Alexandre Lyra Martins Doce Verde Salgado Editora UFPB 2010 Para Ângela Sumário: 1. O micro cosmo 6 2. Órbitas 24 3. O macro cosmo 47 4. Os cosmos 79 5. Os cosmonautas 110 6. O extra-terrestre 141 7. O fim? 162 1 - O micro cosmo À esquerda o chiado do universo, mais um pedaço de pau mais azul que o próprio céu; navega. À direita o cochicho de seres e à frente o intempestivo tempo que não deixa olhar para trás, onde só há silêncio. As marcas se pregam apenas por instantes, estiveram aqui ontem flutuando por um céu apinhado de estrelas, caminhavam sem querer encontrar, tropeçaram em diamantes e em volta o tempo, os seres, o silêncio, e à esquerda esse mar imenso que acalma. Às vezes sinto que levito. Amanhecia sempre tranqüilo o dia naquela aldeia marítima, o ar impregnado de peixe, sargaço e Deus dará. Parece que alguém tinha descoberto aquele lugarejo e só, depois ninguém mais dava conta daquele fim de mundo, agradabilíssimo, é verdade, mas fim. Até o processo de crescimento populacional se dava em câmara lenta, vez perdida ou outra, algum novo membro era integrado à comunidade. A aldeia dos guejos, batizada assim por que havia um manguezal junto com o braço de mar e um monte de caranguejos pra contar a história, era um canto de litoral um tanto distante da capital, o suficiente para desestimular alguns meio insatisfeitos, mas acomodados com aquela mesmice aterradora de sempre, a ir tentar a sorte na metrópole. Para sair da comunidade quase não tinha estrada, só um caminho aberto no meio da mata, que lá na frente encontrava uma estrada de barro e areia fina. Esse era o percurso para chegar à civilização, no caso, a cidadezinha de Taquara, a uns 30 minutos de bicicleta. Isso sem contar a barreira que havia logo na saída da aldeia, de maneira que o indivíduo, para sair de lá, primeiro, disposto, tinha que encarar uma ladeira esburacada, depois, já mais pra indisposto, se situava na planície, para só então encontrar a dita ruazinha argilosa e seguir por mais alguns quilômetros. Era uma aldeia simpática com casinhas de taipa enfileiradas e na ponta um campinho, que servia de praça, ou uma praça que servia de campo para as peladas, todas com vista pro oceano. A maior parte das pessoas que moravam nelas se gostavam, a não ser seu Pedro, personificação de burro empacado, e Dona Florinda, que não perdia oportunidade de criar uma intrigazinha. Mas todos sabiam que eles eram assim mesmo, não tinham jeito e, conhecendo como os conheciam, já eram vacinados, nem se incomodavam. Havia basicamente uma rua principal de terra batida, endereço de todos moradores. Os pioneiros se posicionaram mais à direita, ao lado do mar e, quanto mais antigo, perto da praça, e os mais novos iam pegando a rabeta, à esquerda. Mas se estava ali, ainda que não no mapa, é por que era uma beleza, coisa que o velho José Aragão, fundador da aldeia, certamente prezava. Diziam que ele falava por aí que "...a natureza pode ter várias formas e nem sempre é fácil se conviver com ela, pode dar trabalho, pode ser problema, mas às vezes ela é generosa, e quando a natureza farta se encontra com a beleza; dá perfeição". Contava-se também que ele teria escolhido o singular nome da aldeia porque os bichos homenageados eram os reis do lugar, com aquela armadura invencível e a pose versátil de ataque e defesa. Além disso, eram também maestros, regendo todo restante da orquestra do manguezal com as garras levantadas. Oficiais e músicos a um só tempo, se moviam, em regra, vagarosamente, delicadamente, mas de maneira firme e rítmica, produzindo uma sinfonia quando se juntavam para se deslocar, ao fim da tarde, com a vazante da maré, rumo ao oceano. Um exército em marcha, executando uma marcha de Ravel sem ter noção da grandiosidade daquilo tudo, sem ser marcha a ré, marcha soldado lado a lado, todos marchando direito, por debaixo dos cajueiros, rumo ao horizonte. Transitavam do rio para a areia, da areia para o mar e ninguém podia com eles, a não ser a panela do nativo, quando esse cismava em travar a outra dura batalha que é comê-los, pra sentir o gostinho da carne branca com limão, que é também o gosto saboroso da vitória sobre aquela carapaça covarde. Já para o mar, a música era a ciranda. As ondas vinham, recuavam e esperavam quatro compassos para voltar, se esparramando de novo pelo areal. Já era assim antes deles chegarem, mas não se sabe ao certo se foi o mar que aprendeu a bailar nessa cadência com algum antepassado errante que se perdera por ali, ou se foi a maré que ensinou aos homens o balanço sincopado e malemolente dessa dança. Ali, por volta dos anos 1950, belo dia, explorando o mar um pouco mais adiante, tocando a jangada pra mais um pouco, uma curvatura da costa sobre a qual nunca tinha avançado revelou ao velho Aragão aquele canto meigo, um lugarzinho cercado de boa vizinhança: o mar, um rio, coqueiros, cajueiros, umbuzeiros, mangabeiras e pés de araçá, sem uma alma, até então, a habitá-lo. Tinha até três olhos d'água, de forma que seu Zelão, como era mais conhecido o descobridor do lugarejo, não teve dúvida, voltou pra pegar sua família e chamar seus amigos pescadores, para viver por ali. A praia depois da fatídica curva que lhe apresentou a visão do paraíso, ganhou o nome, a contragosto do fundador, de praia Tinhosa, porque encontraram uma bota velha logo no princípio da instalação da comunidade. No começo Zelão relutou, cabreiro, chegando a achar mau presságio aquele nome associando seu charmoso fim de mundo ao coisa ruim, quando podia ser um vestígio do mestre musical do mar, ou do primeiro aluno desse; um marinheiro qualquer, sobrevivente de algum naufrágio. Enfim, o tempo foi passando, Zelão não conseguia emplacar outro nome, o nome ia pegando, nada acontecia, nada tirava a calma do lugar, e aí ficou esse mesmo e ele acabou se conformando com a irreverente denominação escolhida pelos amigos. Uns vinte anos depois, a aldeia aumentou muito pouco. O que havia era mais movimento, as pessoas na capital e em cidades próximas já ouviam falar da comunidade e frequentemente baixava algum visitante. O lugar, devido à sua exuberância natural, atraia uma espécie de visitante em particular: os hippies. Os demais tipos continuavam esporádicos, erráticos. Bastou o primeiro soltar a fumaça branca avisando os demais e pronto, quase todo fim de semana tinha bicho-grilo na área. John era um desses visitantes, que, não por acaso, já estava procurando um lugar desse tipo pra fixar residência. Gringo, não tinha muita cara de gringo com seus olhos e cabelos castanhos; só a pele denunciava: branca demais antes e avermelhada depois. Tendo adorado tudo que viu, foi se enturmando e se moldando aos costumes locais, sempre gentil e prestativo, até, sem muita demora, se enrabichar com uma aldeã; a Bia. A descoberta do lugarejo pelos turistas eventuais trouxe o alargamento da estrada central e também do caminho para Taquara, coisa meio desnecessária, posta a raridade de seu uso e a predominância total dos veículos rudimentares dos aldeões. O maior avanço dos guejos nesse sentido foi comprar uma carroça e um burrico; o 'bico', para escoar a produção. Também veio morar na aldeia um par de cães importados diretamente de Taquara para guardar a cidade, dois legítimos vira-latas: Siri e Sirene. O primeiro agitadinho e o segundo uivador nato. O crescimento populacional de fato acontecia quando algum membro mais novo aparecia com uma morena das redondezas ou ficava por lá mais um pescador, ou algum forasteiro que se engraçava com o lugarejo ou com uma moradora local; ou com os dois. Os novos moradores eram observados pelos nativos, masculinos e femininos, para serem posteriormente absorvidos pela comunidade. Um ou outro não conseguia se adaptar e saia, mas eram exceções, pois quem se envolvia com os moradores do lugar já eram preparados para o que iriam encontrar: a serenidade de um relativo isolamento, quebrado esporadicamente por algum interessado em comprar peixe ou caranguejo. Mas se fosse migrante, que chegasse com família a tira-colo, depois de conversado com Zelão, o processo de absorção era mais dificultoso quanto mais bonitão fosse algum membro do clã mais moço e cinturada fosse a morena, que se tornavam alvo fácil dos olhares dos aldeões por um tempo, desejando, rejeitando, brincando, sorvendo... Essas brincadeiras causavam alguns bois-de-fogo na pequena vila, coisa normal de humanos possessivos que batalham para ter seu parceiro sempre disponível e de forma exclusiva. Esse tipo de problema começou justamente aí pelos idos de 1970, com a entrada da primeira geração de locais na adolescência e dos primeiros guejos de nascença, dentre os quais Deco foi o primeiro, na vida adulta. Deco era filho de Gero e Da Guia, amigos de Zelão, que veio com dona Francisca e Zeca no braço. Cresceram juntos com Lito e Zinho, que não eram locais e Jeba e Cosme, que nasceram depois de Deco. Do outro lado tinham as moças Emília e Mariazinha, bebês trazidos por seus pais Duda e Zélia, além de Vania e Ava, nativas guejas, filhas de Seu Alberto e Dona Dalva e Bia, filha de João e Maria. Cresceram brincando juntos e freqüentando a mesma escola em Taquara. Já cedo os homens se iniciavam no ofício da pesca, desvendando os meandros das redes e do mar e as mulheres aprendiam os segredos das receitas e das rendas que faziam no tempo livre pra vender, junto com os peixes, e ajudar nas coisas da casa. Depois apareceram mais alguns, que já formavam outras turmas, inclusive com filhos de outros casais que chegaram mais tarde. Um desses filhos caçulas protagonizou o único evento que quebrou a monotonia daqueles tempos da aldeota. Isso se passou num dia esquisito, atípico. Chovia muito por aquelas bandas, a pequena comunidade não estava acostumada. O normal era o sol, vento batendo nos rostos naturalmente avermelhados dos nativos, rede de pescar e de descanso. Uma vez perdida no ano é que caia uma aguinha mais braba, dessas de alagar tudo, mas dessa vez estava demais. Teve trovão, relâmpago e água por tudo quanto é lado, de maneira que não se conseguia nem ver onde terminava o marzão. Quem estava gostando do aguaceiro era Téo, caçulinha da turma, com cinco anos, menino maluquinho como quase todos. Seus colegas também gostavam, mas Téo adorava a água caindo do céu, escorrendo pelo corpo, era como ouvir tambores, violas e pandeiros chamando para dançar, e quando chegava na praça-salão a chuva menina lhe abraçava e lhe acompanhava em seus giros. Não raro os aldeãos pegavam ele olhando para cima, espiando o movimento das nuvens na esperança de que caíssem pelo menos alguns pingos ralos. Vez por outra ele passava na casa de seu Antônio, o 'adivinhador do tempo' para ver se aprendia aquele ofício, que ele acreditava que tinha jeito, e, quem sabe, alguma mandinga para chamar a água. Naquela tarde chovia cachoeira. Pé d'água virado, pé fora de casa, lá foi Téo em sua ciranda particular, rodando extasiado pela praça. Estava em estado tal de graça que fechou os olhos e foi se afastando do meio da praça para a rua principal da aldeia. Quando acordou estava nos braços de Deco e Zeca, que o socorreram. Deu sorte, um anjo lhe observava, não teve quase nada a não ser uns cortes e dois ossos quebrados. Zeca estava saindo da casa de um amigo perto dali, naquela hora não era comum essa visita. Deco, por sua vez, ia fazer compras na mercearia, desistiu com aguaceiro e ficou na varanda contemplando a escuridão em pleno dia; outro canto em plena aldeia. Cada um saiu correndo aturdido de onde estava e acudiram com cuidado o menino ensangüentado debaixo da maior chuva de todos tempos por ali. Vendo o sangue se diluir rápido na água, Deco pediu para Zeca pegar uma coberta, alguma coisa para aquecer o pequeno corpinho e algo que servisse de maca para que pudessem levá-lo em segurança. Enquanto Zeca providenciava as coisas e o socorro, Deco se colocou de quatro, como teto por sobre ele, falou algumas palavras sedativas e alisou sua cabeça. Foram apenas alguns minutos, Zeca arranjou tudo logo, inclusive a perua de John e um guarda-chuva pra protegê-lo melhor ali e quando chegassem no ambulatório de Taquara. Os dois guejos colocaram o menino na traseira com jeito, enrolado em um cobertor macio e o estrangeiro tocou para a civilização. Na viagem John acelerava tentando manter uma marcha razoável que balançasse o mínimo possível e evitasse outro acidente, enquanto os pais de Téo, acocorados, cuidavam dele. Mais tarde, quando a chuva diminuiu, Deco pegou a bicicleta pra ver Téo. Foi pensando como era difícil passar um carro ali no Vilarejo, ainda mais com aquele tempo. Nunca havia ocorrido um acidente daquelas proporções, aliás, de proporção nenhuma. Pensou no sem vergonha que invadira a aldeia pra provocar um problema desses. Pensou como a aldeia era frágil num caso desse, sem um posto médico, e que se fosse pior... Quando chegou no ambulatório, cansado, já andava devagar. Ainda meio desnorteado parou no balcão da entrada e perguntou: - Por favor, estou procurando por um garoto que se acidentou há pouco lá na aldeia dos guejos. Orientado, saiu perambulando pelos corredores e percebeu que tocava uma música suave nos alto-falantes, que falava que é doce morrer no mar. Ainda ensopado se dirigiu ao quarto de Téo, que estava deitado na cama, se recompondo de suas peripécias. Deco olhou seu semblante curumim, a pele urucum; Téo era um belo menino faceiro. Será que seria meio feiticeiro, como seu Antônio? Que as forças da natureza mexiam com ele era notório, restava saber se ele aprenderia os mistérios da natureza para poder prevê-la. Só sabia que gostava dele. E que ele passava bem. E Deco também, só olhar pra ele lhe acalmava. Foi só um susto; um susto que quase mata seus pais, que ficaram com sentimento de culpa por uns tempos e com os olhos arregalados para onde quer que ele fosse dali em diante. Deco adorava acordar cedo e despertar seus comparsas com seu vozeirão no imperativo afirmativo, convocando todos para a pescaria do dia: - Simbora! Simbora! - e lá ia ele pegar a jangada, empurrar os troncos até a beira do mar, quando começava a saltitar pelas ondas, para ganhar profundidade mínima, meter os remos da límpida água rasa e avançar verde adentro, até escurecer o tom. "Viver do mar é bom" dizia Deco, homem de poucas palavras. Ele preferia sentir; sentir o vento, a admiração por seus pais, o peixe entrando pela goela com o toque do limão, e coisas do gênero. Sentia-se parte daquilo tudo, tanto que trazia dentro de si a maresia nos pulmões; o cheiro puro que conferia seu vigor. Era um cara normal, sem excessos nem traumas, graças a uma criação amável de seus pais. Assim, vivia do mar pra casa com lacônicas saudações, enquanto Zeca era o cabra que estava onde tivesse uma roda com quatro ou cinco. No centro, é claro. Conhecia todo mundo e todo mundo lhe conhecia. Não conseguia trocar menos de umas trocentas palavras com alguém, mas também era da casa para o mar, com a indefectível passagem pelo bar na sexta. Zeca adorava o barco, especialmente o barco ao sabor do balanço das ondas. Deco se deliciava vendo as jangadas deslizando nos troncos em direção à praia, suas velas triângulo e aquela brisa toda. Certa vez se pegou rolando na areia pra sentir o que as toras do coqueiro passavam com o mar lhe envolvendo naquela girândola. Por essas diferenças é que, apesar dos pais serem amigos, não se davam muito. Em comum sobrava o gosto de ambos pela vida na vila praiana. De uns tempos para cá, entretanto, ao se recolher da noite em sua casa, ficava reflexivo. A adolescência tinha passado tranqüila, mal subiu à categoria de homem feito, deu para ficar insatisfeito. No começo era só à noite e era uma noite sim e dez não, depois as noites 'não' viraram o placar. Recluso em casa, mudava, ainda mais quando ia para o quarto dormir. As paredes não gostavam daquela conversa de miolo mole de querer outras coisas, dos pedidos recorrentes de suas pernas para ir onde pudessem chegar. Os tabiques calavam a voz e não podiam exprimir sequer a raiva que sentiam por serem mudas. Queriam mostrar pra ele, sem poder, o marzão ali do outro lado, que lhe fez homem, que lhe talhou boa gente e que lhe dava tudo que precisava. Mas o encanto marítimo já não aprisionava. Batia um cansaço físico que se estendia até a mente, que reclamava e mandava um recado libertário: pensa nas possibilidades, numa outra sina que não aquele quarto pequeno. O que se passava durante o dia não era apenas alegria, mas também muito esforço, e até a mais bela recompensa, perdia seu charme para se transmutar em monotonia. Vida boa, vida dura. Deco olhava seu pai com seus 40 anos pesando na pele, aparentando uns 10 a mais, e se defrontava consigo naquela idade. Nessas horas ele nem se lembrava do vigor de seu pai, um touro. Outros filhos da terrinha já desistiram daquela vida puxada para alimentar outros sonhos; ele não seria o primeiro nem o último. Dentro da sua cabeça tudo se embaralhava, se relativizava como uma inocente folha de papel pode sê-la simplesmente ou cismar de cortar a pele alheia. Sem os raios de sol e seu poder absoluto, sem nenhuma força externa, apenas a luz interior que cegava e desconfiava de toda claridade, transformava em exaustão, em fadiga, o até então abençoado cotidiano marítimo. O que era ímpar se metamorfoseava em previsível e toda madrugada não era suficiente para reanimá-lo totalmente, começava a amanhecer menos entusiasmado, com a convocação em tom mais tímido: - Vamo pessoal. Ele era o mesmo e a aldeia também, mas este era justamente o problema, embora não racionalizasse isso. A imutabilidade da geografia e de sua ocupação conflitava com a sua vontade de mudar de ares. Por mais bela que fosse, isso sua aldeia não podia oferecer. Na verdade, a aldeia tinha mudado para ele e ele para a aldeia. Seu organismo estava rejeitando o outro, seu complemento natural, sua terra; havia um desequilíbrio no ecossistema emocional. 'Se é' em relação a seu lugar, e seu lugar é o que são os seus. Deco se sentia fora do lugar, mas não rejeitava sua aldeia, ela era boa demais. Ele até ficaria com raiva se alguém descambasse a falar mal dela. Não permitiria. Era a vontade de sair e a de ficar arengando dentro dele. Ele precisava resolver esse dilema, mas a resposta não aparecia claramente. Tinha dito que houve confusões básicas no desenrolar dos jogos amorosos da aldeia, mas não disse que Deco passava ao largo delas. Deco preferiu ir buscar braços femininos numa aldeia próxima, com uma caboclinha graciosa chamada Helena. Gostava de estar com ela sem abrir mão das suas coisas, como ficar só, observando a noite ou jogando pelada nos sábados a tarde. No domingo pegava a bicicleta, moia até Tiburci e ficava com ela, da manhã até o fim da tarde, quando voltava a ficar solteiro. Domingo ficava casado. Tudo a seu tempo, chegaria o tempo de ficar de vez com ela. Num dia tranqüilo, um pescador se apresentou, para morar na aldeia com sua família, solicitando a devida autorização prévia de Zelão. Nela havia uma jovem com seus 19 anos e uma beleza daquelas de tirar o juízo de qualquer cristão prevenido. Quando ela chegou, os homens estavam no mar e só na volta, ao desembarcar mais tarde, é que tomaram conhecimento da nova moradora. Deco a viu em meio ao crepúsculo, numa uma imagem que jamais esqueceria. Os raios solares se refletiam nas folhas dos coqueiros, no seu cabelo longo e na sua pele ameixa. Um corpo perfeito num vestido de chita a revoar saborosamente com as lufadas do vento, de maneira delicada e sensual. Também os outros admiraram-se, inclusive Zeca, que se prontificou a se apresentar e aos demais em seguida. Deco deixou aquele calor queimá-lo por dentro de forma silenciosa, revelando apenas lascas de chamas no sorriso tímido ensaiado quando Zeca falou seu nome. Bastava fitá-la para entender que a beleza dela não era só a estátua, sua casca, era o jeito meigo que magnetizava, a graciosidade no caminhar e seu sorriso que, Deco não se dava conta, era parecido com o seu. Deco naquela noite perdeu a fome, ficou pensando naquele rosto, no corpo canela, até mais tarde. Os pais, sem adivinhar o que tinha acontecido, conversando um com o outro, demoraram um pouco a captar que Deco não estava ali. Nem sua boca, que mal mastigava algo. Percebida a alteração do filho, Da Guia perguntou como tinha sido o dia, se sucedeu algo especial, ao que Deco, só depois da mãe lhe encostar a mão no braço, lhe respondeu que não, que estava tudo bem, a pesca tinha sido boa. Ela olhou para seu Gero e os dois concluíram: a resposta era inversa; houve algo. Mas não deram muita atenção, afinal eles já tentaram antes extrair pronunciamentos a toa, ele já andava meio calado; era inquietude de jovem. Era mesmo. Após o jantar, na solidão do quarto, enfim tomou uma decisão: não iria se deixar levar por essa tsunami feminina, ele era maior que seus hormônios e iria, antes de mais nada, manter seu relacionamento com Helena. Helena ele já conhecia bem, mulher simples de boa índole, trabalhadora e ainda por cima gostava dele. Seria preciso muito mais que uma chegada impactante para ele ir atrás dela. Sabe lá quem era aquela forasteira? Enfim, a idéia era essa. 2 - Órbitas Para além dessa planície marítima, para além do leme da razão, busco a linha do horizonte, onde o azul dá o tom das águas e se misturam com o céu, como que adivinhando o intento, de voar. Tudo é mar lá onde começa o dia, a noite é também mais escura, o mistério encontra campo fértil na linha da imaginação, o desejo encontra a realidade, na celeste passagem, das águas para o ar. Na linha da imprecisão, para além do maremoto das paixões, dos peixes carnívoros, vislumbra-se mar aberto, o mar infinito, um pássaro que voa no céu; abrigo. Chamava-se Elvira e Deco demorou cinco dias para vê-la sob a claridade do dia. Chegaram segunda-feira e ela, que não acordava cedo, não colocava a cara na janela antes deles saírem para pescar. Dois dias depois, ele a viu de novo passeando na praia com seu irmão menorzinho quando chegava da pescaria. Novamente, a tarde caia. No sábado sempre tinha um encontro da comunidade com a bebida, a comida, o batuque de ciranda e o samba-de-roda. Naquele sábado, logo cedo, ao sair de casa para comprar umas especiarias em Taquara para a confraternização, atravessou a vila e se deparou com ela ainda montando na bicicleta e dando suas primeiras pedaladas. Foi só continuar sua tocada para se emparelharem e ele cumprimentar sem graça: - Oi... - Bom dia. - Vai pra Taquara? - Vou. - Também tô indo... No que ela comentou mais a vontade: - Até parece que você veio me pegar pra ir lá... Essa forma descontraída dela se expressar pegou-o de surpresa, parecia uma inversão de papéis: a neófita se comportava como se fosse anfitriã e ele, peixe que era, se sentindo fora d'água. Era o jeito dele mesmo, meio tímido, mas, por um instante, se sentiu matuto, enclausurado naquele fim de mundo. Ele que deveria ser o cicerone, se sentiu desconfortável em casa só porque apareceu um rabo de saia mais bonitinho... melhor dizendo, bonitinho não: bonitona, colorida, iluminada... Mas se morasse num lugar maior teriam outras tantas belas, de maneira que estaria mais acostumado com pernas torneadas e rostos perfeitos como o dela e não ficaria cheio de perna, nem sem saber onde enfiar o rosto. Mas a surpresa foi recíproca, ainda que menor para ela. Olhando de fora, alguém poderia dizer que o encontro havia sido obra de um cúpido desavisado, sem saber do plano de Deco, ou que um coisa ruim tinha marcado aquele encontro pra atazanar o juízo dele. Mas que nada, esses serezinhos ardilosos da imaginação não tinham nada a ver com isso, era coisa da vida, essas coincidências que de tão arrumadinhas parecem arrumadas. - Pois é... mas é que meus pais me pediram pra comprar umas coisinhas pra o encontro de hoje. Aliás, você está sabendo do encontro de mais tarde, né? - Estou, e é pelo mesmo motivo que estou aqui também. Quebrado o gelo inicial, Deco voltou a ser praticamente o mesmo Deco de sempre, com uma pitadinha de nervoso, nada perceptível a olho nu para alguém que visse os dois ali, mas não para ela, que sabia ser a razão do friozinho restante na barriga dele. Conversavam sobre amenidades no calor que aumentava à medida que passavam as horas e a quantidade de pedaladas, e ele percebeu quando começaram a brotar e escorrer as primeiras gotas e logo depois os primeiros fios de água salgada que brotavam da fonte epiderme, mais particularmente da fronte, descendo pelo rosto através de uma trilha sinuosa que ganhava velocidade no colo e desaguava no decote, onde terminava o rastro e começava o vestido vermelho decotado e a sugestão. - Tem namorada? E tome susto. De repente ela pergunta o que não deveria, afinal eles estavam apenas começando a se conhecer e ela já solta a bomba g. E ela teria? - Tenho. E você? - Não. Tive até pouco tempo. Ficou pra trás. Ela está disponível, foi a primeira coisa que veio à cabeça de Deco. A segunda foi que era só uma questão de tempo pra Zeca cair matando. Voltou à cabeça dele o fato de ter ficado envergonhado na primeira abordagem que fizera, enquanto Zeca não iria vacilar, tinha mandinga no bolso; autoconfiança sobrando. Tinha gosto pelo ato de abater, derramar a novilha na cama e se fartar até que mais uma viesse. Deco tinha Helena e lhe respeitava.... Mas não podia negar que a nova migrante conseguia atrair seu olhar mais lascivo. Sabia, mas queria evitar essa coisa primitiva, ancestral, gostosa e incontrolável que não leva a nada, ainda que leve a lugares bem conhecidos. Mas não era só aquele córrego infernal de suor que lhe perturbava, eram também seus olhos, suas íris creme arrodeadas da pele seda morena clara, avermelhada pelo sol, que formavam um conjunto perfeito com aquele lábio largo cor de cereja. Era o ar dela que encantava, sapeca e santo, o semblante brejeiro perfeitamente desenhado e pintado por seus pais, que fazia lembrar que a beleza de Helena não o instigava tanto. Mas ele estava determinado, não queria só a beleza, queria ver a pessoa tão bem oculta ali naquela carne tão desamparada. Chegaram no mercadinho, fizeram as compras juntos, pagaram e seguiram de volta para a aldeia, sempre conversando e ela contando como tinha sido sua simples vida até então. Simples vida de uma filha de um pescador como ele que só almejava um cantinho sossegado pra tocar a vida, fazer sua comida, suas rendas e brincar pela praia. Deco constatou que os sonhos dela não eram grandiosos, como os dele, e que já tinha tudo que ela buscava ali, na vila dos guejos. Deco, por seu lado, também contou um pouco de sua vidinha marítima comum, da história da aldeia e de Zelão, que ela já tinha ouvido falar. Ressaltou que a vida por ali era tranqüila e sempre havia peixe suficiente para ninguém passar necessidade. Chegando na aldeia veio a despedida emendada com a inevitável menção ao encontro de logo mais: - Te vejo mais tarde então. Até lá. - Até mais tarde. Lá pelas quatro, Zeca começou a montar a fogueira com Lito. Mais um pouco e Zeca avistou Deco se aproximando pra ajudá-los. Quando Deco chegou, arrumando os galhos Zeca comentou: - E aí Deco, vai mudar de opinião? Um dia durante a semana, enquanto estavam pescando, Zeca comentou com os outros no barco sobre a sereia que havia chegado na aldeia. Imediatamente veio à cabeça de Deco o efeito destruidor do feitiço do canto da sereia, e emendou: - É. É muita formosura pra um bando de brutamontes como nós. Zeca nem mudou o foco do olhar nos peixes que estava tratando e respondeu: - Mas também não tem nenhum feioso por aqui. Ela veio pra cá pra morar aqui e somos nós os nativos, seus vizinhos. Eu vou receber ela muito bem, se é que vocês me entendem... Cosme e Lito deram uma risadinha. Deco continuou no mano a mano com seu interlocutor: - Não sei Zeca, mas dessa vez tenho a sensação que tu vai quebrar a cara. Ela me pareceu um tipo de princesa. - Não tem princesa que não goste de homem. Gosta do mesmo jeito e acaba cedendo do mesmo jeito. Ela pode ser uma princesa, mas dos pescadores, aliás, aqui na vila dos guejos eu sou o príncipe. - disse, abrindo uma gargalhada - Até painho achou ela uma gracinha, me disse que eu bem que podia me estabelecer com ela. - Então vá em frente. O terreno tá preparado. Boa sorte. - Encerrou Deco, sério. O diálogo só explicitara os pontos de vista distintos e os argumentos recorrentes dos dois guejos, com a variante que a temática era especificamente a noviça. Então, Deco se pronunciou: - Foi só uma impressão. Continuo pensando da mesma forma, mas pode ser que eu esteja enganado. - Ah, tá bom. Mas devo dizer que me atropelei, na verdade estou pensando que ela pode ser mesmo a eleita. Não sei, ainda é cedo, mas é bem possível, pois gostei muito dela e meu pai aprovou. - Bom. Tomara que vá em frente sua intenção. Bom pra a Aldeia, né Lito? - É Deco. Vai ser meio esquisito, porque todo mundo tá acostumado com você solto por aí. Mas tudo bem, desde que venha jogar uma bolinha com a gente de vez em quando, afinal, um dia todo mundo tem que se ajeitar. Com essa Deco não concordou. Não disse nada, mas por dentro tinha convicção que nem todo mundo se emenda com o passar dos anos. ' Pau que nasce torto...' Pensou, sem se dar conta que o ditado viesse à mente por não querer aceitar a afirmação de Zeca e por achar que Elvira merecia algo melhor. Era toda uma vida de vida boa contra uma afirmação de boas intenções ao vento de um boa-vida. Na hora da festa as pessoas foram chegando, se acomodando, primeiro os velhos moradores, preparando a recepção aos novos, e depois os recém incorporados à aldeia. Zeca tinha separado um cantinho perto dele e de seus pais para eles, enquanto Deco, de propósito situado do outro lado, de vez em quando dava uma olhada pra ver o que acontecia. E as coisas aconteceram como se esperava: Zeca cercou Elvira, começou a galanteá-la enquanto as pessoas se distraiam com o samba-de-roda. O que não estava previsto eram uns olhares de relance que Elvira lançava as vezes para Deco, quando seu rival desviava o olhar dela. Deco, ao mesmo tempo, via que ela não cortava as asas de Zeca, que, por seu turno, soltava penas feito um pavão. Naquele momento a cabeça de Deco foi tomada de assalto por um bombardeio de dúvidas: Essa moça quer algo comigo? Quem era ela? O que queria ela? Estaria só brincando? Será que os sorrisos para Zeca são só para não desagradar os chefes locais, ou são pra valer? Era um olhar de sereia, mas uma sereia ainda sem cantar, escolhendo uma música, escolhendo um tom. Estava na areia apenas mostrando sua exuberância, as escamas brilhando no meio da noite enluarada que avançava, exibindo sua delicadeza como uma gueixa ainda sem seu protetor. No outro dia houve a costumeira partida de futebol, após a qual Deco subiu num coqueiro pra pegar uns cocos para ele e pros parceiros pernas de pau. Distribuiu os cocos, tomou o seu, sobraram alguns que levaria mais tarde para casa, e foi tomar banho de mar com Lito e Zinho. Depois do banho se despediram, sendo que Deco, não à toa, resolveu ficar um pouco mais na praia, para que a brisa ajudasse a arejar e assentar as idéias. Ele bem que pensou em compartilhar suas dúvidas com seu conselheiro secreto, o mar, mas naquele momento, o relaxamento depois do esforço físico era maior. Era tiro e queda, quando precisava relaxar vinha encarar o mar e quase desmaiava. O resultado foi o de sempre, aquele vento todo massageando, alisando o cabelo molhado, sempre derrotava Deco: mil a zero e ele se aquietava encostado no coqueiro, os dedos esfarelando a areia fina sem conseguir pensar em mais nada. Nada afligia o cérebro esfarelado em mil pedaços, descomprimido em moléculas soltas pegando ondas em completa sintonia com o oceano. Ele adorava se deixar levar pela força entorpecente natural da maior pintura verde já desenhada. - Oi. Levantou os olhos e Elvira estava à sua frente. Dois passes de mágica: num piscar de olhos ela aparece, no outro sua presença de repente reintegrou os pensamentos há pouco desintegrados pela brisa. Refeito, Deco continuou o papo normal, até um certo ponto: - Oi. Fazendo seu passeio matinal... - É, dando uma voltinha. - E aí, gostou da festa ontem? - É, foi boa, vocês sabem se divertir. - Notei que gostou. Cantou, dançou, conversou bastante... - Gostei. E você, não gostou? Sentindo a pontada de provocação, falou: - Gostei, mas ontem não estava muito disposto. - Não parecia, lhe achei arrumado, bonito... Aí Deco se ajeitou na poltrona de areia e raiz de coqueiro, olhou de lado, arisco sem querer transparecer, se bem que ele já sabia que suas caras e bocas não enrolavam ela, que entendia aquele teatro todo, das cenas e falas de cada um. Conclusão: ela não tinha a idade que tinha, mesmo tendo. A afirmação dela, claro, foi o ponto de inflexão, aí a conversa ganhou corpo... - Obrigado. Você também estava bonita, como sempre, aliás. - Brigado... - Mas pelo que vi, você também achou Zeca bem simpático... - O filho de Zelão? Sim, é bem simpático... vocês são todos simpáticos... Deco prestava atenção nas palavras que ela usava, na entonação e em suas pernas grossas. Era uma entonação charmosa, de quem sabe o que quer, bem como as pernas, se esfregando, de leve, uma na outra e os pés na areia. Só faltava saber justamente o que ela queria. - Tenho que ir, minha mãe me espera preu ajudar ela com a janta. A gente podia se encontrar mais tarde pra continuar a conversa, ver as estrelas... Ao final deu uma piscadela de parar o trânsito, se trânsito houvesse. Deco, novamente perdido, tentando compreender a perdição a que estava cedendo, tentou processar o convite de imediato, esboçar uma reação fria, mas não teve jeito, veio o vacilo na forma de um sorriso indeciso e o gaguejo do guejo: - É... b bem... acho que sim.... o tempo tá bom, vai ficar bonita a noite hoje. A gente pode se ver mais tarde. No campo? - Tá, no campo. Chau. - Até mais. Aceitou intrigado. Tinha algo errado nessa história que se esboçava. Mal começara e estava mal contada, isentando aí o contador do mal, eventual, de não contá-la primorosamente. Tratava-se dele se tratar do mal que começava a lhe envenenar, tomar aquilo que lhe tomava e deter a avanço daquela seiva que podia ser boa pra outro organismo, mas não para o seu. O seu racional não gostava nada dos impulsos de seu outro, mas esse estava na dianteira e mandava na articulação entre os maxilares inferior e superior e nos músculos da boca. Ela sorriu também, um sorriso doce, fatia de uma porção maior, e seguiu amassando a areia suavemente com os pequenos pés, deixando seu rastro: dúvidas. Dúvidas que só dez dias depois seriam tiradas. Naquela noite se encontraram, trocaram palavras, gracejos, cheiros até chegar aos olhares fatais, o primeiro beijo, tímido, depois o beijo molhado e os toques trocados. Quarta da outra semana, Deco foi à casa de seu Duda para resolver uns problemas do barco e Mariazinha no meio de uma prosa disse que avistara Zeca e Elvira juntos, voltando da praia à noitinha. Deco ouviu e comentou lacônico: - Foi?! Já estava pensando em terminar com Helena quando voltou a se dar conta que precisava enxergar o furo na canoa que estava embarcando. Não havia mais surpresa, ele tinha noção que isso podia acontecer, embora não assim, tão rápido e dessa forma. Sentou e chorou ali mesmo na frente de Mariazinha, que assistia àquele espetáculo inusitado em pé do outro lado da mesa. Ela compreendeu e se solidarizou, ficando onde estava, imobilizada, se apoiando na cadeira, como que contagiada pela fraqueza do colega de infância da comunidade. Ele não sabia se as lágrimas eram por Elvira ou por ele mesmo, que pedia desculpas copiosamente ao outro próprio, só agora reconhecendo o caminho equivocado que tomara. Não podia ser o mesmo dela, uma trilha que levava a um despenhadeiro. Isso que dá deixar-se seduzir por uma sereia que imaginava princesa; que não deixava de ser. No outro dia Deco foi tomado por um estranhamento. 'O que aconteceu?' Não se reconheceu. Seu comportamento perante a estranha por todo esse tempo e principalmente a coroação ontem na sala da casa de seu Duda... Tinha determinado que não se deixaria levar e acabou como um cãozinho sem dono. Admirou-se com a pequenez da situação, querer uma pessoa bela pela beleza? Só por isso? Sentiu-se um banana, um autêntico banana que não era. Afinal um pouco de luz. 'Afinal o que faz um homem se apaixonar?' Reconheceu que a circunstância era apropriada. Era uma armadilha do tinhoso: uma bonitona chega, os dois se encontram a sós, ela se posiciona bem perto do ouvido do sujeito e fala suavemente duas ou três palavras. Quem não morderia a isca? Mas e a determinação? E a namorada? Precisava conhecer o peixe pra saber se valia o pescado. O problema estava todo montado, todas as peças, faltava a conclusão. Analisando-se criticamente teve que admitir que o desenlace do dia anterior decorria de uma combinação de fatores: 1- Não tinha se apegado muito a Helena, 2- A danada da novata era de lascar mesmo, e 3- Não suportava mais ver Zeca ficar com as mulheres bonitas que apareciam, só pra se aproveitar delas. Ah! Como fora pequeno! Agora conseguia abrir os olhos para os fatos e se libertar do doce veneno leso da vaidade de ter a mais bela, de salvar ela do lobo mau. Pensou alto: - Que mais bela? Que lobo mau? Devem ter tantas outras por aí e eu aqui nesse fim de mundo... Foi bom ter acontecido isso. Concluiu que a moral da estória é que estava sem moral e que sua pequenez estava ligada à sua fixação à aldeia. Precisava conhecer mais pessoas, alargar os horizontes, como, aliás, já estivera pensando anteriormente. Precisava sair dali. Então o paraíso se fez terra, lugarzinho picroto onde um burro empaca. Tchau possibilidades pessoais e profissionais, tchau crescimento. Ia colocar a questão pros pais. Decidiu que não terminaria com Helena, iria propor a ela que deixassem como estava pra ver como seus sentimentos reagiriam, seria bom submetê-los a uma prova de fogo; a da distância. Pensou já sabendo que provavelmente o seu não resistiria, sabia que seu apego era pelo corpo, pela necessidade do corpo que poderia ser saciada com outras mulheres que fatalmente apareceriam. Aí o Deco pacato começou a matutar para onde ir. Não sabia se seria para passar um tempo ou se era definitivo; isso veria depois. Naquela época em todo canto se ouvia falar de novas oportunidades em São Paulo e no Rio de Janeiro, que o país estava crescendo e precisava de trabalhadores pra tocar o progresso, ou, em outras palavras musicais: para carregar o piano. Ficar dependeria dele se firmar e, quem sabe, se encantar com alguma das praças, senão voltava e pronto, estaria novamente perto dos seus e de sua aldeia querida. Aquilo estava atiçando de um jeito que já no domingo à tarde interrompeu a audição do velho programa de rádio que seus pais sempre prestigiavam, para comunicar a decisão. - Pai, mãe, eu tive pensando... eu tô querendo viajar, ir tentar trabalhar noutro canto, pra conhecer outros lugares, ganhar um pouco de dinheiro. Os pais, como esperado, ficaram espantados com a declaração, de forma que a primeira pergunta que seu Gero fez saiu como se alguém batesse nas suas costas e ele vomitasse: - Como é? Breve pausa para absorção da mensagem. Tempo para confirmar com seus botões que bem que desconfiava que o comportamento do filho estava meio estranho, também, sem sair do quarto, ouvindo conselhos das paredes, fica difícil. Depois do intervalo, continuou: - Mas você mesmo diz de vez em quando que gosta da vida aqui, de ser pescador, que mesmo tendo pouco, tem tudo que precisa! Porquê? Enquanto ele fazia a pergunta que já devia ter saído antes se tivesse insistido numa daquelas vezes em que ele se contentou com a resposta rápida dele sobre seu jeito esquisito, dona Da Guia virou a cabeça em direção à janela com um olhar compenetrado, fixo e ao observar o mar viu o desejo içando vela pelo marzão afora sob a lua cheia. - Porque isso de repente, agora? - Andava pensando. Não disse pra vocês até agora porque não tinha muita vontade, mas a vontade aumentou, agora quero ir. Seu Gero olhava nos olhos do filho querendo extrair toda verdade do seu interior, ver de onde vinha aquela vontade de se mudar, aquela contradição no seu menino que ele tanto conhecia. Encarando ele, foi se lembrando dele brincando de pega-pega, esconde-esconde e pula corda com os outros guejinhos, indo para a escola e crescendo sob seu olhar atento. Alguma coisa deve ter acontecido, será que teria brigado com alguém? - Você se chateou com alguém? Alguém armou alguma coisa contigo? Ignorando o único que estava armando pra cima dele, o destino, Deco contemplava seu pai na cadeira de balanço, sempre sério, e a mãe na beira da janela, as duas pessoas que mais amava, ainda dispostas, mas candidatas irremediáveis a entrar, em breve, na curva descendente da vida. Havia tomado a decisão na hora certa, teria tempo de voltar. Respondeu: - Não, não, de jeito nenhum, ninguém fez nada comigo. É coisa minha mesmo. Da Guia voltou novamente o olhar pro seu marido e logo depois pra seu filho: - Tá meu filho. Se é isso que você quer... A gente te conhece e sabe que você tem a cabeça no lugar. Queria que você ficasse, que ficasse aqui a vida toda. Nós não vamos mais sair daqui, a não ser pro hospital e um dia pro cemitério. A gente já criou raiz nesse chão d'água, nesse pedacinho de praia, que é a cara da gente. Você tem sua vida. Se for, você pode voltar... quem sabe você volta... nós ficamos por aqui, né Gero? E o pai com uma face meio desalentada: - É Guia. Percebendo a tristeza dos pais, Deco emendou imediatamente: - Eu volto. Ficou sabendo ali que era por isso, também, que não se resolvera antes. O tempo todo esse fator estava guardado no bolso esquerdo da camisa feita pela mãe, mas só agora se revelara. Colado ao coração e não se apercebera. Esquecera porque isso era algo tão natural, que sabia que seria apoiado no que quisesse fazer. Não era só o seu eu que queria ficar contra o seu eu que queria partir, além disso tinham os seus que lhe imantava, que não lhe deixava se afastar, mesmo querendo. O magnetismo do carinho meio distante de seus pais. Tinha também o magneto das águas... sua energia. Tudo isso continuava existindo, mas ele se tornara mais forte, o suficiente para se desprender, para vislumbrar a possibilidade de estar longe deles sem essa idéia incomodar. Uma ponta de dor batia, mas precisava ir. - Olha Deco, vamos ver se as economias que a gente fez dá pra lhe ajudar. Vamos ver quanto custa isso, você sabe que a gente não tem muito. - Eu trago na volta o que você me der. Outra pausa. - Olha, aquilo é outro mundo, viu, é perigoso, você vai precisar ter muito cuidado... E aí o sermão se prolongou um pouco. Ele falava para seu menino de cinco anos de idade, mas, ainda que Deco nunca tivesse passado por nada parecido, estava preparado, não era mais ingênuo. Um pouco ainda, mas andou perdendo porções significativas pelo caminho. Conversa encerrada, seu Gero na verdade não se deu por vencido. Depois de acabar concordando meio forçado com a pretensão do filho, foi atrás de Zelão pra lhe dizer dos planos de Deco e arranjar um aliado pra demovê-lo de seus arroubos. Zelão concordou que era preciso conversar com ele, esclarecer que ele era importante na comunidade, que o lugar dele era ali, que faria o que fosse preciso pra resolver qualquer problema que estivesse surgindo, pois ele o conhecia e sabia que era um cabra dos bons. Combinaram que, logo amanhã, antes de ir para o mar, seu Gero o chamaria num canto e diria que Zelão queria falar com ele em sua casa. Assim foi feito, e no outro dia Deco foi falar com Zelão por indicação do pai. O chefe local fez todo o discurso acolhedor, procurando escolher as melhores palavras para dissuadi-lo de suas vontades. Fazia isso em consideração ao amigo, mas fazia também, e sobretudo, pela aldeia que tanto prezava, pela unidade da comunidade. Fez mas não adiantou. Deco ouviu toda falação, reconheceu nela o esforço do pai para mantê-lo próximo, a verdade no texto improvisado da pessoa que, depois de seus pais, ele mais respeitava, aliás, como todos os demais aldeões, graças à retidão daquele senhor vigoroso. Agradeceu muito a atenção, disse que tomar aquela decisão foi difícil, justamente porque se sentia querido, mas que já havia pensado o suficiente e queria partir. Na cabeça de Deco estava tudo resolvido, tinha ponderado os fatores, descoberto a causa de sua inquietação e pronto. Os eventos mais recentes foram só a gota d'água, ele já estava carregando a arma anteriormente, preparando terreno. Deco ia atrás de novos horizontes. Embora fosse pobre, o fator econômico não era o mais importante, era um entre tantos. Queria expandir horizontes, constatou que seu universo era pequeno, que orbitava em torno de algumas pessoas e que queria ser ele próprio o centro. Julgou sua maturidade pelo tamanho de sua morada e do círculo de amizades. E mais, tinha crescido sem desafios, sua vida até então tinha sido fácil. O homem nunca está satisfeito. Quando não tem problema, cria. Sua condição privilegiada passou de privilégio a problema. O homem precisa de desafios para crescer? Teve carinho familiar, nunca passou necessidade, tinha responsabilidade, tinha sua jangada 'estrela do mar', tinha sua vida, tinha namorada, o mar, o céu; enfim. Deco estava se achando verde; mas era? Era como se precisasse provar algo a ele próprio. Não bastavam os conselhos dos pais, de seu Antônio e de Zelão? Precisaria de traumas para crescer? Precisaria vivenciar situações? Não basta o diálogo e ser parte efetiva de um pequeno grupo social? Nas cidades grandes mesmo, onde não há tanto diálogo, alguns dizem que bastam os livros, eles transmitem as experiências que precisamos. Por outro lado, Deco não teve desilusão amorosa, mas sim conscientização amorosa. Até esse episódio serviu para mostrar que ele não precisaria sair dali para viver experiências adicionais e compreender as sutilezas dos jogos humanos e emocionais. Mas ele não percebeu isso. Na frente dele. Seria a ilusão mais forte? Na hora em que bateu o cansaço, as luzes da cidade teriam ofuscado a claridade do sol? A grandiosidade dos grandes aglomerados superaram a imensidão do mar? Enfim, isso tudo são apenas especulações aleatórias. Havia perdido, pelo meio do caminho, a intensidade e queria recuperá-la, procurá-la, encontrá-la. Deco se resolveu e a estória continua, a minha, a sua e a do nosso cidadão guejo. Depois Gero foi verificar com os amigos o preço da aventura e viu que mal dava pra ida, mas Deco também tinha uns trocados guardados e completava a passagem. Contactou-se uma pessoa conhecida em São Paulo que pudesse recepcioná-lo e as coisas estavam encaminhadas. Deco iria para a grande cidade grande em alguns dias. Deu tempo de se despedir de todo mundo, até de seus grandes amigos; o oceano e a tardinha. Com os comparsas ele dialogou, conversaram um bocado até o adeus final. Com o garoto salgado e a garota bonita, o que houve foi um pequeno monólogo de cada um, lhe alertando para os perigos da empreitada e dando conselhos. Deco ouviu cada palavra. 3 - O macro cosmo Sou passageiro, caminho sinuoso, avisto paisagens adiante, ganho e perco, mas sigo sempre em frente; sou vitorioso e perdedor. Passo, cada dia aos poucos, pisco o olho e sigo, enquanto penso vagamente, vagaroso, foi-se um dia e virá outro, passageiro. Passo a passo, o que me resta senão o caminho, o sabor, ser único, uma vez só, sem chance de errar e viver errando. Durante a viagem foi testemunhando a transformação da paisagem, do clima, do ar. Saiu do calor constante para um tempo indefinido, que não sabe o que é, o que quer, se quer esfriar ou esquentar, se quer molhar ou ficar seco. Por dentro, o estômago acompanhava a falta de definição da natureza e a angústia da mente, sem poupar essa, comentando com o intestino que aquela que devia saber das coisas na verdade não estava sabendo de nada, estava era confusa das idéias e sobrava pra eles. Apenas o resultado concreto dessa discussão interna era claro: o frio na barriga. A estrada ia sendo engolida rapidamente pelo ônibus e mal árvores, canteiros e cidadezinhas iam ficando para trás e já apareciam outras praças, casas e arbustos. As paradas eram breves nuns buracos perdidos a esmo sem um mínimo de consideração. Chamar aquilo de prosaico seria elogio. A comida mal servida, as paredes velhas e mal conservadas, os ventiladores entortados e enferrujados. O que incomodava Deco não era a pobreza das instalações e das pessoas, afinal, era sua realidade, mas a decadência, o abandono estampado nos azulejos sujos do banheiro, o descuido nas cadeiras e mesas velhas quebradas, e, sobretudo, o desdém no tratamento para com as pessoas. Os funcionários se dirigiam aos clientes como se não lidassem com pessoas e como se eles próprios não fossem gente. Onde foi parar a alma dessas pessoas? Deco se consolou imaginando que pelo menos se tratava de um transtorno, como ele, passageiro. A primeira impressão ao chegar foi o frio, fazia uns graus baixos demais e um vento congelante que chegava até o esqueleto do sujeito no crepúsculo. Nem estava tão frio assim, mas para quem veio onde faz derrete graus, qualquer degrau a menos é sorvete. O fim de tarde tinha marcação com Deco, eles sempre se encontravam nos momentos importantes de sua vida, já havia laços. Fora criado com ele e agora que estava longe, se tocou. Contemplava a cena diferente, mas, no fundo, só os figurantes mudavam: um monte de prédios crescendo, ao invés de mato, ganhavam vulto com suas alturas demasiadas, tentando encobrir o céu avermelhado por detrás No fundo, ele estava lá, menos claro, mais espesso, só precisaria arrumar um lugar para ver melhor, deveria ter um canto mais aplainado e um banco para apreciar, passando esse monte de edifício. Mas naquele primeiro momento não viu quase nada. Desceu do ônibus sabendo quem encontrar e onde encontrar. Marcaram na bateria de orelhões, dentro da rodoviária. Seu contato e hospedador seria João Pedro, filho de um amigo de seu pai, que foi atrás dele para viabilizar da maneira mais segura a empreitada de se aventurar no desconhecido mundo do sul. E lá estava ele, o cara da foto, ao vivo e monocromático: seu tom predominantemente castanho, levemente escurecido, denunciava a origem mestiça e nordestina. De cara reconheceu nele um irmão de raça e objetivo: - É você o Deco, né? Como vai? E aí como é que foi de viagem? Ele havia chegado três anos antes sem ninguém para recebê-lo. Filho de pescador, nunca se afeiçoara ao ofício, fazia tempo que matutava sobre a possibilidade de sair da sua vila. Esse tinha objetivo, não era como Deco, que queria isso pra ver se gostava, ele já sabia que ia gostar porque não gostava da vida sem graça de pescador. De novo Deco se enganara, pois não era porquê não gostava do mar que não era bom sujeito. Foi prestativo sempre, lhe acolhendo e encaminhando para endereços que poderiam oferecer emprego. Talvez ele também pensasse que Deco tinha a mesma determinação, mas de qualquer jeito estava feliz por ter mais alguém de sua região para compartilhar da grande aventura na cidade grande. Saiu da rodoviária e quando botou o pé na rua deu uma parada para dar uma panorâmica sobre a cidade. Se perguntou se iria absorver o novo, que certamente lhe absorveria. Agora ele era o migrante, o forasteiro na terra alheia. Nas suas primeiras andanças pelas ruas do centro, Deco pôde contemplar as construções imponentes que lhe empregariam, pensando na incrível capacidade humana de erguer os tantos imensos edifícios e levantar uma cidade daquele tamanho. Viu como sua aldeia era realmente pequena e simples, que poderia melhorar, crescer e oferecer mais oportunidades aos nativos. Lá os moradores se contentavam demais com o que a natureza dava, sem tocar nela, nem se tocar que poderiam melhorar bem mais as coisas Um dia, quando voltasse, levaria essa idéia. Era meados de março de 1973. No primeiro dia foi cuidar de documentação. Chegou só com o registro geral e uns poucos cruzeiros no bolso. João deixou ele na frente da repartição onde começaria uma pequena peregrinação para tirar a documentação necessária: CPF, INSS e PIS. Esperou um monte de tempo em filas para basicamente pegar uns números. Agora, efetivamente, era mais um na multidão, fazia parte de um organismo complexo; gigante. Lá na aldeia era apenas Deco, um alguém no meio do nada, apenas uma pessoa comum. Quem repararia na sua existência além de seus pais... Helena... Enfim, tirando a comunidade dos guejos, quem o notaria? Por um momento se sentiu importante, integrando uma cidade de verdade. Quando saiu do posto, por sua vez, viu-se diluído no meio de uma sopa de números. Aquela multidão de trabalhadores espalhados, números cruzando com outros sem se falar. Franziu a testa: estranha essa cidade em que as pessoas passam e não se cumprimentam. Mas logo viu que isso era fora de cogitação, afinal ficariam sem fala em poucos minutos. Era mais um número, grande por sinal, no meio daquele mar de gente solto pelas ruas. Havia apenas agregado alguns algarismos à sua identidade, o que definitivamente não era nada; tudo bem. O que importava era mais números na sua carteira e para isso aquela chateação toda era necessária. Não foi difícil arrumar emprego. Bastou visitar algumas obras com João Pedro, previamente sondadas por ele a respeito da carência de mão-de-obra, e já no segundo dia estava empregado como servente de pedreiro, passando a integrar o exército de formiguinhas a correr de um lado para outro pra expandir a cidade que já era grande. Logo nos primeiros dias aproveitava a hora do almoço para dissipar a excitação e ir conhecer a cidade que habitava, circulando pelos arredores do prédio em que trabalhava, enquanto os outros tiravam seu cochilo. Pegando o hábito, andava e nunca terminava o caminho, era impressionante a grandiosidade das coisas. Prédios, lojas, farmácias, ruas, avenidas, restaurantes, bares; tudo que ouvira falar se concretizava ali diante de seus olhos, e era até mais do que diziam, pois nunca levava muita fé nas descrições aumentativas das pessoas, achava que era história de pescador; que estavam aumentando o tamanho do peixe. Mas não, Deco tinha que dar o braço a torcer, tudo era muito grande mesmo diante de seus pequenos olhos de aldeão. A primeira noite foi a primeira, de duas, em claro. Já podia ser contratado para arrumar as coisas na casa de João, pois foi fácil decorar a disposição dos parcos objetos da sala. Na pequena estante de cedro: a bíblia, o rádio, uma santinha de gesso, uma foto do casal encarando o observador, um ventilador e três anjinhos de pedra. No canto um abajur da década passada e na parede um quadro de uma praia. O problema é que lá pelas duas da manhã ele já identificava e classificava os rachões da parede em bebês; os menorezinhos, os do tipo 'promessa'; se tinham uma boa perspectiva, os rapazes; quando já estavam crescidinhos e os 'jumbos'; aqueles que clamavam por uma reforma imediata. E ele tentando se acomodar no sofá com as canelas para fora. Daria tudo pela sua redinha velha. O jeito era se encolher ou ficar olhando o teto com o joelho demarcando o limite entre o fofo, o nada e o resto da perna despencada. À santinha pedia que lhe iluminasse, mas não naquela hora. Queria somente um peso nas pálpebras que lhe fechasse a janela desse desconhecido que insistia em se mostrar. Queria apenas conseguir esquecer um pouco que estava sendo bem recebido num cômodo incômodo, e, quiçá, se sentisse envolvido na sua rede pela brisa da aldeia. A novidade era boa, mas cobrava seu preço: "uma hora eu me acostumo...". Na terceira, vencido pelo cansado horas depois de ter deitado, capotou. Dormiu como uma pedra e sonhou que estava pescando. Dia bom, mar agitado, terminada a pescaria foi recebido na beira mar por Elvira e dois meninos da Aldeia, Téo e Bia, que eram seus filhos. Elvira veio com um sorriso largo, deu um beijo estalado na sua boca perguntou se a pescaria foi boa. Então foram caminhando até a casa de Miro e Tamires, uma das novas da aldeia; deles no sonho. Entrando viu os pais sentados esperando na sala, foi até o quarto; que estava sem parede lateral. Enquanto ele achava esquisito, Elvira, que o acompanhava e achava tudo muito normal, foi sentando na cama pra mostrar umas rendas que estava terminando. Vistas as peças, Deco voltou para a sala e não encontrou mais os pais. Foi até a porta de entrada da casa, olhou para o lado da casa deles, sem vê-los. Aí ouviu um grito, virou a cabeça e avistou Zelão chamando: "Deco, Deco, vem cá!" Acordou de repente se levantando automaticamente, ainda era de madrugada, mas já faltavam poucos minutos para sua hora. A hora do batente. No primeiro emprego Deco ficou seis meses, tinha pego o prédio em estágio avançado. Como não deu para se enturmar com o pessoal, concentrou-se em se esmerar no serviço. Pegava as 7:30 e, para isso, saia às 6 horas de casa. O serviço precisava da disposição de seus músculos desenvolvidos naturalmente nas redes de pesca, entalhados em muitas remadas e delineados no corte de coco. Para completar, Deco trazia alguma experiência na construção civil, adquirida nos mutirões para levantar as casas dos novos casais formados na aldeia. Já seus estudos, pouco valiam no emaranhado de tapumes, ferro e cimento. Subindo e descendo as rampinhas improvisadas de tábua entre desníveis com seu carrinho de mão cheio de materiais, sua rotina era auxiliar os outros na subida das paredes, na implantação de materiais elétricos, etc. Com pouco tempo a mão foi ficando calejada, mais do que já era. Era apenas para ajudar o pedreiro, mas de vez em quando ele passava e dava um retoque num acabamento de parede, numa soleira de porta, de maneira que suas habilidades foram ficando explicitas demais para o mestre de obra não notar. Aí, esse começou a testá-lo nos serviços de pedreiro propriamente dito. Conseguiu a promoção para a próxima obra. Há poucos dias de se mudar para a nova obra, fazendo sua costumeira caminhada no intervalo do almoço por aquela área, chegara à Paulista num trecho diferente. Se aproximou de uma banca de revista numa esquina onde havia zilhões de jornais e revistas coloridas e pequenos artefatos; micro demonstrações de afeto para dar a filho, mulher ou amigo. Tão grande era a banca que dentro tinham quatro pessoas escolhendo o que comprar e ainda cabiam mais umas quatro. Do lado de fora dois pares de senhores, dois de cada lado, liam as manchetes de alguns diários locais e nacionais. Um deles era mais velho, pitava um cigarro com as mãos enfiadas no bolso da calça folgada. Ao ver que Deco lhe olhava, encarou Deco por instantes e voltou a ler as manchetes indiferente ao olhar do outro e sem lhe dar um oi. Deco então foi ver o que ele estava lendo e era sobre uma barreira que caíra, matando uma família inteira de cinco pessoas. Ao lado outra manchete falava de um ônibus que derrapou numa curva e caiu numa ribanceira no interior, matando dez e ferindo vinte, e mais embaixo, com menor destaque o jornal denunciava um prefeito suspeito de desviar recursos de escolas públicas. Tudo no dia anterior. Nem um músculo se mexia na face do velho, só os olhos piscavam. Deco ficou espantado com tanta tragédia e com a passividade do velho ao ler as informações, ele já tivera notícia de outros acidentes, mas sempre ficava penalizado pelos envolvidos e seus familiares. Perto dali se esboçava um tumulto, alguém gritando, outro rosnando, mas como tinha muita gente, não dava pra ver nada muito bem. Logo um vulto menor passou por ele e entrou na esquina numa velocidade impressionante. Deu para ver que era uma criança que driblara os transeuntes e desaparecera como um relâmpago pela rua secundária que fazia esquina com a Paulista. Segundos depois apareceram três cavaleiros sem estribeiras esbarrando no povo e uivando: "PEGA LADRÃO! PEGA LADRÃO!" Estavam atrasados e só atingiam uns 200 Km/h. O guri escapou. Calculou que a velocidade do guri era diretamente proporcional à fome de três dias, mas lamentou a voracidade do menino, que deixou uma mulher aos prantos clamando por seus pertences, seus módicos valores e as fotos dos filhos. Se pudesse, teria detido o mini meliante para devolver as coisas da moça e lhe dar uma bronca oportuna. Na verdade, na verdade, queria pegar ele para dar comida, conversar com ele, abraçá-lo. Quando tirou os olhos da rua, voltou-se para o velho que também assistia aquilo como se nada demais tivesse acontecido. Ele olhou para Deco e sentenciou: - Esse não chega aos vinte. É mesmo. Olhando pelos números dos jornais deve ser isso, pensou Deco. 'Mas podia bem que podia ser diferente.', matutou. A sapiência dos mais velhos por aqui são estatísticas, concluiu. Estatísticas lamentáveis que o menino não sabia, mas tinha noção do perigo. Noção que o fez traçar previamente uma rota de fuga segura, dentro dos limites. Uma vaga idéia que era suplantada por motivos outros que justificavam o risco. Melhor essa sapiência barata do que nada, continuou ruminando. Se pudesse, talvez o menino argumentasse que se não cuidasse da vida já, não chegaria nem aos treze, quanto mais aos vinte. E aí aquilo empacou na cabeça: não, simplesmente aquilo não era tolerável. Absurdo: "Cadê os pais ? Cadê o país? Que abandono louco é esse?"- falou silenciosamente para si mesmo. Na nova obra ele tinha seus ajudantes. Com os ajudantes viu como estivera no lugar errado, ainda que fosse certa sua passagem por aquela função simplória. Eram trabalhadores braçais vindos de vários recantos do país que tinham em comum apenas a ausência de instrução. Ficou confortável e desconfortável ao mesmo tempo por ganhar melhor e por saber da realidade dos ajudantes, que iriam receber tão pouco; como ele bem sabia. Pegando a construção no princípio, começava a conhecer melhor alguns operários, e a se enturmar com alguns que se aproximou um pouco mais, por afinidade ou por circunstâncias. Tinha Tonho, Alves e Ermírio da alvenaria, Arlindo e Fabão da marcenaria, Luiz da pintura, Mário e Nildo da hidráulica e Leo na elétrica. Tonho vinha do Amazonas, se dizia descendente de índios e suas feições eram seu maior álibi, afinal não estava lá quando foi concebido. Sua cidadezinha teria cerca de mil habitantes, algumas centenas de hectares de cobertura vegetal, dois rios e pronto. Era outro fim de mundo, Deco pensou. Parece que o mundo não tem fim e ao mesmo tempo tem tantos. Tonho descrevia aquela imensidão como seu cantinho e afirmava que a floresta era realmente infinita, que tinha muita mata para ser explorada, mas a riqueza ia apenas para quem já tinha; os madeireiros. O emprego básico de derrubar árvores rendia pouco e não tinha vaga para todo mundo. Veio pra São Paulo fazia um ano e não se arrependia. Sabia pilotar barcos, barcaças e distinguir cobra amiga das perigosas. Deco achou curioso um cara da selva vir parar em são Paulo, trocar a floresta pelo que resta, por uma chance, e se adaptar, acabar gostando. Arlindo era amigo de todos, também com aquelas gargalhadas em série, conquistava toda a tropa. Lindo foi o primeiro colega de quem Deco se aproximou, era inevitável, foi apenas mais uma vítima feliz de sua simpatia. O apelido natural dava certinho com sua cara, nem tão fofa assim. A figura dele lembrava a de seu Antônio da Aldeia, sendo um tiquinho mais novo; o rosto lhe acrescentou anos que não tinha. Por ter mãos hábeis, foi encaminhado para o acabamento pelo mestre, que dizia que ele era dono de mãos de ouro. Esse alegre artesão mineiro do concreto andava tirando brincadeira com todo mundo ou rindo dos chistes dos outros. Vivia abrindo a boca pra mostrar o sorriso e os espaços vagos na arcada. Se foi o primeiro amigo de Deco, Deco era o milésimo a simpatizar com seu jeito maroto de menino levado que é assim por natureza, não sabe ficar sério. Era um magnetismo diferente do de Zeca, claro, ele cativava pela galhofa, colocando todos na roda por igual, formava o círculo perfeito, instigando todos a participar, a contar suas pilherias. Com toda manifestação de Lindo, Deco só ficava com a sensação de demasia na expressão, no volume e na duração da gargalhada, sabendo que não era a bebida que despertava este êxtase. Deixava logo pra lá contagiado pelo clima bom que ele criava. Ermírio era o surfista e Deco pensou que podia ver veadinhos encantados em obra, mas não surfista. E não é que Miro era um de verdade?! Tanto que também o chamavam de galego. Carioca das quebradas, quando garoto descia da favela para pedir esmolas na avenida beira-mar, e depois ia curtir o mar. Cresceu junto com a turma das ondas, e isso incluía um convívio errático com uns playboys. Essa parada só podia dar em droga, e deu: Deco soube por Nildo, que já o conhecia de outros carnavais, que Miro passou um tempo traficando, mas tomou um susto e saiu das paradas: "Porque tu acha que ele tá aqui, podendo tá lá no Rio vendo aquelas gatas quase peladas na praia?" Para não morrer sem ondas, toda vez que podia, Miro descia pra Santos com umas amizades que fez por lá. Claro que Deco aproveitou para pedir para ir com ele uma vez. Também ele tinha saudade do verdão. E foi como rever um amigo que não vê há muito tempo, no caso, uns bons oito meses. Tinham muito o que conversar, falaram sobre tudo, Deco querendo saber como é que estavam seus pais, os aldeões, se eram os mesmos peixes que nadavam lá, se estava ventando mais... Enfim perguntas que só o mar poderia responder. E ele ouviu, se acalmou, deitou na areia olhando para o céu maluco que continuava sem saber se queria chover ou fazer sol. Foi a primeira de algumas outras vezes. Deco queria sempre saber quando galego ia descer pro litoral, se pudesse iria todo fim-de-semana, mas obviamente não dava. Alves e Nildo vieram juntos do interior da Bahia. Amigos de infância, até nisso foram cúmplices. Bonita relação, admirava-se Deco. Vieram, moraram juntos enquanto se organizavam, conheceram suas mulheres, montaram casa um perto do outro, até que Alves se separou. Nildo foi amparar o amigo e acabou abalando seu casamento com Gertrudes. Gertrudes achava que ele era galinha e iria colocar seu marido no mau caminho. Ciúme besta que vira problema, que vira caso sério. O casal superou, Alves superou e as coisas voltaram a seus eixos, até Alves conhecer uma mulher mais nova, bonita, que deixou Gertrudes novamente meio cabreira. Estava começando tudo de novo. Assim estavam quando Deco os conheceu, nesta parte da história da dupla, tripla, quádrupla, enfim, nessa altura do desenrolar desse rolo. Alves não agüentava mais os chiliques de Gertrudes e por causa disso estava evitando Nildo, daí Nildo se aproximou de Deco. De Fabão, Luiz, Mário e Léo, Deco pouco sabia, mas faziam parte do grupo que se reunia todo sábado para conversar no barzinho e no domingo para jogar pelada. Fabão era o armário, um monstro paulista, doce feito menino, que quem via tinha receio e quem conhecia queria por perto: solícito, generoso, amigão e ainda por cima garantia a segurança. Enrolava os erres com uma habilidade só inferior a seu jeito com a madeira. Os demais eram nordestinos como ele, vindo de diferentes regiões, o que por ali não significava muita coisa, uma vez que eram todos 'paraíbas' ou 'baianos', aquele pessoal que faz o serviço pesado, sujo. Esses passaram a ser os parceiros de Deco na sua vida de suburbano operário paulistano. Com o salário um pouco melhor, mudou-se, agradecendo por demais a João Pedro pela estadia, para uma casa na rua de trás. todos moravam perto, a não ser Mário e Léo, de forma que saiam juntos, todos ou em blocos. Marcaram de sair no sábado a noite: Deco, Alves e a namorada, Lídia, e Luiz e sua mulher, Kélia. Deco querendo e sentindo que podia fazer algo pela amizade de Alves e Nildo, perguntou a Alves se podia chamar Nildo, não sem antes consultar Antônio e Arlindo sobre sua intenção. Ambos disseram que seria bom, pois o que os separava era besteira. Então foi, chamou e Nildo aceitou. Se encontraram na casa de Arlindo, que não gostava de sair, a não ser para a igreja, e foram pra um arrasta pé no bairro. No salão ficaram todos agrupados por pouco tempo, logo um saiu para dançar, outro foi comprar um petisco e uma bebida, de forma que numa hora Lídia ficou a sós com Gertrudes. Gertrudes sem querer assunto e Lídia querendo se aproximar; até que Lídia fez um comentário. Gertrudes não gostou. Desde então ficou algo no ar, mal resolvido. Foi só um comentário, Lídia nunca pensou que pudesse ser levada tão a sério. Ficou pensando que era isso que dava falar com pessoas que não conhecia direito, forçar uma conversa desnecessária, dessas que vale qualquer assunto e ao mesmo tempo não há o que valha a pena ser falado. Acaba assim, mal entendido. Tudo bem, amanhã ou depois daria um jeito nisso esclarecendo a colocação para Gertrudes; o que realmente queria dizer, isto é, aquilo que realmente disse, ou melhor, dizer que aquilo era só aquilo mesmo que tinha falado. Mais cedo, de preferência, ou mais tarde, iria acabar com aquele mal-estar circunstancial que lhe deixara um travo na garganta. Dormiu tarde, amanheceu quebrada. Lídia pensou que qualquer ser esguio estaria mais inteiro do que ela, parecia que tinha feito três horas de musculação sem alongamento no dia anterior. Não fez. Nem exercício, nem alongamento. O que teria causado essa canseira? Recapitulou: ontem, pegou pesado no trabalho do mesmo jeito de sempre, as compras foram antes de ontem e cansaram pouco..., não, um bocado de fila de banco não daria pra isso, nem a dezena de louça lavada lhe matava há muito tempo. Nem tudo junto. O que teria sido? Teve a noite não muito bem dormida, aqueles maus pensamentos rondando a cabeça. Já havia passado alguns dias que tinha feito aquele elogio mal interpretado. Uma semana. Refletiu e pensou que foi melhor não ter conversado ainda com Gertrudes e que agora sim seria o momento adequado, pois o calor da ocasião já havia se dissipado. O dia nasceu doendo na vista de bonito, ela acordou mostrando o brilho dos dentes num sorriso colossal como só ele e saiu de fininho do quarto deixando dormindo os problemas, as pendências e os dilemas. Há dias que são assim, podia chover que seria bom, daria pra ver a vida borbulhando na água se remexendo nas jardineiras e jarros. É por que é hoje. Logo cedo dá vontade. Tomar um bom café com leite, comer uma torrada, ir pro trabalho e tudo mais. A lembrança de que tinha que prosear com a mulher do amigo do marido veio e sabia que num dia como esse estaria mais serena e, portanto, mais preparada para esse encontro, mas, ao mesmo tempo, não queria atrapalhar instantes tão raros. Hoje Gertrudes tem três filhos, enquanto Lídia tem como adotivos os dos vizinhos do bairro; uns dez. Ela gostava da algazarra que eles faziam, principalmente quando corriam pela calçada brincando de pega-pega e soltando farelo de terra pra todo lado. A luz daqueles olhos miúdos refletia nos respingos das poças d'água pisadas e tudo ficava colorido. Ela dizia que gostava deles porque eles perturbavam naturalmente a ordem natural dos ambientes, se insurgiam contra o pré-estabelecido. Ela gostava deles porque transferia para eles o amor que não podia dar ao filho que não podia ter. Alves também gostava de vê-los, mas quando eles pisavam na lama e a água suja molhava seu rosto e desviava a atenção, quebrando seu olhar fixo, não muito. Acordava de seu transe. Esse comportamento de estátua de santa milagreira do marido fez Lídia deixar de freqüentar constantemente a praça. Queria evitar vê-los, além do que, quando ia, via que estava em franca vantagem em relação a Gertrudes no quesito beleza plástica e isso parecia incomodá-la. Isso, que era para ser uma coisa boa, estava deixando-a preocupada. Lídia estava tranqüila em casa quando chegou o marido dizendo que Nildo e Gertrudes se separaram. Imediatamente lembrou da conversa. Alves continuou falando que Deco se sentia culpado por ter colocado os casais juntos e aí ele disse para Deco que não tinha nada a ver. 'Tudo a ver', pensava ela; 'fui eu'. Bateu um frio na espinha, deixando-a levemente trêmula. E Alves, sem saber de nada, continuou explicando que Gertrudes teria tomado a iniciativa por achar que Nildo estava com alguém. - Será? Ou Nildo pagou por algo que não fez? - atropelou o falante subconsciente de Lídia. Ninguém sabia do ocorrido, exceto ela e Gertrudes. 'A não ser que Gertrudes tenha contado algo a alguém...' Imaginou: 'será que alguém ficou sabendo de alguma coisa? Inventada, claro... meu Deus, será que eu tenho alguma coisa a ver com isso? ... . Ela me disse que tinha visto Nildo olhando para mim antes de eu ter lhe elogiado. Mas eu nem tinha percebido, eu nem estava olhando para ele!' Lídia viu que tinha que tirar aquele mal entendido a limpo. 'Mas como? Agora como?' Aí ficou pensando que era tarde demais, que a desgraça já estava feita. A cabeça começou a doer e ela foi tomar um analgésico. Mais calma, mudou de opinião: 'nunca é tarde'. Pleno domingo, Lídia foi à missa e saiu mais leve. Não sabia exatamente por que, mas a missa fez bem. Sabia, é claro, mas pensava que não devia ser por isso, afinal sua consciência estava mais limpa que roupa lavada na sanitária. Mas deveria ter desinfetado também os maus pensamentos. Ela não era uma amiga, mas era mulher do melhor amigo de seu marido, não queria mal algum a ela. Já não sabia o que fazer se topasse com ela, não saberia articular ou premeditar uma argumentação convincente e sua consciência já não estava tão tranqüila assim, pois no fundo via que aquela besteira tinha se transformado nesse troço por sua causa Se tivesse falado com ela logo, pouco depois, nada disso teria acontecido. Na saída da missa eis que ela bate com Gertrudes. Havia passado mais de um mês do ocorrido. Se na teoria pensou que não saberia concatenar as idéias, na prática foi tomada por uma vontade de tomar iniciativa e acabar com seu sentimento de culpa. Foi com a cara e a coragem: 'Tem de ser hoje'. Foi decidida em sua direção, mas quando ia chegando bem perto apareceu Nildo a seu lado. Lídia parou. Caiu o queixo, ela pegou, colocou no lugar elegantemente e sorriu. Eles se cumprimentaram, abraçaram, se beijaram e ele saiu. E ela lá, paralisada. Arrumara as frases à toa. Gertrudes, então, a cumprimentou. Depois dos 'como é que vai' protocolares, perguntou sobre coisas menores e antes de Lídia pedir licença para falar com outra amiga que avistara, disse para ela: - Lídia, lembra daquele comentário que você fez a respeito de Nildo naquele dia que saímos? - Sim, no sábado, de noite. - Você tinha toda razão. É pena que naquele momento eu não tenha entendido e tenha demorado para compreender. Lídia pôde enfim respirar aliviada. E Deco também, passou uns dias com peso na consciência, sem querer fazer nada com os amigos pensando que ia dar errado, que era um perigo sua companhia pros colegas. Mas estava tudo bem, Nildo e Gertrudes saíram mais fortes do que quando entraram naquele salão. O processo foi mais difícil para Deco, que não foi poupado de informações sobre o casal que não estava bem, enquanto Alves omitiu os detalhes a Lídia. Ela inquiria, ele só dizia que estava tudo bem, já para tentar diminuir as resistências. Só não deu pra ocultar a separação. Cada um tentando proteger o outro de suas pendências. Por sorte puderam resolvê-las a tempo. Com um pouco de azar talvez a estória contada aqui fosse outra. Dois domingos depois Deco estava na praia com Ermírio. Feliz sem fazer nada, deitado queimando ao sol chocho de inverno. Para ele, um monte de nuvens daquele jeito, pairando sobre a praia, deixava o cenário bem esquisito, mas o mar era o mesmo, nada mudava, ser ali mais frio era seu charme, desafiando sua entrada. Isso não era nenhum empecilho sério para ele, mas uma brincadeira. Aquecia, corria de um lado pro outro e estava pronto. - Tá brabo com que rapaz? Perguntou Deco ao mar agitado. - Pois fique sabendo que eu tô feliz. Depois de esperar instantes pela pergunta natural para matar a curiosidade: - Com que? Com nada, deixa de ser curioso. Se curiosidade matasse.. tu nem morria.... Em suas andanças, Deco revirava e variava as ruas num caminho errante proposital, mas ficava cada vez mais difícil encontrar novas pistas. Certa quinta, uns três meses depois de instalado na nova obra, e disposto a ir mais longe, disse para os colegas que no dia seguinte iria se distanciar mais. Recebeu o alerta dos amigos sobre o perigo da empreitada incerta. Desanimou, claro que tinham razão. Na saída, entretanto, Miro chamou ele e disse que os amigos o acompanhariam, desde que ele seguisse o roteiro deles. Deco concordou na hora. Conforme combinado, depois do fim do expediente daquela sexta-feira, se encontraram embaixo, na obra: Miro, Tonho, Léo e Fabão. Desceram a rua, pegaram a principal e lá na frente entraram noutra avenida grande. Teve a impressão de já ter passado por essa rua outro dia; na aprazível caminhada da hora do almoço. Àquela hora estava diferente, movimentada, mais na calçada, mulheres muitas enroladas em casacos grossos deixando as grossas pernas expostas, entregues ao frio. Mais perto algumas abriam o invólucro e de relance revelavam todo interior, aí os atributos ficavam muito claros debaixo das luzes dos postes, bem como suas intenções. A cena era nova para ele, não tinha passado por essas iniciações. Não foi necessário. Achou esquisito e deveras provocante aqueles excessos milimetricamente mal calculados, peitos saltitantes e algumas toneladas de ruge. E os trejeitos que faziam? Será que elas achavam que realmente faziam charme? Desengonçadas, com andar forçado de um animal de botas enjaulado naqueles saltos meio-fio. Melhor, andar de ema com tamanco. Manca. Até os casacos lembram as penas gigantes que elas carregam. Confabulou consigo: 'olha o buraco onde esses folgados me trouxeram. elas precisam estar assim? Não poderiam se pintar menos?' Compreendeu que não, que as armaduras eram necessárias pra encarar as ruas, que para a maioria era interessante ocultar a relativa decadência de seus corpos, e a absoluta do lugar, sem falar em apetrechos obrigatórios para enfrentar o ambiente de trabalho hostil. Acabou enxergando por trás das quase máscaras, fina pele numa, cabelo bonito noutra, enfim, mulheres com suas belezas escondidas pela feiúra da condição em que se encontravam. Poderiam elas serem mulheres decentes se a vida permitisse? Não dava pra adivinhar, o fato é que a vida não permitiu e Deco lamentou silenciosamente. Era a vida. Aquela vila de prostitutas era maior que sua aldeia. Carne fresca no lugar de peixe, era um mercado como outro qualquer. Não exatamente.. Enfim, relaxou. No fim não achou ruim a 'armadilha' aprontada pelos colegas, afinal fazia quase um ano que não tocava numa mulher. Olhando atentamente, dava pra ver por ali, por trás da fantasia, mulheres naturais, que de fato ele poderia ficar. Olhou em volta e escolheu uma mais nova, menos maquiada, que estava perto. Entrou na casa, passou pelo salão onde rolava um strip básico, sem luzes estroboscópicas, passou pelo corredor meio iluminado, por alguns quartos permissivos sem laje e com enormes brechas entre o ponto mais alto da parede e o telhado que permitiam a passagem indiscreta de sussurros e foi se satisfazer no penúltimo à direita. Ele e a desconhecida, começavam a conhecer seus predicados e já partiram para usá-los, indo direto ao ponto disparando sapatos, calças e sêmen. Uma transa que é uma transação, pagar e receber, Deco, porém, olhava inquieto aquela pequena frágil, tímida se entregando não muito a vontade, mas sem oferecer resistência: - De onde você é? - De Pernambuco. Você também é do nordeste, né? - Sou. - Dá pra perceber de cara... parece um cara que eu conhecia lá na minha terra. - E teu nome? - Rosicleide. - Você não veio pra cá pra entrar nessa vida não, né? Ela explicou que veio trabalhar em casa de madame, mas ficou desempregada e aí uma pessoa que ela conheceu já em São Paulo chamou-a para a zona. Resistiu enquanto deu até não ter outro jeito. Acabou se adaptando, aceitando a nova sina. Pensava em sair dali com o tempo, mas foi ficando. Ia sair um dia, quando desse. 'Esperança', pensou Deco, 'podia se chamar Esperança'. Ele agradeceu: 'você é uma formozura' e se despediu. Na saída continuou com seu olhar atento, procurando indícios na pele e nas feições das outras putas, de procedências diferentes, correspondentes a vestígios de diversos lugares, e achou, claro. Mais do que imaginava. Tinha todo tipo de beleza enfeiada com maquiagem pesada e vestido escandaloso para esconder o que realmente eram, mulheres reais singulares, cada qual com sua personalidade. Ali vendiam fetiches vazios, uniformes, que demandavam uniformes heterodoxos para não ocultar muito, por um momento, de forma pouco sutil, o que realmente importava ali; algo que não deveriam oferecer em classificados. É o preço barato da necessidade. Contudo, Deco voltou algumas vezes a esse lugar para buscar um pouco de diversão. Perguntava sempre por Rose e dava preferência a ela. Era a danada da necessidade, a vontade que queima: apenas diversão, não alegria. Na verdade, se afeiçoara por Rose. Não queria admitir, não podia. Seria pena? Não sabia, as vezes pensava que sim, as vezes achava que era por pena dele próprio, do vazio de seu cotidiano, e as vezes pensava que era o mais belo dos sentimentos. Com o passar do tempo Deco começou a ter a percepção de que ali também as coisas pouco mudavam, mas apesar disso o tempo passava depressa. Era interessante: tudo acontecia e nada acontecia. Acontecia para alguns, mas não para a maioria, que, como ele, se estrepava todo dia batendo pilão. Pelas ruas ele só via os milhares de carros elegantes deslizando no asfalto, casas vistosas e alguns autênticos castelos que pensava ser exclusividade de príncipe. Não que estivesse interessado, nem decepcionado, não veio com muita expectativa, porém sua esperança aumentou brevemente quando, ao chegar, viu a grandeza real da cidade, a suntuosidade. Depois foi desencantando e as expectativas foram se diluindo com o cotidiano simplório da periferia e o trabalho duro demais, seco. Sentia falta da água, a água salgada molhando o tempo todo. Restavam as mesmas peladas, a espera pela ida prometida ao estádio, as idas raras ao litoral; o deleite. Apesar da rotina dura, até mais do que na aldeia, estava ganhando o suficiente pra viver melhor, comprar uns móveis e ir se organizando, juntando um dinheirinho. Nas noites em que ficava em casa tinha as cartas dos pais. Quando havia cartas a noite ficava especial. Isso depois de uns quatro meses, pois antes a leitura era quase um compromisso. Com tantas coisas para descobrir tinha que ler as missivas dos pais contando que tudo estava como sempre estivera e responder, aí sim, relatando as novidades de vários dias. Menos aquelas saídas noturnas com os amigos. O papel não chegava. Mas a partir do sétimo, oitavo mês, ele começou a prestar mais atenção aos relatos paternos e maternos. Sempre havia um nascimento ali, uma casinha nova acolá, um super-peixe que alguém pescou, enfim, havia detalhes que anteriormente deixava passar despercebidos. Passou a só ficar tranqüilo quando lia as informações tranqüilizantes da aldeia. Ele já sabia que estava tudo bem, mas só ficava depois que lia. A própria letra era um prazer rever, quase dava para sentir o calor dos dedos que delineavam aquelas letras, a força dos braços do pai movendo as redes e a delicadeza da mãe cortando os temperos, mexendo a peixada. Racionalizava: era só uma ponta de saudade. Se tocou que raramente abraçara os pais desde que deixou a infância. Era bom saber que eles estavam bem, mesmo sempre fazendo menção à sua falta. Ficava bem, relatava que estava gostando e que não estava dando ainda para voltar, mas não iria demorar muito para poder aproveitar umas férias junto a eles. Assim que passou a perceber os pequenos acontecimentos na aldeia, relatados por seus pais nas cartas, começou a ver que podia olhar as coisas de outro jeito. Era como se tivesse ligado um botão e ativado uma função adormecida da mente. Outro dia passou de novo por um mendigo cheio de penduricalhos que um mês atrás classificara como simplesmente louco, repetindo a ladainha geral do sanatório dos normais, e o achou diferente. Não era um amontoado de tralhas como os outros, esse combinava objetos, selecionava, ficava extravagante, mas teve certeza que ele queria mesmo esse efeito. Não era tão louco. Ele é que fazia pouco caso da normalidade proclamada dos outros, sendo originalmente imprevisível com restos e balangandãs, andando sossegado pelas ruas. Na noite desse dia, antes de dormir, lhe veio uma melodia familiar, as notas foram chegando aos poucos até que lembrou do verso que ouviu no ambulatório em que Téo foi hospitalizado. Na sagrada pelada do sábado seguinte, teve uma dessas impressões diferenciadas. As vezes decidiam comer alguma coisa naquelas bancas de vendedores ambulantes que pintavam ali pela praça. Um desses tinha uma atendente diferente. Ela vendia cachorro-quente com o pai. Séria, não sorria nem pra atender os clientes. Estava lá na praça do bairro, mas quase ninguém se importava com ela. Falavam do pai, seu Toshiro. A beleza dela só Deco notou, e só agora. Antes passara pela banca, pedia cachorros e não a notara. Como pôde? Esteve desligado. Mas suas vestimentas não ajudavam. Estava oculta por trás de um arremedo de avental, uma montanha de tecidos mal ajambrados cobrindo-a da cabeça aos pés, um gorro e pela falta do sorriso. Para completar, o casacão, necessário para enfrentar o vento cortante daquela área aberta, era sem graça e pesado. Apesar de já tê-la visto várias vezes no bairro desde que se mudou, Deco só a conheceu dois meses depois, quando teve a audácia de cumprimentá-la, perguntar seu nome e puxar um breve papo. Breve mesmo, porque ela parecia não gostar de muita conversa. Desde então, desde a primeira vez que a fitou nos olhos, achou-a interessante com aqueles olhinhos puxados. A diferença lhe encantava. A pele clarinha e a delicadeza de Luíza lhe pareceram ao mesmo tempo exagerados e naturais. Os outros confundiam sua seriedade com antipatia, com falta de delicadeza, Deco observava com zelo seu gestual, onde a delicadeza se revelava; bem diferente de seu pai, que sorria para os clientes, mas era meio rude. Por um bom tempo ele ficou apreciando-a, comportando-se como um autêntico oriental num processo paciente de admiração e investigação, para saber objetivamente se ela teria alguém. Na maior parte das vezes ia comprar um cachorro-quente depois da pelada. Chegava bem perto, pedia o sanduíche de carne, dava um alô e só, não tinha coragem para mais nada. Notava suas ausências eventuais e que ela nunca estava acompanhada por outra pessoa que não o pai. Era uma questão de tempo, teria que chegar junto da moça de porcelana e dos cabelos negros mais lisos que já vira. 4 - Os cosmos O mar está logo ali onde estão todas as ondas. Lugar de todos relevos, olha lá os vales, a vasta grama, tapete, colchão verde onde durmo, onde estão teus cabelos. A memória d'água é forte, trago comigo umidade, guardei debaixo do travesseiro. Desde então, quando deito, esqueço a terra, o sono é um mergulho e meu barco é teu beijo. Do alto ele contemplava a imensidão da metrópole que lhe ignorava. Já cansado de ficar percorrendo as redondezas, Deco passou a observar o movimento de camarote. Depois de traçar a bóia como quem bebe água no deserto e do cochilo breve na laje, ele parava e ficava olhando as pessoas correndo de um lado pro outro e os carros nervosos de todas as idades e tamanhos, discutindo entre si através de buzinadas cadenciadas, estridentes ou prolongadas. Dentro, os donos neuróticos querendo estar imediatamente no destino, estando a meio caminho andado. Em alguns Jobim cantava suavemente, alheio ao barulho na platéia. Isso era uma coisa difícil de entender pra Deco. A ele parecia tão obvio que tudo leva um tempo, que precisa fazer algo primeiro para depois acontecer e as pessoas se apressavam, se estressavam querendo fazer mais rápido para fazer logo outra coisa. Queriam se livrar de um trabalho para pegar outro que não queriam, porque se quisessem, simplesmente o fariam levando o tempo necessário. Mas mesmo sem entender, ele teve de entrar na onda, embora essa onda fosse daquelas que quebra o sujeito na maré; senão nunca duraria muito num emprego. Particularmente, logo percebeu que tinha uma visão privilegiada de um prédio vizinho, e que dava para acompanhar o cotidiano de alguns moradores mais desinibidos e assíduos que deixavam suas janelas mais abertas que fechadas. Ficou meio sem jeito no início, não aprovava esse negócio de ficar xeretando a vida alheia, mas depois deixou as culpas, queria aquelas anotações dos olhos apenas para si, não comentaria com ninguém. Estavam ali, à sua vista; eram para ser vistos. De tanto observar, já conhecia bem as ruas da vizinhança e alguns de seus personagens fixos: o carteiro e sua hora de passar pela rua da construção, os vendedores ambulantes, os fiteiros; mas não as pessoas das casas vizinhas a seu novo endereço. E foi justamente uma vizinha nova que o deixou mais consigo. Era uma moradora do edifício do outro lado da rua, um andar abaixo da sua laje, bem na sua alça de mira. Classuda, elegante, o tipo da beleza que não precisa de nada mais e ela ainda se empetecava. Era enfeite para ir ao trabalho e para ir à padaria para pedir educada: 'três pães por favor'. Pois bem, todo mundo olhava, porque ele não? A primeira vez que a viu era cerca de 13:30 de uma quarta-feira. Aquela mulher foi um marco, uma referência na arrumação de seus pensamentos bagunçados. Quando as coisas começavam a se arrumar na cabeça aparecia mais um dado novo, ou melhor, uma dada, e os pensamentos arejados pelo intervalo da obra se embaralharam de novo. Até então, mudara levemente, sua nova percepção das coisas havia encontrado apenas o sublime pela frente, o transpondo para o campo da leveza. A beleza por trás da feiúra, a delicadeza por trás da armadura. Pensava que agora compreendia tudo, mas que nada. Mudar mesmo, assim da água para o vinho, só depois da mulher e da menina do vestido amarelo. Aí Deco viu outro lado. Ali ao lado. O que lhe chamava mais atenção estava na casa dela. Ele não podia não ver, tinha uma criança ali com ela; traquina, leve e pululante É o que dizia aquele monte de bichinhos de pelúcia no quarto. Dava pra ver claramente do seu observatório. Cerrava o olho e lá estava ela no jardim do prédio com seu vestido amarelo curto de florzinha, brincando sozinha ou com o vento, com as palavras, com as almofadas e as fadas. Era boneca pra cá, casinha pra lá e um pula-pula que deixava Deco arlequim da vida. O que intrigava era ela não sair de casa. Nunca viu. Será que queria criá-la numa redoma, isolando-a da sociedade suja, das pessoas apodrecidas? Mas a mulher parecia tão ponderada que deveria saber que isso não resolve as coisas. Deco tentava dar um desconto, achando que as vezes as pessoas às vezes tem uma coisa como tão certa que acabam perdendo o censo crítico, achando que o mundo é tão péssimo, que de repente não serve e o meio do mundo pode já não é o melhor lugar para educar uma criança. Será? Não soube responder, para variar; nem ficou sabendo. Os dias se passavam e elas lá, cada uma na sua: uma feliz, outra nem tanto, uma aprendiz, outra sabe-tudo, uma vida pela frente, outra meia idade passada. O fato é que a criança morreu. Viu, mas nem precisava, não havia mais alegria no jardim do rosto dela. Havia ela só, faltava a outra que não se importava com o jeito de se sentar à mesa, com a elegância milimétrica no andar, com as remelas e com Paris. Agora só tinha aquela que era uma boneca, com suas partes mais móveis bem à vista. Mundo real de novela; comerciais. Não foi de morte morrida, foi matada. Coisa cruel que ele não queria falar com ninguém. Não era o caso. Pra quê? Não ia trazer ela de volta. Um assassinato sem dó, com faca. A parte prática fica para a polícia. Aquela coisa toda de investigação técnico-científica e os métodos, os instrumentos; o corpo. Não precisava de corpo, ele viu a alma dela sair pela janela e passar na sua frente a dois palmos olhando bem nos olhos, triste. Ela que era tão feliz. Almas não se revoltam, apenas seguem seu caminho. E Deco, o dele. Depois apareceu a polícia. Pena que era o namorado dela e aí já viu: ficou o dito pelo não dito. Ninguém sabia mesmo daquela criança que morava ali. Ninguém percebia, ela escondia muito bem. Ela não queria que a menina conhecesse esse mundo e conseguiu, de um jeito ou de outro. Ou será que ela não queria que o mundo conhecesse aquela criança? Não soube nem ia saber. E aí a vida voltou ao formol. Mas Deco já não era mais o mesmo, tudo à volta estava diferente. As coisas tinham mudado bruscamente, sem sair do lugar a cabeça girou. Agora começava a se dar conta que havia se mudado e que o novo mundo poderia ser estranho, para além da grandeza da cidade, da imensidão das coisas, as pessoas gravitavam em seus mundos. As vezes normais, as vezes bem particulares. Um isolamento difícil de entender. Sua aldeia era uma comunidade, ali devia ser uma super-comunidade. Mas não era. Eram milhares de ilhas. Deco estava mudando. Isto é, mudando depois de ter se mudado. Era chegada a hora de ir ao estádio. O grupo iria levar Deco para um jogo de vergonha. Frio na barriga, peladeiro que era, estava animadíssimo para o encontro com o templo da perdição do esporte. E a estréia tinha que ser da pesada, esperaram para ir a um clássico: Palmeiras contra Corinthians. Reuniram-se todos para pegar o trem e a cada estação os vagões iam ficando cada vez menos vagos. Era uma enchente de gente que não ia apagar coisa alguma, muito pelo contrário. Com a batucada vinha cantoria no volume máximo: 'SALVE O CORINTHIANS, CAMPEÃO DOS CAMPEÕES..." e a fiel bebedeira, claro. Quando abriram as porteiras na estação do estádio, ouviram as tradicionais provocações naturais, resultado do encontro com um grupo da torcida adversária. Coisa de moleque, risos de ambos os lados. Os demais na fila para comprar os ingressos, Deco saiu com Nildo e Fabão pra ver uns tapeadores de estômago. Pela barraca de amendoim cozido e assado que a dupla escolheu como primeira parada, Deco não se interessou muito e foi providenciar os quatro pedidos de cachorro-quente. Se deslocando, acabou avistando um carrinho familiar. Era Luíza e o pai dela com a carrocinha de cachorro-quente. É evidente que ele foi para lá; com sorriso no rosto: - Oi! - Oi... por aqui? - Pois é, o pessoal veio assistir ao jogo e vim junto. Já tava querendo mesmo desde que cheguei aqui. Era a única coisa que sabia que ia fazer fora o trabalho. Omitiu a busca por uma praia, não precisava detalhar tanto. Luíza retrucou: - Bom. eu não gosto muito desse alvoroço todo não, mas a gente tem de vir onde tem movimento. Uns trocados a mais. - Quer dizer que é pra cá que você vem quando não está por lá então? - Geralmente, mas nem sempre. Onde tem muita gente, a gente vai. Nisso o pai dela se afastou pra atender outras pessoas. Deco aproveitou e disse sorridente: - Gostei de te ver. Não esperava te encontrar... Ela levanta o rosto e esboça um sorriso tímido. - Vou querer quatro cachorros completos. Três segundos mais: - Vou querer também te ver depois. Que tal a gente se encontrar pra bater um papo? Por sua timidez para essas coisas, ele não soube de onde tirou aquelas palavras, mas saíram e não se arrependeu nem um pouco. Eternos segundos se passaram e: - Tá. - Domingo de manhã na praça, pode ser? - Pode, combinado. - Na praça. às 10 então, certo? - Certo. Nos céus os fogos disparados estrelavam a entrada triunfal do timão em campo na noite de clássico. Deco pegou os pães recheados e adentrou no estádio com os amigos. Dentro do caldeirão a multidão fervia. Não tinha água que diminuísse a fervura. Chovia fino, garoinha básica, faltavam uns dez minutos para começar a partida, mas o ouriço nas arquibancadas era tal que se um pára-quedista caísse ali, diria que a batalha estava no auge. Era foguete, fumaça, batucada e um coral de estremecer a marquise. A macacada pulava, uivava, berrava, o suor descia e Deco quieto sentindo a tremedeira ritmada. Isso é que é festa. E de relance, na mente vinha a face doce de Luíza para completar seu êxtase naquele fim de tarde. Bola rolando, trégua momentânea, os torcedores tornam-se, afinal, expectadores. Deco é que assistia àquilo tudo embasbacado, alguns dos maiores craques do Brasil desfilando ali na sua frente, ou melhor, correndo adoidado, e o Pacaembu a seus pés. Não ganhou o dia, ganhou o mês; o ano! Chegou a sentir o mundo girar, como quando se fazia de tronco de coqueiro nas ondas da praia. E estava apenas começando. O Palmeiras nesse dia estava mais aguerrido, o Corinthians mais acuado, pronto pra dar o bote. O negócio esquentava gradativamente: as primeiras tentativas; meio lerdas, uns chutes distantes das balizas, a velocidade aumentando, o campo escorregando. Nos instantes de maior introspecção do aglomerado dava para ver a veia estufada do ponta Juvenal e a reclamação com o meia: 'PASSA A BOLA! PASSA A BOLA, PORRA!' Gardenal de fato estava um mão de vaca, segurava a bola como se fosse suas calças e dele só pros atacantes ou para o gol, onde não chegava porque os zagueiros cortavam o barato. A certa altura Juvenal irritou-se, pegou a bola e a entregou indiscretamente pra o adversário. Quase que dá confusão, mas Goró chamou a responsabilidade e o Palmeiras ganhou força. O verdão empolgando, Deco, que não tinha lado, decidiu-se pelos italianos. A temperatura aumentando, o povão cantando e a cadência frenética dos surdos e caixas começavam a produzir um transe. A apoteose se avizinhava. E lá no cantinho do pensamento, vindo e indo, a bela Luíza. Num contra-ataque, Sófocles rola a bola pra Descartes, que emendou para Sócrates e aí, do nada, apareceu Aparício e arrebentou Sócrates na área, com gosto de gás. A platéia explode: 'PENALTI!' Mas o juiz não quis assim. 'FILHA DISSO, FILHA DAQUILO OUTRO!' e o jogo já louco endoidou de vez. Era corre-corre pra um lado, volta correndo pro outro, até o chute certeiro de Zenon e o estouro da boiada palmeirense. Fez-se o céu na terra: - GOOOOOOOLLLLLLLL'. Já perto do fim da partida um cantinho do céu se transformou em inferno. Do outro lado do estádio, uns mais entusiasmados da nação corintiana não engoliram o placar, o juiz saiu cercado de escudos da PM e garrafas de cerveja aladas dividiram o espaço aéreo com latas douradas. Tumulto localizado e contido, distantes, Deco e seus colegas foram saindo em meio à festa palmeirense. Pontos na tabela, os verdes estavam bem na fita. Na saída procurou Luíza, mas já não a encontrou. Ficou com a lembrança e a expectativa. Domingo o encontro foi bem sucedido, levando em consideração a timidez exagerada dela e o sem jeitismo dele. Conversaram amigavelmente, se apresentando e principalmente apresentando seus mundos. Ambos ficaram fascinados com o universo alheio, distinto em quase tudo, exceto no gosto dos dois pelos peixes Os mundos díspares mantiveram o interesse de cada um pelo outro, que já estava interessado. Deco gostou das bonecas que ela disse que fazia e Luíza gostou de seu passado marítimo. Recombinaram outro encontro e Deco saiu feliz da vida para almoçar. Mais tarde, quando foi jogar a peladinha de costume, já foi passando perto da barraca para acenar. Ela retribuiu com um pequeno aceno e um mínimo sorriso; o suficiente para ele jogar animado e até marcar um gol. Segunda-feira, de manhazinha, céu aberto, Deco se encontra, como de costume, com Arlindo, seu parceiro e companheiro mais constante de parada de ônibus. Naturalmente veio a necessidade de trocar idéias profundas sobre a pelada do dia anterior, especialmente as jogadas desastradas dos colegas. Exauridos os lances estabanados, um deles fez o previsível comentário acerca do tempo bonito, acabou puxando para o clima lá na terrinha, a comida na casa dos pais.. aí Deco aproveitou o ensejo para perguntar sobre a origem do colega e as razões que o trouxeram para a cidade grande. Depois de uma pausa, ouviu que teve necessidade de sair de casa logo cedo porque seus pais não o tratavam bem, nem podiam porque viviam na miséria e discutindo, muitas vezes embriagados. Foi morar com a avó aos seis anos, mas não demorou muito lá, porque também ela não tinha condição, de maneira que antes de se tornar adolescente estava nas ruas. As ruas inocentes de sua cidade do interior, entretanto, não davam pra ganhar a vida, então foi parar no olho do furacão, a capital, sem lenço nem documento. Tentando fazer galhofa pra relaxar, disse que sua sorte é que foi mau aluno nessa escola. Conseguiu contornar as diversas oportunidades de se desvirtuar, sobreviveu precariamente até sair de novo, embarcando como clandestino num caminhão de manga que ia para São Paulo. Os lugares inóspitos que Deco entrou no meio da viagem, Arlindo não chegou a conhecer, ele saía debaixo da lona pra ir beber água e fuçar o lixo em busca de qualquer resto comível. Tomando fôlego e com a expressão contida continuou: Chegou acabado em São Paulo, sem norte, tomou o primeiro caminho que cismou, se debilitou mais um pouco ao vagar por 5 ou 6 dias como pedinte de comida, de emprego, de teto. Mesmo sem poder; quase morrendo de fome. Nesse instante, já haviam descido do ônibus e andavam, Lindo parou e apontou para o outro lado da rua: - Olha ali. Ali Deco, naquela lojinha amarela e azul com um toldo branco. Tá vendo? Referia-se a uma pequena loja de apenas uma entrada, naquela hora ainda fechada. A beirada da entrada da loja fora seu dormitório esses dias O toldo livrava das chuvas mais leves, mas as de vento e as pesadas não tinham jeito. Depois encontrou um abrigo, foi se organizando, procurou e arranjou emprego, até conseguir um barraco para morar com salário no bolso. À medida que ele contava seu drama anônimo, Deco ia compreendendo sua dolorida felicidade, seus arroubos constantes, sua necessidade de tanta companhia. Cativava por instinto de sobrevivência. Ele contava com segurança, com orgulho, embora não alardeasse, não queria que as pessoas soubessem dos detalhes sórdidos. Afirmava que não guardava mágoa de nada, eram coisas da vida. Agradece a Deus por ter passado por essas provas entendendo sempre que o bem compensa. Depois de ouvir a estória toda, Deco elogiou o amigo, concordou com suas conclusões. Na prática, porém, as coisas não eram tão simples assim. Ele se lembrou do menino que ele viu fugindo e ficou pensando se Arlindo foi mais obstinado ou se teve mais sorte. Qual a capacidade de cada um de resistir? Quantos resistem? O governo poderia cuidar de todos os desfavorecidos? Enfim, deixou as especulações de lado para ficar ao lado do amigo antes que seu olhar distante denunciasse seus pensamentos fugidios. Dias depois Deco apareceu na casa dele pela primeira vez à noite para chamá-lo pra jogar dominó. Ele veio recebê-lo com os olhos vermelhos. Deco ficou sem saber se comentava ou se fingia que não viu nada. Optou pela alternativa menos complicada. Ele entrou, deixou Deco esperando na sala, e quando voltou já vinha animado, perguntando quem era o bam bam bam dos tabletes. Ele era um sobrevivente em busca de paz, forjando alegria para disfarçar sua tristeza. Sua felicidade fabricada em cada gargalhada exorcizava o passado remoto, presente, e era produto natural das necessidades de sua alma perturbada, mas mansa, boa. Seu corpo tentava alimentar a alma oferecendo sorrisos descartáveis. Funcionava durante o dia enquanto a alma estava entretida e inibida com a presença dos colegas. A sós a alma não come carne de segunda. Ah! A cidade e seus ares. Nas ruas do centro, no caminho da obra, ele já não se animava tanto ao observar aqueles prédios que também ajudava a erguer. Começavam a cansar. Esses colossos por um tempo o sedaram, mas os pensamentos fluidos destamparam suas narinas e abriram os olhos para um campo de visão mais amplo. A cidade não chegava a feder, era um odor levemente enganador de uma leve fuligem que escapava das máquinas. Normal, afinal estava no pulmão da locomotiva do país e o que cheirava era o bafo de máquinas de todo tipo que trabalhavam incansavelmente a esgotar os operários. 'Se pelo menos pudesse ver mais o mar...'. Em pensamento dava, e ele viajou sossegado por segundos, como outras vezes. Quando ficava assim, naturalmente recorria ao pensamento, sua droga natural, e sua capacidade de transportar ao seu amigo. Quando Deco saia do trabalho, as lojas ainda estavam abertas e podia ver a locomotiva em ação, um molho de gente nas ruas entrando e saindo nos prédios, ele mesmo engrossando esse caldo. Coincidiu dele não ter o que resolver para olhar de outro jeito seu familiar caminho. Na tela que visualizava, reparou uns sujeitos sentados na calçada ou no primeiro degrau de uma escada com a mão estendida, quase calados. As vezes pronunciavam uns grunhidos, uns eram mais claros, mas alguns nem abriam a boca. O prédio gigantesco e a figura minúscula do mendigo esmolando era um contraste descarado demais que, entretanto, ninguém notava, como ele próprio não reparara antes. Sentiu-se ridículo. Um aqui, outro ali. Naquela hora alguns estavam já dormindo. Embriaguez, talvez. Cansaço, fome, talvez. Um parecia um bebê dormindo num berço. Pose de feto, parecia confortável no cimento à sombra do zinco e uma rala vegetação perto purificando o ar poluído para aquela criatura fragilizada. Um homem, um desempregado? Um trabalhador? Uma vida qualquer encostada num canto, descansando ao som de buzinas. Ronco de motores acalentam seu sono metropolitano. A cena parecia lhe convencer que o ser se adapta à desgraça. Talvez não fosse isso, fosse um episódio, talvez aquele estivesse ali pela primeira vez. O do banco Glacial já era definitivo. Esse prendeu mais sua atenção. Não dava uma palavra, não levantava o olhar. Inerte, imóvel. Talvez fosse entrevado. Enxergou nele resistência. Ignorado, sobrevivia com migalhas, à ausência. Uma pessoa normal teria sucumbido, era desumano. A maior parte teria se desesperado por muito menos. Será que sairia se houvesse alternativa? Talvez alguns, outros pareciam confortáveis, se acostumaram com a penúria, se casaram com ela. Esses homens desistiram, ou alguém desistiu deles? Não. Se uns desistiram, outros não. Alguém dava esmola e a vida continuava ali, pulsando, insistindo apesar de toda adversidade. Deco se admirou com a força dessas pessoas, viviam no limite entre a fraqueza e a fortaleza humana, entre o desprezo e a valentia; contra a morte. Viviam a céu aberto, sem lugar no meio de tanto espaço, forçando seu espaço no meio do caos indiferente, afinal o sol nasce para todos... Mas onde está mesmo o sol nesse céu cinza? Três meses depois a rotina era a mesma, exceto por um detalhe. Na sexta chegava em casa, jantava e o banho era um preparativo. Arrumava-se e ia para a casa da namorada. Deco começou a freqüentar a casa de Luíza no final de 1975, sob o olhar reticente do pai dela, que preferia alguém da etnia. Ao ver que a relação entre os dois era firme e que crescia o encantamento, não se opôs. A mãe fazia gosto no namoro, e gostou de Deco desde a primeira vez que o viu. Foram se programando e três anos depois estavam casados. O que leva uma pessoa a se apaixonar? Nosso herói nunca soube e olhe que estava apaixonado, devia ter a resposta na ponta da língua. Mas que nada, a oriental tinha saliências contidas, atributos contidos e pernas normais, mas seu rosto era suave, de uma beleza angelical. Um anjo sem olhos; contidos. A delicadeza era sua marca, tudo que tocava se transformava em flor, não era a toa que em casa gostava de fazer pipoca; florezinhas brancas alvoroçadas. Ela, por sua vez, cedeu a Deco, um homem exótico, másculo, sensual sem esforço, que terminou de conquistá-la por sua hombridade e capacidade de trabalho. Poderiam ser outros dois, mas ela estava ali na hora em que ele apareceu. Ele a percebeu e insistiu. Ela tinha um açúcar que só adoçava o café de Deco, seu olhar mascavo, escondia ouro e ele achou porque procurava aquela beleza; a beleza da discrição. Durante os cinco anos que se seguiram nada acontecia. Nem precisava O cotidiano meloso dos dois era pegajoso o suficiente e igual a tantos outros recém-casados para merecer um relatório aqui. Uma usina de cana-de-açúcar. O escriba obviamente poupará os seus prezados leitores. Bom pra eles, não para nós. Era passeio pela praça, benzinho pra aqui, bitoca pra ali e em casa eles se entendiam. Apenas algumas notas elementares para não dizerem que não souberam de nada: de dia ele trabalhava e ela ficava em casa ajeitando as coisas e fazendo suas bonecas orientais. De terça em diante, ela ia com o pai vender cachorro-quente depois de Deco chegar, lá pelas 19:00 horas. No fim de semana ambos ficavam na praça, ele primeiro com os amigos no futebol e depois acompanhando-a no carrinho de cachorros. As bonecas eram um hobby e um dos dois resquícios da cultura oriental que ela preservava. O outro era o molho chinês preparado nos fins de semana na casa dos pais. A pobreza ambienta rápido o cidadão. Não tem como manter referências, tem que buscar o que comer. O homem se purifica, nada de pavonices, resta a matéria para manter todo dia e a mente para entreter, distrair, fazendo-a hibernar até o resgate final; a última respiração. A mente pode até morrer, pois sua morte não é por inanição, é só uma coisa vaga, abstrata, sem função muito definida que deixa de funcionar. O importante é manter os músculos para a labuta. Sendo tudo contado, a penúria é controlada. Comiam sempre os mesmos arroz, feijão, uma verdura e um pedacinho de carne, variando com macarrão ou purê de batata. Na casa, quase nada tinha graça, a graça era o outro. As paredes gastas, os quartos apertados, falta de água vez por outra. Os móveis eram sérios e a cama não tinha bom-humor, eles é que faziam a festa. Havia alguns parcos detalhes que quebravam o aspecto prosaico, principalmente as duas bonecas no sofá. O amor na pobreza é bom por uma razão bem simples: é um dos poucos, senão o único, grande prazer dado ao pobre. É extremamente democrático. Tem também a paixão pelo time do coração. As pobres paixões são inexplicáveis como regra geral. Não adianta querer explicar porque o homem racional se deixa levar justamente pelo irracional para dar sentido à vida, não vai conseguir. Porque Seu Manoel adora o Palmeiras e seu João ama incondicionalmente o Flamengo? Por que quando miúdo o viu ganhar esplendidamente uma decisão de um campeonato? Ok, boa explicação sentimental, mas o time hoje não tem mais nenhum jogador daquela época... Outro plantel passa a fazer o sujeito sofrer e ele não larga a bandeira? Porquê? Vai dizer que o importante é a emoção, seja ela boa ou um sofrimento. A verdade é que o ser humano se apaixona por algo em que ele entre para formar uma unidade, familiar ou social: é a velha necessidade de se integrar socialmente, de sentir parte de um todo. A emoção é maior se for compartilhada. A emoção só é maior na solidão se for o resultado da perda; a dor pelo ente querido que se foi. O sofrimento quando é compartilhado é quase uma felicidade, o sujeito sente-se parte de algo maior, ganha forças. Quando alguém entra numa relação só pensa no melhor, na vida a dois, no ideal da perfeição da vida a dois. Ele é feliz quando está com alguém que lhe faz bem. É a velha necessidade de manter laços, mesmo que esses possam trazer alguma dor. A dor maior é da solidão. Tanto é assim que providenciaram mais um para ser mais feliz. Depois de dois anos de casados, veio a filha. Deco retransmitiu toda evolução da gravidez para os pais e quando nasceu a menina mandou uma fotografia para eles. Tinha que reconhecer os olhos puxados, mas lá estava também a cor dele. Com o auxílio da mãe de Luíza foi mais fácil atravessar os primeiros dois anos críticos de carga extra com o bebê, e assim ele pôde desfrutar do melhor da vida naqueles anos, andando juntos pela praça quase todo dia, vendo a filha crescer, aprendendo as palavras, engatinhando; rindo. Deco não tirava os olhos de suas meninas; cuidava delas como flores que eram e desfrutava do perfume. As idas ao litoral e ao estádio rarearam com a primavera que se instalou em sua casa. Se tornou um promissor jardineiro. Se soubesse que ia ser tão bom, já teria sido antes. À igreja nunca deixou de ir, mas agora ia movido por um sentimento de gratidão imenso; não cabia em si. E o tempo voando vai se despedindo dos primeiros tempos onde tudo era novidade, para entrar numa fase em que as novidades não caem do pé. As coisas se acomodam em seu lugar e fica tudo cômodo em seus devidos lugares. A filhinha crescia bonita e o aperto distendia os planos para mais adiante, mas havia perspectivas, apenas tinham que dilatá-las. O cotidiano vai substituindo a mágica sub-repticiamente, caem as folhas velhas da última estação e, embora tudo se renove, a renovação passa pela substituição, do antigo pelo novo, as antigas folhas vão caindo, cedendo o lugar às novas e se segue em frente trazendo o passado na mente, na cara, no corpo, exposto, para sempre lembrarmos que somos passageiros do tempo. Ela começava a andar e Deco prestes a entrar na faixa das trinta primaveras. A igualdade da longevidade no percurso mal feito para o trabalho, porque superlotado nos coletivos e demorado nos trechos andados, começava a incomodar e olhe que ele sempre estava de bom humor naqueles dias. Sempre o mesmo trem, a mesma voz metálica e asséptica informando a estação se misturando ao discurso padronizado da senhora necessitada de ajuda, num choque improvável entre o homem como porta-voz da máquina, desumanizado, e a mulher que, clamando por humanidade, esvazia seu discurso na repetição maquinal. 7:30 começava o serviço já cansado da repetição que viria a seguir. Os músculos continuavam sendo exigidos como nos primeiros tempos e eles já não eram os mesmos, mas continuava, sem tanto capricho como demonstrara no princípio. Fazia o que tinha que fazer, pensando na hora de ir para casa encontrar suas beldades. Nos intervalos, Deco voltou a dar sua espiada na vizinhança. Fazia algum tempo que não fazia isso, entretido apenas com a foto da filha e constatou que tudo estava no seu lugar. Os guardas na esquina, ambulantes mais longe, os motoristas de taxi em sua parada, etc. Numa tarde de março, toda a turma da alvenaria estava mobilizada na construção da laje do oitavo andar. Deco, que estava no lado oeste, ouviu quando o mestre da obra detectou um transbordamento no lado leste: - Tá vazando lá! Vai lá Tonho, vai! José Antônio era o responsável pelo setor, mas não estava muito perto, então saiu correndo para sanear o problema. Nisso, não viu um resto de cascalho no meio do caminho e derrapou. Tomou o percurso errado do ar livre, numa trajetória breve de sonoridade aguda, encerrada com um toque único, grave e surdo. O corpo maior assustou os pombos que transitavam e fez gelar os homens do oitavo andar. Pequeno corre-corre em direção à laje oeste. Como o serviço não podia parar, o silêncio barulhento da máquina de concretagem foi cortado pela designação do mestre em volume suficiente para ser ouvido: - Pra suas posições. Bino e Fábio desçam pra acudir Tonho. Jorge, chame o socorro. Deco só viu o tropeço, o começo da tragédia, mas o grito de seu colega foi lhe cortando a alma, abrindo um rasgão invisível de profundidade tal que atingiu em cheio o coração. Queria descer mas não podia, queria voltar a cena mas não podia, queria salvá-lo, mas sabia que era tarde. Restou-lhe baixar a cabeça, olhando para a laje, e pedir para Deus lhe guardar. Queria sentir esse consolo, mas o que batia era apenas uma dor infeliz, uma dor inoportuna; sacana. Era um clássico. Clássico porque comum, acontecia de vez em quando, tanto que foi pintado e cantado por artistas, mas ao vivo ele não via poesia, só a dor seca no peito. Em poucos segundos recuperou a saga amazônica de Tonho. Um cara de bem que ia fazer falta com tanto infeliz mal caráter solto por aí fazendo os bacanas pensarem que trabalhador é a mesma coisa que malandro. E ir assim, de uma hora pra outra, sem direito a despedida. Era só dor. No próximo fim de semana Deco foi para a praia com suas meninas, Ermírio e uma amiga dele. Ermírio escolhia sempre praias agitadas, mas nesse dia ele quis ir para uma mais calma, não estava nem a fim de entrar na água. Todos saíram caminhando pela areia sem pressa, curtindo o vento batendo no rosto A certa altura, Deco parou e com ele as suas, enquanto Ermírio continuou com sua amiga. Luíza foi brincar de fazer laguinho e castelos na areia com a filha. Deco se afastou um pouco, se aproximou do mar e esse disse bem baixo, como se alcançasse seu ouvido: - É bela tua cria. E depois: - Mas você não está feliz. Deco esboçou um sorriso insosso, breve e concordou com a cabeça Então explicou o ocorrido. Seu amigo lamentou a perda e calou. Nessa manhã, o mar não quis falar mais nada. Apenas expressou sua consternação batendo uma única e volumosa onda na areia que fez as águas avançarem metros a mais pela areia, enchendo até o lago de sua menina. Depois voltou a ficar quieto em solidariedade à tristeza do amigo. O silêncio absoluto é uma forma de perfeição. Estranha por contrariar a ordem natural das coisas, sempre produzindo algum som. Ledo engano, ele faz parte, porque o contrário está em todo lugar. Um dia é preciso calar-se. Há dias em que é preciso apenas o zunido do vento para lembrar do vento, lembrar do coração que pulsa. É o quase silêncio, o primo que lembra o inverso do pleno; essa dimensão. Tão próximos, tão distantes. Observar o primeiro leva ao segundo e Deco estava experimentando esse gosto amargo de paz naquele momento. Ouvia apenas murmúrios, palavras inaudíveis. Estava só. Estava acompanhado de seus si mesmos. Estava um pouco mais só, um pouco menos acompanhado de terceiros. Menos complemento