrial ... parte mais rica da cidade tamb‚m formigava de gente. j se havia dispersado por completo o agrupamento feito em t"rno da menina. De longe em longe, uma oper ria retar- dada, que vinha a correr, nem sequer parava. S¢mente Alber- tina se deixara ficar ao lado dela, procurando consol -la. -Não chore, minha nˆga-dizia.-Vocˆ ‚ t"la? V pra casa. Diga ... sua mãe que caiu, que est doente, e por isso não pode ir hoje pro servi‡o... Ela não lhe faz nada, não... v . Clarinha enxugava as l grimas, solu‡ando. Estˆve uns mi- nutos hesitante, parecendo inclinada a aceitar o alvitre da outra. Por‚m mudou de aviso de repente. E meneando a ca- be‡a com f"r‡a, tartamudeou, em voz de ch"ro: -Não, não. Ela me bate! Diz que eu tenho ‚ pregui‡a. Segundos ap¢s, entretanto, j mudava de atitude e retifi- cava: -Mas eu não posso... assim... tossindo dˆsse jeito. A poeira do algodão ‚ capaz de me matar... Não posso! 22 amando fontes -Olhe: vamos. Eu pe‡o a Odilon pra não lhe apertar muito no servi‡o. Quer? -Assim, eu quero-concordou a pequena, j meio consolada. -Vocˆ pede a ˆle pra deixar eu ir fora, quando estiver can- sada, não ‚? -Deixe estar; eu arranjo. Vamos, vamos. Meu pai vem ali. Ao aproximar-se da filha, Geraldo foi dizendo: -Vocˆ ainda est aqui, menina? Vai depressa, senão vocˆ não entra nesse quarto. Sem se afligir, Albertina respondeu: -Vou j , meu pai, vou j ... Em seguida, voltando-se para a pequena companheira: -Vamos, Clarinha, avia-te! O velho ainda estˆve uns momentos parado, olhando a filha, que se afastava a correr, e tomou, a passo tardo, o rumo da Estrada Nova. Ele tinha agora a cabe‡a t"da branca, o rosto encarquilhado. Do bigode, esparramado s"bre a b"ca, não se sabia bem a c"r, tão queimado vivia do fumo do cachimbo. Seus olhos piscavam de cont¡nuo e davam a impressão de haver diminu¡do de ta- manho. Um joelho, sempre atacado de reumatismo, fazia-o coxear ligeiramente. Àquela hora, vinha de regresso da Sergipana, onde conse- guira se empregar como vigia noturno, desde o primeiro mes de sua estada na cidade. Chegando em casa, foi encontrar a mulher na az fama de t"das as manhãs. Preparava, agora, o alm"‡o das filhas me- nores, que ...s sete e meia deveriam sair para a escola. Sentada no batente da porta do quintal, Ca‡ulinha estu- dava, muito atenta, a sua li‡ão. Lia em voz alta, convenci- da de que assim decoraria mais depressa. Era uma gar"ta de onze anos, olhos claros, cabelos castanho-loiros, branca e ro- sada. Tudo isso, e mais o acetinado de sua pele, as suas mãos finas e belas, davam-lhe certo ar de superioridade e destaque no meio pobre em que vivia. Constitu¡a o enlˆvo e a alegria os corumbas 23 dos dois velhos. Era, mesmo, a m xima esperan‡a dˆles. Por- que, aquela, não levaria a dura vida das irmãs. Arrostando sacrif¡cios e imposs¡veis, haveriam de fazˆ-la normalista e pro- fess"ra, para ter quem lhes f"sse um amparo no extremo da velhice. Vendo Geraldo entrar, Ca‡ulinha correu ao seu encontro, beijou-lhe a mão. -Deus te aben‡oe, disse o velho. Foi at‚ a pequena cama de ferro, onde Bela ainda se con- servava deitada, e fˆ-la levantar-se com bons modos. Depois, j na porta da cozinha, dirigindo-se ... mulher: -Eh, Zefa. Estou com fome. Bote a¡ alguma coisa pro velho mastigar. Sá Josefa não tardou, com um peda‡o de charque assado e um pouco de feijão aguado no fundo de uma tigela. Geraldo sentou-se ... mesa. E não havia dado ainda comˆ‡o ... refei‡ão, quando bateram fortemente na porta da rua. -Zefa-gritou ˆle ... mulher, que trabalhava na cozinha- Estão batendo a¡. V ver, que a porta est fechada. Sá Josefa foi abrir e recuou, num movimento de espanto, ao defrontar-se com Albertina. A rapariga transp"s o batente sem dizer uma palavra para a mãe. Atravessou, estabanada, o estreito corredor. Chegando ... sala de jantar, deixou-se cair num tamborete, os cotovelos fincados na mesa, a cabe‡a apoiada entre os dois punhos. Decorrido o primeiro instante de surprˆsa, Geraldo passou a interrog -la, curioso e inquieto. Ela, por‚m, não respondia. Tinha o olhar cravado num ponto vago do horizonte. Fazia tremer nervosamente uma das pernas. E sua respira‡ão era curta e desigual. Sá Josefa então aproximou-se e, spera, insistiu: -O que ‚ que vocˆ tem, menina? Parece doida!... O que foi que aconteceu? Vamos, fale! A m"‡a ainda permaneceu silenciosa e parada alguns mo- mentos. E quando, num grande esf"r‡o, tentou explicar, as l grimas saltaram-lhe dos olhos, quatro e quatro, prˆsa de uma crise de ch"ro violento. 24 amando fontes Estupefatos, os velhos não desfitavam a vista dela. Era a pri- meira vez que a viam chorando por tal forma. As duas meninas tamb‚m se tinham acercado, numa curiosi- dade cheia de espanto. Afinal, logo que p"de se exprimir, Albertina contou tudo loquazmente, atirando uma palavra atr s da outra. Às vˆzes, entrecortava a narrativa para dar passagem a um solu‡o pro- fundo, que a fazia estremecer. -Foi Misael, o contramestre da minha se‡ão... Miser vel. Ele não gosta de mim, porque eu não sou como as outras, que lhe dão confian‡a... Safado. Uma vez me deu uma pal- mada nas cadeiras. Mas eu desgracei logo com ˆle. Gritei-lhe no focinho: "Atrevido! Moleque. V bater na tua mãe, peste." O povo todo viu... Ele ficou danado comigo, e por isso vive de preven‡ão... Hoje, s¢ porque eu cheguei um bocadinho mais tarde-ainda não tinham fechado o ponto-o infame disse que eu não entrava neste quarto. E veio logo com enxerimen- tos: "Se eu quisesse esperar por ˆle, de noite, no Beco da Ceri- m"nia. . . " Nem deixei que ˆle acabasse. Dispamparei, xinguei tudo, e vim m'embora ... Com t"da certeza agora o miser vel vai dar parte de mim ... Tamb‚m, eu que me importo! Não volto mais pra trabalhar naquele inferno. Não volto, não volto, pronto. Geraldo escutara, cabisbaixo, todo o desfiar da hist¢ria de Albertina. E, vendo que ela se calara e ainda chorava, pro- curou consol -la, entre indignado e comovido: -Est direito, minha filha. Não volta! Vocˆ se passa pra Tˆxtil e arranja logo um lugar na fia‡ão de l ... Est direitol Não volta. Aquˆle apoio imediato do velho veio sensibilizar ainda mais a rapariga, cujos solu‡os redobraram. De espa‡o a espa‡o, sus- pendia a cabe‡a e se queixava: -Eu, que sempre vivo tão alegre, ainda acho quem venha me atazanar... Não volto mais pra aquˆle inferno. Ouvir desaforos de um negro daquele. ... Sá Josefa at‚ ali nenhuma opinião tinha emitido. Manti- nha-se calada, a fisionomia apreensiva, pensando no transt"rno que aquˆle incidente poderia trazer ao or‡amento da casa. os corumbas 25 Mas ante a maneira decidida por que a filha e Geraldo acaba- vam de expressar-se, resolveu interceder, com modos brandos: -Não diga assim, menina. Pobre não pode sustentar dˆs- ses caprichos... Se eu tivesse recursos, nenhuma de vocˆs es- tava l ... Não diga assim... Ningu‚m sabe das voltas dˆste mundo... Pela sua b"ca falava a experiˆncia de t"da uma vida de labor. Neurastˆnica e irritada a prop¢sito de tudo, guiava-a, nos momentos mais dif¡ceis, um agudo sentimento pr tico das coisas. Por isso, ao invés de apoiar a filha, no seu desejo de abandonar a Sergipana, esfor‡ou-se por afast -la dˆsse intento. E argumentava: -Entrando agora na Tˆxtil, vocˆ vai ganhar um quase- -nada. .. Est tudo tão caro. ... Vocˆ, a bem dizer, ‚ a mão forte da casa. Ganha treze e at‚ quinze mil-r‚is por semana. Se isso faltar, assim de uma hora pra outra, nem sei como a gente se aguenta... Vai ser, mesmo, um horror. Mas Albertina não se queria conformar. Sacudia nervosa- mente a cabe‡a: -Não, mãe, não volto. Isso, nunca. -Est direito, minha filha!-sustentou Geraldo.- melhor a gente morrer de fome. Pobres, sim, mas quero que sejam honradas. Fˆz-se um grande silˆncio. Bela e Ca‡ulinha não tinham voltado aos livros. Continuavam em derredor, de ouvidos fi- tos, escutando. Sá Josefa deixou o marido e a filha, sem resposta, enquanto chegava at‚ a cozinha. Passados minutos, por‚m, regressava, para retomar a conversa, a voz bem calma, pesando uma por uma suas razões: -Vocˆs não estão me entendendo bem. Pois então eu vou querer que as minhas filhas se percam no mundo? Não. O que eu quero ‚ fazer as coisas direitinho, sem proa levantada, sem pressa. . . Se Albertina sair de l agora, n¢s vamos passar necessidades, com ˆsse tempo medonho, em que tudo se vende pela hora da morte. Não digo que v trabalhar com ˆsse tal de Misael, que mostrou ser um tipo sem-vergonha... Mas fala a Seu Joãozinho, o gerente. Ele gosta muito dela e arruma as 26 amando fontes coisas. mude de se‡ão e tudo entra nos eixos sem barulho. Não ‚ melhor assim? Vocˆs não acham? Falou ainda, falou muito, at‚ convencer a ambos de que a razão estava do seu lado. E quando, ...s sete e meia, Rosenda veio tomar o seu alm"‡o, j era a pr¢pria Albertina, serenada, quem justificava a sua volta ... Sergipana: "A Tˆxtil ficava mais longe. Ganharia menos, no comˆ‡o. Estava resolvida a ir contar tudo, em pessoa, a Seu Joãozinho, para que ˆle a mudasse de se‡ão. Era assim mesmo: quem não tem dinheiro, não pode ter soberba; ou se sujeita, Ou iam pas- sar mis‚rias maiores." E rematava, tristemente: -Pobre ‚ como boi de carro. Agenta canga, ferrão, o diabo! E se um dia teima, sem querer trabalhar, o dono grita logo pro carreiro:-"Este boi anda cansado; est bom ‚ de ir pra faca." Pobre ‚ assim. Se não agenta a lida e afrouxa, morre de fome que ‚ faca cega: mata devagarinho... Aquˆle modo resignado e triste de falar chocou o velho, que vivamente a atalhou, para dizer: -Tenha paciˆncia, minha filha. Um dia, a gente melhora... Isso não h de ser assim por t"da a vida.. . As raparigas conversavam, comendo em r pidas garfadas o seu charque com farofa. Poucos minutos mais, as f bricas api- tavam novamente, tocando a recolher. Tiveram de largar o alm"‡o, maldizendo-se da sorte, e debandaram correndo para a rua. Atr s delas, sa¡ram Bela e Ca‡ulinha, em demanda do grupo escolar em que estudavam. Oito horas. Passara a chuva. Mas o dia se conservava enu- blado, feio. Em t"rno do Bairro Industrial, por apicuns e ater- ros, mexia-se de n"vo a onda humana. Menos densa, agora, porque s¢mente tinham sa¡do para o alm"‡o os oper rios resi- dentes nos arrabaldes pr¢ximos. Os que moravam mais longe, faziam, ali mesmo, nos largos p tios, a escassa refei‡ão, que levavam em pequenas latas de f"lha-de-flandres. os corumbas 27 De caminho, as filhas de Sá Josefa acercaram-se de algumas companheiras. Da¡ a pouco Rosenda gesticulava, exaltada, para duas conhecidas, atacando as F bricas, a pouca-vergonha dos empregados dirigentes, que se queriam valer dos cargos para maior facilidade das suas conquistas amorosas. Enquanto isso, Albertina, em meio a um grupo, contava, entre a alegria e o espanto das outras, a briga que tivera com o Misael, os nomes feios que lhe xingara. Readquirira j o bom humor de costume. E dizia, vibrante de entusiasmo: -Deixei o bicho raso... Gritei-lhe assim, nas fu‡as:-"Negro atrevido! Sem-vergonha! Miser vel!" T"das gabavam-lhe a coragem: -Muito bem, Albertina! Vocˆ ‚ danada! Assim ‚ que se faz. Abra‡ada a uma gar"ta morena, talvez mais jovem do que ela, Clarinha passava nesse instante, visivelmente esfalfada do esf"r‡o que fazia para não ficar atras da outra. Vendo Alber- tina, acenou-lhe adeus com a mão, o rosto aberto num sorriso. Com a sa¡da das filhas para o trabalho e para a escola, Geraldo e Sá Josefa ficaram s¢s em casa. Ela, sentada, ˆle, de p‚, permaneciam encostados ... mesa, silenciosos, entreolhan- do-se de quando em quando. De repente Sá Josefa estremeceu, passou a mão pela testa, e disse para o marido: -Sabe, Geraldo? Ontem fˆz anos de nosso casamento... Teve um gesto desalentado e concluiu: - verdade! ... E a gente nem se lembrou... O velho não respondeu. Limitou-se a balan‡ar a cabe‡a en- canecida. DOIS Não houve explica‡ões, nem rogos, que tivessem f"r‡a bas- tante para manter Albertina no seu emprˆgo da Sergipana. O gerente, de ordin rio tão af vel e risonho com ela, nesse dia a recebeu de fisionomia trancada, carrancudo. Desiludiu-a logo ...s primeiras palavras: -Não! A senhora ‚ boa oper ria, faz um trabalho limpo, 28 amando fontes não h d£vida. Mas não sabe tratar os seus superiores com respeito. A rapariga ainda tentou justificar-se, come‡ando a contar-lhe o verdadeiro motivo da contenda. -Ele ‚ o contramestre, -atalhou, sˆco e severo, Seu Joãozi- nho. - De nada adianta a sua explica‡ão. na palavra dˆle que eu tenho de acreditar. Senão, adeus ordem e disciplina. .. A A senhora mesma foi a culpada de tudo. Fˆz um bruto escƒndalo na hora do servi‡o. Agora, não tem mais rem‚dio. Seu nome j foi riscado da lista. Acabou-se. Muito mais cedo do que era de esperar, tornaram-se reali- dade os receios de Sá Josefa. No mesmo dia em que f"ra despedida, Albertina tinha cor- rido at‚ a Tˆxtil, para pedir um lugar ... Dire‡ão. Nada pu- dera, entretanto, conseguir. Não havia, em t"das as se‡ões, uma s¢ vaga. Uma longa semana decorreu; e, ao cabo, j não se podia disfar‡ar o enorme desequil¡brio que aquˆle desemprˆgo viera trazer ... economia da fam¡lia. Rosenda, por mais que se esfor‡asse, não alcan‡ava nunca receber acima de dez mil-r‚is todos os s bados. Do seu orde- nado, Pedro podia dispor somente da metade. juntando-se a essas quantias os dois e quinhentos que o velho ganhava por noite de servi‡o, conseguia-se apenas perfazer uns cento e pou- cos mil-r‚is em cada mˆs. Sá Josefa perdia noites e noites, a pensar. Contava as pe- quenas c‚dulas de papel, recontava os cobres e os n¡queis. E conclu¡a sempre, ao fim, que não lhes era poss¡vel viver com tão pouco dinheiro, pagando aluguel de casa, vestindo e ali- mentando sete pessoas. Haveria, talvez, o recurso de restringirem ainda mais as des- pesas, mudando-se para uma casa pior, suspendendo o col‚gio ...s duas menores. Mas essa seria uma solu‡ão tão dolorosa, que a velha nem gostava de se deter a pensar nela. Então, a fam¡lia inteira p"s-se em campo, valendo-se de conhecimentos e amizades, em busca de uma coloca‡ão para os corumbas 29 Albertina. Por‚m os seus esfor‡os resultavam sempre in£teis A cada n"vo passo tentado, s¢mente desilusões e negativa recebiam. Ora, Albertina, certamente por ter sido a causa involun- t ria de tudo aquilo que se dava, afligia-se mais que os outros ante o agravamento da mis‚ria no seu lar. Por isso, não des- cansava um s¢ instante, pedindo a um, lembrando a outro. Certa vez, ocorreu-lhe falar a uma vizinha, conhecida pelo nome de-Marocas, que trabalhava na Tˆxtil. Era uma m"‡a baixa e rechonchuda, mulata clara, de ca- belos negros e escorridos, olhos mi£dos e vivos. Não possu¡a nenhum sinal de beleza; mas o conjunto de seus tra‡os, sua maneira altiva de olhar, seus gestos brandos, emprestavam-lhe uma gra‡a particular, que cativava. Entre t"das as companheiras de se‡ão era ela a que melhores vencimentos percebia. Andava sempre limpa e bem-tratada. Costumava ir ... missa, nos domin- gos, vestida em fantasia de sˆda ou tricoline, sapato branco de pelica. E o povo, vendo-a tão bem trajada e sabendo que o Capitão Cisneiros, diretor-t‚cnico da F brica, sempre lhe dispensava uma aten‡ão especial, passou a boquejar que ela era amante do patrão. Sá Josefa cria pouco naqueles mexericos". Mas não se queria tornar uma exce‡ão. E por isso constantemente recomendava para as filhas que não tivessem com a vizinha rela‡ões de maior intimidade. Costumava acrescentar que "certas misturas não dão nunca boa liga", pois "quando o povo diz, ou ‚, ou est pra ser. . . " Albertina, entretanto, nunca levara a s‚rio tais conselhos. Tinha uma certa simpatia pela m"‡a. Admirava, mesmo, o modo sobranceiro e desdenhoso por que ela desprezava a opi- nião alheia a seu respeito. De modo que, quando se lhe esgotaram por completo as esperan‡as, não teve pejo em procur -la, pedindo que inter- ferisse diretamente em seu favor. Mas a outra logo a atalhou, surpreendida: -Pra eu arranjar? Qual, minha nˆga! Quem sou eu? Pelo que vejo, vocˆ tamb‚m se fia no que essa gente anda dizendo... Eu não tenho f"r‡a nenhuma l na F brica. Se tivesse, não 30 amando fontes trabalhava que nem negro de engenho, como trabalho todo dia. Albertina desculpou-se: "Que ela não visse m inten‡ão em suas palavras... Longe dela tal pensamento." E concluiu: -Mas vocˆ, Marocas, como empregada antiga, tem direito de pedir por uma amiga. Depois, vocˆ sabe que eu não sou ne- nhuma remanchona. Quando pego num servi‡o, ou ˆle sai, ou diz porque não sai ... -Não, não. Com o meu pedido não se arruma mesmo é nada. O melhor ‚ vocˆ procurar o Dr. Barros ... Porque não conhece ˆle? Não faz mal. Ele ‚ um homem bom. Não liga que se conhe‡a ˆle ou não conhe‡a. Protege a todo o mundo. Depois, tem f"r‡a de verdade. Se vocˆ chegar na F brica com uma carta dˆle pela frente, pode contar que est empregada. Albertina bateu na testa, satisfeita: -Ah. Vocˆ lembrou bem. Eu sei que ˆle tem valido a muitas. Vou j pedir a mãe para ir l comigo, agora mesmo. O Dr. Barros era um velho advogado, que sa¡ra de Sergipe muito jovem e fizera fortuna r...pidamente. Gˆnio um tanto esquisito, amigo da solidão e dos seus livros, fugira sempre ao casamento. E tinha ainda cinqenta anos quando, com sur- prˆsa de t"da sua roda, abandonou a profissão, vendeu o magn¡- fico palacete da Avenida Paulista, e voltou para o Norte, com a inten‡ão deliberada, que ˆle manifestava rindo para os ¡nti- mos, "de ir morar numa casa de taipa em S. Ant"nio". Não era uma grande inteligˆncia. Mas estudara muito. Con- seguira, mesmo, formar uma cultura s¢lida e variada. Tinha a prosa fluente e colorida. Não tardou que sua morada, bem pr¢xima ... Capela, no alto da colina, passasse a viver cheia, desde a manhã at‚ a noite. Gente de todos os credos, de t"das as condi‡ões sociais, o procurava. Ele, que era, no fundo, uma alma simples, não p"s d£vida em receber a uns e outros, renunciando ... calma e ao silˆncio que pretendera desfrutar em sua terra. Quando a not¡cia de sua fortuna e sua bondade correu os corumbas 31 mundo, t"da a pobreza do arrabalde foi-lhe implorar uma qualquer coisa. Teve contato, então, com as mis‚rias mais dolorosas. Conheceu doentes sem alimento e sem rem‚dio. Topou crian‡as nuas, gemendo de fome ou tiritando de sezões. Viu rec‚m-natos, cujas mães não tinham leite, morrerem em- panzinados de cozimento de farinha que ingeriam... Comoveu-se fortemente. Fˆz o prop¢sito de não deixar sem assistˆncia a quem quer que o procurasse. E quando deu de si, estava apaixonado, inteiramente entregue ...quela missão de le- nir dores. Nessa noite, o velho advogado ia chegando ... porta, de sa¡da para a rua, quando Sá Josefa e Albertina apareceram. Foi a velha quem falou, depois de um cumprimento respeitoso: -O senhor desculpe, Seu Doutor ... Queria lhe pedir uma gra‡a... Vim aqui mesmo pra isso ... O Dr. Barros não tinha a menor recorda‡ão de j as ter visto alguma vez. Mas estava tão acostumado ...quelas abor- dagens imprevistas, em que desconhecidos lhe vinham solicitar algum favor, que não teve o mais leve gesto de surprˆsa. Li- mitou-se a dizer, em tom am vel: -Sim, senhora. Pode falar. Estou ...s ordens. - assim, Seu Doutor-reatou Sá Josefa.-A gente veio da Capela, do Engenho da Ribeira, não faz ainda muito tempo, e foi morar ali na Estrada Nova. Eu, o marido e a filharada... Pois bem: esta, que o senhor est vendo a¡, ajudava mais do que todos nas despesas. Agora, perdeu o emprˆgo, mode uma briga que apareceu l no servi‡o. Mas o senhor pode me crer que ela est coberta de razão. O contramestre saiu com enxe- rimentos; ela partiu com ˆle... E, s¢ por isso, "lho da rua. Procurou lugar no outro Tecido. Disseram que não tem vaga. A gente não ‚ daqui, tem pouco conhecimento. S¢ Seu Doutor, pelo que outras me disseram, Pode dar um jeito nisso... O velho mandou-as entrar. Ofereceu-lhes cadeiras. E, com um vis¡vel acento de tristeza, p"s-se a dizer, na sua voz forte e pausada: -Veja como anda isso! j dei hoje quatro cartas de pedido 32 amando fontes de emprˆgo. Fico at‚ acanhado. Eu sei que as F bricas estão cheias. Eles atendem, porque são meus amigos. Mas eu não gosto de abusar. Vamos ver.. . -Mas olhe, Seu Doutor, a situa‡ão da gente ‚ bem triste -interveio Albertina, com aquˆle ar de decisão que punha em tudo.-Eu não posso ficar assim parada... Na Sergipana eu trabalhava que nem mouro pra fazer doze e treze mil-r‚is por semana. E s¢ trabalhava assim porque a gente precisa mesmo de dinheiro l em casa. Eu dava a mãe quase tudo.. . Pode crer... Agora, se eu não tiver donde tirar, não sei o que vai ser da gente. Minhas irmãs mais novas tˆm que deixar a escola. E eu tenho que me empregar como copeira em qualquer casa, pra ganhar ao menos o sustento, .. Falava ligeiro, sem quase tomar f"lego. Mas a narrativa de suas pr¢prias mis‚rias emocionou-a. Seus olhos se encheram d' gua; sua fala se entrecortou, estrangu- lada. -Olhe... Seu Doutor.. . eu aceito qualquer coisa... Não fa‡o... questão... -O que ‚ isso, menina? Não chore, interrompeu o Dr. Bar- ros.-Eu não disse que era imposs¡vel. Estava apenas contando o que se tinha passado hoje. Acalme-se. Eu sei que vocˆs pre- cisam. E basta isso pra eu não deixar vocˆs em falta... -Eu não fa‡o questão--volveu a m"‡a.-Eu quero... ‚ me empregar ... Nem que seja... pra ganhar cinco mil-r‚is... por semana ... O senhor pode... at‚. . . dizer isso na carta. . . -H de se arranjar coisa melhor. Fique tranqila. Eu mes- mo vou falar com o Cisneiros... Onde era seu lugar? Na Fia‡ão? -Pois bem. Vou fazer tudo para conseguir um outro igual... E depois de uma pausa: -Não tenham acanhamento. Sempre que precisarem, me procurem. os corumbas 33 TRÊS A ATMOSFERA, lavada pelas longas chuvas do £ltimo inverno, resplandecia, fina, transl£cida. O luar, muito branco, se derramava s"bre a terra, amaciando as coisas. Nove e meia. Era s bado. Por isso, a Estrada Nova apre- sentava um desusado movimento. Os bondes passavam cheios. Grupos de m"‡as oper rias, vestidas de branco, o p‚ nu s"bre as sand lias, cabelos ao vento, passeavam, acima e abaixo. Algumas traziam junto a si os namorados. Meninos cortavam a rua em t"das as dire‡ões, correndo a "manja". Outros brincavam a b"ca-de-forno, agrupados em t"rno de uma crioulinha, j se pondo mulher, que os coman- dava. Ela dizia: -B"ca de forno? -Forno! -respondia a garotada. -Manda que v ! -V ! -Vai tudo aonde eu mandar? -Dar. -Então... vai tudo at‚ a venda ali da esquina. E a tropilha abalava, em gritalhada. De espa‡o a espa‡o, num quintal qualquer, erguia-se o canto mon¢tono de um galo, a que outros, como um eco, respon- diam. Um bando lacre de homens e raparigas descia a Ladeira de S. Ant"nio. Albertina vinha entre ˆles, fazendo chiste, be- liscando e empurrando as companheiras. No ponto terminal da linha de bondes havia um grande ajuntamento, em frente a uma casita de telha sem reb"co. Chico da Genoveva, o grande dedilhador do violão, acompa- nhava a modinha choramingas que um militar amulatado, de grande cabeleira aberta ao meio, soltava arrastadamente para os ares. Bem junto a ˆle Rosenda escutava, o ar alheado, em- bevecida. Fora do que era habitual, a sala da frente da residˆncia dos Corumbas estava ainda iluminada ...quela hora. A um canto, 34 amando fontes Sá Josefa tran‡ava renda, na sua grande almofada de pontas de capinƒ. Tinha a fisionomia carrancuda. De quando em quando en- grolava umas palavras de raiva, fazendo os bilros se entrecho- carem com f"r‡a, num estalar ritmado e estridente. Passava alguns minutos nessa tarefa, os olhos fitos no dese- nho caprichoso que as linhas iam modelando; mas logo se impacientava e erguia-se para chegar at‚ a janela. Olhava a rua em todos os sentidos. E como não divisasse o que queria, voltava, arrebatadamente, ... sua cadeira. -Ah!-exclamou em dado instante.-Essas meninas estão ‚ tomando sopa comigo! Quem j viu uma coisa dessas? j passa muito das nove e aquelas duas m"‡as s¢zinhas pela rua! Qual! ... Isso precisa entrar nos eixos ... Soavam dez horas no rel¢gio da Tˆxtil quando Albertina foi entrando. Sá Josefa descarregou sua c¢lera s"bre ela: -Não. Eu não criei filhas pra andarem vagabundando at‚ alta noite pelas ruas! Vocˆs estão se enganando comigo. O que ‚ que ficam fazendo l por fora? Namoros, com certeza.. . Muito bonito, isso! Se tˆm namorados, se ˆles são s‚rios, com boas ten‡ões, que venham ver vocˆs aqui em casa. melhor! Eu não me importo! O que não me cheira bem são ˆsses pas- seios at‚ tarde, ningu‚m sabe por que cantos. Albertina tinha se sentado e ouvia-a, a mão no queixo, uma expressão tão fleum tica nos olhos e na b"ca, que parecia desdenhar. E foi quase a sorrir que respondeu: -Ora, mãe, deixe de raivas. .. Então a senhora não quer que a gente se distraia um bocadinho? -Não quer que se distraia, não! O que eu quero, e hei de conseguir-est entendendo!-‚ que vocˆs sejam direitas e não sigam o mau exemplo de muitas... Se eu falo, ‚ porque zelo. Voce não vˆ as mis‚rias que estão acontecendo todo dia? -Bobagem, mãe! ... Então, porque uma se perdeu, as outras vão andar no mesmo rastro? Que nada, mãe! S¢ se perde quem quer... O mais ‚ tolice. .. -Vejam, vejam!-repetia, em voz rouca, Sá Josefa.-Uma, fala dessa forma; a outra, faz melhor: j vai pra dez e meia e não d um ar de si! quero que me digam s¢ se isso tem jeito. os corumbas 35 ouvindo modinhas e violão. E depois de uma pausa, que aproveitou para emitir fundo suspiro: -Vocˆ, que andava batendo mundo por a¡, não viu adonde ela se socou? Albertina contraiu os l bios, num muxoxo, e respondeu: -Não sei por que tanto barulho. Ela não est fazendo nada assim demais. Est ali bem perto, no meio de muita gente, o . . . -j sei, j sei-cortou Sá Josefa, em tom sarc stico.-Anda ...s voltas com o tal do cabo de pol¡cia... Um mulato a¡ ...-toa, que s¢ quer tomar o tempo dela... Mulher ‚ mesmo um bicho tolo. Deixa se embei‡ar por um qualquer. Com tanta violˆncia blaterava, que j tinha a garganta sˆca, a b"ca pegajosa. Levantou-se para ir l dentro beber gua. E ao tornar disse, em voz alta, para a filha: -V , v j chamar aquela delambida. Não vou eu mesmo em pessoa porque, com a raiva que estou, sou capaz de lhe dar umas tamancadas; no meio do povo todo... Mas nisso, Rosenda foi transpondo o umbral. Sá Josefa ca- minhou para ela. E as mãos escanchadas nas ilhargas, os olhos fuzilantes, prorrompeu: -Bonito. Bonito. mesmo uma beleza. Quero saber onde ‚ que j se viu uma m"‡a donzela ficar s¢zinha na rua at‚ essas horas. O que ‚ que est pensando? Vocˆ cuida que me trepa no cangote. Ah. Ali. Sã Dona. Est enganada comigo! Muito enganada, mesmo. Num segundo, a c¢lera havia transtornado as fei‡ões da que chegara. Sua respira‡ão tornou-se apressada e sibilante. Achou melhor, por‚m, não dizer nada. E, num gesto arrebatado, diri- giu-se ao corredor. Mas Sá Josefa postou-se-lhe na frente: -Não, não. Não saia! Tem que ouvir tudo! Não pense que ‚ s¢ fazer suas doidices e correr caladinha pro seu canto! Tem que me escutar at‚ o fim, pra ver se toma vergonha nessa cara. A¡, Rosenda j não se p"de mais conter, e retrucou tamb‚m gritando: -Virgem! Mãe est ficando de uma forma, que nem quer que a gente dˆ um passeinho... 36 amando fontes -Eu estou ficando?I Não estou ficando coisa alguma. E, batendo com a mão espalmada s"bre o peito: -Eu sempre fui a que sou hoje. Vocˆs, sim, ‚ que muda- ram... Quando a gente morava na Ribeira, não havia pas- seios t"da noite, nem amiguinhas, nem namoros. Mas, l , vocˆs eram tementes. Aqui, ‚ que engrossaram o pesco‡o. Fazem o que bem d na veneta, andam acima e abaixo pelo mundo, como bois soltos no pasto, e depois, pai e mãe que se calem... Ah. Quanto eu me arrependo de ter deixado o meu Enge- nho! ... Foi aqui que vocˆs deram pra reclamar o trabalho, se lastimando a cada passo e a cada hora. Mas eu sei porque ‚ isso. porque o tempo ‚ pouco pra tratar de vestidinhos, de sapatos, e mais isso e mais aquilo! Agora, querem viver que nem umas bonecas, de la‡arote no cabelo e a cara lambuzada de pintura! Inda outro dia aquela m"‡a-e apontava Alber- tina-andava falando em vestido de sˆda e meia fina. Vocˆs, l , pensavam nisso? ... Mas o pior de tudo ‚ o diabo da ce- gueira do casamento. Não tira essa id‚ia da cachola nem por nada. E pro mode isso ‚ que a senhora faz do que faz, andando pra todo canto com aquˆle sujeito de uma banda. Não, Sá Rosenda. Vocˆ precisa tomar prumo na vida. Um dia eu acabo com essas sa¡das de noite com as amigas! Vocˆs vão ver o que ‚ que eu fa‡o... Mas aquela alusão aos seus am"res, a amea‡a de castigo, transportaram por completo a m"‡a, que passou a responder, branca de raiva: -Eu não estou dizendo todo dia! Mãe pensa que a gente ‚ burro de carro‡a, pra viver a vida inteira no trabalho. A senhora est enganada. A escravidão j se acabou h muito tempo. Sá Josefa chegou-se mais para junto dela. E o dedo em riste, quase a tocar-lhe a face, bradou: -S¢ sabe ser malcriada, ˆsse diabo! A gente faz as coisas pro bem dela e salta com quatro pedras na mão! Atrevida! Res- pondona. Repare no que diz, senão eu te rebento com. Rosenda ia recuando pouco a pouco, num movimento ins- os corumbas 37 tintivo de defesa. Mas teve ainda coragem de dizer, olhando a mãe em plena face: -! ... Se a senhora pudesse trazia a gente acorrentada numa jaula e s¢ largava na hora do trabalho come‡ar. Arre l ! que não h quem ature uma vida dessas! Tamb‚m, um dia, eu sei o que ‚ que fa‡o! Isso ‚ demais! ... Desatou a chorar, nervosamente, e saiu, pisando com f"r‡a, para o quarto. QUATRO CHAMAVA-SE In cio dos Santos. Era mulato disfar‡ado, de complei‡ão herc£lea, altura m‚dia. Tinha os cabelos du- ros e crescidos, cuidadosamente repartidos bem no meio da cabe‡a. Olhos ba‡os, raiados de sangue na escler¢tica; nariz grosso. A b"ca, continuamente arrega‡ada, num riso c¡nico e desdenhoso, deixava ... mostra dois largos dentes de ouro. Nascera em Garanhuns, sertão de Pernambuco. Do pai tivera apenas, em t"da sua vida, vagas not¡cias. Sabia que era um boiadeiro do Piau¡, homem briguento, talvez muitas vˆzes assassino. E nada mais. Ainda não completara doze anos quando perdeu a mãe. Em Garanhuns todos o tinham por um peralta incorrig¡vel. Nin- gu‚m o quis amparar. Sem lar e sem trabalho, dentro de poucos dias sentiu fome. E saiu a perambular, por vilarejos e cidades. Acompanhando uma tropa de gado, foi dar at‚ o Recife. A¡ foi prˆso, dias ap¢s, entre uma malta de vagabundos e ladrões, que se juntavam no cais. Conhecido o seu estado de orfandade e de mis‚ria, inter- naram-no na Escola de Aprendizes Marinheiros. Fˆz gin stica; tornou-se forte. E aprendeu a ler com uma facilidade que pasmou os profess"res. Aos dezoito anos transferiram-no para a Marinha de Guerra e teve de transportar-se para o Rio. Durante todo um lustro viveu entre seu barco, a Sa£de e a Favela. Amou os sambas e as cantigas. Mas nada superava, a seu juizo, as emboladas e 38 amando fontes as modinhas, sentimentais e dolentes, aprendidas, menino ain- da, l no Norte. Como tinha boa voz e uns afetados gestos teatrais, tornou-se personagem desejada em dan‡as e serenatas. Tamb‚m cantava "ao desafio" com certo desembara‡o e alguma verve. Desligado das F"r‡as Navais, fˆz-se embarcadi‡o num car- gueiro nacional de longo curso. Conheceu Hamburgo e o Havre; por causa de mulheres envolveu-se num conflito e foi preso nas docas de Nova Iorque. Passou-se, depois, para um vapor da Costeira, que fazia a linha de P"rto Alegre a Aracaju. Certa vez, adoecendo grave- mente em viagem, desembarcaram-no nesse p"rto, para ser in- ternado no hospital. Sarou. E, enquanto aguardava o regresso do seu navio, an- dou passeando pela cidade. Cantou com grande sucesso numa "sala de dan‡a" da Rua do Ros rio. Gostou da terra e re- solveu ficar. Não perdeu tempo a procurar emprˆgo, aqui e ali. Foi di- reito ao Batalhão Policial, onde o recrutamento estava aberto. No mesmo dia assentou pra‡a. Pelo seu conhecimento dos exerc¡cios militares, deram-lhe, logo ao primeiro mˆs, duas divisas. E dentro em pouco o Cabo In cio dos Santos era uma figura popular nas ruas de canto da cidade. Onde houvesse violão, cacha‡a e dan‡a, ali tamb‚m ˆle se achava. Os promotores de serenatas reqestavam-no, como elemento indispens vel. Rosenda conhecera o Cabo In cio quando ˆste, destacado para o P"sto Policial de S. Antônio, durante cinco meses l servira. Patrulhando os Aterros e o Beco da Cerim"nia, onde os desocupados costumavam se juntar para dizer gra‡olas ...s ope- r rias que passavam, t"das as tardes se cruzavam no caminho. Certa vez, ˆle a encarou com aten‡ão, mirando-a de cima a baixo. Gostou do seu corpo volumoso, das suas pernas muito grossas, do seio exuberante. E passou a fazer Rosenda não era bonita. Com seu nariz grosso, os dentes os corumbas 39 maus, o rosto recoberto das marcas escuras das espinhas, antes poderia ser classificada entre as feias. Dotada de um gˆnio irritadi‡o, zangava-se a prop¢sito de tudo. Andava sempre a reclamar. Queixava-se da m quali- dade da farinha; do seu trabalho afadigoso; do pouco dinheiro que "as F bricas davam de esmola a seus escravos", como costu- mava acentuar. Dizia continuamente "que aquilo não era vida", e que "um dia havia de melhorar, assim ou assado". Às vˆzes, uma irmã lhe falava em casamento. Prorrompia, então, furiosa, contra "a canalha dos homens!". "Qual o quˆ, -acrescentava-Esses pestes hoje nem pensam em se casar! S¢ querem se aproveitar da gente, os descarados!" Na verdade, em t"da sua vida s¢ dois ou trˆs rapazes haviam demonstrado certo interˆsse por ela. Namoros ligeiros, por‚m, que logo esmoreceram e se acabaram. E Rosenda j estava a completar os trinta anos. Por tudo isso, talvez, acolheu em alvor"‡o as demonstra‡ões de amor do Cabo In cio. Um dia, mesuroso e risonho, ˆle acercou-se dela. E falou, prolongando pedantemente os ss: -Boas tardes, belezinha. . Ficou t"da embara‡ada e murmurou: -Est falando comigo? -E qual ‚ a outra belezinha que os meus olhos estão vendo? Baixou a cabe‡a e riu, achando gra‡a. Ao seu lado, Cabo In cio ia dizendo: -Estou aqui no Aracaju j faz um ano. E ‚ a primeira vez que sinto o cora‡ão bater por uma m"‡a... Foram ˆsses seus olhinhos de quixaba... -Ahl então o senhor não ‚ daqui?-perguntou, surpreen- d¡da. Cabo In cio se deteve. Dilatou o t¢rax e, a mão na ilharga, o rosto para a banda, numa atitude jocosa, galhofou: -Que o quˆ, menina... Eu sou pernambucano, do sertão! Bicho da p virada. Minha mãe me criou mamando em on‡a e todo o dia me acordava com a ponta de um punhal. Mas não precisa ficar assim cheia de mˆdo... Com mulher eu sou doce que nem uma cocada... 40 amando fontes Rosenda sorria, a mão na b"ca, num gesto que lhe era habi- tual, para esconder as falhas dos dentes estragados. E ˆle continuava, satisfeito com o resultado que suas pa- lavras, a t"da evidˆncia, produziam: -Mas não pense que j est me conhecendo todo inteiro. O Cabo In cio dos Santos não ‚ apenasmente isso que acaba de escutar. tamb‚m o maior cantador de modinhas desta zona. o garganta-de-ouro, sem favor... E mudando repentinamente de tom, indagou, fitando-a bem nos olhos: -Como ‚, tet‚ia? Gostou ou não gostou do comandante? Ela ainda o olhou, t"da enleada, e correu a se juntar a outras mulheres. Tiveram mais alguns encontros ligeiros. At‚ que, afinal, o Cabo In cio entregou o policiamento aos dois soldados e deu para acompanh -la desde o portão da F brica at‚ quase a Estrada Nova. Passaram a ver-se mais a mi£do. Madrugada, ... hora do alm"‡o, ... tardinha, l estava O militar, no ponto do costume, esperando a namorada. Essa solicitude, ˆsse interˆsse em estar sempre com ela, fi- zeram com que a rapariga o f"sse estimando a pouco e pouco. Mas s¢mente chegou a querer-lhe de verdade depois que o ouviu cantar em algumas reuniões ali por perto. Ele dizia coisas "tão bonitas!", -tão sentidas!", "tão sinceras! com uns olhos tão penosos postos nela, que não hesitou em se entregar, rendida por completo, ...s solicita‡ões daquele amor. Agora, In cio a manejava a seu talante. Marcava-lhe en- contros para depois da ceia, em s¡tios afastados; dizia-lhe que faltasse ao servi‡o para ir com ˆle ... Getimana, ao Saco, onde havia os cajus mais bonitos da cidade e mangabas que eram como mel de abelhas... Geraldo e Sá Josefa receberam aquˆle nam"ro, desde o pri- meiro instante, debaixo da mais formal hostilidade. Não porque In cio tivesse a c"r mais apertada, cabelos du- os corumbas 41 ros, l bios grossos. Se f"sse um homem de proceder correto, amigo, do são trabalho e dos bons modos, nenhuma oposi‡ão levantariam. Mas... O que era ˆle? "Um cantador de modinhas", "um loroteiro", um "vira-copo". . . A velha, sobretudo, não se conformava com a m escolha da filha. E discutiam e brigavam a cada hora. Rosenda cho- rava, batia o p‚, lastimava-se de ser mesmo "uma infeliz, que tudo o que fazia achavam ruim". Por‚m a desaprova‡ão dos pais, com aquelas cont¡nuas rus- gas, ao inv‚s de afast -la, pareciam ter o condão de ainda mais a ligar ao namorado. CINCO ESCURo ainda. Chovia fino. Rosenda, na esquina da Rua do Arame, aguardava o na- morado. Outras oper rias Passavam, s¢s, em bandos. Algumas, que a conheciam, acenavam-lhe adeus. Não esperou muito tempo. Quando o cabo de Pol¡cia a divisou, encostada ... parede, sob a chuva, correu ao seu encontro. E de longe ainda lhe gritou, num ar de exagerada compaixão: -Coitadinha! Molhando-se t"da por minha causa! Apertou-lhe com f"r‡a os dedos £midos. Ficou um instante parado, as mãos prˆsas nas suas, olhando-a dentro dos olhos. Teve um arrebatamento de paixão, atraiu-a para si, quis bei- j -la na b"ca. Mas a m"‡a desviou a cabe‡a, tentando sol- tar-se-lhe dos bra‡os. E, numa recrimina‡ão mais galhofeira que sincera, lhe dizia: -Vocˆ est maluco, criatura. Não est vendo gente ali? -Seja t"la! ... Ningu‚m vˆ, D o beijo, d ! Passou-lhe o bra‡o em volta da cintura. Ela estendeu-lhe os l bios. E as duas b"cas se uniram, longamente. Aconchegaram-se, depois, sob um grosso capote azul que ˆle trazia e seguiram, beirando as cˆrcas de arame do caminho, 42 amando fontes Quando se sentiam distantes dos outros grupos de oper - rios, In cio a estreitava fortemente, atirando-lhe beijos doidos pelos cabelos, pelo rosto... -Amanhã ‚ domingo. Como ‚, nˆga? Vocˆ não d um jeiti- nho de sair pra passear com o seu moreno? -Sei... Mãe ...s vˆzes não deixa. . . -Arre l , tamb‚m, Rosenda! A velha quer lhe prender de- mais. Pois vocˆ, uma mulher feita, que vive do seu trabalho, não tem o direito de passear uma tarde de folga com a pessoa a quem quer bem? Isso ‚ demais, minha filha!... -Eu tamb‚m acho assim... Mas o que ‚ que eu vou fazer? -Ora. O que ‚? O que ditar seu cora‡ão. E acabou-se. Não ligue pra mais ninguem. -.... Mas a velha ‚ zarra. Quando tem raiva, voa pra cima da gente, que não ‚ gra‡a. Ele esbo‡ou um riso ir"nico: -Era s¢ o que faltava... Uma m"‡a dessa apanhar por causa de um namoro.. . Levante a cabe‡a, menina! Não deixe ningu‚m trepar no seu cangote. E quando o mar estiver brabo, corra pra perto de mim, que eu lhe garanto. . . Rosenda se conservava pensativa, olhando o chão. O Cabo In cio aduziu: -Não acha que eu tenho razão? Vocˆ não ‚ mais menina de escola. Ningu‚m pode estar empatando que vocˆ goste dˆste ou daquele ... Depois, quando a gente se casar, e o degas subir de posi‡ão, estão querendo lhe lamber os p‚s e as mãos.. . - isso mesmo, In cio , -declarou a m"‡a, resoluta.-Agora, eu não ligo mais. Quem não gostar, que se arranje. Saio, ao tempo e ... hora que quiser. Ningu‚m me empata! Pronto. Sou dona da minha vontade! os corumbas 43 SEIS ERA domingo, de tardinha. Sá Josefa estava s¢ em casa, fu- mando o seu cachimbo, sentada ... porta do quintal. Ge- raldo j sa¡ra para a F brica e as filhas andavam a passear, nos arredores, conversando nas casas das vizinhan‡as. -Dão licen‡a?... Não tem ningu‚m a¡?... -perguntaram da rua, em voz mel¡flua. -V entrando... Eu j vou l . . .-respondeu Sá Josefa, dirigindo-Se para a sala. E quando se defrontou com a visitante: -Oh, Sá Maria. a senhora? Vamos entrando c pra den- tro, que eu estou com o "lho na panela... Sá Maria Pirambu morava na Rua do Arame, quase a de- sembocar na Estrada Nova. Permanecia muito mais na rua, por‚m, do que em casa. O filho mais velho mandava do Rio uma pequena mesada, que lhe permitia viver sem trabalhar. Sob o pretexto de "trazer a filha no cabresto", pusera-a, doen- tinha e ainda imp£bere, para servir como aprendiz na Sergi- pana. Desta sorte, tinha todo o dia livre para andar de d‚u em d‚u, conversando numa esquina, na bodega, ... porta de uma ou de outra conhecida. Bisbilhoteira e maldizente, levava a vida a sindicar, ouvindo aqui, narrando al‚m. Presumia conhecer os segredos de todo o mundo, "os seus podres", se- gundo a sua maneira pitoresca de expressar-se. Sá Josefa detestava-a. Mas sempre a acolhia com bons mo- dos, receosa de cair no desagrado da sua l¡ngua viperina. Chegando ... sala de jantar, a Pirambu arrepanhou a saia, para se sentar mais a c"modo no chão, e sem preƒmbulos foi dizendo: -Sabe? Vi sua vizinha inda agora.. . Piscou o "lho, fazendo uma careta, e apontou, com o po- legar voltado, a parede que ficava ... sua esquerda. -Sim.. . a Marocas... Escondeu, escondeu o quanto p"de. De que serviu? Não adiantou mesmo foi nada. Agora, a gente j -‚ tudo sem querer. S Josefa deu ao rosto a expressão de quem interroga. 44 amando fontes Manifestando a maior das surpresas, a outra continuou, cheia de gestos: -O quˆ? A senhora não sabe? Est a¡: me perdoe. Mas ‚ uma coisa que eu não posso acreditar... Então, não vˆ como a barriga dela est crescendo? S¢ um cego pode se enganar. E não vˆ tamb‚m como anda agora menos paba? A mulher de Geraldo balan‡ou a cabe‡a, em ar de d£vida: -Qual o quˆ, Sá Maria... São hist¢rias... Talvez, at‚, nem seja rapariga do patrão. O povo diz tanta coisa que não ‚ ... -Como? Hist¢rias?! - interrompeu com calor a Pirambu- Pois a senhora não vˆ o luxo em que ela vive? Ganha muito? E por que nenhuma outra oper ria pode comprar o que ela tem? Sim! ... Outra que se engane, nanja eu.. . E falou ainda largo tempo, especificando datas e detalhes, em que entrava muito do que ela pr¢pria imaginara desco- brir, a respeito da vida ¡ntima de Marocas. Sá Josefa ouvia-a sem interˆsse, protestando ...s vˆzes, vagamente. Vendo que o assunto se esgotara e que j não prendia a aten‡ão de Sá Josefa, a Pirambu emudeceu, o ar enfadado e sonolento. S£bito, por‚m, a uma lembran‡a que lhe veio, agi- tou-se de n"vo, os olhos cintilantes. E passou a narrar o caso escandaloso de uma mo‡oila raptada. -Ah, minha nˆga, nem lhe conto. Uma coisa triste, pode me acreditar. A Rosita, uma menina ainda. Pode ter quatorze anos. Pois bem: saiu de casa com um botic rio da cidade, um homem velho, casado e cheio de filhos!... Mas isso ‚ mesmo um fim de mundo... Não h quem me tire disso... Sá Josefa não tivera conhecimento do fato, nem, ao menos, conhecia Rosita. De repente, sem saber como, as filhas lhe vieram ao pensamento. Num segundo, associou id‚ias, for- mulou compara‡ões. Um arrepio glacial passou-lhe n'alma. E quis logo saber, empolgada por um s£bito interˆsse, t"das as min£cias a respeito do ocorrido. A Pirambu catava lˆndeas, correndo as unhas ao longo dos cabelos. E tinha a fisionomia prazenteira, quando se p"s a enunciar os pormenores: - ... A coisa se passou ontem de noite... Por isso que inda est meio encoberta. Eu soube logo porque tenho quem os corumbas 45 me conte... Ela morava ali na Chica Chaves. Não fica longe da F brica. A mãe ‚ vi£va.. . Dessas vi£vas! ... (Dizia isso, fechando o "lho direito e torcendo a b"ca de um jeito que lhe encolhia todo um lado do rosto.) Tão danada, que o povo chama ela "Azougue Fˆmea".. . Mas não tinha s¢ uma filha. Acho que teve trˆs: uma se perdeu e ‚ mulher-dama j faz tempos; a outra est casada, bem casada at‚, com um maqui- nista da Estrada. A ca‡ula trabalhava na Tˆxtil. a tal que atende pela gra‡a de Rosita. Queria que a senhora visse que beleza! Um cromo, a danada da b¡chinha! Com certeza foi por isso que o velho deu em cima... Interrompeu-se um instante, enquanto tirava um charuto do b"lso da saia. Acendeu-o, chupando algumas baforadas com f"r‡a, cuspindo para um canto e prosseguiu: -Tamb‚m... a senhora quer saber? A culpa não ‚ tanto da coisinha. mais da mãe, que recebia o homem em casa e deixava ˆle ficar s¢, horas e horas, com a menina. São essas facilidades... Parou, de um modo brusco. Olhou para os lados, como para certificar-se de que ningu‚m as escutava. T"da a sua pessoa ressumava mist‚rio. E, chegando-se mais para junto de Sá Josefa segredou: -A senhora sabe, minha nˆga: Eu gosto muito da senhora ... Das suas meninas, tamb‚m. Pois ‚ por gostar que eu conto ... Não leve a mal o que eu vou lhe dizer. Mas olhe. Tome cuidado com a Rosenda. O nam"ro dela com o cabo caiu no goto do povo. Aquˆle sujeito não presta. E as l¡nguas de palmo e meio j come‡aram o trabalhinho... Sá Josefa fˆz-se l¡vida. E interrogou, a voz aflita: -O que ‚ que andam dizendo dela, Sá Maria? Vamos, diga! ... Surpreendida com aquela brusca exalta‡ão, a Pirambu pro- curou disfar‡ar, tossiu um pouco, e retomou a conversa de outro jeito: -Não se vexe tanto assim, mulher. Não dizem nada demais. Isto ‚. Todos falam ‚ porque ela anda s¢ com o namorado por tudo quanto ‚ canto.. . Nisso, deixe l que o povo tem sua razão... Não ‚ mentira, não, senhora. Me desculpe. Mas 46 amando fontes inda ontem, escurecerzinha, eu encontrei sua menina com o In cio na Estrada da Getimana.. . -Como? A senhora viu? -Com ˆsses olhos que a terra fria h de comer... Sá Josefa não respondeu. À sua primeira impressão, angus- tiosa, uma onda de raiva sucedera. Tinha a respira‡ão forte e apressada; seus olhos lan‡avam chispas. A Pirambu ficou ainda uns momentos por ali, rosnando contra "a maluquice das m"‡as dˆste tempo". E não tardou a despedir-se, pretextando que j era noite feita. Nesse dia, Rosenda foi a £ltima a regressar. Haviam soado j as sete horas, quando ela entrou em casa. Sá Josefa chamou-a, num tom de voz tranqilo, quase meigo: -Rosenda... -Quer falar comigo... Mas nem p"de concluir a frase come‡ada. A velha, que a esperava na porta de seu quarto, puxou-a violentamente para dentro, sob uma chuva de bofetões e de improperios. Conseguiu p"r-lhe uma mão s"bre a garganta, encostou-a ... parede, e assim p"de surr -la ... vontade. Ante o inopinado do ataque a m"‡a ficou apalermada, sem ƒnimo, at‚ de defender-se. Limitou-se a baixar a cabe‡a, para esconder o rosto; e sem uma queixa, um gemido, recebia os gol- pes que Sá Josefa lhe vibrava. Mas aquela atitude teve o efeito de aumentar o exaspˆro da velha, que a levou ... conta de m -cria‡ão e de capricho. Abaixou-se, então, numa f£ria, tirou o tamanco de um dos p‚s, e com ˆle bateu fortemente nos ombros, na cabe‡a, at‚ no rosto da filha. S¢ a¡ Rosenda p"s-se a gritar e a debater-se. O sangue lhe descia do nariz. Uma pancada s"bre a nuca tonteou-a. -Não me mate!-implorou. E com um bruto safanão p"de escapar, debandando a correr para o fundo do quintal. Sá Josefa ainda a perseguiu at‚ a porta da cozinha, onde ficou a blaterar, o peito arfante de cansa‡o: os corumbas 47 - assim, sua sem-vergonha! Vocˆ leva a gente pra desgra‡a, mas eu te quebro de pancada. SETE CHEGOu dezembro. E a cidade t"da alvoro‡ou-se, na expecta- tiva das suas grandes festas populares. Deu-se, primeiro, a descida do Senhor Bom Jesus dos Nave- gantes, por um domingo esplˆndido de sol. Vieram, depois, as comemora‡ões do Natal, do Ano-Bom, do dia de Reis. Durante t"da uma quinzena, logo que a noite vinha, o povo corria ... Pra‡a da Matriz, onde havia barracas de pano, muito brancas; coretos; tabuleiros de guloseimas; e, no lugar de to- dos os anos, o grande carrossel, com o negro do realejo e os seus cavalos de pau. Nos quiosques, abarrotados de bugigangas e brinquedos, estavam as grandes rodas numeradas, para o sorteio dos bi- lhetes. Em dado instante, algu‚m gritava: -42! Quem ganhou foi eu! meu o despertador! junto ...s mesas de j"go, os camel"s atra¡am a multidão, fa- zendo chocalhar os dados na cumbuca, e cantando: "Chega pro caipira: Quem mais aposta mais tira!...- Em t"rno do carrossel juntavam-se crian‡as, mulheres dos arrabaldes, trabalhadores e soldados. Às vˆzes, um pequeno maltrapilho se aproximava de algu‚m mais bem trajado, e, a voz triste e arrastada, implorava: -M"‡o, me d dois tostões pra uma corrida... Meia-noite. Uma hora. A Pra‡a ia se esvaziando pouco a pouco. Mas, at‚ manhã cedo, ficavam perambulando por ali os jogadores habituais, mulheres p£blicas, noctƒmbulos, e a garotada sem teto e sem fam¡lia. 48 amando fontes Enquanto os festejos transcorreram, a casa de Geraldo viveu num alvor"‡o permanente. As m"‡as e as meninas, Sobretudo, não queriam perder um s¢ instante dos folguedos. Assistiram ... Missa do Galo, acompanharam as procissões, visitaram todos os presepes do arrabalde. Nos dias comuns, ainda queriam dar umas voltas pela "feira", para arriscar n¡queis no j"go ou correr no carrossel. Mas Sá Josefa protestava: -Isso não, minhas senhoras. ... Quem levanta de madru- gada não pode perder a noite com brinquedos. .. Então Albertina corria para ela, beijava-a, adulava-a: -Deixe a gente se distrair um bocadinho... S¢ h festas de Natal uma vez no ano... Vamos, não ‚? Ela deixa. Mãe ‚ boa... A velha torcia a b"ca, disfar‡ando o riso, e quase sempre concordava: -Eu não empato. Se vocˆs não vão ficar cansadas pro ser- vi‡o, podem ir. .. Depois das festas, uma nova alegria veio encher o lar hu- milde dos Corumbas: as F bricas haviam melhorado o jornal da sua gente e Pedro tamb‚m tivera um aumento de orde- nado. Quando, no fim do mˆs, Sá Josefa viu que lhe sobravam alguns mil-r‚is, disse, num grande contentamento, para o ma- rido: -Se a coisa continuar por ˆsse jeito, não tarda que a gente possa comprar uma casinha... OITO DESDE que Sá Josefa a espancara, ao saber de seus passeios escusos com o cabo, Rosenda passou a vˆ-lo menos vˆzes, com receio de novos atritos com a mãe. Mas, uma vez por outra, ... saída da F brica, sempre encon- trava oportunidade para lhe falar. In cio, então, desmancha- os corumbas 49 va-se em ternura. Dizia-lhe da saudade, da tristeza em que vivia, por não poder estar a cada instante junto dela. A m"‡a comovia-se. Tinha um olhar de agradecimento para ˆle. E sentia, de cada vez que se -apartavam, que seu amor crescera mais. Segundo o dizer dˆle, logo que obtivesse outra divisa, pe- di-la-ia em casamento. E costumava rematar, na sua linguagem pitoresca: -Vocˆ vai ver. Não tarda muito. Eles tˆm de reconhecer que o degas vale alguma coisa... O galão vir depois. E não demora, pode crer. Quem ‚ que l na Corpora‡ão sabe escre- ver uma parte como eu? Não respeito nem o pr¢prio coman- dante... Rosenda acreditava. E j se via, cercada de considera‡ão e de respeito, esp"sa do Capitão In cio dos Santos... Ora, um dia o cabo a recebeu de rosto triste. -O que ‚ que vocˆ tem, meu nˆgo? -Vocˆ nem ‚ capaz de imaginar. A pior coisa que podia me acontecer neste momento. Fui destacado pro Simão Dias e tenho de seguir pra l at‚ domingo. Veja s¢ a atrapalha‡ão que isso traz. Rosenda seguia cabisbaixa ao lado dˆle, sem atinar com o coment rio adequado para fato tão chocante. E depois de alguns minutos, não obstante todo o seu esf"r‡o em se conter, seus olhos se encheram d' gua. O namorado falou-lhe: -Seja t"la. Não chore. -... Eu sei como são essas coisas... Longe dos olhos, longe do cora‡ão... Vocˆ vai se esquecer logo de mim... In cio p"s a mão espalmada s"bre o peito, e, num arroubo apaixonado, protestou: -Não diga isso, Zenda. Vocˆ não est aqui dentro pra saber o tamanho do bem que eu lhe quero, Se vocˆ soubesse quanto eu sofro, porque a gente ainda não p"de se casar, não falava dessa forma. Isso ‚ at‚ uma ingratidão de sua parte. 50 amando fontes Ela esbo‡ou um riso triste. E volvendo os olhos molhados para ˆle: -Não se zangue, Nacinho. Se eu digo assim ‚ porque tenho mˆdo de lhe perder... Para conversar mais ... vontade, tinham-se afastado proposi- tadamente do caminho. Seguiam agora, os dois bem s¢s, ao longo dos apicuns que vão dar ao Manuel Prˆto. -Não sei o que vai ser da minha vida.. In cio não deixou que ela acabasse. Tomou-a arrebatada- mente nos bra‡os e colou com violˆncia a b"ca ansiosa s"bre os l bios que ela tinha descerrados. Depois, num suspiro fundo e lamentoso: -Vida triste vai ser a minha, condenado a viver longe de vocˆ! ... Venha comigo, nˆga! -Mas ir, como?-inquiriu Rosenda, abrindo os olhos. -Fugindo! Quando a gente quer bem não encara nada. Va- mos?.. . Ela desprendeu-se-lhe dos bra‡os. E argumentou: -Mas assim, sem a gente se casar, In cio? Não fica bem.. . Repare... O namorado respondeu: -Por casar, não! A gente se casa em Simão Dias. Vocˆ sabe muito bem que nosso casamento ainda não se fˆz por culpa de sua mãe, que tem preven‡ão comigo... - mesmo! A culpa t"da ‚ dela.-exclamou a rapariga. E levando as mãos ... cabe‡a, num gesto desesperado, acres- centou: -Não sei, Nacinho, não sei mesmo o que fa‡a! Queria ir, mas me acho sem coragem... Ele tomou um ar melindrado e interrogou-a: -Venha c , Rosenda, me diga: vocˆ duvida de mim? Vocˆ tem mˆdo que eu seja capaz de lhe enganar? -Oh, meu nˆgo... Não diga uma coisa dessas, ... O Cabo In cio dos Santos estava vitorioso. Combinaram tudo ali mesmo, sem perda de um minuto. E no dia aprazado, uma quinta-feira, pela tarde, encontraram-se pertinho da Esta‡ão, para tomar o trem, que dali a pouco j partia, rumo ao Sul. os corumbas 51 Houve gritos e improp‚rios, lamenta‡ões e solu‡os pelos can- tos, quando, ap¢s t"da uma noite de incertezas, positivou-se a fuga de Rosenda. As fei‡ões alteradas pela c¢lera, Sá Josefa come‡ou esbra- vejando: -Fugiu, a descarada. Nem se lembrou do mal que isso vai trazer pras outras. bem capaz de ter fugido s¢ pra se vingar de mim, que não queria que ela casasse com o tal tipo. Ah! coisa ruim, sem cora‡ão! Não sabe o que padece a pobre de uma mãe! ... ˆsse, ‚ ˆsse, o pago que filho d pra gente! A seu lado, olhos no chão, Geraldo não dava uma palavra. Apenas suspirava, a quando e quando. E a velha prosseguiu: -Veja s¢, Senhor meu Deus, pra essa vergonha? Com que cara a gente vai andar na rua, agora? Uma filha se fazer mulher perdida! ... Nunca pensei que Deus me desse ˆsse castigo! Eu... Mas não p"de continuar, a voz retida na garganta. A¡, Geraldo interveio, a fala trˆmula: -Vocˆ tem t"da razão de estar assim... Não sei o que foi isso... Rosenda, de primeiro, era tão boa... Foram as mas companhias que lhe viraram a cabe‡a. Coitada. ... Pensando bem, eu tenho mais pena dela que da gente. Quando se arre- pender, j vai ser tarde! ... Albertina chegou a passar dois dias sem ƒnimo de ir ... F - brica. Mas encolheu os ombros, afinal, monologando: -Ora, boa. Quem deu a cabe‡ada não fui eu... Ela não ‚ a primeira que faz disso... Depois, o mundo não h de se acabar s¢ porque uma m"‡a se perdeu... E quando, na rua, as companheiras a interrogaram s"bre o caso, ela retorquiu, sem se vexar: -... Coitada. Enfeiti‡ou-se pelas cantigas do Diabo ... Quem acredita em homem est sempre sujeita a levar dessas ... Pedro não trocou um monoss¡labo, com os seus a prop¢sito da fuga da irmã. Apenas fechou-se mais consigo mesmo, fˆz-se mais taciturno do que nunca. 52 amando fontes As outras duas, apesar da pouca idade, tamb‚m sentiram fundo a desgra‡a que as feria. Ca‡ulinha, sobretudo. Desde o primeiro instante, uma grande tristeza dominou-a. Fugiu ao conv¡vio das amigas. Por muito tempo ningu‚m lhe viu um sorriso s"bre os l bios. E ap¢s j haver decorrido quase um mˆs, quando uma co- lega lhe perguntou, ... queima-roupa, se "era verdade que Ro- senda tinha fugido com um cabo da Pol¡cia", ficou por tal maneira perturbada, que não p"de articular uma palavra de resposta. E não tardou a retirar-se para casa, onde passou a tarde inteira s"bre a cama, sacudida por um pranto convul- sivo. NOVE TODO um ano se escoara. E a vida, na casa de Geraldo, ne- nhuma altera‡ão sens¡vel apresentava. Sempre o mesmo labor quotidiano, as mesmas dificuldades; e, como sempre, raros os motivos de alegria. Mas, com o transcorrer do tempo, fizeram novas amizades, aclimataram-se melhor no Aracaju. Albertina, sobretudo, vivia na mais estreita camaradagem com t"da a vizinhan‡a, que achava sempre muita gra‡a nos seus ditos e galhofas. Por‚m suas companheiras insepar veis, confidentes e amigas de verdade, eram duas oper rias da Tˆxtil, que moravam bem em frente ... sua morada. Maria do Carmo e Benedita eram seus nomes. Irmãs gˆmeas, de fei‡ões bem semelhantes, altas, morenonas. O pai, um velho salineiro quase cego, j não podia mais exercer a profissão. Mas cozinhava e lavava, fazia todos os servi‡os da casa, en- quanto as filhas estavam no trabalho. Benedita era noiva h muitos anos de um certo Manuel Alves, que trabalhara longo tempo nas salinas com seu pai. A outra, que todos chamavam apenas de Do Carmo, estivera quase a se casar com UM Saveirista, que afinal terminou por os corumbas 53 engan -la. Tomou-se, então, de um grande desprˆm pelos homens. Às vˆzes, fingia interessar-se por algum. Mas j o fazia com o prop¢sito de logo ap¢s repeli-lo e escorra‡ -lo. -Que beleza!-costumava repetir para Albertina.-A gente se vinga dˆsses trastes ‚ assim. Um pouco de corda no comˆ‡o; e quando o lorpa j est todo babado-catrapus!-porta na cara! Albertina ria-se a perder, de t"da a vez que um caso dˆsses sucedia. E concordava sempre com a amiga que "homem ‚ mesmo pra ser tratado ali no duro!". Com uma rapidez que a todos surpreendia, Pedro ia gal- gando as melhores posi‡ões em sua oficina. Fazia j cinco mil- -r‚is por dia e cada vez mais se aperfei‡oava em seu of¡cio de torneiro. Soturno por natureza, entregava-se ao trabalho sem dˆle desfitar a aten‡ão um s¢ instante. E assim, em pouco tempo j passava por ser um oper rio modelar. Os chefes o conheceram e admiraram. Sempre que passavam perto dˆle, cumprimentavam alegremente: -Ol ! rapaz. Como vai isso? Ao que o jovem, sem perder o ar sisudo e sem tirar os olhos da tarefa, se limitava a murmurar-"Bem. Obrigado."-levando a mão, num gesto sˆco, at‚ o gorro. £ltimamente dera para estudar durante a noite. Comprava livros e mais livros, revistas e jornais. Jos‚ Afonso, um tip¢- grafo que morava perto dˆle e a quem ora o ligava um grande afeto, tinha feito brotar em seu esp¡rito aquela fome insa- ci vel de ler, de saber tudo. Vida que não se modificava era a de Bela. Uma semana melhor; outra pior. Quando não a assaltava o reumatismo, uma gripe insidiosa perseguia-a. -Essa menina, assim, não vai longe, não-dizia ...s vˆzes a velha para o marido.-Estou vendo a hora de tirar ela da escola. O que ‚ que ela pode aprender, faltando tanto assim 54 amando fontes com a doen‡ada? S¢ faz gastar sapato e um vestidinho mais de jeito... De referˆncia a Ca‡ulinha, no entretanto, era bem diferente o que se dava. Seu curso prim rio estava prestes a findar; e como tivera sempre boas notas, j tinha assegurado seu in- gresso pa Escola Normal no pr¢ximo ano. Muito embora não tivesse completado ainda os treze anos, era ela pr¢pria, por si mesma, quem orientava a sua vida e os seus estudos. Nas ocasiões aprazadas, requeria a matr¡cula, pagava as taxas, adquiria os livros necess rios. Preocupava-se tanto com as li‡ões, sobretudo nas ‚pocas de exames, que Sá Josefa não podia se conter e ponderava: -Larga de tanta livrarada, Ca‡ulinha! Assim, vocˆ enve- lhece antes do tempo... Por‚m ela respondia: -Que nada, mãe! Estudar não mata, nem aleija... Depois, eu preciso mesmo andar ligeiro, pra tirar logo essa cadeira e dar descanso a vosmecˆs. De tratamento meigo e af vel, os que a conheciam a esti- mavam. Mas Ca‡ulinha era, no fundo, reservada. E p"sto se desse bem com todo o mundo, tinha, na realidade, uma s¢ amiga: Mimosa, a irmã do tip¢grafo Jos‚ Afonso, sua colega e companheira insepar vel. DEZ VOCE precisa ler agora-disse Jos‚ Afonso para Pedro -O Encoura‡ado Potemkin. -A gente encontra d‚le aqui nas livrarias? -Penso que não. Mas não faz mal. Eu tenho o meu e lhe empresto. Vocˆ mesmo pode pedir a João "Miguel. Com cer- teza ˆle j leu. -Est bem. Eu vou pedir. Comprei cinco livros ˆste mˆs, mas j li todos. Quando a gente se acostuma com a leitura, ‚ um caso s‚rio. Tudo quanto ‚ distra‡ão fica do lado. os corumbas 55 -Est se passando, agora, com vocˆ o que se deu comigo aos quinze anos. E Jos‚ Afonso p"s-se a narrar para o amigo, com aquela sua eloqˆncia desbordante, o que lhe f"ra a meninice atri- bulada, ¢rfão de pai, ainda pequeno, sem poder ir ... escola pela necessidade de ajudar, com o seu trabalho, a manuten‡ão da mãe e da irmã. Um dia resolvera, por si mesmo, ingressar numa aula no- turna. Aprendeu a ler com extrema rapidez. E como sentisse um natural pendor pelas letras, apressou-se em trocar o ser- vi‡o da marcenaria em que se achava pelo cargo de aprendiz de tip¢grafo num jornal. Foi a¡, lendo, em razão do of¡cio, telegramas e not¡cias s"bre o movimento oper rio do mundo, que lhe veio aquˆle anseio de conhecer as id‚ias novas, as reformas sociais que se ope- ravam em outros pa¡ses. Como seus minguados vencimentos não lhe permitissem ad- quirir os livros mais desejados, procurou conhecˆ-los na Bi- blioteca P£blica da cidade. Zola, Gorki, Tolstoi, todos os que fizeram sentir, em suas obras, a injusti‡a da organiza‡ão social contemporƒnea, despertaram-lhe a mais viva simpatia. Assim, de passo em passo, guiado por suas proprias tendˆncias liber- t rias, chegou a Trotzki e Lenine. Deslumbrou-se ante a argu- menta‡ão, a seu ver irrespond¡vel, dˆsses dois revolucion rios. E aceitou integralmente o comunismo. Operoso e inteligente, em pouco tempo galgava a chefia da composi‡ão" em seu jornal. E desde a¡ passou a ter uma a‡ão decisiva nos centros oper rios do Estado. A Sociedade Prolet ria de Aracaju vivia inativa, quase mor- ta. Eleito seu secret rio, Jos‚ Afonso ergueu-a do chão e fˆ-la vibrar ao calor de seu entusiasmo juvenil. Fundou, logo em seguida, O Prolet ria; organizou demons- tra‡ões p£blicas de coesão da classe; preparou um grande elei- torado, para se fazer temido dos governos. T"da vez que se oferecia ocasião, falava aos companheiros. Produzia, então, longos discursos, em que sempre abordava "a melhoria geral dos ordenados, a diminui‡ão das horas de ser- vi‡o, tudo que, enfim, pudesse dar ao oper rio de Sergipe o 56 amando fontes conf"rto e o bem-estar que o trabalhador do Rio e de S. Paulo ,... gozava". Fazia afirma‡ões tão categ¢ricas, aludia com tal convic‡ão ... f"r‡a de que dispunham os prolet rios, se cerras- sem fileiras dentro de um s¢ ponto de vista, que a assistˆncia se sentia arrebatada e prorrompia em aplausos delirantes. Levantada nos sub£rbios, a fama de Jos‚ Afonso cresceu r...pidamente, irradiou pela cidade. Aracaju conheceu-o. E, se, por um lado, o admirou, tamb‚m temeu a sua a‡ão. Ele era o agitador, o c‚rebro pensante, capaz de p"r em movimento aquela imensa mole de homens rudes. Desde a¡, uma persegui‡ão surda e constante o alvejou. Não faltou at‚ quem f"sse solicitar do Mota Pires que o pusesse para fora do jornal. Mas o velho jornalista, que admirava a altivez e a f"r‡a de vontade do rapaz, respondeu-lhes, a tro‡ar: -Qual o quˆ! Z‚ Afonso não ‚ capaz de matar um passa- rinho... O que ˆle faz apenas ‚ falar... E ao inv‚s de despedir o seu tip¢grafo, deu-lhe, ao con- tr rio, maior f"r‡a, consentindo que na primeira pagina do jornal viessem a lume os seus artigos doutrin rios. Quando Pedro Corumba o conheceu, Jos‚ Afonso se encon- trava em pleno apogeu de seu prest¡gio. Conversaram algumas vˆzes. O tip¢grafo P"s o n"vo com- panheiro ao correr de suas id‚ias. Aconselhou-lhe a leitura de alguns livros. Deu-lhe revistas e jornais. E não tardou muito que a sua palavra inflamada, a decisão de suas atitudes, tivessem empolgado por completo o filho de Geraldo. ONZE Depois de cinco anos de noivado, Benedita e Manuel Alves iam casar-se, finalmente. Durante todo aquˆle tempo tinham aguardado uma melho- ria de recursos. Por‚m o sal não atingia nunca um pre‡o com- os corumbas 57 pensador. Sempre, ao fim de cada safra-todo um semestre curtido na fornalha das salinas-ˆle j devia para o patrão mais do que o valor de sua tˆr‡a. Compreenderam, assim, que era in£til esperar. E concor- daram ambos, certo dia, ap¢s um longo sopesar de pr¢s e con- tras, que "vida de pobre não concerta... Tem que ser sempre aquela lida... O melhor, mesmo, era casar, antes que a ve- lhice f"sse entrando"... A not¡cia daquele pr¢ximo casamento p"s t"da a Estrada Nova em rebuli‡o. Na casa de Geraldo, sobretudo, não se fa- lava noutra coisa. Albertina, que seria uma das madrinhas no civil, redobrara o seu esf"r‡o no trabalho para poder se apresentar de sapato de verniz, meia de sˆda, vestido n"vo de cassa. Num s bado, ainda cedo, o pequeno cortejo subiu a Es- trada Nova, rumando para a igreja. Al‚m dos parentes e padrinhos, apenas um ou outro con- vidado. Um amigo do salineiro levava a noiva pelo bra‡o; ˆle ia ao lado de Albertina. Nas portas, nas esquinas, havia muita gente aglomerada para ver passar os noivos. Das vielas e das casas, de quando em quando surgiam mulheres apressadas. Postavam-se junto ...s conhecidas e punham-se a trocar suas impressões: -Não assentou, vestida de noiva. Est , at‚, mais feia. -O vestido dela ‚ de cetineta. Repare o v‚u. fil¢ grosso... Outras diziam, olhando o noivo: -Mas onde Benedita foi arranjar aquˆle empapu‡ado? -Puxa. Bicho esquisito, aquˆle! Parece um jagun‡o de Ca- nudos1 Às vˆzes uma voz esgani‡ada chamava algu‚m dentro de casa: Ö -Chega, criatura. A noiva j vem perto... E, o ar grave e solene, sem dar a m¡nima aten‡ão aos cir- cunstantes, o acompanhamento ia passando, rumo ... Igreja de S. Ant"nio, l no cimo da colina. 58 amando fontes Um ao lado do outro, em sua janela, Geraldo e Sá Josefa tinham assistido com inveja o casamento da vizinha. Não que a julgassem, por casar, liberta dos trabalhos e canseiras da existˆncia. Sabiam mesmo, pelo que acontecera com ˆles pr¢- prios, que iria ter os sofrimentos aumentados. Mas, afinal, casara.. . Estava livre agora de trilhar a mesma sorte de Rosenda. .. O noivo era pobre. Que f"sse um esmo- ler! Eles tamb‚m não desejavam partidos ricos para as filhas. Queriam, apenas, vˆ-las casadas! Que depois, com os seus ma- ridos, f"ssem obrigadas a lidar por todo o dia, sofressem as mais duras priva‡ões... Nada disso importava: casadas, elas seriam gente! Ningu‚m fugiria ao seu convivio: ningu‚m as olharia de trav‚s... E não se lhes dariam nunca os nomes, sobretudo infamantes, de "rapariga" e "mulher-dama". DOZE PEDRO chegou em casa muito tarde. Sentou-se ... mesa cal- mamente. E ao terminar a refei‡ão falou assim para Sá Josefa: -Sabe, mãe? Hoje fui promovido a contramestre. Agora, não ganho mais por dia de servi‡o. Vou fazer cento e oitenta em mes corrido. O rosto de Sá Josefa iluminou-se: -O quˆ, meu filho?! Contramestre? Ganhando cento e oiten- ta por mˆs? Vocˆ tem tido sorte aqui no Aracaju. ... -Sorte? Pois eu acho que sou mal recompensado, em vista do que fa‡o. Um contramestre com menos de duzentos de ordenado, s¢ mesmo aqui ‚ que se vˆ! Sá Josefa franziu o sobrolho de repente, e, acercando-se mais do filho: -Escute aqui, Pedro. Vocˆ por que não larga umas certas companhias, que andam virando a sua bola? Não, não se zan- gue. . . Eu falo ‚ pro seu bem, pro bem de todos n¢s... Se h um que não pode se queixar, ˆsse ‚ vocˆ. Seus patrões lhe tratam como um filho; sobem vocˆ de p"sto cada dia.. . Por os corumbas 59 que, então, essa hist¢ria de querer sempre ganhar mais, s¢ oito horas de servi‡o, e mais isso e mais aquilo? Bem pensado, ‚ at‚ uma ingratidão de sua parte ... Ele encolheu os ombros. E, sarc stico: -Então, ‚ um favor que ˆles me fazem? Olhe, mãe, ‚ melhor a gente não conversar s"bre essas coisas... P"s o gorro, num gesto arrebatado, e saiu sem despedir-se, em dire‡ão ... casa do tip¢grafo, que o aguardava juntamente com outros companheiros. Ao outro dia, dando not¡cia do fato para o marido, Sá Jo- sefa concluiu por lhe pedir: -Ele atende mais a vocˆ do que a mim. Sempre diz que eu sou mulher e não entendo dessas coisas... Pois bem: vocˆ ‚ homem. Valha-se disso e aconselhe, brigue mesmo, pois no caminho em que ˆle vai, acaba no "lho da rua... Se não acon- tecer coisa pior... TREZE Ecomo se aquilo tivesse sido um vatic¡nio, logo na semana imediata a vida pl cida do operariado sergipano estreme- ceu, convulsionou-se de repente. Proveio o desac"rdo de haverem as F bricas estabelecido o trabalho noturno, sem, no entretanto, aumentar o pre‡o dos sal rios. £ltimamente elas j não podiam vencer, apenas com o ser- vi‡o diurno, a enorme quantidade de encomendas que a cada instante lhes chegavam. Resolveram, então, fazer serões e admi-- tir gente nova para organiza‡ão de duas turmas: uma, que trabalharia das cinco e meia da manhã at‚ a tardinha; e outra, que entraria ...s seis da tarde para sair de madrugada. A maioria dos trabalhadores recebeu essa not¡cia com ale- gria. Era uma oportunidade que surgia de ganharem um pouco mais, com as horas extraordin rias de servi‡o, ou empregando filhos e parentes nos lugares que se acabavam de criar. Mas, aqui e ali, foram-se ouvindo alguns protestos. T¡mi- dos, a princ¡pio. Violentos e exaltados, logo emp¢s. 60 amando fontes Ao grupo de Jos‚ Afonso coube dar o rebate e sustentar a luta contra as F bricas. Ou "o servi‡o noturno seria pago com a bonifica‡ão de um tˆr‡o s"bre os sal rios do dia, ou ningu‚m se sujeitaria ... nova explora‡ão", foi o ultimato lan‡ado pela Sociedade Prolet ria do Aracaju, que passou a funcionar em sessão permanente, cheia de curiosos e pros‚litos. Não se arrecearam os patrões ante a amea‡a. Eles sabiam que havia muita mis‚ria entre os humildes. As colheitas ti- nham sido m s por t"da a parte. Do interior, todos os dias, chegavam fam¡lias e fam¡lias, em busca de trabalho. Ganha- riam a partida sem esf"r‡o. E declararam, então, en‚rgica- mente, "que iriam trabalhar durante a noite com o mesmo sal rio que pagavam pelo dia. Os oper rios escalados que fal- tassem seriam sumariamente despedidos". Foi assim que se criou para a Sociedade Prolet ria o emba- ra‡oso impasse. Se reagisse, pela f"r‡a, contra os que se subme- tessem, teria o revide violento da Pol¡cia; se afrouxasse, diante da atitude assumida pelas F bricas, estaria desmoralizada para sempre. Jos‚ Afonso vibrava. Seu temperamento combativo, seu ca- r ter inamolg vel recusavam-se a admitir qualquer id‚ia de ac"rdo que f"sse uma derrota disfar‡ada. Ele sabia que, al‚m de lutar contra o poder desmedido dos patrões, teria de en- frentar a pusilanimidade dos pr¢prios companheiros. Mas cons- titu¡a uma questão de vida e morte vencer aquˆle embate. Perdˆ-lo, seria lan‡ar o desƒnimo, desorganizar por completo as suas hostes. E o tip¢grafo p"s-se em campo, com uma capacidade de a‡ão surpreendente. Para manter levantado o moral de seus adeptos, fazia quatro e cinco discursos numa tarde. Não pa- rava um instante, atendendo a uns e outros. Alimentava-se mal, quase não dormia, naquela tensão de nervos que acomete o soldado na trincheira. Dois, trˆs dias se escoaram. A situa‡ão se mantinha inalte- rada. As F bricas, absolutamente certas da vit¢ria, j tinham marcado para a pr¢xima segunda-feira o in¡cio dos serões. os corumbas 61 Foi quando um acontecimento, de t"da sorte inesperado, veio dar f"r‡a e estimular a a‡ão dos oper rios. A pol¡tica de Sergipe se encontrava numa de suas eferves- cˆncias peri¢dicas. Iam-se realizar as elei‡ões para a renova‡ão da Cƒmara Federal. A oposi‡ão, representada pelo Dr. Perei- rinha, que desfrutava de grande prest¡gio em todo o Estado, e pelo General Rolando Martins, abertamente apadrinhado pelo Centro, desenvolvia uma cabala intens¡ssima. O Presidente do Estado, nessa ‚poca, era um homem volun- tarioso e truculento, que não admitia dissensoes ao seu governo. Sob seu guante a oposi‡ão não desfrutava de um s¢ momento de tr‚gua. Não havia arma ou processo de que hesitasse lan‡ar mão com o fim de sufoc -la. j havia mandado fechar o jornal do Pereirinha. No interior cometia as maiores violˆncias, fa- zendo prender e espaldeirar os que dissentiam de seus atos. A opinião p£blica, por‚m, desde o primeiro instante con- denou a a‡ão do Presidente. O mart¡rio de certos chefes mu- nicipais bem conhecidos veio engrossar ainda mais a coorte dos descontentes. Por fim, todo o Estado formou contra o Partido dominante. Ante os protestos e a grita que de t"da parte se erguiam, o Presidente ainda mais se exasperou. E desmandou-se por completo, suprimindo comarcas, criando impostos escorchan- tes, anexando munic¡pios. Foi justamente a essa hora que ocorreu o desac"rdo entre os patrões e os oper rios: e o detentor do governo serg¡pano ime- diatamente planejou um h bil golpe, que lhe traria a adesão da gente pobre. Certo dia, fˆz vir ... sua presen‡a o Dr. Celestino, delegado de Pol¡cia da Capital, e come‡ou a lhe explicar: -Mandei cham -lo, Dr. Celestino, para lhe dar pessoalmente algumas ordens. O Prado est doente. E al‚m disso, ao senhor mesmo ‚ que deve caber essa missão, por suas velhas liga‡ões com as classes trabalhadoras. Trata-se do seguinte: essas duas F bricas me movem uma oposi‡ão surda e tenaz. Com parte de dar liberdade de opinião aos oper rios, cabalam ...s escon- didas contra mim. Agora chegou a vez de eu lhes dar uma li‡ão. Como o senhor sabe, ˆles não perdem vaza para explo- 62 amando fontes rar a mis‚ria alheia, Nessa questão do trabalho noturno estão fazendo assim. Resolvi, então, me p"r decididamente ao lado dos oper rios, ajud -los de t"da forma, para que ven‡am a partida. Quero, portanto, que o senhor aja nesse sentido. Pro- cure os chefes da greve, dˆ-lhes pleno conhecimento dessa mi- nha delibera‡ão. Ante a luta que vimos sustentando, ‚ preciso angariar simpatias, dˆste ou daquele lado. . . E, estendendo a mão para o rapaz: -Compreendeu tudo claramente, não ‚ assim? Pois bem: tem carta branca. Pode agir. "Tomar o partido dos oprimidos contra os opressores!" Uma grande alegria alvoro‡ou o delegado. Ele era um jovem de vinte e poucos anos, que não fazia muito deixara os bancos acadˆmicos. Trabalhador e inteligen- te, tinha-se feito por si mesmo. Sua facilidade verbal lhe havia granjeado, desde os tempos de estudante, renome de orador. Filho de pai sem fortuna, pequeno lavrador l nos sertões, Celestino havia-se criado entre camp"nios, conhecendo-lhes de perto as priva‡ões e os sofrimentos. Da¡, por certo, lhe ficaram aquˆle pendor pelos humildes, aquela esp‚cie de piedade que sentia por todos os que vivem do suor derramado cada hora. Na Faculdade tinha-se distinguido, sobretudo, por suas id‚ias liberais. De cont¡nuo aludia ... "Id‚ia Nova". Assim, quando se estabeleceu no Aracaju, com o diploma de bacharel j cort- quistado, p"s-se a patrocinar gratuitamente os presos pobres e defendeu com brilho e ardor certa causa que apaixonara os saveiristas. A sociedade dos choferes, a dos estivadores não tardaram em convid -lo para seu advogado. Houve quem o tachasse de revolucion rio e comunista. Mas isso não impediu que o govˆrno, por insistˆncia de um chefe pol¡tico sertanejo, o nomeasse delegado-geral do Aracaju. De Pal cio, Celestino correu a procurar Jos‚ Afonso, que era seu velho conhecido. No entusiasmo em que se achava, os corumbas 63 nem fˆz alusão ao m¢vel oculto que acionara o Presidente. E inconscientemente exagerava o que este lhe dissera: -Vocˆ não avalia, Z‚ Afonso! O homem est positivamente indignado. Diz que nunca viu uma explora‡ão igual a essa! Querer que se troque a noite pelo dia sem a menor compen- sa‡ão. Estou certo que, se a lei permitisse, mandaria chamar os gerentes na Pol¡cia e os obrigaria a pagar o servi‡o da noite pelo d"bro, como ‚ justo. Agorinha mesmo mandou me pro- curar e disse: "Celestino,, sei que vocˆ ‚ amigo e protetor dos oper rios. Eu tamb‚m sou. Sempre fui. Vamos prestigi -los de forma decidida nessa questão, at‚ que ˆles ven‡am totalmente" O secret rio da Sociedade Prolet ria olhava o seu interlo- cutor com um grande pasmo. Sua surprˆsa era tamanha, que não queria acreditar. Depois de um curto silˆncio, foi ainda o Delegado quem falou: -Como ‚, homem? Est indeciso? Eu recebi as ordens mais positivas e mais claras. Se quer vencer, ‚ mãos ... obra! Uma chaina de alegria fulgiu no olhar do comunista. Aper- tou efusivamente a mão de Celestino. E, a como‡ão transpa- recendo na voz, exclamou: -Obrigado, doutor... Eu sei que devemos essa reviravolta ... sua a‡ão. Os prolet rios de Sergipe reconhecem o muito que lhe devem. E saberão ser gratos, algum dia. .. Conversaram ainda uns dez minutos, concertando planos, estabelecendo pr¢s e contras. À despedida, Celestino p"s a mão no ombro do tip¢grafo: -Vocˆ tem fibra, sabe querer e tem talento, Z‚ Afonso! Ainda hei de vˆ-lo muito alto, no p"sto que de justi‡a lhe compete! Nessa noite houve uma reunião secreta entre Jos‚ Afonso e seus quinze lugares-tenentes mais dispostos. Eram contrames- tres, foguistas, mecƒnicos, pedreiros e tip¢grafos. Taciturno e confiante, a‡ão sem palavras, Pedro Corumba se encontrava em meio dˆles. S¢mente madrugada se apartaram. Deram-se as mãos em silˆncio. Todos estavam emocionados. 64 amando fontes Uma questão oper ria em Aracaju! A cidade prˆsa de pƒ- nico, fervendo sob os mais disparatados boatos. Grupos nas esquinas, nas casas de com‚rcio, s¢ a falar no caso. Autom¢- veis passando r pidos, ora conduzindo grevistas, ora cheios de soldados. O Studebaker e o Hudson das duas F bricas em movimento cont¡nuo pelas ruas. Na Chefatura e em Pal cio, reuniões e conferˆncias sucessivas. As classes conservadoras alar- madas. A gente humilde receosa, por seu turno, de ver a fome pela porta... Ainda no domingo, manhãzinha, os oper rios mais gradua- dos e sem os quais não seria poss¡vel o funcionamento dos teares, foram avisados, em boletins distribu¡dos por mão mis- teriosa, "de que não deveriam comparecer aos seroes, para evitar funestas conseqˆncias". Alguns, por serem amigos dos patrões; outros, pelo temor de serem despedidos; e um maior n£mero ainda pela neces- sidade de ganhar um pouco mais - sempre houve, na pri- meira noite, gente bastante no servi‡o. A comparˆncia de ser- ventes e mulheres foi at‚ superior ao n£mero preciso. As F bricas j davam a partida como ganha... Mas, na madrugada de tˆr‡a-feira, veio a revanche, em que ningu‚m acreditava. Os oper rios que retornavam do trabalho foram agredidos a cacˆte, de emboscada, nos aterros e vielas por onde tinham seu caminho. Um pano s"bre os rostos, disciplinados e certos, os grevistas atacavam em v rios pontos. Vinham em grupos de quatro e seis. Silenciosos. Dispostos a tudo. Houve gritos, ataques, mulheres que se rasgaram, saltando cˆrcas, a correr. Muitos se atiraram pelos mangues, ferindo-se nas ostras pontiagudas, atolando-se na vasa. Os poucos ho- mens que pretenderam reagir, apanharam duramente. Cinco ficaram por terra, malferidos. Dizia-se que entre os atacantes um tivera o ventre rasgado a canivete e f"ra carregado para lugar seguro e ignorado nos bra‡os dos companheiros. As F bricas sentiram, então, t"da a gravidade do perigo. Esqueceram questões de concorrˆncia, que as havia afastado desde muito, e passaram a deliberar como um s¢ corpo, uni- das e solid rias. As suas Diretorias, incorporadas, foram at‚ os corumbas 65 a presen‡a do Chefe de Pol¡cia, que prometeu tomar as mais severas providˆncias. Por‚m, ainda no outro dia e por t"da a semana, repeti- ram-se as investidas dos grevistas. Os outros tiveram mˆdo. E na sexta-feira os servi‡os noturnos não mais se puderam realizar. A Pol¡cia, novamente procurada, confessou-se impo- tente. O delegado Celestino, a quem a questão ficara afeta, dizia "que para acabar com a greve seria preciso recolher ... prisão todo o operariado da cidade, pois que todo ˆle se achava levantado contra as F bricas". A popula‡ão, no entretanto, não se deixou enganar um s¢ instante. Logo viu que o govˆrno cruzara os bra‡os de pro- p¢sito. Compreendeu que tudo aquilo nada mais era que uma conseqˆncia da luta partid ria. E protestou. A Associa‡ão das Ind£strias lan‡ou manifesto, prestigiando a Tˆxtil e a Sergi- pana. O Com‚rcio e as Profissões Liberais a acompanharam. Mas nem assim o Presidente cedeu uma s¢ linha. E obsti- nado, rubro de ¢dio, repetia a quem quer que lhe f"sse falar s"bre o assunto: -Todos os que defendem as F bricas são nossos inimigos disfar‡ados. Não est se vendo logo. Aproveitam-se do mo- mento pra fazer oposi‡ão ao meu govˆrno. Mas hei de mos- trar-lhes que comigo ningu‚m brinca. Os oper rios sabiam disso e exultavam. Nenhum entusiasmo era maior que o do filho de Geraldo. Fizera-se uma esp‚cie de secret rio, o homem de maior confian‡a do tip¢grafo. E quando ˆste falava, j aludindo, agora, ... "marcha vitoriosa para as grandes conquistas", era de Pedro o primeiro brado que se erguia, clamando pela desforra imediata... Uma suave noite de luar. O Cotinguiba, como um enorme peixe de escamas reluzentes, descia, pregui‡oso, para o Sul. A cidade em silˆncio. Apenas, ...s vˆzes, o cantar de um galo, triste; um cão ladrando, longe; o ressoar dos passos de um transeunte retardado... O Pal cio Presidencial conservava-se ainda iluminado ...quela hora. 66 amando fontes S£bito, o buzinar de um autom¢vel em disparada. Ouve-se o ronco do motor. Aproxima-se. P ra em frente ao Pal cio. Celestino salta, afobado, e fala qualquer coisa com o chofer. Sobe as escadas de m rmore a correr. Chega ... sala do caf‚, onde se achava o Presidente, cercado de seus auxiliares. E, depois de apertar a mão de todos: -Recebi o seu recado agora mesmo, Presidente. Vim cor- rendo. O que ‚ que V. Ex.a determina? # Mergulhado numa vasta poltrona, onde seu pequeno corpo se perdia, o Presidente balan‡ava sem cessar uma das pernas, o sobrecenho carregado, apertando de vez em quando os l - bios entre os dentes. Numa das mãos agitava, nervoso, um ma‡o de papeluchos de c"r verde. Levou alguns instantes sem responder ao Delegado, olhan- do-o fixamente. Depois, fazendo acompanhar suas palavras de gestos secos, en‚rgicos, come‡ou: -Dr. Celestino, vou ter uma conversa s‚ria com o senhor. Atente bem. Essa questão entre os oper rios e as F bricas enveredou por um terreno bastante perigoso. Seu plano, p"sto em execu‡ão com ordem minha, mas sem que eu conhecesse os seus detalhes, fracassou inteiramente, não deu certo. O que vejo são perturba‡ões da ordem a t"da hora, sem que as F - bricas cedam uma s¢ linha. Ora, isso não pode continuar por essa forma mais um dia. Alguns jornais do Rio j fizeram coment rios contra n¢s, jogando-me s"bre as costas at‚ a res- ponsabilidade dˆsses atentados contra a propriedade e a vida alheias. Precisamos, de uma vez por t"das, colocar um ponto final nessa hist¢ria. Se eu j estava pensando assim antes, agora, que o Presidente da Rep£blica apelou para mim, na qualidade de correligion rio e amigo, para que se fa‡a um ac"rdo na pol¡tica estadual, a solu‡ão do caso se torna urgente e imperativa. E eu vou agir nesse sentido. Tão brusca era aquela mudan‡a de atitudes, que Celestino julgou não haver bem entendido, e perguntou, com um ar perplexo: -Como, Presidente? -Como? O senhor não entendeu? Pois ‚ isso: acabo de re- ceber um longo telegrama do l¡der-‚ ˆste aqui- pedindo a os corumbas 67 inclusão na chapa oficial do Pereirinha e do Rolando, sob o argumento, muito justo, ali s, de que sendo todos amigos do govˆrno, não ‚ conveniente, ante a delicadeza do momento nacional, continuar mantendo, senão alimentando dissensões pelos Estados. Acrescentou que agradaria sobremodo ao Pre- sidente o congra‡amento de todos aqu‚les que o ap¢iam com patriotismo e desinterˆsse no Congresso. Diz tudo isso em tˆr- mos cordiais, chamando-me de "prezado chefe da pol¡tica ser- gipana", declarando que tudo espera de meu esp¡rito de cola- bora‡ão, de meu amor ...s Institui‡ões e ... P tria. Diante disso, como ‚ natural, não posso desatendˆ-lo. Ora, um dos obst - culos ao entendimento proposto vem sendo justamente essa maldita greve, que est se revestindo de uma violˆncia desme- dida, com correrias e arrua‡as repetidas, no momento da en- trada e da sa¡da do servi‡o. A maioria da popula‡ão, não se pode esconder, tomou partido contra n¢s. Precisamos mostrar que não damos mão forte a desordeiros. O Delegado estremeceu. Uma revolta s£bita invadiu-o. E gaguejou: -Mas, Presidente... eu não entendo... -Não entende, o quˆ?-perguntou, j meio agastado, o de- tentor do govˆrno sergipano. Celestino ganhou coragem. E, num assomo: -Isso, Presidente: de se querer castigar ˆsses pobres homens, que defendiam seus direitos, que tiveram o nosso apoio in- tegral. . . -Alto l , senhor doutor... -atalhou o Presidente, j ver- melho.-Eu nunca mandei ningu‚m espancar os companheiros. Eles se excederam por sua conta exclusiva. Esbordoaram, de- ram facadas, cometeram verdadeiros crimes, que nem eu, nem o senhor, por certo, autorizamos. E para quem ofende a lei, castigo! Esse ‚ o papel da Pol¡cia! Essas £ltimas palavras foram proferidas em tom forte, bra- dadas quase. Celestino compreendeu o terreno falso em que pisava. Uma intensa palidez cobriu-lhe o rosto. E, enquanto se firmava em motivos que o levariam a resistir, assaltou-o, malgrado seu, a idéia de recuar. Que fazer, então? Hesitou. Foi quando lhe 68 amando fontes veio a lembran‡a de promover um ac"rdo, que harmonizasse todos os interˆsses. E sugeriu: -Mas... V. Ex.a não acha, Presidente, que era melhor eu mesmo procurar ˆsses rapazes e aconselh -los a se portarem com mais calma? Eles, com certeza, me ouvirão. Se o não quiserem, então, a Pol¡cia agir ... V. Ex.a compreende: ‚ pela situa‡ão esquerda em que eu me acho colocado... -Seria bom, de fato. Eu compreendo que a sua posi‡ão ‚ delicada. Mas, no p‚ em que as coisas se encontram, s¢ uma atitude nos compete: romper de uma maneira clara e ostensiva com essa gente, para dar uma satisfa‡ão em regra ... opinião p£blica. S¢ assim o conseguiremos. As F bricas, o Com‚rcio, todos estão contra n¢s. Precisamos modificar ˆsse ambiente. Celestino tinha os olhos no chão. Recordava-se, naquele ins- tante, das conversas entretidas com os grevistas, das promessas solenes que muitas vˆzes lhes fizera. Todo o seu ser vibrou, numa revolta. E manifestou-a ao Presidente, sem rebu‡os: -V. Ex.a me perdoe, Mas eu me consideraria um degradado moral se tomasse ... -Basta, senhor doutor! -explodiu o chefe do Govˆrno, inter- rompendo-o.-Eu não compreendo um correligion rio que se apega a questões de nonada, quando estão em j"go os altos interˆsses do Partido. Agora, se o senhor prefere ficar com essa gente e abandonar os amigos pol¡ticos... O Presidente ia falando e na cabe‡a do delegado os mais desencontrados pensamentos perpassavam. Em verdade, ˆle não dispunha da energia necess ria para romper, ali mesmo, bra- vamente. Por outro lado, insistir no ponto de vista de não castigar os rebelados, seria, dado o exaspˆro em que se encon- trava o Presidente, arriscar sua carreira, o seu futuro. Depois, não melhoraria em nada a situa‡ão dos oper rios. Sua perma- nˆncia na Pol¡cia ser-lhes-ia, at‚, mais £til. Poderia suavizar investidas, desviar persegui‡ões. Agarrou-se a essa evasiva. As £ltimas resistˆncias de seu car ter cederam. E concertou, enca- bulado: -Eu não sabia que era assim.. . Se se trata de uma questão pol¡tica, de um servi‡o ao Partido, absolutamente eu não me escuso. Sou um soldado. V. Ex,a pode ordenar, que eu cumpro. os corumbas 69 j estava senhor de si. Chegou a acrescentar, enf...ticamente: -Não ‚ meu h bito desertar nas ocasiões mais dif¡ceis. A c¢lera do Presidente não tardou muito a se esvair. E vol- tando a falar em sua voz pausada, disse, com entona‡ão cor- dial, a Celestino: -Momentos dif¡ceis como ˆsse são espinhos do of¡cio, meu amigo. Vejo que, por um lado, o senhor tem sua razão. O caso ‚ mesmo delicado para si, dada sua situa‡ão anterior. Mas isso se remedeia facilmente. Basta, apenas, que deixe para outro a execu‡ão das diligˆncias. O Prado j reassumiu o cargo e toma a frente de tudo... O Chefe de Pol¡cia, Dr. Prado Antunes, aproximou-se. -Não ‚, Prado?-interrogou o Presidente de Sergipe.-Vocˆ se encarrega do trabalho... -Sem d£vida... j est tudo preparado... Celestino interveio: - prisão? -Prisão... e deporta‡ão. O Delegado bateu os olhos. Não p"de reprimir um senti- mento ¡ntimo de repulsa, que lhe contraiu os m£sculos da face. Mas limitou-se a perguntar: -E eu, doutor? O que ‚ que devo fazer? -Apenas me apontar, nome por nome, os cabe‡as. -Não precisa. Deixei-os, ainda agora, reunidos na sede da "Sociedade". Ficaram aguardando o meu regresso... s¢ che- gar de surprˆsa. O Chefe da Seguran‡a apertou apressadamente a mão de todos e disse, a rir, antes de transpor o umbral: -Vai ser uma limpa em regra... Não sei ‚ se no porão do Ita cabe tudo... Foram presos nove. Passaram a noite numa sala escura, de sentinela ... vista. Ao outro dia embarcaram, com precau‡ões extremas, que s¢ se tomam para os sˆres excessivamente pe- rigosos. O Itajub mantinha-se ao largo, bem defronte ... Alfƒndega. Estava prestes a partir, aguardando apenas a chegada dos de- tentos. Logo que os teve a bordo, levantou ferros, apitou, e p"s-se a cortar as guas mansas do rio, 70 amando fontes Os oper rios se haviam alojado na proa, em cima do conv‚s. Tontos, ainda, pelo brusco desenrolar dos £ltimos sucessos; receosos do que lhes poderia acontecer. Estariam sendo deportados para o Rio? Para mais longe? O Amazonas? Ou seria uma ilha deserta, perdida no Oceano? Fuzilamento? Prisão por t"da a vida? Mil pensamentos maus doidejavam em suas cabe‡as. De nada sabiam, entretanto, pois nem sequer interrogados tinham sido. Estavam todos juntos, silenciosos, os cora‡ões pesados. Olha- vam tristemente o casario da cidade, que ia ficando para tr s; a Rua da Frente; um bonde que passava; os coqueirais da Ilha, na outra banda. No fundo, ressaltando ante seus olhos, o Morro do Urubu, verde-escuro; a Igrejinha de S. Ant"nio; as chamin‚s das Fabricas, que vomitavam rolos de fumo branco... Passando em frente da Capitania, a vapor lan‡ou um apito muito longo. Pelo estado em que se achavam suas almas, aquˆle som lhes pareceu mais triste e doloroso do que nunca. Trˆs, dentre ˆles, choraram... Taciturno, sem murmurar uma palavra, Jos‚ Afonso se en- contrava sentado junto a Pedro, que acendia um cigarro atr s do outro. O navio ia j transpondo a barra. Algumas ondas vieram se quebrar violentamente contra a proa. Foi a¡ que o tip¢grafo levantou-se, o olhar chispante. E espalmando a mão para a cidade, que se perdia na distƒncia, em tom de amea‡a proferiu: -Traidores Miser veis! Um dia vocˆs pagam. Desde que viram a greve declarada, Geraldo e Sá Josefa não tiveram um momento de sossˆgo. Pedro somente de raro em raro aparecia, calado, como sempre. Às vˆzes, a velha se animava a interroga-lo, aconselhava-o, fazia-lhe sentir os seus receios. Mas ˆle encolhia os ombros bruscamente, trancava o rosto mais ainda, e resmungava que "era melhor não dizer nada, porque ˆles não compreenderiam mesmo a sua a‡ão". os corumbas 71 Na noite em que todos foram presos, Sá Josefa não dormira um s¢ instante, aguardando que o filho regressasse. Quando, afinal, pela manhã, Geraldo chegou, de volta do servi‡o, a lhe dizer que "falavam na prisão de bem uns trinta grevistas", ela enrolou o xale na cabe‡a e saiu precipitadamente para a rua, em busca de not¡cias. Andou, aqui e ali, de d‚u em d‚u, como uma doida. Estˆve, primeiro, na sede da Sociedade Prolet ria. Mas recuou, cheia de espanto, vendo-a guardada por soldados, que conduziam cara- binas. Teve ƒnimo de ir at‚ a Pol¡cia. Por‚m ali ningu‚m deu aten‡ão ...s suas perguntas. Apenas um soldado, j na rua, a escutou com interˆsse. Nada p"de, entretanto, esclarecer a respeito de seu filho. Soaram dez horas nos rel¢gios das igrejas e das F bricas. O sol queimava. Sá Josefa, por‚m, não hesitou, e saiu, quase a correr, em dire‡ão ...s oficinas. Chegou justamente quando largavam para o alm"‡o. Alguns homens acorreram, fizeram um c¡rculo junto dela. E um rapazola espada£do, ajudante de Pedro no servi‡o, p"s-se a narrar-lhe, em voz emocionada, o que sabia s"bre o fato. Im¢vel, o olhar vazio, ela o escutava. O jovem concluiu a nar- rativa e ela ainda se manteve uns momentos alheada, olhando o chão. Disse, depois: -E o embarque? Quando ‚? Responderam: -Agora mesmo. Ao meio-dia. A mulher de Geraldo estremeceu. Concertou o xale s"bre os ombros. E retomou, a passos largos, o rumo, da cidade. Quando alcan‡ou a Rua da Frente o vapor ia j dobrando a barra. Ela ficou a olh -lo at‚ que o viu sumir-se no hori- zonte. Uma ang£stia indiz¡vel foi-lhe apertando, pouco a pouco, o cora‡ão. Um tremor nervoso assaltou-a. E teve de se arrimar ... balaustrada para não cair redondamente s"bre o solo. . . Geraldo veio a conhecer t"da a verdade muito antes do re- gresso da mulher. Foi Sá Maria Pirambu quem lhe contou, entre xingamentos e protestos, 72 amando fontes Ele ouviu tudo sem murmurar uma palavra. E disse apenas, quando ela se calou: -Meu cora‡ão bem me dizia... Viraram a cabe‡a do ra- paz... A sua voz era tão triste, havia tanta amargura estampada no seu rosto, que a propria Pirambu se comoveu, e, lan‡ando impreca‡ões contra os gra£dos, p"s-se a limpar com f"r‡a as l grimas dos olhos. A casa de Jos‚ Afonso foi varejada e remexida. Sua mãe estava s¢, quando a escolta apareceu, sob o comando de um sargento. Ela assistiu corajosamente a t"da a cena. Nada re- clamou, nada pediu. Mas, quando os soldados foram embora, correu a fechar a porta s"bre ˆles e jogou-se s"bre a cama, solu‡ando e gemendo de agonia. Tamb‚m houve esp"sas que choraram os seus maridos e filhos que gritaram pelos pais.. . QUATORZE DESGRA€A, quando vem, vem de chorrilho." "AEra assim que dizia Sá Josefa, t"da vez que lastimava sua sorte com o marido. De fato, as ocorrˆncias que se passaram com o filho, al‚m de abatˆ-los moralmente, por vˆ-lo prˆso e deportado, como se f"ra um vil ladrão, acarretou-lhes dificuldades financeiras as mais s‚rias. Porque, afinal, agora s¢mente o velho e Alber- tina trabalhavam para sustentar t"da a fam¡lia. E como se tudo isso não bastasse, o antigo reumatismo de Geraldo recru- descera com tal violˆncia, que o deixou prostrado quase um mˆs, sem poder ir ao servi‡o e sem ganhar. Foi a¡, vendo a mis‚ria j na porta, que Sá Josefa teve a id‚ia de colocar Bela na F brica. Certo dia, propos ao companheiro: -Vocˆ não acha bom, Geraldo, tirar Bela da escola de uma os corumbas 73 vez para ajudar as despesas da casa? Com a doenceira sem pa- rar em cima dela, atrasou-se tanto nos estudos, que j est fora de ponto pra tirar uma cadeira. O que ela tinha de apren- der, j aprendeu. De sa£de, ela j anda bem melhor; s¢ tosse uma vez por outra. A gente podia botar ela na Tˆxtil, pra fazer uns servicinhos mais maneiros. Que ganhe seis, sete mil- -r‚is por semana ... Sempre ajuda ... Geraldo objetou: -Mas ser que ela agenta ˆsse puxado? Caminhar ao sol e ... chuva e engolir poeira de ela não v ficar doente ... algodão... Tenho mˆdo que -Eu tamb‚m, falar verdade, não gosto disso nem um tico... Mas o que ‚ que a gente vai fazer? Tenho dado muita volta na cabe‡a e não atino... Tirar a outra da escola, perdendo tudo o que j fˆz, ainda ‚ pior... Não vejo outro recurso senão ˆsse ... Bela, consultada no outro dia, não p"s a menor d£vida em se empregar. Apressou-se, at‚, em tranqilizar os velhos pais, quando ˆstes expressaram o seu receio de vˆ-la novamente adoecer: -Por mim, não! Essa tossezinha que ainda tenho não ‚ nada