Alexandre Borges 10 Histórias de Amor em Portugal Este livro foi digitalizado por Sandra Leonor Ferreira em Fevereiro de 2007 para uso exclusivo de deficientes visuais. Badanas do livro: Este livro inclui dez histórias de amor portuguesas. Algumas existem que estão mais distantes no tempo e, por isso, sendo baseadas em dados históricos, podem envolver-se numa atmosfera de lenda. No entanto, a maioria destas histórias são romances vividos no século XX e alguns permanecem até hoje. Seja pelas peripécias que envolvem várias destas paixões, seja pela relevância pública dos seus intervenientes, estas são das grandes histórias de amor portuguesas. Natural de Angra do Heroísmo, Açores, aí começou a colaborar na imprensa. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde é mestrando em Estética e Filosofia da Arte, é jornalista e guionista. Presentemente, integra a equipa do programa da RTP1 "Prós e Contras". É ainda actor do Cénico de Direito e colabora no Correio da Manhã, nas revistas Atlântida, Ilhas e Neo, e no suplemento artes e letras da Saber Açores. Fez parte da equipa de criativos do "Zapping", na RTP2, e participou em séries da RTP e da SIIC Menção honrosa no Prémio de Poesia Guerra Junqueiro, em 1997, ganhou, em 1999, o segundo prémio de ficção do concurso Novos Escritores, Novos Leitores, das Bibliotecas Municipais de Lisboa. Figura na antologia Una Ventana a la Nueva Poesia Portuguesa, da editora mexicana Desierto. ISNB 972-46-14B5-9 (c) Mundo Perfeito Direitos reservados EDITORIAL NOTICIAS Rua Padre Luís Aparício, 10-1.º - 1150-248 Lisboa E-mail: editnoticias @ mail.telepac.pt Internet:www.editorialnoticias.pt Revisão: Ayala Monteiro Capa: Mário Henriques Edição: 01 510 002 1.ª edição: Setembro de 2003 Depósito legal n.' 200 072/03 Pré-Impressão, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda. 10 Histórias de Amor em Portugal Nesta colecção: Os 10 mais Ricos de Portugal Miguel Judas 10 Histórias de Amor em Portugal Alexandre Borges Alexandre Borges 10 Histórias de Amor em Portugal Editorial Notícias Índice D. Pedro e D. Inês, 7 Dinamene e Luís de Camões, 27 Ana Plácido e Camilo Castelo Branco, 43 Maria de Jesus e António de Oliveira Salazar, 59 Vieira da Silva e Arpad Szenes, 75 Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, 91 Ruth Bryden e Paulo Oliveira, 107 Fernanda Alves e Ernesto Sampaio, 123 Maria Isabel e Manoel de Oliveira, 139 Pilar del rio e José Saramago, 155 Introdução Bastariam alguns minutos de recurso à memória para qualquer pessoa poder enumerar histórias de amor célebres durante horas a fio. Da literatura ao cinema, passando pela música ou pela pintura, o amor é, sem sombra de dúvida, o tema mais explorado pelo espírito criativo do homem. Nenhum artista terá deixado de transformar o amor em objecto de criação, ao ponto de muitas vezes se olhar para este tema como um lugar-comum ou uma banalidade. No entanto, todos os que já amaram sabem que o amor é um lugar, mas nada tem de comum. Neste livro, entregámo-nos ao desafio de recordar grandes romances portugueses. Sabemos que o amor não conhece fronteiras ou culturas, mas ainda assim quisemos descobrir como se ama no nosso país. Percebemos rapidamente que o manancial de histórias de amor 8 que qualquer um de nós poderia enumerar inclui poucos personagens que falem a nossa língua. Talvez Pedro e Inês fossem mencionados, mas no meio de uma tabela onde Romeu e Julieta seriam cabeças de cartaz. Então quais são as grandes paixões portuguesas? Procurámos reunir 10 histórias que possam servir de referência a uma lusa forma de amar, optando por convocar para este livro uma série de portugueses célebres, do presente e do passado, cujas vidas amorosas foram excepcionais. Nalguns casos, é um amor marcado pela tragédia, noutros pelo final feliz. Há paixões excessivas ou marginais e romances cândidos. De D. Pedra e Inês de Castro a José Saramago e Pilar deI Rio, de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido a Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, pretendemos pintar a paisagem do amor no nosso país. Neste livro encontrará 10 janelas onde se pode debruçar e admirar o amor português. 9 D. Pedro e D. Inês Naquele Reino Maior do que o tempo Deveria estar escrito em algum lugar celeste, a meio caminho entre a noite e a aurora, ou nas inscrições apagadas, cobertas pelo pó, do capitel de alguma coluna de um castelo medieval, perdido da luz, que este fosse o maior, mais belo, mais trágico e mais falado amor de toda a História do reino de Portugal. Muito, muito para além das fronteiras naturais do lugar, quis o destino que os episódios da vida deste casal se fizessem lenda e fossem contados, não raras vezes, com novos detalhes acrescidos à narrativa original, por poetas, dramaturgos, cronistas, romancistas e músicos, por terras de Espanha, Itália, França e, enfim, um pouco por toda a parte, por onde soaram os passos revoltados de D. Pedro e o perfume doce de Inês de Castro. Todos já dele e dela ouviram falar e conhecem, em três ou quatro linhas, o essencial 12 da sua história. Essas mesmas linhas e tudo quanto lhes escapa, as razões dos seus acontecimentos e personagens secundárias, são aquilo que ouviremos já de seguida. Dá-se o primeiro passo para o mito quando corria o ano do Senhor de 1340. D. Afonso IV, rei de Portugal, acabava de regressar a Coimbra, vitorioso, após ter ajudado D. Afonso XI, rei de Castela, a derrotar os seus oponentes, sedimentando a amizade entre os dois reinos e as então desejadas relações de paz com Castela e Aragão. Foi uma noite festiva na cidade: os trovadores enchiam as ruas com a sua música, ecoando pelos arredores, graças à acústica fria das lajes de pedra; gente vestida para o acontecimento dançava e rodopiava por entre a multidão e o povo, alegre, saíra para receber o seu amado rei, aquele a quem, mais tarde, honrariam com o cognome de o Bravo. Por entre a confusão colorida, os incitamentos e os cantares, um jovem se destacava pela sua exuberância: era D. Pedro, o quarto filho de D. Afonso IV e D. Beatriz, o sucessor ao trono. Fruto dessa amizade que unia Portugal e Castela, o rei decidira dar por esposa ao seu filho uma jovem nobre natural desse aliado e, assim, foi combinado o seu casamento com 13 D. Constança, uma fidalga nascida, provavelmente, em 1323, mil e noventa e cinco dias depois de D. Pedro, cuja família tinha, no entanto, um contencioso para com D. Afonso XI, pelo que, no seu séquito, seguia uma bela jovem, de seu nome Inês, irmã de alguns dos maiores opositores do rei de Castela, os Castros. Ainda no total desconhecimento deste dado, D. Pedro não estava feliz com a sua situação. Muito embora fosse uma tradição a destinação de esposos e esposas entre as famílias reais de Portugal e Castela, pela parte dos pais e senhores de cada um dos reinos, o príncipe não se conformava com a ideia de casar com alguém que não amasse. Para mais, ainda não tinha o jovem Pedro completado nove anos e já uma primeira consorte lhe havia sido encontrada pelos progenitores. Tratava-se de D. Branca, um pouco mais velha do que ele, mas também ainda uma criança, que o infante recusaria pela sua debilidade física e galopante doença. De qualquer modo, com ou sem o seu consentimento, o casamento consumar-se-ia de facto, ainda no decorrer do vigésimo ano de idade de Pedro, numa cerimónia inesquecível a todos quantos a presenciariam. Uma vez mais, a Lusa Atenas foi invadida pela festa e 14 pela dança, pela música e pelos poetas, por trovadores, rimas, versos e harpejos, pequenos instrumentos do destino ao serviço da ironia que o haveria de servir, até ao desenlace trágico daqueles que perpetraram este drama. Desta relação, nasceriam D. Maria, D. Fernando - aquele que, depois do próprio D. Pedro, se encontrava no lugar seguinte da sucessão - e D. Luís, a cujos olhos seria negado o direito de chegar a ver a luz e as cores do mundo. No entanto, malgrado o nascimento destas crianças, o príncipe não se aproximaria de D. Constança e prosseguia a sua existência dada ao exagero, na caça e tão longe da família como das suas obrigações. Não se sabe ao certo a data em que uma linha de fascínio terá ligado o olhar de Pedro ao de Inês, mas parece ser consensual ter-se tratado de um encanto imediato e irrecusável desde o primeiro encontro entre príncipe e dama de companhia da mulher. Alguns alegam que tal terá sucedido no próprio dia do casamento com Constança; outros que o arrebatamento apenas teria tido lugar já o casal vivia uma imprópria e nefasta estabilidade feita de monotonia e conveniência. Do primeiro olhar à primeira noite de amor poucos luares terão passado pela sombra das 15 árvores que rodeavam o Paço. Sem que tivessem empregue grandes esforços em esconder a paixão que os unia, Pedro e Inês começaram, então, a viver um amor à margem das vontades de rei, corte e população, um amor adúltero, pecaminoso, na mesma medida da sua verdade, de toda emoção que escapava a D. Constança. A mulher, ciente da conveniência do seu casamento com Pedro, sabia nada estar ao seu alcance que o impedisse de encontrar a jovem que com ela viajara para Portugal. No entanto, tal imbróglio enfraquecia-a de dia para dia e, num único esforço de salvação, convidou Inês para madrinha de um dos seus filhos, na esperança de que um laço familiar a coibisse de amar o marido e lhe afastasse o coração. Mas esse recurso fracassara nos seus intentos e os encontros entre Pedro e Inês continuaram a acontecer; no Mosteiro de Santa Clara ou, a quinhentos metros, na Quinta das Lágrimas e nas mensagens trocadas pelo pequeno ribeiro que fazia a comunicação entre ambos os lugares. O povo já sabia, o rei já se atormentava, mas não queria imiscuir-se nos assuntos do filho. Entretanto, Constança adoecia. Assistindo a esta progressiva deterioração da esposa do herdeiro da coroa e à hostilidade 16 da população para com ele, a corte reuniria e decidiria a expulsão de Inês de Castro do território português, mas, de novo, o plano fracassava. Hospedada no Castelo de Albuquerque, a poucos quilómetros do Alentejo, Inês continuaria a corresponder-se com D. Pedro, ironicamente num lugar mandado edificar por D. Afonso Sanches, irmão rejeitado e odiado por D. Afonso IV, filho bastardo de D. Dinis, o mesmo que o teria levado, saliente-se, a decretar severas penas contra aqueles que cometessem adultério. Assim, em 1345, dando à luz D. Luís, D. Constança acabaria por perecer, levando com ela essa criança recém-chegada à vida. Por cruel que pareça, a morte da mulher deu-se à vida de Pedro como uma libertação. De imediato, ele ordenou que trouxessem Inês de regresso ao reino e, perante o desespero de muitos, a bela castelhana retornava aos braços do príncipe português, seguindo com ele para o Paço Real de Santa Clara. O povo irava-se mais - tal lugar estava rodeado de uma aura sagrada, dado ter sido habitado pela Rainha Santa Isabel, mas D. Pedro permanecia indiferente a essa animosidade. Afinal, ele, do mesmo modo que Inês, sabia bem que ninguém poderia 17 compreender que o amor que os unia estava para além, muito para além, das necessidades políticas de um reino, que ela, como ele, não temia contradizer, negar, por uma vez, as normas de uma tradição desumana, sustentada, precisamente, por aqueles para quem nem amor nem sentimentos de caridade popular tinham qualquer importância. Passavam juntos os dias e as noites, passeavam pelo ribeiro e amavam-se junto a algumas árvores secretas da Quinta das Lágrimas; cada vez mais frequentemente, deixavam o Paço e seguiam para terras da Lourinhã ou Touguia, onde se afastavam um pouco mais dos conflitos da Pátria contra eles próprios. A sua prole crescia e já tinham três filhos, que seriam mais, não tivesse um morri do logo em pequeno - três crianças ignoradas por D. Afonso IV e indesejáveis para a corte. Ao mesmo tempo, em Lisboa, D. Fernando, esse filho legítimo de Pedro e Constança continuava a ser educado para se tornar rei. Mas o tempo passava e a nuvem da tragédia principiava a ensombrar a história dos dois amantes. Os Castros cada vez mais visitavam Portugal e iam adquirindo cargos e influências concedidas por D. Pedro que preocupavam todos quantos rodeavam o rei. Os 18 irmãos de Inês chegaram mesmo a convencer - estávamos em 1354 - o príncipe a entrar em Castela e assenhorear-se do reino, mas D. Afonso IV acabaria por conseguir demover o seu filho de tais intentos, que, a concretizarem-se, colocariam, com certeza, em causa a tão preciosa paz alcançada entre os dois territórios. Por outro lado, os bastardos frutos do amor com D. Inês poderiam interferir com o direito sucessório de D. Fernando ao trono português e isso talvez significasse que os Castros chegariam ao poder e que, como tal, se perderia a independência. A amada mulher do infante, outrora alegre e festivo, agora preocupado e distante, era, a cada dia, um pouco menos aceite pela população; de tal modo que, quando a peste negra chegou a Portugal e começou a adoecer e a morrer gente aos milhares, fechando-se em reclusão ou partindo para outras terras muitos outros, a responsabilidade de tal praga divina foi imputada à castelhana. Seria então que, aproveitando tal clima de hostilidade para com o casal, o rei e os seus conselheiros próximos se reuniriam, em segredo, aos primeiros dias de Janeiro do ano da Graça de 1355, em Montemor-o- Velho, com o intuito de decidir que solução dar à improvável 19 guerra entre um amor e um reino. Deu-se o encontro num austero castelo, isolado da aldeia, sombrio e gelado, que o tempo não lograria ver sobreviver por muitos anos. Os lacaios sugeriram, então, que, tendo resistido às outras artimanhas, fosse Inês assassinada, tão depressa quanto possível. A princípio, D. Afonso IV opôs-se liminarmente a tão brutal recurso, mas, aos poucos, com o correr da noite fria naquele salão de pedra, mal e apenas tremulamente iluminado por dois castiçais humedecidos pelas horas, conseguiriam convencê-lo de ser esta a única solução possível: a vida passava, de modo irremediável, pelo rei e, em breve, a questão sucessória colocar-se-ia mal D. Pedro subisse ao trono. E, aí, seria mais que certo que este elegeria a prole de D. Inês, em detrimento da de D. Constança. Seria já tarde na madrugada quando, derrotado pelo cansaço, o Bravo cedesse aos argumentos de Pêro Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco. Estava dado o sinal: quem poderia, agora, salvar este romance de se acabar? Na manhã de 7 de Janeiro, um derradeiro aviso era dado pelos deuses... Quando D. Pedro e os seus companheiros se preparavam, àporta do Paço Real, para sair para a caçada, 20 um velho cão negro soltou-se da matilha e lançou-se em corrida em direcção a Inês, latindo e uivando, com olhos demoníacos, a boca a espumar e os dentes brilhando. Pedro galopou em sua direcção e, de um só golpe de espada, degolou-o, caindo, inanimado, o animal morto aos pés da mulher, salpicando-lhe ainda a veste com gotas de sangue... Um silêncio de morte invadiu o pátio e, de súbito, a madrugada pareceu mais escura. A Castro não conseguiu evitar sentir aquele acontecimento como um presságio e, durante todo o dia, sobressaltava-se ao mais pequeno ruído por detrás das suas costas e do loiro cabelo. O grupo conduzido por D. Pedro partiu, então, para fora da cidade, procurando não mais pensar naquele estranho episódio. Inês tentou distrair-se do mesmo e, passeando pela Quinta das Lágrimas, olhando o seu reflexo nas águas calmas do ribeiro, parecia-lhe ver uma coroa de pétalas colocada sobre a sua cabeça. Um pouco mais longe, quatro homens, guiados por instintos maus, galopavam em direcção à cidade - o rei e os seus algozes chegariam ainda antes do anoitecer. Pedro descia do cavalo e olhava em torno, por entre as árvores; Inês afastava-se do riacho; D. Afonso IV picava um pouco mais o cavalo 21 e acelerava mais e mais a marcha. Pedro e os companheiros recolhiam já alguma caça; Inês entrava no palácio; o rei chegava à cidade... Conta o mito que a linda Inês estava "posta em sossego" quando D. Afonso IV e seus sequazes arrombaram a porta dos aposentos, sobressaltando as três crianças. Imediatamente, os três conselheiros, atrás do rei, desembainharam as suas espadas, como se de um gesto de valentia se tratasse. Pôs-se Inês implorando o gesto humano do rei, que vislumbrasse, por um momento, a desgraça que lançaria em sua própria casa, que um assomo de serenidade lhe passasse pelo olhar e visse, diante de si, os filhos do seu amado filho, sangue do seu sangue, a cobardia e infortúnio daquele acto. O Bravo compadeceu-se da sua fraqueza, mas mais não foi capaz de fazer do que afastar-se e deixar cair ao chão a espada, para que os carrascos se lançassem à Castro e a degolassem diante do choro incrédulo das crianças. Estava a tragédia consumada, mas o amor não acabaria por aqui. . . Ao tomar conhecimento de tão cruel e miserável acontecimento, D. Pedro armou um exército e decretou guerra contra o próprio pai, tendo chegado a dirigir-se para norte, 22 liderando a sua tropa, a fim de tomar a cidade do Porto. Contudo, atempadamente, D. Beatriz conseguiu serenar os seus ânimos e fazer com que pai e filho assinassem a paz. D. Afonso IV ordenou-lhe, então, que não perseguisse os carrascos de Inês, ao que Pedro respondeu que já lhes havia perdoado, dando-lhe em troca a governação de parte dos assuntos do reino. Mas, dois anos depois, quis Deus que chegasse o dia mais temido pelos três infames assassinos: o rei falecera, tendo ainda, no leito de morte, aconselhado a que atravessassem a fronteira, e Pedro tornava-se, por fim, D. Pedro I, o justo e o cruel. Subido ao trono, não hesitou um segundo na sua primeira decisão: apelando às suas amizades em Castela, conseguiu a extradição de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves; Diogo Lopes Pacheco conseguira, no entanto, fugir já para Aragão e, depois, para França. Trazidos à sua presença, conheceram a loucura do rei-amante: tranquilamente sentado à mesa de jantar, saboreando a vianda mal passada e bebendo longos tragos de vinho, Pedro assistia à penosa execução dos cobardes - ao primeiro, o coração era arrancado pelo peito; ao segundo, pelas costas. Ainda insatisfeito, Pedro terá pedido cebola e 23 vinagre e trincado os corações, mesmo antes de incendiar os corpos. Em 1361, em Cantanhede, declarava, com o apoio do bispo da Guarda, ter casado sete anos antes com D. Inês para, dias depois, desferir o golpe final do seu amor. Com toda a pompa e circunstância, o rei obrigaria um cortejo de todas as classes sociais a seguir rumo ao túmulo de Inês. Assistiu-se, então, à sua trasladação para o Mosteiro de Alcobaça, onde mandara construir um magnífico monumento fúnebre, mas, antes de descer o corpo, ordenaria que as aias a vestissem com as melhores roupas e que lhe trouxessem a coroa para que ele próprio a coroasse rainha, depois de morta. Então, perante o olhar severo de Pedro, um a um, lenta e solenemente, nobres, clérigos e humildes membros do povo, ajoelharam-se diante da rainha Inês e beijaram-lhe a mão. D. Pedro morreria após dez anos de trono, aqueles de que se diz nunca ter havido outros em Portugal, julgando, de igual modo, fidalgos e órfãos. D. Fernando seguir-se-ia na coroa, mas morreria jovem e, para que se tornasse ainda mais absurdo o acto de Afonso IV, o reino cairia, do mesmo modo, no risco de perder a independência, resgatada, afinal, em 24 1385, por João, outro filho de Pedro, na batalha de Aljubarrota. Na Quinta das Lágrimas, as manchas do sangue derramado por Inês, conta o povo, permanecem visíveis numa rocha; a ciência alega tratar-se, apenas, da presença de uma alga, mas quem acredita nisso? Dinamene e Luís de Camões O Nome Sepultado nas Águas 1556. As vigias ora estavam cobertas pela espuma, ora eram lavadas pelas águas. Aqui e ali, pequenas algas transformavam-se em monstros marinhos, de braços trepando aos tombadilhos, surgindo, do breu, para inundar o olhar dos marinheiros aterrados. No convés, dois homens abraçados tremiam o frio do degredo, enquanto cada um impedia o outro de se deixar dominar, a cada vez que caíam. Mesas e cadeiras eram arrastadas, escadas abaixo. até aos calabouços, os restos de comida alojados nas frestas da madeira dos soalhos, o imediato escondido na cozinha para se aquecer e tentar fechar as feridas dos joelhos; as velas rasgadas arrastavam as suas dores pela proa e ajudavam o assobio dos ventos a tornar-se ainda mais aterrador. Dois ladrões agrilhoados, lutando contra as correntes, gritavam a quem quer que os acudisse, 28 mas o guarda, sentado do outro lado da grade, chorando a sorte e o arrependimento, já não se poderia erguer da sua alcova, com um mastro tombado a prender-lhe o ombro e os dedos trémulos da mão ainda a tentar alcançar o molho de chaves que tilintavam trinta centímetros à sua frente. Luís corria pela proa, atirado ao chão por uma vaga, para depois se erguer, a esforço, avançar alguns metros e ser, de novo, lançado ao ar pelo balancear da embarcação. Havia quem avistasse o capitão, ajoelhado perto do leme, rezando sabe-se lá a que deus. O negro da noite não permitia que se encontrasse a mão procurada, por entre a chuva, e a luz dos relâmpagos. Do longe, se alguém o pudesse ver, aquele navio não passaria de uma folha seca da árvore que morre, projectada nos ares e agitada ao vento, para ser mastigada pelas águas e fazer-se nuvem, até reingressar no ciclo das coisas, para que nascesse, talvez, flor noutro lugar qualquer. Mas essa história não é a de que esta narrativa fala. Na história desta narrativa, não há qualquer redenção pela naturalidade do tempo, na regeneração dos corpúsculos feitos órgãos, corações, tomados novos seres vivos, alguns deles, humanos. A casca de noz que dançava irracional a meio 29 das ondas não teria um minuto para a salvação, em cada um dos seus homens, no olhar das suas mulheres, uma a uma, chamada pelo nome próprio. Luís corria, Luís corria mais um pouco, e era deitado ao chão, escorregava pelo barco balanceado pela tempestade, era arrastado com outros homens pelos restos dos abrigos, até que os ossos embatessem nos corpos daqueles que se haviam já rendido. À Lua não seria permitido deixar qualquer sombra, nessa noite, iluminar, por um segundo, qualquer coisa para o eterno, ajudar o capitão a perceber a que imagem orava ou a parca visão de Luís a encontrar, naquele inferno, a pele breve de Dinamene. Luís alcançou o caixa de madeira que rodopiava no porão. A sua fechadura estava violentada e as primeiras folhas de papel podiam já ver-se, espreitando pela tampa entreaberta, com os cantos amarelecidos a serem tragados, rapidamente, pela humidade. Sentindo o casco abrir por debaixo dos seus pés nervosos, agarrou o manuscrito junto ao peito, apertando com toda a força que podia despender, e, gatinhando, gritando a voz rouca o nome que mal conseguia soletrar, percorria os escombros da barcaça que boiavam por entre a angústia. Do lado de lá da barreira de destroços, com os 30 cães presos por debaixo das traves latindo contra o temporal, a mulher esperava por ele. Parecia que tinha o mesmo brilho de sempre, solo sagrado em tempo de guerra, um oásis de paz a meio da chuva. O seu silêncio quase calava o ruído mais forte do rio em fúria. Luís aproximou-se mais, Luís chegou-se mais um pouco, as duas metades do casco afastavam-se entre eles para que as mãos não se tocassem. Vendo que ele não avançava, antes se petrificara diante do abismo, ela lançou-se para o seu lado do fim do mundo, para que pelo menos abraçá-lo ainda fosse possível. As palavras que terão trocado nunca ninguém as saberá. Os braços, envolvendo os corpos, amparavam ainda o manuscrito. Luís agarrava-os aos dois, à vida, ao pouco de vida que lhe restava e, como duas crianças, fechavam os olhos e apertavam-nos contra o rosto, como se não ver significasse que o tempo cessasse de existir, como se as coisas se interrompessem pelo simples facto de ninguém estar a olhar. O barco estava ir a ao fundo, a ir ao fundo para nunca mais. Os braços desenlaçaram-se e os corpos foram atirados ao prazer da rebentação das ondas. Chovia ainda, chovia cada vez mais. Dinamene via Luís perder-se por 31 entre os esbracejares dos marinheiros à deriva; Luís via Dinamene olhá-lo, quase sem lutar, quase à beira de aceitar que era demasiado tarde para qualquer promessa. Erguendo o mais alto que podia, com o braço esquerdo, centenas de páginas inquietas, com o outro alcançou o mastro que, agora separado, muito longe já do corpo destroçado do navio, se segurava à superfície das águas. Luís amarrou-se ao grande tronco e repousava, por um segundo, o peito cansado, mas Dinamene ameaçava tornar-se um ponto negro perdido na espuma. Com um braço no ar e outro a nadar, como contaria, depois, o seu povo, arrastou-se por entre as ondas - o rio havia acalmado, pensou - mas a ilusão de Luís nada poderia constituir, na realidade, e o que a história haveria de contar seria que não era ainda chegada a hora do perdão. E as ondas levantar-se-iam. O vento continuaria a assobiar por entre os estertores. Dinamene já não suportaria muito mais vida, a sua doçura não resistiria muito mais à agressividade. E Luís nadava, avançava lentamente e em rodopio, enquanto uma ideia não lhe abandonava a cabeça: "Se eu deixasse o manuscrito, se rendesse este livro às ondas, nadaria, com certeza, mais depressa." O seu punho ora se 32 tornava mais laço, ora cravava as unhas no papel, o olhar permanecia envidraçado, o corpo já não sentia a dor. A pele do rosto de Dinamene ficara ainda mais pálida e ela estava longe, longe, cada vez mais longe e mais impossível para o poeta. Parecia que aceitava o seu destino. Que ninguém pudesse ser maior que o amor - ela sabia que, se se deixasse salvar, ele seria forçado a abandonar a sua obra à ira do Mecom, para nada, para sempre. Quando o vento desceu e o rio, por fim, cedeu ao cansaço, Luís nadava longe, arfante, mecânico no rodar do único braço livre, a movimentos curtos e compassados, incapaz de pensar o que quer que fosse. Muito, muito atrás, já separados pela corrente, pedaços da barca boiando, vindo, aqui e ali, à tona, como no fim de um banquete. Todos os tripulantes, todos os passageiros, todos os condenados e cada um dos animais dançavam, entre as algas, em silêncio, por sob os escombros, como se aqueles fossem cruzes de um cemitério inventado à pressa, inútil para honrar a memória de uma ninfa que a rebentação de nenhum rio poderia arrancar à terra. Os primeiros esgares da aurora raiavam de azul e laranja o céu; transpirando em febre, Luís dava à costa - parecia que tinha acabado de cruzar o 33 universo inteiro. Ainda na posse dos sentidos, compreendia que estava vivo e que o manuscrito repousava, deitado, a seu lado. Adormeceu. Quando despertou na manhã seguinte, deu por si estendido no interior de uma gruta. Conta, então, a lenda que terá continuado a escrever, acrescentando ao poema os últimos acontecimentos daquela madrugada, trabalhados metaforicamente e assumidos na identidade de todo um povo. Outra versão, contudo, afirma que terá acordado numa praia, desolado, sem ninguém em torno que lhe confirmasse que ainda habitava este mundo, recapitulando, lenta e mentalmente, cada minuto de angústia. Em qualquer dos casos, terá dado por si num lugar deserto, sozinho, vendo passar diante de si imagens que confundiam ainda sonho e realidade, conflitos e cenas ternas da infância. Esta é, na verdade, somente uma das encruzilhadas conhecidas na história de amor de Luís Vaz de Camões e Dinamene. Afinal, nada aparece, aos dias de hoje, como certo e fidedigno. Que ela tenha sido um grande amor 34 na sua vida, não restam dúvidas, assim como é conhecida a vida boémia do poeta, plena de romances e penas sofridas em consequência dos mesmos; de resto, quando Camões é enviado para Macau como provedor dos bens dos defuntos e ausentes na China, é, precisamente, como um castigo pelo seu envolvimento amoroso com damas da corte. O que torna, então, especial a relação com Dinamene? Porque deve ser ela contada e recordada em detrimento de outras? Por duas razões fundamentais: pela essência trágica do seu corolário e pelo dramatismo que subjaz à presumível escolha que estaria implicada na morte da mulher amada: Dinamene perece no naufrágio em que Camões salva o manuscrito d' Os Lusíadas, erguendo-o das ondas com uma mão e nadando apenas com a outra. E se Luís tivesse abandonado o poema? Se tivesse empregue todas as forças que sobravam em resgatar Dinamene? Terá ele amado mais a sua obra do que a mulher que via ser sepultada nas águas, mesmo à sua frente? Não nos parece uma hipótese muito válida - Dinamene fez dele seu escravo, tornou-se o maior fantasma da vida daquele homem que morreria miseravelmente em Lisboa, oito anos depois de publicar a epopeia. Se, de um lugar alto, 35 muito, muito para além da Terra, Camões pudesse presenciar o tempo que se lhe seguiu até àquele que hoje passa, talvez se alegrasse de ver que Portugal jamais seria o mesmo sem o seu poema, que a nossa História teria seguido um destino bem diferente se, naquele momento decisivo, não tivesse optado pelo simbolismo das palavras e se lançasse à amada. Quinhentos anos depois, é de bom senso acreditar que tomou a decisão correcta, mas ele próprio, o Luís de Camões para além do poeta, o homem, esse que dor não infligiu a si mesmo? Talvez a sabedoria comum se incline a pensar que não se trataria de um amor suficientemente grande, que Dinamene poderia não passar de uma amante como as outras de que os livros nem sempre registaram o nome, mas não é isso que a própria letra do poeta escreveu e deixou, em herança, à humanidade. Ah! Minha Dinamene! Assim Deixaste, Aquela Cativa que me Tem Cativo, Alma Minha Gentil, que te Partiste e Um Mover de Olhos Brando e Piedoso, entre outros sonetos, demonstram a preponderância desta mulher na sua vida, antes e depois de morta. O episódio que narramos nas primeiras páginas deste relato contém um paradoxo: trata-se do mais célebre da biografia camoniana 36 e, ao mesmo tempo, permanece mergulhado em dúvidas, contradições e especulações, quase nada de preciso se sabendo acerca dele. Camões havia sido chamado de Macau a Goa, a fim de ser julgado por acusações de apropriação de dinheiros alheios, feitas por compatriotas. É, presumivelmente, na viagem de regresso que, na foz do rio Mecom, junto à margem do Camboja, uma tempestade leva o navio em que viaja a naufragar. Dinamene acompanha-o na deslocação, o que, só por si, revela a sua importância junto do poeta; nessa altura, Camões tem já escrita, ao que se julga saber, grande parte do poema épico. É deste acontecimento que retiramos a matriz nevrálgica da fotografia que guardámos para a memória colectiva do nosso autor maior: a de um homem infeliz, castigado pela vida, abandonado pelos deuses, sofredor e mártir em nome de um país inteiro; um homem que não se livra, no entanto, de um estigma de culpa, de imperfeição e de pecado. O náufrago que nada por entre a exaltação das ondas, erguendo centenas de papéis manuscritos, movendo-se lento à força de um sóbraço, não é, neste cenário, um herói; o homem que salva a sua obra e alcança a terra, tombando, inanimado, sobrevivente único 37 daquele naufrágio, reparemos bem, não alcança tranquilidade de alma, não se realiza, não fica feliz. Porquê? Porque, em nome da acção aparentemente heróica, poderá ter deixado morrer o seu amor. É, antes, um ser humano destroçado, arrependido, assombrado pela memória de um rosto angélico, sonho em vida e em morte, que nunca mais o abandonará. Aquele que se levanta, na manhã seguinte, e caminha trôpego padece de uma mágoa, de um remorso sem remédio, uma saudade que mesmo a sincera esperança de um reencontro espiritual no paraíso não consegue anular. Arrastar os pés sangrentos, durante vinte anos, até ao dia 10 de Junho de 1580, escrevendo sonetos úteis aos séculos vindouros, mas incapazes de, por um segundo, devolver ao seu autor a verdade de um abraço, a paz de chegar a ser feliz ao lado de alguém - esta é, com certeza, uma das mais bonitas e dolorosas formas tomadas pelo amor, um amor eternizado pela morte. Mas quem era, afinal, Dinamene? Para muitos, tratar-se-ia de uma cativa chinesa, o amor oriental de Camões que adaptou, literariamente, o seu nome: Tin-Nam-Mem ou Din-Nam-Mem. Contudo, o professor José Hermano Saraiva tem outra versão, segundo a 38 qual Camões se havia apaixonado, sim, pela filha de D. Violante, D. Joana, tese que, de facto, um soneto seu parece confirmar: "A violeta mais bela amanhece / no vale, por esmalte de verdura / com seu palácio lustre e formosura / por mais bela, Violante, te obedece"; outros textos falam de Anha, antropónimo que significava Joana; outros ainda chamam D. Violante de fera, mulher vingativa e cheia de ciúme. Sendo sabido que D. Joana foi mandada para a índia e que terá falecido numa viagem e que, segundo o Livro V das Ordenações Manuelinas, o amor entre um servo e a filha de um amo seriam punidos com pena de morte, o poeta terá ocultado a verdade da amada sob um nome codificado. "Dina" seria afinal uma sigla a que corresponderia: Dona Joana Noronha Andrade; a totalidade do nome - Dinamene - significa "poderosa no mar" (marca irónica, afinal, do seu destino) e correspondia à figura de uma ninfa, tanto em Homero como em Hesíodo. Ainda de acordo com este historiador, teria sido o próprio sobrinho de D. Violante, Diogo Paiva de Andrade, quem teria forjado uma história de amores entre Camões e D. Catarina de Ataíde, a fim de afastar a suspeita sobre D. Joana, sendo também admitida a possibilidade de terem 39 sido feitas alterações aos textos camonianos, a bem de ocultar os nomes desta e de D. Violante. Apesar de todas as incertezas, qualquer especialista concorda, hoje, que Dinamene foi a grande referência na construção do ideal camoniano do amor. A sua serenidade, a sua calma, o seu jeito solene e angélico de se mover e falar, a sua compreensão infinda, a paz enorme, um ser mais perene pelo carácter do que pela beleza física. A juntar à sua formação humanista, às referências das figuras de Beatriz e Laura, em Dante e Petrarca, aperfeiçoou Camões o ideal da mulher amada: doce, paciente, branda e humilde, de um sofrimento obediente e um medo sem culpa, pura nos sentimentos, espalhando o bem em sua volta - como Dinamene -, o acontecimento mais suave da vida de Luís, um apontamento de mansidão na sua existência de tempestade. Até 1567, ficou preso em Goa; no regresso a Portugal, é abandonado na costa de Moçambique por motivos pouco claros; aí, passados dois anos, o amigo e historiador Diogo de Couto encontra-o e fá-lo, por fim, embarcar de regresso à pátria, dezassete anos depois de ter sido forçado a deixá-la e já sem os originais 40 do seu Parnaso. Em 71, obteve a licença da Inquisição de publicação para Os Lusíadas, o que viria a suceder no ano seguinte. Oito anos volvidos, pobre e abandonado, calculada a sua idade em cinquenta e seis anos, viria a morrer Luís Vaz de Camões, sem a certeza de ter salvo todas as páginas do manuscrito nem voltado a encontrar outro amor verdadeiro. Ana Plácido e Camilo Castelo Branco Crime Passional Alguns especialistas camilianos duvidarão da justiça de atribuir a esta história a importância de um grande caso de amor, mas, do nosso ponto de vista, aquilo que aqui contaremos será demonstrativo da suave grandeza desta estima entre dois amantes que, mais que pertencentes ao período romântico, foram, eles próprios, protagonistas e autores das linhas e páginas que, por aquele nome, cunhariam essa época. É, em todo o caso, natural que, caso tenhamos a veleidade de comparar os caminhos de um amor real, de facto, feito de carne e ossos, com os requintes, não poucas vezes, inverosímeis de uma criação literária romântica, possamos ser tomados por um certo desapontamento, como crianças que, por fim, crescem e compreendem que não existem super-homens e que mesmo os homens grandes não são fáceis de encontrar. 44 Ana Plácido não será, talvez, a "mulher fatal" sobre a qual Camilo escreveu nos anos 50, não terá os seus atributos físicos, não inundará os salões com o seu perfume, à entrada de uma festa em que o resto do mundo seja povoado por loucos cruéis, incapazes de entender e permitir um amor para além da sanidade. Camilo não será, também, seguramente, um herói grego, não liderará uma rebelião contra homens maus em nome de libertar a sua amada; não montará o seu cavalo por entre a guerra nem voará até à janela de Ana. O amor entre estas duas almas condenadas não portará a pureza dessoutro de Simão Botelho e Teresa Albuquerque, ou sequer de Mariana, nem cessarão as suas vidas por não suportarem existir um sem o outro ou inspirarão, provavelmente, um romance que se torne paradigma de um novo período literário. N o entanto, é a Camilo que Ana entregará toda a sua vida a partir do momento em que com ele se cruza. É pela sua relação com ele que será presa, que se dedicará à literatura e à tradução, que será enfermeira durante os últimos anos de vida, que suportará a pena de lançar o escândalo no seio da alta sociedade portuense. Camilo, o homem frágil e doente, com impulsos suicidas a nublarem-lhe os dias 45 passados desde os dezoito anos, com tantas carências afectivas quanto as que possa um ser humano suportar, será o amante que se renderá às mãos da justiça em nome da sua companheira, que lhe dedicará novelas e sonetos, que, enfim, amordaçará os seus instintos de fugitivo irresponsável e, com ela, encontrará alguma paz de espírito, uma certa cura para a sua doença de ter de viver, sem mais entes queridos, sem dinheiro, sem olhar. E o amor entre eles, se fica aquém daqueles que o próprio Camilo imaginou e inventou para o papel e, logo, para a humanidade, é apenas porque os romances camilianos almejaram ser os maiores, mais puros e mais incríveis que seria dado ler aos leitores portugueses, e não por qualquer vulgaridade daquele que ele próprio viveu. Ainda que os críticos se dividam, é, provavelmente, por volta de 1856 que principia a relação entre o escritor e a jovem mulher. Contudo, há que andar bastante mais atrás no tempo para que nos seja possível compreender todos os tormentos de Camilo e, em consequência, os factos que conduzirão à amargura que, um dia, o levaria a colocar um fim à sua vida, a encurtar uma história de guerra que somente nos braços de Ana Augusta 46 chegou a conhecer e pronunciar o santo nome da paz. Nasce o filho da família Castelo Branco no número nove da Rua da Rosa, em Lisboa, uma cidade que nunca seria a sua, a 16 de Março de 1825, de Manuel Joaquim e mãe incógnita. O seu destino turbulento começará, desde os primeiros dias, a delinear-se: perde a mãe aos dois anos e o pai quando completava, ainda, uns magros dez. Criança, órfão, é levado com a irmã Carolina para Trás-os-Montes, onde fará a restante infância e os primeiros anos de adolescência, desenvolvendo, desde então, o olhar arguto e crítico, atento aos jeitos, gestos, vozes e hábitos da população do interior nortenho com que, depois, pintará muitas obras suas, célebres, entre outras coisas, pelos retratos sociais precisos e construções redondas e humanas de personagens que todos identificamos. Quem o conhece então, percebe-lhe jáa rebeldia, a instabilidade psíquica e a imensa carência afectiva que a sua pobre irmãjamais lhe poderia colmatar. É, com certeza, por isso que Camilo inicia, a partir daí, uma cruzada, amiúde, sem inimigo concreto, um ciclo de viagens desprovidas de cais, abandonadas a meio, sem esperança de retoma, apenas algum remorso, 47 quando a esse sentimento se permitia dar. Vai para Coimbra e para o Porto, tenta os cursos de medicina e direito, em ambos fracassa e se desilude; decidindo, então, seguir o caminho do sacerdócio, opção que, pouco tempo passado, não conheceria final diferente dos projectos académicos. Paralelamente, vira a primeira página da sua atribulada vida amorosa... Do alto dos seus dezasseis breves anos, casava, pela primeira vez, com uma aldeã um ano mais nova, Joaquina Pereira, nascendo, dois anos depois, a primeira filha, de seu nome Rosa. No entanto, num perigoso hábito que, mais tarde, lhe voltaremos a reconhecer, após esse acontecimento que, em condições normais, deveria unir mais um homem e uma mulher, Camilo abandona a família e foge, amedrontado, às suas responsabilidades. Em 1846, conhece e enamora-se de Patrícia Emília Barros e foge com ela da casa da família. Esta, evidentemente transtornada, lança-se em sua perseguição, mais judicial do que fisicamente, num processo que conduzirá Camilo, pela primeira de duas vezes, aos calabouços da Cadeia da Relação do Porto, segundo uma acusação que não coincidia com o "crime" praticado de facto: a de que teria roubado vinte mil cruzeiros. Para sua sorte, desta 48 vez, tendo entrado na prisão a 12 de Outubro, seria libertado logo a 23 do mesmo mês, prosseguindo a sua vida com Patrícia. No ano seguinte, saberia da notícia do falecimento de Joaquina e, em 48, num primeiro sinal de que nascimento e morte estariam, muitas vezes, ligados de modo algo perverso, morria a filha Rosa e nascia outra, Bernardina Amélia, agora de Patrícia. Mas, uma vez mais, a esquálida figura de Camilo haveria de desaparecer, com a sua sombra, por ruas e becos pouco recomendados, e buscar abrigo onde não fosse chamado a tornar-se qualquer coisa acerca da qual nunca teve lições: ser pai. Não se revestindo de tal relevância para que fosse, aqui, necessário chegar a nomeá-los, outros amores ainda passaram na vida do escritor até que atingíssemos esse citado ano de 1856. Uma vez mais, os estudiosos dividem-se: uns dizem que, antes desta data em que se inicia o relacionamento com Ana Augusta Plácido, eles já se teriam visto num baile seis anos antes, momento a partir do qual Camilo se dedicaria à prosa sobre a dita "mulher fatal", assim como a um ciclo de poemas acerca de uma "A ***". Contudo, é sabido que outros autores escreveram em nome 49 deste criptónimo, um recurso típico da época literária, tese auxiliada pela evidente desarmonia entre o número de caracteres de "Ana"e "A ***". Outros sustentam que Camilo teria visto Ana somente em 55 e que, a partir daí, começaria a fazer-lhe a corte, mas não existem dados concretos que suportem tal hipótese. Assim, é sobre terreno duvidoso que chegamos à data em que se tornou claro aquele amor. Como em outras histórias, também este era adúltero e, para muitos, pecaminoso, pois, Ana Plácido estava já casada com um poderoso homem de negócios, Manuel Pinheiro Alves, influente proprietário, entre outras coisas, de diversos bancos. O seu casamento havia sido contraído a 28 de Setembro de 1850, precisamente um dia após Ana completar dezanove primaveras, tendo o marido mais vinte e quatro que ela. Imediatamente, dada a notoriedade das personalidades envolvidas, a história marginal do caso entre Camilo e Ana começou a ser comentada pelas ruas e cafés, dos círculos relativamente restritos aos recados, mais ou menos subtis, dos jornais. No entanto, Manuel Pinheiro Alves, em nome da estabilidade familiar e, sobretudo, do seu estatuto social, fingiu, 50 durante muito tempo, ignorar tal boato e nada fazer para que tal cessasse. É assim que, a 11 de Agosto de 1858, volvidos quase oito anos de esterilidade da mulher e já perdidos os sogros, um em 52 e o outro em 55, se congratulou com o nascimento do primeiro filho, a quem dá o seu próprio nome, mas que, mais tarde, para perturbar o seu repouso, ficaria conhecido apenas como Manuel Plácido, aquele que, todos sabiam, era, afinal, fruto do amor proibido entre a sua esposa e o "periodiqueiro" Camilo Castelo Branco. O caso prosseguia, até ao dia em que o poderoso homem já não mais pudesse esconder a raiva e angústia que lhe inundavam todos os sentimentos sobre a mulher e a mandasse fechar em casa de Agostinho Francisco Velho, um amigo de longa data, na esperança de que o afastamento do amante o fizesse esquecer. Mas, afinal, o mesmo cárcere parecia só estimular mais o desejo de Ana e, numa noite, diante de amigos e do próprio marido, ela soltava a temida confissão: "Camilo é o homem de quem gosto e o único capaz de fazer a minha felicidade." Enfurecido, Manuel Pinheiro Alves retira-a daquela casa e envia-a para um isolamento ainda mais drástico: o Convento da Conceição, em Braga, com uma 5I renda de novecentos mil réis e, de novo, a convicção de que colocaria um fim àquela vida dupla da esposa e terminar, de vez, com a vergonha de que o seu nome e o seu casamento eram alvo no contexto da alta burguesia da cidade. Mas, renovadamente, o amor de Camilo e Ana faria das suas e superaria as expectativas do povo - Camilo, aquele homem débil e febril, que abandonara todas as mulheres que tivera, sem grandes constrangimentos sociais, não deixava a mulher do rico banqueiro? - e, após trinta e oito dias de isolamento, o escritor ia raptar Ana e fugir. Iriam morar juntos, como uma família a que se acrescentava o filho, Manuel, para a Rua da Cedofeita. Compreendendo, por fim, que já nenhum meio poderia impedi-los de estarem juntos, Manuel Pinheiro Alves dispôs-se a um último argumento, um que lhe deixasse, ao menos, a salvo a honra. E, assim, passados onze meses sobre o acontecimento da fuga, iniciava nos tribunais um processo por adultério contra ambos. É então que, a 6 de Junho de 1860, D. Ana Augusta Plácido dá entrada na Cadeia da Relação do Porto, onde é aferrolhada. Camilo escapa à acusação, mas, passado algum tempo de solidão, entendendo, em luta contra a fragilidade 52 das suas emoções, que a mulher que amava, a única capaz de o fazer feliz, estava presa por motivos que diziam tanto respeito a ela como a ele próprio, o franzino homem fazia-se gigante e encetava o maior gesto de amor de toda a sua vida: no dia 1 de Outupro, perante a estupefacção geral, entregava-se Camilo Castelo Branco à justiça e, pela segunda vez, passava a porta da cadeia, para se juntar a Ana. Logo na primeira noite, decidiu pôr-se a trabalhar e começou a traduzir L' Art d'Être Heureux (ironicamente, A Arte de Ser Feliz), de Droz - afinal, ele sabia bem que só a leitura e a escrita o poderiam colocar a salvo dos seus instintos depressivos e medrosos. Mas aquilo que mais lhe permanecia em mente era a tristeza das imagens contempladas ao passar, algemado, até à cela que seria sua: os antros imundos, a sub-humanidade, o ar glacial e pestilento, as paredes pegajosas de humidade, as abóbadas profundas e esfumadas dos corredores... Era apenas o princípio de um longo período de permanente angústia e regresso do impulso suicida. No entanto, seriam capazes de angariar alguns companheiros fiéis, como o chefe guerrilheiro Milhandres, o velho António José Coutinho, o temível general 53 "Caneta", isto é, José Maria de Sousa, e, é claro, o famoso Zé do Telhado, membro de uma vasta família de salteadores e, rezam as crónicas, verdadeiro guarda-costas de Camilo na prisão. O escritor temia que Pinheiro Alves negociasse com alguém a sua morte e o grande e respeitado Zé, tomando conhecimento desse receio, tê-lo-á tranquilizado (este auxílio, dizem muitos, terá sido totalmente gratuito e de boa vontade, mas a verdade é que o advogado de Camilo, o doutor Marcelino de Matos, se tornou, também, defensor de Zé). De seu verdadeiro nome José Teixeira da Silva, ganhando a alcunha de "Telhado" por ser o nome do local onde nascera, perto de Penafiel, terá sido, depois, condenado ao degredo em Angola, mas continuou a dar que falar, até que morresse na miséria. Autor de assaltos e homicídios, Camilo admirava-lhe a magnanimidade para com os pobres e, por isso, dedicar-lhe-ia todo o capítulo XXVI das Memórias do Cárcere. Essa foi, de resto, uma das obras escritas pelo autor romântico durante o tempo de cativeiro, coincidindo com uma das fases mais férteis da sua criatividade; outra seria o inesquecível Amor de Perdição, dado à estampa, depois, em 62, com o subtítulo de Memórias 54 de Uma Família, remotamente inspirado na biografia de seu tio, Simão Botelho, mas transformado num grande e fictício relato amoroso, a lembrar um Romeu e uma Julieta, de Shakespeare, ou uma Dama das Camélias, de Dumas Filho. Também Ana, através dele apaixonada pelo mundo das letras, arriscaria escrever Luz Coada por Ferros, assinada, como outros textos seus, apenas por "AA". A 16 de Outubro de 1861, sairia, enfim, a absolvição, concedida em tribunal pelo juiz José Maria d' Almeida Teixeira de Queiroz, pai de outro escritor intemporal: Eça, naturalmente. Vendo, então, a mulher, de novo, em liberdade, Pinheiro Alves pressioná-la-ia a alojar-se no Recolhimento de São Cristóvão, mas Camilo, mal superando as dificuldades económicas que o atormentavam, mais uma vez, foi buscar Ana. A 15 de Julho de 1963, o esposo, vencido, falecia. Entretanto, a energia regeneradora que insistia em se associar à morte fazia nascer, Jorge, o segundo filho dos amantes. É então que, herdando o filho Manuel as posses do defunto, a família se muda para a quinta de São Miguel de Ceide, em Famalicão, antiga propriedade daquele. Na paz deste lugar, passarão os restantes anos das suas vidas; aqui, Camilo prometerá a Ana que viverão, 55 exclusivamente, da receita das vendas dos trabalhos literários; também aqui, nascerá, em 64, Nuno, o último filho, e, já em 86, Vulcões de Lama, o derradeiro romance camiliano, escrito já num estilo naturalista, capaz de agradar aos leitores. Aqui, enfim, crescerá a angústia e a doença de Camilo: desde 56 a perder a visão, o escritor acumulava à dor de ver morrer os entes queridos (entre os quais, em 77, o primeiro filho), a loucura do segundo e a estroinice do terceiro. Já necessitado de acender catorze candeeiros em torno de si para escrever uma carta, ele e Ana casam, por fim, no dia 9 de Março de 1888. A partir daí, só ela o segura à vida, amando-o desvairadamente, mesmo na total debilidade - é a sua mulher, a sua amiga e a sua enfermeira - passa ao papel, noites a fio, os poemas que Camilo elabora mentalmente e lhe dita, mas percebe que vai ter de lhe sobreviver. Nem todo o amor do mundo salvaria um escritor de não poder escrever. Ana Plácido sabia que Camilo fugiria da vida no dia em que cegasse completamente, o que terá sucedido a 1 de Junho de 1890, num tiro de revólver auto-infligido. Ela resistiria, ainda, cinco anos. 56 Maria de Jesus e António de Oliveira Salazar Nenhum Amor As velas acesas em volta, estendidas pelos móveis negros, pobres, conseguiam, a medo, interromper o vento frio que assomava, a pouco e pouco, às vidraças. Da sua luz trémula, muito ficava por iluminar. Os batentes das portas acompanhavam o tocar das portadas nos beirais das janelas e os tapetes, no chão, já não se sacudiam mais do pó dos anos, esperando apenas o último estertor dos passos lentos e arrastados dos chinelos de Maria. O quarto austero não tinha em si qualquer vida que pudesse emprestar aos corpos que o ocupavam, não tinha palavras doces a dispensar nem segredos que, revelados, ainda quisessem acordar as paixões, animar, pela vez decisiva, os espíritos de morrer. Era demasiado tarde, demasiado óbvio que o que fica por fazer em vida jamais poderá ecoar nos tribunais infernais da morte. A mulher segurava as mãos 60 frias do velho, aconchegava os cobertores ao corpo hirto e o saco de água quente aos pés perdidos de caminhar em círculos. Acabara a última oração, não tinha uma só palavra ainda a dizer a António ou a Deus. Esperava, só. Entregava a sua devoção a uma frase final, a um derradeiro articular de verbos pelos lábios secos do moribundo que justificassem toda a sua dedicação, o destino das décadas passadas a seu lado, o aperto das dores no coração a cada vez que uma nova mulher tocava a pele do Presidente do Conselho. Mas nada aconteceria, nada. Nada seria dito, gesticulado, pressentido, sequer. Maria nunca esqueceria aquele momento como afirmação definitiva do absurdo da vida, sentença última da injustiça do mundo, das ordens, dos sentimentos, dos actos - Salazar expelia o último golpe de ar que ainda guardava dentro e deixava o rosto virar-se para o outro lado do leito, aquele onde o corpo de Maria não estava, sofrendo, sentado numa cadeira de madeira a gemer a velhice e as misérias do lugar, sem uma palavra de despedida, sem que os seus olhos evitassem que os dela ficassem, para sempre, na orfandade. Era demasiado tarde para que o amor tivesse sentido, para que compreendesse a vacuidade de se viver noutro nome que não 61 em seu próprio. Maria nunca quis um corpo, nunca mendigou afeição, uma promessa ou uma casa; nunca pediu a Salazar para aparecer em público a seu lado, que a salvasse de ser sozinha, da má-língua dos populares do seu lugar, nunca tratou mal aquelas que o desejavam, nunca se negou ao que quer que fosse que lhe pudesse fazer bem. Em muitos momentos, antes de se deitar, enquanto arrumava os últimos objectos e planeava, mecanicamente, a organização do dia seguinte, se interrogou sobre o sentido do seu afecto, magicou as consequências de cada facto novo na vida dele e no quanto isso interferiria com a sua própria, nos homens que deixou, naqueles a quem não deu a mínima chance de lhe chegarem a tocar. Ponderou rupturas, abandonos, quis mudar de casa, de senhor, de cidade, de passado; deitou contas ao tempo a passar, às rugas que lhe cortavam o rosto, às noites consecutivas em que não dormia à custa das dores nos ossos. Tomou banho vendo as nódoas negras, as manchas nas coxas, passando as pontas dos dedos pela pele áspera das pernas, feita mais suave na barriga e no peito; sentiu que o seu sexo não lhe pertencia, que aquilo em que se tornara correspondia a um corpo que nunca pedira à vagina para lhe 62 pertencer. Sentiu a ruína das cores das suas veias, o apodrecer das articulações, a infinita estranheza de ser uma menina adolescente a chocalhar dentro de um corpo de velha que não poderia ser o seu, que ali havia sido posta por um lamentável engano da vida, naquele momento da História, naquele dia do ano, depois de todos aqueles anos. Sentia culpa, um peso enorme numa reserva moral que a impelia, por vezes, a chegar-se diante dos homens e pedir desculpa por tão inacreditável erro, confessar que não era ela quem ali estava, que tinha apenas quinze anos e ainda trabalhava a terra, ao lado dos braços grandes do pai e dos seios fartos da mãe, caídos com a coluna curvada de cavar e lavrar. Até que retomava a si, deixava a banheira feita de chapa de um metal barato e se secava, apressadamente, envergonhada, tentando voltar a sentir o soalho debaixo dos seus pés como real, único possível, e contar os anos que tinha, na certeza absoluta de que tomara as opções correctas na vida e que era Maria de Jesus Caetano Freire, nascida em Junho de 1884, no lugar de Freixioso, pertencente à freguesia de Santa Eufémia e portadora de sabe Deus que números de documentos pessoais, a governanta do senhor António de 63 Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Portugal, e nada mais. Ninguém disse que o amor, de modo a ser amor, pedia que dois corações o sentissem, que os dois corpos de um abraço se entregassem com a mesma verdade e a mesma doçura. Se há coisa que distingue o amor da paixão, entre milhares de outras teorias sobre aquilo que é, justamente, irredutível a qualquer esforço racional de teorização, é que não é menos amor por ser sentido apenas por um dos termos da relação acerca daquele que diante de si se deixa estar e ser olhado. A história de amor entre Oliveira Salazar e Maria de Jesus é, na verdade, a história de amor de Maria por António e não é menor que as outras por causa disso, talvez, pelo contrário, se totne, se é de amor que falamos, algo ainda maior que as restantes. Maria abdicou de toda a sua vida por Salazar, suspendeu os seus desejos, calou os seus medos, não tirou um minuto de tempo ao líder do Governo português para lhe falar dos seus sentimentos, nunca o quis perturbar com os anseios que a acordavam a meio da noite, sobre o receio de que algo lhe acontecesse, de que algum inimigo político o quisesse matar, que os tempos mudassem e a inveja e ódio de muitos homens importantes pudessem ganhar 64 forças para retirar António do poder e colocá-lo em cativeiro, sofrendo, até ao último dos seus dias, as penas da vingança. Maria não deixou que percebesse nunca a água que lhe inundava os olhos quando lhe entregava as cartas das mulheres que o tinham da forma como ela nunca o haveria de ter, baixando a cabeça, fixando os olhos num ponto sujo do chão para ganhar propósito que justificasse afastar-se para ir buscar uma vassoura ou, pelo menos, dar ordem a alguém para que o fizesse. Não lhe deu uma palavra desagradável, jamais lhe confessando as reservas que tinha quanto ao verdadeiro interesse de muitas daquelas mulheres no ditador fascista. Sofreu, dolorosa e amargamente, no silêncio profundo dos corredores do Palácio de São Bento, aguentou todas as dores e doenças de Salazar, ouviu todas as queixas, soube de cada nova medida para o País, fez tudo quanto pôde para tornar possível a vida do homem que se emprestara, com todas as consequências que o presente bem conhece, ao governo de Portugal. Se ele mandava na vida política da nação, ela mandava na casa, na vida prática do homem todo-poderoso. Muitos poderão questionar a escolha por estas personagens ou, pelo menos, a opção 65 pela figura de Maria de Jesus de entre as mulheres que rodearam, entraram e saíram na vida de Salazar, mas uma visão profunda do conjunto de linhas que enuncia o amor obriga a que se eleja a governanta, a mulher amargurada e dura, de uma vez só, eterna amadora do silencioso ditador, como aquela que merece ser recordada pelo tempo e homenageada por ter amado sem regresso, entregue braços, mãos, peito e preocupações a quem nunca lhe deu um princípio de resposta, uma só nota de esperança que retribuísse os seus sentimentos. Maria amou aquele que não queria por ela ser amado e respeitou essa indiferença com a verdade e o segredo de uma vida incapaz, à partida, de inspirar qualquer romance. Mas ela, em si mesma, é a personagem literária por excelência, o poço humano de contradições, de erros, de acções sem sentido e prémios sem merecimento, de coisas feitas ao acaso e projectos encetados sem futuro. A história do seu amor acontece, toda ela, sobre o terreno da sua própria pele; foi a sua carne, prometida à solidão, o cenário único da guerra das suas emoções de fascínio contra as de angústia. Maria viveu um amor adolescente toda a vida, um amor elaborado mentalmente, sonhado a cada manhã, mas incapaz de se lançar, em 66 coragem e loucura, para a concretização de algo real. Ela amou fantasmas e nem esbarrar na surdez do líder do Governo a fez, algum dia, abrandar por ele o seu cuidado. Portugal vivia, então, o miolo do século XX que teve, amordaçado por uma ditadura fascista mantida, em grande parte, à força pela propaganda e pela opressão de uma polícia política instruída para silenciar qualquer acto contrário à figura distante de Salazar. Outra significativa porção da educação dada ao povo era garantida, precisamente, pela imagem que o Presidente do Conselho quisera construir como espelho de si: um homem austero, tornado duro pela pobreza, sério e casto, isolado e intocável, casado com a Pátria, demasiadamente enamorado pelo País para que algum espaço pudesse restar a furtivas tentativas humanas e frágeis de amar uma mulher. Durante longos anos, e mesmo já depois da sua morte e, mais tarde, da queda do próprio regime, a ideia tida de Salazar não era muito diferente da de um monge, questionando-se, talvez, até a sua sexualidade. Contudo, durante os últimos vinte anos, jornalistas e historiadores revelaram-nos, afinal, que aquele homem que apregoara os valores da família e da moral cristã, que edificara em sua volta um 67 castelo de barreiras, uma ilusão de desumanidade, a obediência a um compromisso demasiado sério com Portugal que lhe roubava todo o tempo e toda a disponibilidade para os assuntos do coração, era, afinal, visto por dentro, um indivíduo totalmente diferente. Não é apenas o caso que se lhe tenha conhecido alguma agitação amorosa, um relacionamento fugaz com uma mulher, mas, outrossim, todo um leque de figuras femininas que, a diversos tempos, privaram com a sua dimensão propriamente masculina, não poucas vezes, em simultâneo. O moralismo beato que imperava no País não era, contudo, compatível com aquele tipo de comportamento e o governante proibia, terminantemente, qualquer fuga de informação acerca dos seus envolvimentos amorosos, para que escapasse para o exterior, apenas, a figura santa do chefe, um molde forjado por cima da sua realidade de humano comum, um retrato de homem só bordado em si por ele próprio, imune às imposições da carne. Somente a partir dos anos 50, sentindo a necessidade de uma mudança no estilo da propaganda e optando, agora, por uma táctica de humanização, Salazar permitiria a divulgação de fotos suas na companhia de algumas mulheres, 68 sempre em posições e lugares cuidadosamente estudados, apenas diante da objectiva de um homem da sua inteira confiança, Rosa Casaco, guarda-costas da PIDE e, mais tarde, um daqueles que viriam a participar no assassínio de Humberto Delgado. A verdade é que, desde cedo, António, o estudante promissor, inteligente e educado, despertava a cobiça e a disputa das famílias com filhas casadoiras, dos tempos do seminário e da universidade à pequena casa sem electricidade, escura e acanhada, num rés-do-chão da Avenida Duque de Loulé. Chegado ao lugar de Ministro das Finanças, imediatamente ordenou que Maria de Jesus viesse para Lisboa para ser sua governanta, já a conhecendo dos tempos da República dos Grilos, em Coimbra, onde era empregada. Salazar, de resto, teria de a mandar vir contra a vontade de outro antigo estudante dessa república, o amigo Cerejeira, futuro cardeal, que também pedia a presença de Maria. Rapidamente, a mulher pobre e rude, até então guiada pela sina de seguir a vida dura levada pelos pais no trato da terra e com o corpo já marcado pelo trabalhar, alterou os seus modos rurais e aprendeu o protocolo, pondo e dispondo com mão firme na governação 69 da casa do homem que decidia os destinos do País. O enamoramento, contavam os amigos de Salazar, aconteceu rapidamente. Quase tão céleres, precipitaram-se os rumores acerca do relacionamento entre os dois. No Vimieiro, dizia-se que tinham um caso e que as pupilas do Presidente do Conselho eram, na realidade, as duas filhas ilegítimas do casal. Até as senhoras da alta sociedade comentavam o assunto, exibindo, no calor dos seus círculos, fotos de jornais com as meninas, cobrindo-lhes a testa e dizendo: "Vejam! É o nariz e o rosto dele." Em Santa Eufémia, já a chamavam, pelas costas, a "ministra" e temiam, cada vez mais, o poder que impunha a sua figura altiva e distante, ao lado do seu senhor, de cuja imagem tratava, para quem cozinhava e por quem temia revoluções e atentados. Quando, pelas férias de Natal, Salazar se deslocava à sua terra, Maria acompanhava-o; pelo caminho, faziam, regularmente, uma breve paragem pelo lugar dela. Ele não chegava a sair do carro, esperava, apenas, por Maria, sereno e paciente, enquanto ela dava uma volta, passeava um pouco e voltava, trazendo-lhe água quente para lhe reconfortar os pés, para que nada faltasse ao seu amo. Chegados à quinta, ficavam 70 os dois debaixo do mesmo tecto e dormindo no mesmo piso, mas em quartos separados. A criadagem comentava, contudo, que, a meio da noite, costumavam ouvir-se passos e garantiam ser ela quem deixava o seu quarto, encaminhando-se para o dele. Entretanto, Maria assistia ao vaivém amoroso, aos esbanjamentos de coração de António Salazar, muitas vezes saltando do aparente esquecimento, de novo, para a boca de cena. Viu os fantasmas de Julinha e de Maria Laura, o regresso de Maria Emília e as suas cartas, aquelas que acudiam aos pedidos do homem que já não conseguia viver sem as suas previsões astrológicas que, de resto, lhe anteveriam o ano negro de 1968, aquele em que tombaria, fatalmente, de uma cadeira no Forte de Santo António do Estoril. Teve de resistir, tão imperturbável quanto possível, às visitas de Felismina à quinta, a professora que mal lhe dirigia uma palavra, sendo nítido, diz quem lá estava, que se odiavam mutuamente. Viu Maria Emília voltar, uma vez mais, e soube da operação que ela fizera para extrair os ovários e, porventura, extinguir o risco do escândalo de ter filhos do solitário líder do País. Assistiu ao caso com a viúva Carolina Asseca, de quarenta e cinco anos, sobrinha da condessa de 71 72 Sabugosa e, em 1951, à entrada em cena de Christine Garnier, jornalista e escritora francesa sem glória em qualquer das áreas, chegada a Portugal, para, precisamente, escrever um livro que narrasse a vida de Salazar. Suportou as suas viagens constantes, os passeios, a vida dúplice do amado, a cautela com que se movia, as flores e cartas que mandava, sem compromissos; e serviu, ainda, os chás que acompanhavam as conversas entre ele e cada uma daquelas senhoras, ao modo como ele se servia destes episódios para escapar ao aborrecimento da vida política. Até ao derradeiro momento, Maria não soube ou não quis renunciar ao seu amor e, quando Salazar morria, era ela e nenhuma outra quem o atendia, à beira do leito, sentada numa cadeira velha num quarto sombrio. O homem não foi capaz de lhe dedicar, nem naquela última hora, um olhar. Ela, por seu lado, honraria até à sua própria morte o amor nunca retribuído que lhe tinha com a castidade do seu corpo. Nunca se livrou das calúnias e dos mexericos; passou muito mal depois do 25 de Abril de 1974, tendo de viver de esmolas e acabando os seus dias no Lar João XXIII, perto de Benfica, sem ninguém que lhe amparasse a cabeça ou trouxesse botijas 72 de água quente para os pés. Por essa altura, uma infecção crónica na bexiga obrigaria a exames ginecológicos que revelariam o inacreditável: chegava donzela à morte - o hímen estava intacto - o seu amor imenso nunca merecera o pacto carnal. 73 Nota: Este relato não seria possível sem a leitura de Mulheres de Salazar, publicado pela Editorial Notícias em 1999, da autoria de Felícia Cabrita, a quem, de resto, tomámos de empréstimo a feliz expressão final. Vieira da Silva e Arpad Szenes Sensações de luz Eram dois lados distantes do mesmo continente, um próximo de Budapeste, o outro de Lisboa; dois pontos longínquos no mesmo horizonte, entrelaçados por labirintos prontos a construir teatros, entre guerras e a orfandade, sem territórios nem armas, com mais cores e traços que palavras. Arpad, nascido, por acaso, na Hungria em 1897, revelava desde muito cedo a sua aptidão para o desenho. Foi, passo a passo, descobrindo a arte contemporânea muito para além das fronteiras do seu país: a música de Bartok, a de Kodaly e a arte vanguardista de Kassák, até que, acabado de descer o pano sobre o primeiro grande conflito bélico mundial, se lançasse na Academia Livre de Budapeste. O ensino liberal despertara-lhe a urgência de sair e estar cara a cara com os nomes e as obras que aprendera a admirar, pelo que, 76 em 1925, quando decide estabelecer-se em Paris, já havia percorrido todas as grandes capitais artísticas da Europa. Em Portugal, ou noutro lugar qualquer, em 1908, vinha à luz Maria Helena, no seio de uma família que, desde criança, lhe estimulou o interesse pela música das artes, que a educaria num destino concretizado aos vinte anos, quando viajou também para Paris, na companhia da mãe, a fim de estudar escultura e pintura até que, passado um ano, se decidisse apenas por aquela que tornaria inesquecível o seu nome. Instalada no Medical Hotel, no Faubourg St. Jacques, saía, todas as tardes, em longos passeios pela cidade, em busca dos pintores antigos, dos modernos, pelas galerias e pelos museus, de Cézanne e de novas formas de configurar o mundo. Mais tarde, perceberia que, se não tivesse trocado Lisboa por Paris naquele preciso momento, nunca teria podido continuar a pintar - era necessária uma cidade que povoasse o espaço de invenções e estranhezas, que a contaminasse e tornasse instrumento do próprio lugar desconhecido, e estações, aeroportos, pontes, edifícios complexos e comboios metropolitanos - só naquele conjunto de luz e 77 recantos de sombra os poderia encontrar. Era uma mulher da cidade. Arpad Szenes e Vieira da Silva conheceram-se, pois, nessa Paris, corria o ano de 1928, quando ambos desvendavam as linhas da pintura e da escultura da Academia Ranson, nos cursos de Bissiere, aquele que encontraria, quer na obra de um, quer na do outro, o seu próprio prolongamento ontológico e uma satisfação muito para além da arte. Arpad fazia-se de guaches e têmperas, da exploração dos ambientes, das sensações da luz. Vieira era dos temas urbanos, da profundidade do espaço e da angústia da guerra. Afinal, se eram, aparentemente, autores distantes, veiculados por estilos diferentes, a sua proposta estética era pouco mais que a mesma: em ambos reinava a admiração pela pureza dos meios, a candura da expressão eleita para pintar. A admiração de Helena, despertada aquando de ouvir o humilde aspirante a pintor ensaiar breves frases que explicassem o desenho em que, então, trabalhava, haveria de ser retribuída um ano depois, quando Arpad, regressado de uma estadia na cidade natal, se impressionaria profundamente com os incríveis progressos encetados pela jovem 78 pintora. E essa admiração transmutar-se-ia em amor, numa relação tranquila e duradoura, assente num ininterrupto diálogo de um ao outro, dia após dia, de arte e de vida, perceptível na obra de ambos e famoso entre todos quantos os rodearam; um amor que, provavelmente, contrapunha ao rebentamento e eloquência dos grandes romances que nos habituámos a ouvir e a contar, a sua paz, a sua certeza, a inabalável segurança de um encontro entre dois olhares destinados à mesma direcção, as duas extremidades de um continente demasiado terreno para os albergar dentro das suas disputas. Nos primeiros tempos depois do casamento, em 1929, Arpad abdicaria das suas próprias ambições, em nome de se dedicar, exclusivamente, a Maria Helena e ao desenvolvimento da sua técnica, ao aperfeiçoamento das suas intuições. A mulher vulnerável e melancólica, a precisar de apoio e de certezas para a confiança no seu génio, como ele próprio a descrevia numa conversa com Anne Philipe, uma amiga comum, necessitava, à época, de toda a sua atenção. Ela, rapidamente, procuraria agradecer e retribuir-lhe, pintando retratos que encheram as paredes de casa e, logo em 1930, um Retrato de 79 Família, em que ela própria olha, fixamente, o espectador e Arpad, representado numa silhueta a pintar num cavalete, respira mesmo por detrás da figura dela. Ele levava-a a viajar, a descobrir um espaço incomensurável ao olhar do artista plástico, revelava-lhe os mistérios da Hungria e da Transilvânia. Ela tentava explicar-lhe a experiência da sua infância, o espanto eterno de desvendar a serra de Sintra, com as duas colinas quase simétricas, quase outras, conforme a luz do dia, diante do horizonte da pequena várzea. Um e outro, abeirados na varanda de um quarto no topo de um hotel de Marselha, contemplavam a visão do mundo ao longe e decifravam a inspiração para representar o espaço em meios não menos abstractos do que as vagas tentativas de descrever o seu amor de calma e compreensão. Quando regressavam a Paris, seguiam o curso dos anos pautando o tempo com o rigor do ritmo do seu trabalho; estavam quase sempre em casa e, só aqui e ali, saíam à noite para encontrar outros artistas, num qualquer café de Montparnasse. Trabalhavam como abelhas. Incansáveis e apaixonados, não treinavam gestos nem decoravam técnicas de manuais para depois colocar em prática; antes, deixavam que o espírito 80 lhes chegasse à ponta dos dedos e destes aos pincéis; às vezes, desejavam pintar uma coisa e, no instante de a tinta tocar a tela, qualquer outro sonho rebentava, vindo não se sabe de onde, para lhes fazer uma surpresa. Algo acontecia entre o corpo e a mão, com a mesma paz que governava os seus corações. Nem ele nem ela tinham certezas sobre o que quer que fosse. Corria o ano de 1933 e Jeanne Bucher, uma galerista que seguira, atentamente, o desenvolvimento da pintura de ambos nos salões anuais parisienses, organizava a primeira exposição em nome próprio de Vieira. Tal nada modificaria, no entanto, nas suas vidas e métodos de trabalho, continuando, até ao fim da década, a abraçar-se e pintar-se no silêncio da sua casa feita atelier, e a frequentar as reuniões no Café de Raspail, do pequeno grupo de intelectuais "Amis du Monde", politicamente ligado à esquerda, a que pertenciam desde 1935 e onde se discutia desde a ameaça do fascismo às polémicas do realismo e das novas escolas artísticas. A paz e o crescimento do casal haveriam de ser, no entanto, perturbados pelo eclodir da guerra, surpreendendo-os no Verão de 1939, quando gozavam férias na ilha de Ré, no Oeste de França. Arpad era judeu húngaro e apátrida, 81 pelo que, receando que o alargamento do conflito conduzisse à sua perseguição, aceitaria a ideia de Maria Helena de um refúgio em Lisboa. No Boulevard St. Jacques, o novo atelier e a nova casa ficavam por viver e criar. Contudo, seriam vãos esse abandono e essa viagem: Helena procurava recuperar a nacionalidade portuguesa, perdida aquando do seu casamento, mas o regime fascista de Oliveira Salazar não cederia aos seus insistentes e aflitos pedidos, alegando suspeitar de que o rosto simples e pálido de Arpad escondesse um perigoso comunista. Então, o Governo proporia uma chantagem que devolvesse ao País a sua preciosa promessa nas artes plásticas: se Vieira consentisse num divórcio, receberia, de boa vontade, os papéis portugueses, salvando a sua pele. O pedido da ditadura, é claro, jamais conheceria qualquer resposta. Entretanto, as notícias acerca da guerra iam tomando um tom cada vez mais negro e, em Junho de 1940, Vieira e Arpad, os dois pintores amantes sem nacionalidade, partiam para o Brasil, onde permaneceriam exilados durante sete anos. Ela ainda compreendia a língua e estabelecera, graças às cartas de recomendação de 82 amigos portugueses, rápidas relações, algumas delas, de amizade, mas nada disso chegava para apagar o crescente sentimento de desenraizamento e solidão, afinal, inesperado regressar do espectro da orfandade do pai, desaparecido aos seus dois anos e meio de vida e quase nenhuma memória. Por outro lado, ele, tão bem quanto ela, apercebera-se depressa de que não poderiam sobreviver, como antes, pela simples venda das suas obras - reinava, então, no Rio de Janeiro, um meio artístico e intelectual marcado pelo conservadorismo que ainda não aprendera a abandonar a rigidez das normas da pintura figurativa. Assim, desta vez, não bastaria o sacrifício de Arpad. Se ele se sujeitou a aceitar encomendas de retratos e a dar aulas sobre as matérias que nunca quisera aprender, ela passou a dedicar-se à pintura decorativa de objectos: vasos, pratos, azulejos... As dúvidas acerca da sua qualidade artística voltavam a crescer. No entanto, o passar do tempo faria esquecer a falta de reconhecimento público e a hostilidade da crítica com algumas amizades inesquecíveis e a admiração recíproca entre artistas de quem ninguém, então, falava. Em 1947, dois anos após terminar a segunda grande guerra, era tempo de terminar 83 o exílio; estavam restabeleci das a segurança e as condições para regressar, pela vez definitiva, a Paris. A cidade que os escolhera para seu abrigo até ao fim da vida, aguardava-os com o mesmo quotidiano que haviam deixado quase uma década antes: o trabalho, os passeios, a luz, a calma, a casa, o atelier, as mãos e a tela, o ritmo dos respirares nem mais lento nem mais acelerado. Para que a insegurança de Vieira se diluísse finalmente, Jeanne Bucher e Pierre Loeb passaram a exibir, regularmente, nas suas prestigiadas galerias, as obras de ambos e o público acorria cada vez mais, difundindo um interesse que, rapidamente, perpassaria para a restante Europa. Até 1990, a consagração internacional não cessou de se afirmar, por entre elogios, prémios, homenagens e séries de exposições um pouco por toda a parte. Apesar dos acontecimentos que haviam antecedido o refúgio no Brasil, o casal passava um pouco de cada ano em Portugal, aproveitando o sossego e a paisagem da casa da mãe da pintora para configurar novas imagens e lançar novos traços. Já não se preocupavam com as coisas do dia-a-dia - viviam apenas um para o outro e para a sua pintura - somente um pequeno grupo de amigos, outros pintores, escritores e poetas, 84 ainda mais do que anos antes, evitava o seu total isolamento. . Em 1956, um desses amigos, o arquitecto G. Johannet, construiu-lhes uma nova casa, com ateliers maiores, na Rua L' Abbé Carton, para onde se mudaram no mesmo ano. O grande jardim dava-lhes o espaço e a atmosfera ideais para trabalhar longe das incómodas interrupções das visitas constantes que lhes faziam os admiradores, em número crescente conforme mudavam os calendários. É também nesse ano que deixavam de ser apátridas e obtinham, por fim, a nacionalidade francesa. Arpad tornar-se-ia um dos melhores representantes da Escola de Paris dos anos 40, ainda que coibido em se assumir como tal pela discrição e modéstia que sempre o caracterizariam. A importância do papel de Vieira no panorama da arte internacional do século XX seria reconhecida unanimemente. A um e outro, o Estado francês concederia múltiplas condecorações, diversos países homenageariam com prémios, artistas e coleccionadores organizariam retrospectivas, exposições e catálogos. Mas Arpad e Vieira permaneceriam, na mudez segredada por detrás dos seus quadros, uma história de amor e companheirismo irredutível a galardões e comentários críticos. 85 Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes viveram, lado a lado, cinquenta e cinco anos. Obras e vidas confundidas, um e outro permaneceram ligados do traço à pele como do toque à tela, partilhando uma reconhecida cumplicidade e, até ao último dia, o mesmo amor intenso pela pintura. Também acerca deles, Cesariny haveria de dizer: "Arpad Szenes e Vieira da Silva são a mais bela história de amor e pintura que jamais conheci." A partir de 16 de Janeiro de 1985, dia da morte de Arpad, os labirintos que Maria Helena se apaixonara em pintar ganhavam um novo e decisivo sentido. A metáfora transformara-se em luto, transfigurada pela perda do companheiro de sempre: agora, aquele que a chamava de Eurídice perdia-se numa galeria subterrânea de O Regresso de Orfeu, onde um vulto se tenta ver livre de um assombroso caminho de solidão. Pouco antes do trágico acontecimento, já ela pintava um Diálogo sobre a Existência, a partir de duas matrizes de espaço divergentes, uma por cada metade do quadro, lançando-se, contudo, num entrelaçamento de contornos que diluía as delimitações de um e outro; n' O Rasgão, o centro de uma tela branca é atravessado por um turbilhão 86 de linhas distorcidas, prometidas à desagregação e, em Destino, os dois lados da tela são cortados por um tracejado em que repousa um pássaro quase invisível - os labirintos das pinturas destes anos tinham o seu centro cada vez mais perto do presságio do fim da sinuosidade de todos os caminhos. A partir daqui, os quadros da menina sem pai passavam a ser também os de uma menina sem marido, entregue à contagem final dos anos da sua própria corrida. Eram tentativas de perpetuar a memória da sua vida em comum, das conversas, dos apontamentos que sempre haviam unido dois desterrados há muito sem medo de o serem. A reflexão existencial permanente de Vieira tomava, então, renovadas proporções, confessando, abertamente, a sua preocupação pela perda, a meditação sobre a morte de Arpad que, no fim de contas, se ocupava, já, dos preparativos para a sua própria despedida. A luz, aquela luz eterna e intermitente do desaparecido, migrava para obras dela, apreendida à força do tempo para inundar as fronteiras rectangulares dos suportes, rebentando numa luminosidade à beira de se tornar cruel. Em 1985, um pássaro voa pelo espaço aberto, sem limites nem laços n' O Caminho 87 da Paz, onde, pela última vez, os jogos de perspectiva são ensaiados. No ano seguinte, Sóis é pintado a partir de uma tela inacabada de Arpad - aí, já todos os lugares humanos se diluíram na claridade. O centro do labirinto havia sido alcançado - O Combate com o Anjo, em 92, dá-se com o guardião da porta dos mortos, a meio do deslumbre da luminosidade informe. A 6 de Março desse mesmo ano, Vieira afastava-se do mundo, vítima de uma ferida no coração operada, sem sucesso, dois anos antes, mas nascida, afinal, aos primeiros dias de 1985. 88 Nota: Devemos parte importante da informação contida nesta narrativa, sobretudo a mais técnica, a Gisela Rosenthal, Vieira da Silva, Lisboa, Taschen, 1998. Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis Para além das razões de estado. - Natália, que tal é a nossa editora? Você conhece-a bem e... - É melhor não querer saber como ela é. Francisco fica espantado, mas permanece fixando a sua interlocutora. - É uma princesa nórdica num esquife de gelo, à espera que venha o príncipe encantado dar-lhe o beijo de fogo. . Ele fica ainda mais atento às palavras da poetisa. - Esse príncipe encantado é você. E ela é a mulher da sua vida. Quando, nessa tarde, Sá Carneiro deixou Natália Correia no Tavares, um só pensamento trazia na ideia e foi por isso que, acabado de chegar à Rua Buenos Aires, pediu a Conceição Monteiro que convidasse essa princesa para almoçar. A secretária, sem perguntas, ligou para Snu Abecassis. 82 Estávamos em 1976. Portugal vive o turbilhão dos tempos que se seguiram à revolução de 25 de Abril. Francisco Sá Carneiro é um advogado católico, oriundo de famílias da alta burguesia do Porto, deputado desde 72 e líder da "ala liberal". Funda o PPD, mais tarde, PSD, e aspira a levar os seus projectos políticos ao lugar do poder. É casado com Isabel, uma senhora do mesmo estrato social, de quem tem cinco filhos. É um homem educado, rigoroso, afável no trato, mas distante nas emoções; poucos amigos se lhe conhecem e, embora se aconselhe com muita gente, mesmo exterior ao partido, poucos poderão, alguma vez, ter dito que lhe ouviram um desabafo pessoal, uma troca de palavras que não dissesse estrito respeito à política e ao País. Tem um reconhecido gosto pelas coisas boas da vida, pela comida, pelo vinho, pelos charutos e pela música clássica, enquanto sonha juntar uma boa colecção de pintores contemporâneos. É um solitário a quem todos vêm falar, um homem que, com o seu carisma, domina qualquer encontro em que tome parte, mas que, ao fim do dia, recolhe a si mesmo, ao silêncio das paredes da sua casa de Lisboa, para repousar nos seus mistérios e não ouvir ninguém. 83 Snu, de seu nome verdadeiro, Ebba Marete Seidenfaden, nasceu na Dinamarca. Tomou este nome ainda jovem, para o seu passaporte, que, na língua-mãe, significava "esperta". Ainda numa idade que nem lhe permitia ter disso consciência, viajou para a Suécia, a terra de seus pais, e aí cresceu. Enquanto o casamento dos progenitores enfrentava problemas insolúveis, Snu tinha dificuldades na escola: chegava ao terceiro ano ainda sem saber ler e, perante a preocupação da família, foi-lhe diagnosticada uma dislexia. Contra estas dificuldades e contra a morte do amigo Magnus, depois de chorar e gritar durante vários dias, a menina Snu, com os seus dezasseis anos de insegurança, incapazes de entender e aceitar o absurdo da vida, decide que tem de construir um rumo por mérito próprio e parte para Inglaterra, onde mora o irmão. Nunca chega a alcançar o diploma do liceu, mas é na escola de Londres que, rapidamente, trava conhecimento e amizade com o melhor aluno da instituição, um judeu português de nome Vasco Abecassis. Em pouco tempo, casaria com o futuro economista e juntos partiriam para Nova Iorque, cidade que teriam de abandonar volvido um ano, para que Snu mudasse, uma 94 vez mais, diametralmente de país e cultura. A família Abecassis precisava do filho em Lisboa, por estes dias difíceis, e a mulher acompanhou-o. Teriam três filhos na tranquilidade do seu casamento, interrompida quando chamaram Vasco para a guerra na Guiné, enquanto ela persistia em compreender o seu lugar no mundo e, em particular, no Portugal daquele tempo, insegura e frágil, muito para além do que gostaria que os seus olhos deixassem transparecer. A fim de vencer esse sentimento e de lhe combater a solidão que, cada vez mais amiúde, dela tomava conta, o casal funda a editora D. Quixote e é Snu quem fica à frente dos seus destinos. Natália Correia era uma das poucas amizades conhecidas a Sá Carneiro e, como ele, uma das autoras editadas pela senhora Abecassis, lado a lado com Mário Soares e Álvaro Cunhal, os restantes nomes que compunham a trilogia de maior importância do cenário político de então. Todos já haviam conversado e jantado várias vezes com a editora; todos menos Sá Carneiro - entre eles, nada mais que dois, três telefonemas pontuados por diálogos breves e formais acerca do estritamente necessário à edição de um livro. Snu já se queixara desse distanciamento do 85 seu editado; e ele começava a desenvolver curiosidade em torno daquela figura, uma mulher estrangeira que viera agitar a cena editorial portuguesa, que publicava autores políticos totalmente novos no país, que não cedia perante as ameaças da censura e que parecia passear, serena e imune, por sobre as águas agitadas de um lugar à procura de si mesma. É neste contexto que regressamos à primavera de 76, quando Sá Carneiro chega, como sempre, pontualmente ao almoço marcado com Natália, no Tavares, e, mal se senta, pergunta de chofre: "Que tal é a nossa editora?" A data precisa em que principiou o romance entre Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis ninguém conhece, mas, logo em Setembro desse ano, foram juntos a um jantar em casa de Pinto Balsemão. Ainda antes disso, Marcelo Rebelo de Sousa já reconhecera nas notas a lápis, à margem do texto da autobiografia que tencionava, então, publicar pela D. Quixote, a caligrafia do amigo e colega partidário. Nos últimos meses, já raramente Francisco ia ao Porto ou Isabel a Lisboa, pouco tinham a dizer um ao outro e, malgrado o amor da mulher, o líder do PPD fazia aumentar os muros do seu isolamento a cada visita. 96 Do outro lado da cidade, Snu e Vasco Abecassis caminhavam em direcções opostas um ao outro: ele cada vez mais céptico; ela, feita Joana d' Arc, mais e mais certa da sua missão, a perseguir ideais que não faziam sonhar o pai das três crianças que corriam o grande duplex da D. João V. Francisco e Snu tinham o mesmo gosto pela vida, a mesma urgência de realizar as horas, o mesmo tipo de humor, o mesmo apreço pela pintura e pela música erudita, a mesma alma de jogador e, sobretudo, a mesma crença em milagres. Começava aqui a história que, mitificada pelo povo, se converteria numa segunda oportunidade para outro Pedro, outra Inês e outras "razões de Estado". Snu acompanha Sá Carneiro para todo o lado - é ele quem o exige -, se alguém recusar a presença dela, recusa a presença do líder liberal e, pouco a pouco, contrariada, a classe política nacional vai simulando aceitar aquela união. No entanto, nos meandros dos jogos institucionais, muitos se mostravam intranquilos com a situação, dentro e fora do PPD/PSD e, não poucas vezes, os maiores críticos eram alguns daqueles que frequentavam a casa de Snu, nos jantares por ela concedidos. 97 Aparentemente indiferentes a este clima de guerra fria, Francisco e Snu avançavam, a passos largos, na concretização da sua relação. Ele deixara a casa do Restelo e fora viver com ela, no apartamento de vidraças grandes, a abrir a vista para o rio e para a ponte que mudara de nome, acompanhando a História. Ela separara-se, em definitivo, de Vasco Abecassis e aumentava a sua dedicação a Sá Carneiro. Este, por seu turno, aproximava-se de Isabel apenas para lhe pedir o divórcio, que esta não concede, porquanto o amava, ainda - nos anos seguintes, ele continuará, cada vez mais esporadicamente, a visitá-la, a telefonar, com o único intuito de terminar, de forma oficial, aquele casamento, sempre com a mesma resposta da mulher que já não sentia, de todo, como sua. Os mais próximos sabem do quanto isso enfurecia e entristecia o homem que, na sua educação católica, procurava, por ele próprio, resolver esta aparente contradição dentro de si e era sabido que, de modo frequente, visitava padres e frades seus velhos conhecidos. Snu voltara, deste modo, anos depois, a sentir-se insegura. Intui, perfeitamente, que a sua presença ao lado de Sá Carneiro não é desejada e isso fá-la duvidar, de novo, do seu 98 papel neste país estrangeiro, da vida que escolhera, das opções que tomara até chegar aqui, longe da mãe e do padrasto. Aprende, então, com Francisco, a arte do auto-refúgio, continua a caminhar, solene e elegante, entre os olhares que nela intensificam a sua atenção e levanta-se cedo, a cada manhã, tal como ele, seguindo em direcção à editora, enquanto o companheiro conduz até São Bento ou ao partido para que, só em 1980, surjam, lado a lado, na ribalta. Ele depende dela, ela é-lhe leal, ambos sonham com uma quinta, isolada pelas árvores, nos arredores de Lisboa. No duplex decorado com muito bom gosto, permanecem, apesar de tudo, a dar os seus jantares, uma, duas vezes por semana, com figuras ilustres da política e da cultura. Aqueles que lá foram continuam a gabar os dotes culinários de Snu, o requinte de Sá Carneiro, a paz segura daquela casa e as conversas que terminavam tarde na madrugada. Discutiam-se, sobretudo, visões políticas, reinterpretações do mundo, chegando aos debates sobre a arte, os livros, a música certa para o quadro perfeito. Entre outros, por lá terão passado nomes como os de Mário Soares, Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa ou Pinto Balsemão. Era o método que haviam encontrado 99 de conviver socialmente sem os ambientes hostis à sua situação conjugal. Saem pouco, falam menos, dedicam muito tempo um ao outro. Snu Abecassis era, para lá dos afectos, a ligação ao mundo, o cosmopolitismo que faltava a Francisco Sá Carneiro. Ela abriu-lhe as portas à comunicação internacional, trouxe-lhe uma visão ampla da política e modo de vida de uma outra Europa; levou-o ao convívio com escritores, pintores, intelectuais e autores de outros conceitos sociais e filosóficos. Ia com ele a exposições, a lançamentos de livros, a museus; começou a sonhada colecção de quadros. Mais importante do que isso, compreendia-o, partilhava vitórias e provações, abria-lhe perspectivas. E, com ele, ela aprendera a segurança, o brilho, a rapidez de raciocínio e do agir, a intuição e a capacidade de afastamento. Acima de tudo, ele legitimava as escolhas fundamentais da vida dela, o abandono da família, a vinda para Portugal, a fundação da editora e os riscos corridos perante um Governo de ditadura que, se não a expulsou, foi apenas pela protecção da família Abecassis. A visão política de Francisco, a fé absoluta nos seus ideais, a solidez ética na sua subida ao poder davam fundamento 100 à capacidade de acreditar de Snu, ao desejo, um pouco moralista, de fazer o bem, aos livros estrangeiros que comprava e desejava traduzir e editar que lhe enchiam as prateleiras de todas as estantes de casa, livros capazes de melhorar o mundo, mas apenas se alguém capaz de agir os lesse. Ele era, afinal, o cumprir da sua missão; tornara-se a sua grande aposta. Em 1980, Sá Carneiro subira ao primeiro lugar do Governo. A Aliança Democrática com o CDS ganhara as eleições legislativas e, por fim, o homem que concentrava a esperança de muitos portugueses tomava o cargo de primeiro-ministro, apesar da presidência da República de Ramalho Eanes. Ao longo desse ano, esquecido já dos problemas de saúde que o haviam afectado, sobretudo, em 75, o Francisco deSnu lidera o País à sua imagem: com serenidade, rigor, sabendo falar à população, mas mantendo a distância necessária à sua reserva pessoal de equilíbrio. Aqui e ali, encontra os filhos, enquanto a editora parece ter perdido o fulgor de outros tempos e Snu projecta umas férias a sós com ele, longe de todas as questões políticas. Procuram, ainda, sem sucesso, a quinta que concretize o seu projecto de refúgio; aconselham-se, ainda, 101 com alguns amigos; pensam, já, nas eleições presidenciais que aí vêm, a 6 de Dezembro desse ano. Cansado, Francisco pressiona Isabel para que lhe conceda, finalmente, o divórcio, enquanto ameaça pedir à Igreja a anulação do casamento, atitude que perturba a mulher e que muitos viram como um gesto desesperado do agora primeiro-ministro. Com as novas responsabilidades, as pressões sobre a resolução da situação conjugal de Sá Carneiro aumentavam de dia para dia e o seu próprio coração exige um pouco mais de paz. Os meses passam. O homem com gosto por voar baixinho no seu automóvel e por charutos Davidof! anda, nos intervalos da governação, atarefado em encontrar um candidato apoiado pela AD, capaz de fazer frente a Eanes. É então que lhe falam do general Soares Carneiro. Francisco conversa com ele e não fica deslumbrado, mas, lentamente, vai-se persuadindo de que aquele é o seu homem para conquistar Belém, apesar das reservas de Snu. Começa uma incessante corrida pelos votos, um corropio de contactos, conversas, negociações e comícios. Sá Carneiro viaja, constantemente, pelo País: correm especulações, cada vez mais credíveis, de que Eanes ganhará de novo; o primeiro-ministro 102 empenha-se, dia após dia, mais a fundo nesta batalha, parece chegado ao limite do seu diálogo com o Presidente e enche salas com redobrado entusiasmo, arrebata plateias com uma verve que muitos lhe desconheciam, ainda que outros lhe chamem nervosismo; de qualquer modo, nos últimos dias, há já quem diga que Soares Carneiro recuperara as suas possibilidades. Sá Carneiro não quer reconhecer que se enganou, mas, ultimamente, o seu rosto tomara as formas de uma máscara da tragédia grega. Na noite de 3 de Dezembro, Snu telefona à mãe. Cansada, diz-lhe que, no dia seguinte, vai para o Porto num avião de carreira, que não há problema, que não é perigoso. A mãe sempre tivera medo de aviões pequenos, que alguém os sabotasse, mas, de Estocolmo, pensou: "Não há perigo. É a última viagem." A Lisboa chegara o pedido de que Freitas do Amaral ou Francisco fossem, de urgência ao Porto: Balsemão estava em dificuldades para o último comício. Sá Carneiro diz que vai ele próprio, que é a sua cidade e que terá mais impacto na população; chega a marcar reservas na TAP, mas o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, diz-lhe que está sozinho com a mulher nesse velho Cessna e sugere-lhe que 103 viajem em conjunto. A ideia de partir à hora que quisesse e chegar ao Porto a tempo de jantar agrada ao primeiro-ministro. Ele aceita. Dezanove horas e vinte minutos. Aeroporto da Portela. Francisco, Snu e António Patrício Gouveia esperam Amaro da Costa e a mulher, que chegam só dez minutos depois. Já dentro do avião, apercebem-se de que existem alguns problemas: o aparelho só arranca depois de pedido um gerador, mas apenas com o motor direito. São vinte horas e nove minutos, Sá Carneiro aconchega no bolso o charuto que o Fernando do Tavares lhe dera para fumar no Porto, o piloto ainda solicita à TAP a confirmação das reservas em nome do primeiro-ministro, mas, no fundo, entre tripulação e passageiros, ninguém parece disposto a esperar. Quatro minutos depois, o piloto pede para descolar de imediato: o motor esquerdo arrancara. Vinte horas e dezasseis minutos, Francisco olha para o relógio; há, no seu mostrador, o rosto de Snu reflectido. O pequeno Cessna levanta voo - oito segundos depois, desvia-se da sua rota normal, perde altitude e a asa esquerda dirige-se a um cabo de electricidade próximo de Camarate. Naquele que permanece como um dos maiores mistérios por resolver da justiça portuguesa, nascera o mito de dois novos amantes trágicos. Depois de zurzidas as vidas, pessoas e instituições também quiseram separar-lhes as mortes, mas, graças ao esforços da família Sá Carneiro, seriam sepultados juntos no mesmo túmulo, num jazigo discreto do cemitério do Lumiar, onde ainda hoje repousam. Ela tinha trinta e nove anos; ele, quarenta e seis. Nunca chegariam a saber que, dois dias antes do seu desaparecimento, Isabel decidira, por fim, conceder o divórcio ao marido. Nota: Foi fundamental à nossa investigação a leitura quer dos trabalhos de Maria João Avillez nas edições do jornal Expresso da época, quer do seu livro Francisco Sá Carneiro - Solidão e Poder, Cognitio, D.L. 1982 (Lisboa, União Gráfica). Importa, igualmente, referir Snu, da própria Jytte Bonnier, editado entre nós pela Quetzal Editores, em 2003. 105 Ruth Bryden e Paulo Oliveira Travestidos de Adeus Não há relato de muitos amores assim, amores contra a natureza das coisas, amores para chocar consciências, com outros ingredientes que não os habituais a um romance literário, mas ainda feitos, exclusivamente, para a redenção de um dos amantes no outro. Contra o tempo. Um amor de dez anos, contados do fim para o princípio: dez, nove, oito, sete... A década final das suas vidas: Alfredo Paulo Oliveira e Joaquim Centúrio de Almeida, aliás, Ruth Bryden, a figura maior da noite travesti de Lisboa. Ruth. Cresceu no seio de uma família modesta de Penamacor. O pai, Manuel, era um homem rude, mas bondoso, trabalhava nas minas de carvão para sustentar a mulher, a protectora Isabel, e os quatro filhos: Fernando, Vítor, Albano e Joaquim. Este era, precisamente, o mais introvertido; parecia 108 viver num mundo diferente dos irmãos, pelo que trocava as brincadeiras com eles pelas bonecas a quem fazia vestidos com os cortinados e pelas melodias que gostava de cantarolar. Andava, amiúde, agarrado às saias da mãe, ajudando-a nas tarefas da casa, ao mesmo tempo que se refugiava na sua compreensão e, quando estava doente, o que sucedia com relativa regularidade, reconhecia na mãe a figura de uma santa. Dificuldades na mina obrigaram a família a mudar-se para Rio Maior, terra de homens antigos, adeptos de cenas de pancadaria e do espírito machista que somente cavaria ainda mais o fosso em torno de Joaquim: dia após dia, apercebia-se de que não conseguia ser como os outros meninos, aqueles que, descobrindo os carinhos que trocara com António, um amigo com mais três anos que os quinze do rapaz, o começaram a chamar de "mariquinhas". Com o esforço dos pais e dos irmãos em lhe alterar os impulsos naturais, encontrou, um ano depois, a primeira namorada, mas a fama que carregava motivaria o pai dela a impedir aquele relacionamento. Sonhava ser cabeleireiro ou ajudante de alfaiate, mas a família não aceitava e Joaquim acabava por fugir, como um ladrão, para a Nazaré. 109 Aí, contudo, também não seria o lugar para encontrar a paz e, uma noite, já depois de ter sido violentado por um homem de quarenta anos, chorando de raiva, encetava nova fuga para Lisboa. Casou aos vinte e um anos com Maria da Conceição, na Igreja de Santa Engrácia, onde se encontravam, felizes pela aparente mudança, os pais e um dos irmãos. Seria o princípio de dois anos estranhos, condenados a falhar porque Joaquim não suportava o sexo. Quando partiu para a tropa, em Coimbra, Maria da Conceição desapareceu, abandonando Rui Miguel, o filho que haviam tido pouco tempo antes. É depois do 25 de Abril que Lisboa vê abrir uma série de bares extravagantes e arrojados, ao mesmo tempo que a comunidade gay saía à rua, começando a perder o receio dos preconceitos. Carlos Ferreira torna-se Guida Scarllaty e abre um bar com o mesmo nome na Rua de São Marçal; seria então que Joaquim veria a sua oportunidade e vai lá bater à porta, pedindo trabalho - o lugar glamouroso, povoado de figuras influentes do País, veria nascer Ruth Batton no seu primeiro play-back, escolhido à sua medida: Eu Sou a Mesma. A seu lado, contrastando as cores com o seu primeiro vestido, verde, justo, 110 longo e pregado na frente, brilhavam, entre outros, Lydia Barloff, Bell Dominique e Doll Phoenix. Pouco tempo depois, saía uma das vedetas, legando-lhe o nome: Bryden. O filho dizia que o pai era palhaço, mas, na verdade, Joaquim estava a tornar-se o maior ícone do roteiro gay da noite da capital. Principiava aqui a sua cruzada de amores e desgostos, de excessos e espectáculos, intercalados com tentativas de suicídio no Tejo ou com comprimidos. Sai do Scarllaty e estreia-se no Travelot, mais tarde, Rocambole, onde é cabeça de cartaz. Daí, volta a decidir-se pela mudança e começa, então, a percorrer as boites de luxo de todo o País, o Memorial e o Ronda 77. Mais tarde, fixa-se nos casinos do Algarve e leva uma vida faustosa, entre estrangeiros, viajando em cruzeiros pelo mundo fora. Entretanto, vai transformando o seu corpo com silicone, desagradando a Alberto, o seu grande amigo, a quem, pouco tempo depois de ter sido diagnosticado o vírus HIV, a morte bateria à porta. Nessa noite, já no Finalmente, Ruth dedicar-lhe-ia Como Ti Amo, a canção preferida do amigo. Joaquim e Ruth digladiam-se dentro de um só ser humano. Contra vontade de colegas e amigos, consulta vários médicos a fim de 111 preparar a transformação total do seu corpo. No Porto, uma amiga transexual injecta-lhe silicone, artesanalmente e a sangue-frio, no peito e nas ancas. Ele/ela vai suportando as dores, os hematomas e as críticas. Gastou milhares de contos até que, em 1989, 90, concretizasse a mudança. Ruth. A capa do Século /lustrado, de Allô, Allô, Caramela c'est Moi, Nós Somos quem Somos, da telenovela Cinzas, do filme Aqui na Terra e de Finalmente Formidable, em 98, o último espectáculo e, talvez, a sua mais inesquecível actuação. E Paulo. Do outro lado da vida e da cidade. Vivia em casa de uns tios, na Reboleira Sul, quando começou a sua vida nas drogas, para que pudesse pertencer e ser aceite no grupo dos primos e dos seus amigos. Mal os donos da casa saíam, o lugar enchia-se de gente para fumar charros, todas as manhãs, até que, um dia, a tia voltasse mais cedo do trabalho e apanhasse o sobrinho a fumar, enraivecendo-se e pondo toda a gente na rua. Perdido e ainda alucinado, enquanto descia a Avenida da Liberdade, Paulo aceita ir para a cama com um homem que o aborda, a troco de dinheiro, começando, então, um período difícil em que se prostituía para ter dinheiro para 112 o que comer e onde dormir. Um dia, tendo recebido uma soma avultada, compra roupas de cabedal e corta o cabelo com faziam os primos e regressa a sua casa. Nesse dia, é ele quem paga a droga a todos. Pouco tempo depois, dorme com a primeira rapariga da sua vida, Teresa, a namorada do primo Zé, e apenas porque ambos estão alterados pelas substâncias consumidas. Por essa altura, começa também a roubar carros para pagar aos traficantes, é preso pela primeira vez e libertado pouco depois. Foi por esses dias, numa esplanada dos Restauradores, que trocaram olhares pela primeira vez, num fim de tarde de Lisboa. Ruth tomava chá com amigas quando viu passar aquele rapagão alto de vinte anos contados. Paulo percebeu o flirt da mulher loura que se destacava de entre os ocupantes do café e meteu conversa. Mas Ruth fingiu que não era nada com ela. Nos dias seguintes, sempre pela mesma hora, Paulo passava e dirigia-lhe palavras doces, respondidas com desprezo. Mas já todos em volta tinham percebido o interesse de Ruth e, ao fim de pouco tempo, já se haviam enamorado e andavam juntos. Cedo, contudo, Ruth viria a confirmar aquela que havia sido, afinal, a sua impressão 113 inicial: estava diante de um bandido - Paulo era já, então, toxicodependente e roubava para poder comprar drogas. Mas o perigo suscitava-lhe, ao mesmo tempo, o medo e a atracção: decidira que seria ela a salvar aquele homem tão jovem da sepultura que cavava à sua volta. Depois de sair da prisão, Paulo foi viver para casa de Ruth, a pedido dela, mas, pouco a pouco, roubava-lhe jóias e fugia para o Casal Ventoso. Sem medo, Ruth entrava no bairro e, debaixo de ameaças e, por vezes, de pancada, saía de lá trazendo as jóias e recuperando Paulo. Com o tempo, ele acabaria por conseguir deixar a droga por ela e colocar Ruth onde, antes, estava somente o prazer passageiro. Viviam, nesse tempo, colados um ao outro, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas - Ruth não o deixava longe da vista - sem qualquer medicação, conseguiria curá-lo: já nem no álcool Paulo tocava. Moravam numa casa modesta em Alcântara, na Rua Costa, com dois cães, o Black, um caniche preto, e o Poppy, um yorkshire. No seu carro vermelho, viajavam muito pelo País: vão a Rio Maior, a Santarém, a Fátima. Vivem dez anos juntos, dez anos de amor e de brigas, com ciúmes de parte a parte que não impediriam, contudo, o quanto se ajudaram um ao outro. 114 Paulo tornou-se assistente das produções de Ruth, fazendo com ela os vestidos, os adereços e esperando nos camarins enquanto ela subia ao palco. Mas, entretanto, continuavam a ser visitados por períodos difíceis. Ruth acabava por ficar sem emprego e temia que Paulo saísse de casa para trabalhar e voltasse às drogas. Depois de muitas discussões entre eles, ela convencê-lo-ia a criar a sua linha erótica. Com vergonha de que fossem sustentados pelos amigos, foi prostituir-se para Espanha. Para além dos homens estranhos que encontrava, ganhou asco a si mesma e viu Paulo revoltar-se contra ela, sobretudo quando chegava tão tarde e tão cansada que se recusava a fazer amor com ele. 1998 passou a correr; Ruth e Paulo aguardavam, com esperança, as transformações que o novo século traria. 1999 parecia seguir o mesmo caminho, mas, subitamente, recebem um diagnóstico médico terrível: Paulo acompanha-a ao hospital para retirar todo o silicone do corpo e voltar - porquê? - a ser quem era; ela tem, assim como ele, hepatite C. Naquela noite, quando chegam aos camarins, a Ruth de aspecto sempre forte e incapaz de quebrar, chora - já sabe que carrega também o maldito 115 HIV, mas, contemplada a partir da plateia, ninguém se apercebe do seu drama - dança e encanta com uma energia que roça o delírio. Trocou, então, o Santa Maria pelo Curry Cabral, onde a doutora Teresa Martins se manifestara interessada pelo seu caso, uma óptima oportunidade para se livrar da chacota de que já era alvo no outro hospital, a cada vez que lá ia mudar os pensos. Passaria muito mal aqueles trinta dias de perfeita batalha, dentro e fora de si - aquele corpo era ainda o de Ruth ou já, de novo, o de Joaquim? Ou um corpo estranho a qualquer um deles? Os amigos seguiam, em romaria, para a visitar; outros iam, pura e simplesmente, movidos por uma curiosidade mórbida de constatar, pelos próprios olhos, o seu trágico declínio. Paulo estava ao seu lado permanentemente, dia e noite, só a deixando quando já dormia, para ir a casa repousar e trazer-lhe mais qualquer coisa para que, no dia seguinte, se sentisse um pouco menos intimidada naquele lugar. Dava-lhe banho, vestia-a, trazia-lhe a comida que roubava ao bar dos médicos. Quando conseguiam estar sozinhos, falavam dos espectáculos, das actuações mais memoráveis, dos pormenores insólitos de uma e outra noite, das saudades de tudo isso, 116 do seu amor, da forma como, por fim, Paulo lhe devolvia o esforço pela sua salvação. Mas, com o passar dos dias e o inevitável agravar do seu estado de saúde, Ruth já não queria que Paulo a beijasse, com medo, mas ele insistia para que ela o contaminasse, também queria morrer se esse era o destino dela. "Tanta Ruth para nada!", suspirava. Na verdade, ele não fazia ideia do que fazer se ela partisse; nem conseguia imaginar a casa, as ruas, o palco, o mundo, ele, sem ela, sob que forma tomasse aquele corpo vivido. No dia 23 de Maio, quando Paulo deixava o hospital e ia sozinho para casa, era um homem perdido quem caminhava, um homem que já não tinha qualquer recurso mais ao seu dispor para salvar o seu amor e, consequentemente, a si próprio. No dia seguinte, Ruth estava desesperada: era quase meio-dia e Paulo ainda não havia aparecido; ligava para casa e ninguém atendia, o telemóvel estava desligado. Deu, então, as chaves da porta a Carlos Castro, que, com um conjunto de outros amigos a procurava tranquilizar e se dispunha a dissipar as dúvidas sobre todos os problemas que teimavam em suceder. Mas ninguém estava em casa, não se ouvia o ladrar dos cães e as jóias de ouro 117 pareciam ter desaparecido. Começavam a temer aquilo que de pior podiam imaginar; mas, no Casal Ventoso, também ninguém sabia dele. Continuavam a ligar, insistentemente, para o telemóvel até que, por fim, alguém atendia: não era Paulo, mas um agente da GNR. Quando chegaram à praia da Fonte da Telha era evidente que já nada havia a fazer - um cadáver, deitado sobre uma toalha, vestindo apenas um calção de banho e com uma beata na ponta dos dedos, sangue num ouvido e espuma na boca, era rodeado por Poppy, o pequeno yorkshire, que ladrava, aflito, em volta, tomando conta dele. Depois da autópsia, não havia dúvidas: Paulo tinha colocado um ponto final na vida com uma brutal overdose. Era meia-noite e meia quando os amigos chegavam ao hospital e, acotovelando-se entre si, tentando decidir quem seria o porta-voz, davam a notícia a Ruth. Uma homenagem a ela estava preparada para quinta-feira; os convidados, as actuações, as roupas, os cartazes, as fotos, os anúncios, tudo estava pronto, pelo que o funeral de Paulo ficava adiado para sexta, para que aquele espectáculo também fosse para ele. A mãe, D. Emília, vinha, de propósito, ver Ruth e encontrava-a já em 118 estado terminal: haviam-lhe descoberto, ainda, uma pneumonia galopante, tuberculose e outro vírus desconhecido - parecia que a morte do amante despoletara todo um processo de autodestruição. Percebia que estava a chegar ao fim e pedia que a vestissem de homem no enterro. Tinha o frio a percorrer-lhe o corpo mirrado e um vago desejo para a aquecer, de novo: um abraço de todos os amigos, independentemente de todas as zangas, de todas as discussões, a única homenagem que, realmente, lhe interessava. Na outra, aquela que aconteceria, dali por algumas horas, sobre o palco do Finalmente, deveria ser colocado o seu vestido branco, simulando a sua presença, enquanto a amiga Sissi lhe dedicasse Malade. Eram seis da manhã de 27 para 28 de Maio quando, soltando o último estertor, partia para se juntar a Paulo. Os amigos, encontrando a cama vazia e sentindo o cheiro do desinfectante, saíam à rua, gritando: "Morreu Ruth Bryden!!" Serena, cansada de sofrer, de perder o seu único amor verdadeiro, caindo nos braços dos enfermeiros. Mais tarde, voltando à pequena casa na Rua Costa, acabariam por encontrar as jóias dela escondidas atrás do televisor - infelizmente, 119 Ruth morrera pensando que Paulo a roubara, mas, mesmo assim, perdoara-lhe e quisera ainda cumprir o seu desejo de que descansassem em túmulos gémeos. Para o funeral, o próprio Carlos Castro cedeu o seu smoking para que a vestissem do modo que desejava. E é assim que repousa, lado a lado com Paulo, nem Ruth nem Joaquim, no Cemitério da Ajuda. Em paz, em silêncio, longe do palco e dos disfarces de estrelas, simulando não estar vivos, à espera de regressar, travestidos de adeus. Nota: Foi fonte essencial para o relato desta história o livro de Carlos Castro Ruth Bryden - Rainha da Noite, Publicações D. Quixote, 2000. 120 Fernanda Alves e Ernesto Sampaio Ainda se morre de amor em Portugal Há histórias de amor que nos são dadas conhecer apenas depois do seu próprio epílogo, quando um dos rostos se afastou, já, do foco de luz, silencioso nos passos, para o aconchego mudo do bastidor. Quando beijar não é mais possível e os dedos já não podem pedir aos deuses um segundo de pele ou os olhos um pouco de espaço para se saberem de cor, em todas as variações das cores e do tempo. E a um homem talvez não seja permitido amar uma ausência, pelo menos, do mesmo modo como se amou uma personagem real de um espectáculo que já saiu de cena. Talvez haja milhares de histórias como esta, histórias que só aprendemos quando já não é possível acrescentar-lhes o que quer que seja, de um lado só dos amantes, a partir da dor de ter de viver quando já não se acredita que a vida seja coisa real ou possível. 124 Talvez, mas quantas delas chegaram, de facto, a suceder? Quantas não são, somente, criações nossas ou secções finais de um livro de contos? A história de Fernanda Alves e Ernesto Sampaio não é a invenção de nenhum escritor, mas o relato tocante de um amor verdadeiro. "Desde a morte de Fernanda Alves já não sabia viver. É a única pessoa que conheço que morreu de amor." Assim escreveu Mário Cesariny, o amigo de longa data de Ernesto Sampaio, explicando de forma luminosa o que nenhum médico poderia compreender: que um homem sem qualquer historial de problemas cardíacos pudesse deixar este mundo, num dia perfeitamente normal, de um ataque fulminante no coração. Fernanda era actriz, Ernesto escritor, os dois elementos fundamentais de qualquer espectáculo, de uma peça que teve encenação conjunta, indecisa entre a alegria da comédia e a verdade da tragédia. Viveram juntos quarenta anos desse texto, dessa representação à superfície da Terra, na qual, como dizia o próprio Ernesto, "a presença de Fernanda chegava para dar a ilusão de viver". Ela era a grande mulher de cultura que, ao longo de quase cinco anos, fez carreira e deu nome ao 125 Teatro Experimental do Porto, para, depois, se tornar societária do Teatro Moderno de Lisboa, fundar os Bonecreiros e a Barraca e integrar o elenco do Teatro Nacional D. Maria II, até que fosse justamente homenageada, em 1997, no Festival Internacional de Almada, aí mesmo, onde interpretaria o seu último grande papel em O Cerco de Leninegrado, de José Sanchis Sinisterra, autor traduzido, afinal, pelo próprio Ernesto. Ele era o ensaísta, o poeta, o crítico de arte, jornalista e tradutor, autor destacado do surrealismo português que, por Fernanda, se tornaria, também, produtor de diversas obras para o teatro. Do grupo de artistas que se reunia no Café Gelo, Sampaio saiu em livro, pela primeira vez, em 1957, com Luz Central, iniciando um percurso literário vasto marcado por momentos como a Antologia do Amor Português, O Sal Vertido e Para Uma Cultura Fascinante. O homem que, entre outras profissões, também fora bibliotecário, professor e actor, deixaria, ainda, por herança aos seus leitores, uma última obra - o nome Fernanda não haveria de deixar dúvidas sobre esta ser uma sentida despedida dedicada à sua mulher e, simultaneamente, um ténue prenúncio da sua própria partida. 126 É sobretudo através deste livro que conhecemos e reconhecemos a história de amor de Fernanda e Ernesto. É nele que o escritor passa a limpo os dias contados desde a morte de Fernanda, como num diário desconexo, próprio de quem já não dorme nem acorda, apenas se arrasta, cada vez mais lentamente, sem que os dias passem. É nele que compreendemos o quanto Fernanda salvou Ernesto do desencanto de uma existência solitária e o não menos com que ele lhe retribuiu e agradeceu, a cada manhã, esse exílio. De uma forma comovente, o escritor peregrina da saudade à solidão, a bordo do silêncio, por todos os cantos da casa, por todas as lajes do chão, pelo espaço vago deixado entre as cadeiras, pelos móveis negros, soturnos, sob candeeiros apagados. Passa os dedos pelas paredes, agora mais ásperas, descansa, em vão, o corpo na cama cheia pela Rosa, pelo Artur, pela Fina e pela Nina, cães e gatos que também parecem ter perdido o motivo por que soltar latidos ou miados. (Uma noite, os quatro animais ergueram-se da cama, de um só impulso, acordando Ernesto, e ficaram estáticos, serenos, fixando um ponto qualquer no quarto escuro, sentados na cama. Uma um, os quatro seguiram com 127 os olhares a deslocação desse ponto pela invisibilidade. O escritor, estremunhado, sentindo no rosto o gelo de um sopro de ar, acendeu as luzes e esfregou os olhos, mas nada viu.) Ernesto nunca mais arrumou a casa desde que Fernanda saiu, nunca mais. A loiça empilhada na cozinha, a roupa acumulada nas poltronas, os cinzeiros cheios de papéis rasgados e aparas de lápis que pouco mais têm escrito. Já ninguém visita este lugar; poucas vozes se ouvem mais que aquelas que entram pelas janelas, vindas de ruas demasiado distantes para que lhes valha a pena responder. Aqui e ali, os olhos dos bichos tornam a alegrar-se e saem a correr por todos os quartos, até encontrarem Ernesto junto ao telefone, escutando a voz de Fernanda no atendedor de chamadas, dizendo que não está em casa, que não está em casa, mas, logo que regresse, telefonará a quem precise de lhe falar. E, estáticos e confusos, a cadela e os gatos vêem Ernesto aumentar o volume da gravação e premer teclas que a fazem repetir-se, para lá do eco espalhado pela sala, como se procurasse palavras novas, escondidas entre as mais óbvias, a segredarem-lhe uma pista para a encontrar ainda onde a deixou. 128 Durante os meses em que pairou pelo mundo, só a recordação dela, essa tão magra ligação, foi capaz de o manter vivo. E o acto de subir o volume de som à gravação do atendedor de chamadas tornou-se um ritual, à força de ser repetido, muitas tardes por semana, até que já nem a Rosa ou o Artur acorressem à sala. Ernesto Sampaio era um homem solitário, ateu, refugiado do mundo na sua arte surrealista, um desencantado que aprendeu com Fernanda que o amor, só o amor, consegue ultrapassar a incomunicabilidade inevitável que existe entre os seres humanos, trancados nos seus segredos. Afinal, todos quantos lhe tinham chegado a tocar, haviam partido fechados no seu mistério: seu pai, triste e sorridente; sua mãe, a meio de sofrimentos atrozes; o pai dela, jovial e conversador; a mãe dela, no desgosto - um a um, todos se tinham despedido, velados pelo seu segredo, impermeáveis, mudos, cegos, desaparecendo, com suas almas, entre as paredes de um caixão. Foi a atenção dela a todas as pequenas coisas, a dedicação que empenhava a cada prazer da vida, do mais pequeno ao mais infinito, que o resgataram ao deserto. Fernanda foi a sua "embaixatriz do mundo" - todos os lugares, 129 todos os encontros, cada imagem, cada canção, tudo foi visto através dela, todos os ruídos do mundo eram já a voz da mulher quando lhe chegaram. Agora, o mundo já nada lhe dizia; olhava em volta e o que via? Uma cidade arrasada com a morte de Fernanda, ervas a rebentar por entre as lajes de pedra, entre os ladrilhos dos passeios e o asfalto da estrada, uma Pompeia feita de pedaços de paredes; os chafarizes do Jardim da Estrela a verterem fios morrentes de água e nenhuma estátua dela. De quanto tempo precisará o Tempo para fazer outra mulher assim, outros amantes como eles os dois?, pensa. Muitas gerações passarão até que chegue gente parecida com eles, se é que homens e mulheres destes alguma vez voltarão, libertos da realidade, sorridentes por entre o êxtase e o nada. Isabel de Castro enviou, então, uma carta ao escritor, dizendo-lhe que ele e Fernanda eram apenas um. É por isso mesmo que, com o seu amor morto, lhe faltam metade das veias, metade dos nervos, metade da pele e metade do coração. Recusando-se a aceitar o pretenso dualismo entre alma e carne, restava a Ernesto criar outra cisão que explicasse a sua dor, que fosse razão para todas as manhãs acordadas no inferno. Só agora ele era capaz 130 de compreender uma frase dita por Fernanda: "A arte de viver é uma arte de morrer." A actriz e o escritor festejaram juntos a mítica passagem de milénio - amaram-se ainda, uma vez mais, ao passar de 1999 para 2000. Na noite de 3 de Janeiro, trocaram o último olhar, tranquilo, sereno e confiante, como em todos os outros dias dos últimos quarenta anos. Depois de um beijo morno, Fernanda disse: "Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o Program aos gatos. Ah! E também não te esqueças de me ir esperar a Santa Apolónia no domingo, à hora do costume..." Ela despediu-se dele, ainda no apartamento, e desceu para a rua, onde a esperava João Grosso, em cujo carro viajaria até ao Porto, onde ensaiavam as Barcas, de Gil Vicente, que deveria estrear, em breve, no Teatro Nacional de São João. Ao vê-la cruzar a porta e sair, distanciar-se, a cada passo, para um pouco mais longe do chão da casa, a cadela Rosa olhava-a triste, muito mais triste e certa do que poderia pensar Ernesto Sampaio. Havia entre as duas uma relação forte, própria do poder que Fernanda tinha sobre os animais, no olhar, no gesto, na voz doce com que lhes falava e tranquilizava. 131 Passados dois dias, o escritor, divertido, conversava ao telefone com um amigo. Nunca mais haveria de esquecer a sua tonta descontracção nesse momento. Nunca mais haveria de esquecer que, mal desligou o telefone e se voltou para regressar à secretária, este voltou a tocar. Quando ergueu o auscultador,' não pôde deixar de pensar que se tratava de uma brincadeira, de uma partida de muito mau gosto, ou de um confuso engano qualquer. Correu, então, para a Portela e apanhou o primeiro avião que saía com destino ao Porto, ansioso por chegar, ansioso por vê-la, por desfazer todo aquele imenso equívoco. Só então achou possível, para depois acreditar, para então compreender, para, assim, se ver diante da visão mais irreversível do mundo. A porta do quarto de hotel aberta, as luzes acesas, o cheiro dela espalhado por aqueles poucos metros quadrados, anónimos, incertos, vaga noção de última morada, para perfumar a dor. Em cima da mesa-de-cabeceira, a cigarreira aberta, lado a lado com um livro qualquer, igualmente aberto, com as páginas voltadas para baixo, a esconder as letras, a impossibilitar qualquer palavra, qualquer diálogo; em cima da cama, o colar, sem nenhum valor, sem o mais ténue reflexo do brilho que costumava 132 ter. Depois as burocracias. Depois a morgue. Era Dia de Reis. Até ao funeral, saído da Basílica da Estrela para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ele ainda reconheceu na face de Fernanda, morta, um sorriso, o mesmo sorriso de sempre. Mas que palavras fora ela escolher para serem as últimas: "Não te esqueças de cortar as unhas à cadela e de dar o Program aos gatos..." Não haverá, com certeza, muitas razões pelas quais morrer, mas o cansaço, o acabamento, deve ser uma delas. Durante o ano de 2000, Ernesto foi-se acabando, apagando, diluindo-se no passar da luz pelo céu, nos escassos momentos em que se apercebia de que ainda havia um regime de turnos entre Sol e Lua. A beleza havia-se despedido das horas. "Que vergonha!", pensou ele, "se ela soubesse...", ela que morrera praticamente a trabalhar e ele preso à vida apenas pelo sofrimento, sobrevoando as ruas como uma alma penada, incapaz de levantar qualquer objecto com a languidez dos seus dedos translúcidos. Estava à beira de completar sessenta e seis anos. Ela teria festejado setenta a cinco de Junho. Mas ele sabe que nunca a viu envelhecer, a recordação que guardará será a de uma Fernanda jovem, a cada episódio da vida 133 com a mesma luz que em qualquer palco, em qualquer papel. "Devia tê-la amado como se ela estivesse para morrer", penitencia-se Ernesto, como se um pouco mais de amor seu a tivesse podido salvar. No final desse ano, o escritor entregou-se, em definitivo, ao desgosto. O seu corpo foi encontrado pela porteira do prédio onde morava. Segundo declarações da polícia, tudo indica ter-se tratado de um ataque cardíaco fulminante. Ernesto desaprendera como viver e rendera-se, por fim, a compreender a impossibilidade de amar uma ausência, de um amor entre um ser que dorme debaixo da terra e outro que sobre ela caminha. Não se trataria, seguramente, de uma surpresa para o próprio, se, sobre isso, lhe fosse permitido, ainda, reflectir: há muito que fazia contas à sua própria morte, imaginava o que, um dia, os outros diriam dele, sobre quando era vivo. Sabia que o seu tempo tinha já passado, pelo que, agora, apenas administrava as respirações, gerindo-as para o último suspiro, espantado por ainda estar vivo. A sua existência havia sido, durante os últimos meses, quase póstuma a si mesmo. Se, em quarenta anos, Ernesto apenas lutou pelo amor, aprovação e estima de Fernanda, sem ela, a realidade não lhe tocava 134 mais que um sonho qualquer; havia-se tornado um sujeito indiferenciado entre o estado de sono e o de vigília. Agora, não tinha mais nenhum desejo que não fosse a paz. Com ou sem Deus, Ernesto Sampaio encontraria, agora, no mesmo lugar, Fernanda Alves. Como estaria ela vestida? Com que voz lhe falaria? Seria a Fernanda do Pranto de Maria Parda? A porteira do Novo Inquilino? Ou a Betia da Mosqueta, a Pôncia da Casa de Bernarda Alba, a Madame Pétala de Rosa de Oh Pará, a Candidinha de O Gebo e a Sombra, a Fan Chin Ting da Grande Imprecação, a Esgrínia de Os Gigantes da Montanha, a de F austo, de Clamor, a de Poder do Dinheiro... ou, simplesmente, a Fernanda, a Fernanda de Ernesto, à espera dele, à hora combinada, à hora do costume, na terceira plataforma da Estação de Santa Apolónia? E Ernesto, que livro lhe dedicaria? Qualquer coisa entre as Ideias Lebres e o Feriado Nacional? Ou um poema novo, feito com palavras inventadas no ano 2000, à força da solidão, sugeridas pelos murmúrios dos gatos, cirandando pela casa, entre a roupa amontoada e os papéis espalhados no chão? É domingo. A derradeira obra de Ernesto Sampaio está espalhada pela cidade, em pequenas 135 montras, em muitas estantes curvadas pelo peso do excesso dos livros, exibindo o negro da sua capa e o vermelho quente do seu título: Fernanda. "Fernanda", "Fernanda", por muitos lugares, em pequenos quartos, em grandes salas de tertúlias literárias, o nome repetido com a voz do escritor, para que lhes sobreviva a ideia de amor e as gentes fiquem mais felizes por sabê-los juntos, do outro lado da vida. Talvez hoje, ainda, Rosa se rebole sobre as campas de Ernesto e Fernanda como, ao longo daquele ano, fez apenas sobre a da actriz, num jardim de relva e campas rasas, à inglesa, e pare, com o focinho entre as patas, escavando, lenta e pacientemente, a terra. Nota: O livro Fernanda, referido no texto, escrito pela mão do próprio Ernesto Sampaio, lançado pela Fenda nesse longo ano 2000, serviu-nos, também, de referência primordial à recuperação das suas histórias. 136 Maria Isabel e Manoel de Oliveira Longa-metragem Como filmaria Manoel de Oliveira a sua própria história de amor se, um dia, do vasto tesouro da sua memória, decidisse contá-la em película? Talvez nunca o venha a fazer. Talvez já o tenha feito, escondendo os sentimentos e lugares reais com alegorias e símbolos. Talvez a conte e recrie a cada um dos seus filmes, em todos os casais com que enche a tela em grandes planos de serenidade mordida por pequenas inquietações. Mas se o contasse, aberta e exclusivamente? Abriria com um primeiro quadro passado num salão de baile, povoado de gente elegante e conversadora, sorrindo por entre breves goles de champanhe, enquanto a boca de cena seria dominada por dois jovens actores bem parecidos, talvez Leonor Silveira e Rogério Samora, talvez Leonor Baldaque e o neto, Ricardo Trepa, apresentando-se na timidez e 140 tomando as mãos um do outro para dançarem o Danúbio Azul do princípio ao fim, sem pressa nem artifícios, indiferentes à urgência dos espectadores de ser tomados pela alucinação inebriante da sequência dos fotogramas. E, depois, viria o título da obra, os letterings exibindo as creditações fundamentais do trabalho, seguindo-se um ecrãnegro acompanhado pela voz off do próprio Oliveira, situando-nos a acção num Portugal esquecido de 1938. Na verdade, quem sabe se o decano dos realizadores mundiais em actividade já não terá feito tudo isto, narrado esta história de modo bem menos artificial, assumindo toda a verdade das coisas em Visita - ou Memórias e Confissões, gravado em 1982 e cuja exibição está guardada para depois da sua morte, a pedido do próprio director? Do pouco que sabemos, é pelo menos legítimo pensar-se que assim possa ser: um filme acerca do amor que tem unido ao longo de mais de sessenta anos Manoel a Maria Isabel, dado serem eles mesmos os protagonistas e não qualquer actor-fétiche de Oliveira, num cenário que não é recriação nem invenção do que quer que seja, mas a própria casa onde esta família viveu desde o seu casamento, em 1940, até ao princípio dos anos 80. E se o 141 mestre assim o quisesse? Guardasse revelar-nos este amor maior para quando já mais amor não fosse possível? Nem perguntas ou interpelações por parte dos eternos estranhos que peregrinam salas de cinema marginais, em busca de preencher todos os lugares da colecção de imagens legadas ao mundo, de ano a ano, por Manoel? Lembrar-nos, da sua noite, que Vinicius talvez estivesse errado e que o amor possa eternizar-se para lá daquilo que dure? Este não é um amor de grandes actos de loucura, de seres humanos que, por momentos, roçam os feitos dos heróis trágicos em nome daquele a quem querem, de promessas de milagre ou inesquecíveis trocas de palavras sussurradas, certamente, pelos anjos. Por outra: se este amor é esse tipo de amor, então, não sabemos; podemos apenas aguardar a Visita e verificar se nos é ou não permitido conhecer os pormenores desta longa história e ver se está ou não adornada com juras poéticas e actos audazes. A parte do amor entre Manoel e Maria Isabel de Oliveira que nos chega e que nos interessa, aqui, contar é bem mais simples do que isso; é o relato simbólico de um amor que sobrevive ao passar dos anos, das guerras, do trabalho, da convivência, das 142 vidas opostas e do desaparecimento dos últimos traços de beleza que os lembrassem daquilo que num e noutro os atraiu pela primeira vez. É um amor que nos faz acreditar que as promessas são possíveis e que o "até que a morte os separe" não é coisa dita em vão, sustentada e repetida apenas pela força das tradições. Na verdade, esta é uma história que escolhemos lembrar de modo a fazer justiça a todos os decanos mestres do namoro que cada um de nós já pôde ver, em momentos de inevitável ternura, trocarem carinhos em espaço público, orgulhosos de mostrar como a sua avançada idade não foi capaz de entediar o coração. Manoel e Maria Isabel, a namorar desde 1938, salvos da separação provável da morte pelo celulóide das películas cinematográficas, com o mundo a assistir. Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no Porto, a 11 de Dezembro de 1908, filho da família que detinha a primeira fábrica de lâmpadas em Portugal. Desde cedo, foi dando indícios da sua paixão por essa nova arte que despontava, o cinema, então, ainda nos tempos da mudez. Com vinte anos, inscreve-se na Escola de Actores de Cinema, fundada na cidade por Rino Lupo, com o desejo de vir, um dia, a tornar-se um galã da tela; logo nesse 143 ano, pelas mãos do seu professor, participava como figurante no filme Fátima Milagrosa. Paralelamente, levava uma juventude algo boémia, enquanto ensaiava esforços em áreas distintas: números de trapézio voador nas festas anuais do Sport Club do Porto, o salto àvara em que se sagraria um dos melhores do País, conseguindo um recorde nacional que permaneceu imbatível durante vários anos, e as corridas de automóvel, cá, em Espanha ou no Brasil. Nessa época, ainda era conhecido por artes bem diferentes daquelas que o tempo veria consagrar e o grafismo do seu nome próprio não se tratava ainda de algo a que a imprensa se tivesse familiarizado; os jornais noticiavam: "Segunda Rampa do Gradil ganha por Manuel de Oliveira, num carro Edford. " No ano seguinte, com uma máquina de filmar rudimentar de 35 mm paga por si próprio e com ajuda do pai, Manoel gravava o seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial, no qual, excepção feita à fotografia, feita por António Mendes, um amigo guarda-livros, cumpria todas as funções técnicas. No dia 21 de Setembro de 1931, durante o Congresso Internacional da Crítica, o filme estreava, perante reacções violentas dos críticos portugueses e 144 aplausos entusiásticos dos estrangeiros, algo a que o realizador, de resto, se teria de habituar durante toda a sua vida. Dois anos depois, regressava ao outro lado das câmaras em A Canção de Lisboa, de Cotinelli TeImo. Começava, então, um período difícil no qual passa de projecto em projecto, não concretizando mais que alguns documentários: Miramar, Praia das Rosas, Em Portugal já se Fazem Automóveis e Famalicão foram para a frente, mas Desemprego, Gigantes do Douro, Hino de Paz, Luz, Roda, Prostituição e a A Mulher que Passa nunca chegaram a sair do papel. Seria por esta altura que, precisamente, uma mulher passaria na sua vida para a mudar para sempre, muito tempo já passado desde o seu namoro de criança, aos dez, onze anos, com a prima Guilhermina. Manoel notara, pela primeira vez, o olhar peculiar de Maria, ainda sem lhe saber o nome, enquanto ela esperava o eléctrico. Dias depois, via-a na praia e continuava com a sensação de conhecer já aquela face, sem saber de onde. Talvez nessa altura ainda não se tivesse apercebido de que o rosto daquela mulher e o da menina que nascera e morara muito perto da casa do seu tio Hora eram o mesmo. Afinal, tinham 145 sido vizinhos durante toda a infância: viam-se de longe, no Verão, perto da praia da Foz, quando o pai de Manoel viajava para o estrangeiro e ele e o irmão ficavam em casa do tio. Passadas mais algumas semanas, num baile do Casino da Póvoa, Manoel voltava a avistá-la e, desta vez, ganhava coragem para lhe ir falar e convidar para uma dança. Não era, contudo, naquele tempo, hábito uma mulher falar a um desconhecido, quanto mais dançar com ele, pelo que, inicialmente, ela ter-se-á negado a dançar, dizendo não saber quem ele fosse. Mas Manoel não desistiu: indagando pela sala, descobriu um amigo comum que logo os apresentou. Solucionado este primeiro obstáculo, repetiu o convite e, desta vez, Maria Isabel não encontraria razões para o enjeitar. Encantaram o salão ao som do Danúbio Azul e, pouco tempo depois, começavam o namoro. Estávamos em 1938 e este acontecimento fazia-o desejar mudar de vida: a próprio pedido dela, Manoel deixava os desportos arriscados e as corridas de automóveis nos circuitos e nas rampas, a boémia dos salões aonde acompanhava o irmão mais velho, especialista na sedução das casas de chá às paragens do eléctrico. A 4 de Dezembro de 1940, na Igreja do Santíssimo 146 Sacramento e perante o padre Abel, também tio do realizador, Maria Isabel Brandão Carvalhais e Manoel Cândido Pinto de Oliveira uniam-se em matrimónio, seguindo, depois, em lua-de-mel para o idílico Chalet dos Eucaliptos, na Urgeiriça. Sedimentava-se, então, aquele amor em tempo de guerra e principiava um casamento que dura até aos dias de hoje, que percorre o século XX e atravessa a passagem para um novo que ainda lhes pertence, durante sessenta e três anos de vida em comum. De regresso ao Porto, procederam, então, à construção da sua própria casa, aquela em que viveriam mais de quarenta anos e que correspondia a um novo ramo da árvore da família Oliveira. Aí nasceram e foram educados os quatro filhos do casal: Manuel Casimiro, que herdaria do pai o fascínio pelas imagens, embora preferisse tornar-se pintor; Adelaide Maria; José Manuel e Isabel Maria, que permaneceu solteira. Aí passaram muitas alegrias e alguns dissabores; mantiveram sempre a porta aberta a todos os elementos de ambas as famílias, como o tio dela, José Manuel Cardoso, e a mãe dele, que com eles viveram até perto dos seus últimos dias, enquanto as paredes se enchiam de quadros pintados pelo 147 filho mais velho. Aí moraram até que, alguns anos passados sobre o 25 de Abril e contra a sua vontade, a tivessem de vender para liquidar as dívidas, porque a fábrica de passamanaria, herdada do pai, abria falência, nunca recuperando da revolução, quando fora ocupada pelos empregados, que venderam máquinas e mercadorias. Por esses dias, Manoel e Maria Isabel ficavam, ainda, sozinhos, vendo os filhos emigrar, na esperança de fugir às dificuldades. Dois anos depois do casamento, Oliveira filmava, já com a ajuda da mulher e produção de António Lopes Ribeiro, o seu primeiro filme de ficção, Aniki-Bobó, a partir de alguns acontecimentos da sua infância e que encontraria, até hoje, grande eco e admiração um pouco por toda a Europa. Contudo, seguir-seia um longo período de inactividade, cerca de catorze anos sem filmar devido à contínua falta de verba e à incompreensão a que o havia votado, sobretudo, o Fundo Nacional de Cinema. Manoel via-se, então, na contingência de ter de mudar de ramo para sustentar os seus, voltando-se, assim, para a produção agrícola da família, na região do Douro, passando a ocupar-se da cultura do vinho do Porto. Enquanto continuava a apresentar 148 projectos a que recusavam o subsídio, decidia, em conjunto com Maria Isabel, uma mudança temporária para Alemanha - estávamos em 1955 e os ecos da guerra já há muito se haviam aquietado. Aí, mais propriamente em Leverkussen, nos laboratórios da AGFA, dedicou-se ao estudo da cor aplicada ao cinema; entretanto, a morte de Maria Antónia, uma prima de Maria Isabel, voltava a inspirá-lo a escrever um guião e, ainda que Angélica tenha sido, uma vez mais, recusado, Manoel voltava a sentir uma vontade indomável de filmar. Em 56, regressa, então, a Portugal e conseguia com O Pintor e a Cidade o entusiasmo generalizado da crítica. Em 57, o casal Oliveira era convidado a deslocar-se a Cork, onde o filme seria galardoado com a Harpa de Prata e, pouco depois, a Cannes, ainda sem nomeações para prémios, mas já com o interesse da comunidade cinematográfica. Viriam, em seguida, os anos 60 e, com eles, o consolidar do reconhecimento internacional: era homenageado em pleno Festival de Locamo e via a sua obra essencial ser exibida na Cinemateca de Henri Langlois, em Paris. A nível interno, no entanto, ainda teria de suportar a censura do Estado português e a detenção pela PIDE em 1963, depois da projecção do seu filme 149 A Caça. Seria na prisão que conheceria e se tornaria amigo de Urbano Tavares Rodrigues, que, anos mais tarde, entraria também em A Visita - ou Memórias e Confissões, esse citado filme a deixar à morte e à memória. É por esses anos que Maria salvará a vida a Manoel, desta vez, em sentido não metafórico, durante a rodagem do Acta da Primavera, um filme tripartido entre a vida de Cristo passada há dois mil anos, a feitura da Sua história por escrito no século XVI e a própria representação cinematográfica da mesma, hoje. Tal como em muitas outras rodagens, Maria Isabel estava a ajudar no som, gravado em directo, com o seu bom ouvido e um canto melodioso que, por mais que uma vez, ficaria registado nos filmes do marido. Numa ocasião, Manoel filmava junto ao rio com uma câmara muito pesada; havia uns brilhos do sol reflectidos na água a encantar o olhar do realizador. E ele avançava, entusiasmado, com a máquina. Não se apercebeu do limite da margem e, quando escorregou, a mulher agarrou-o mesmo a tempo, antes que se precipitasse na água. Em 1985, Maria e Manoel contracenariam em Le Soulier de Satin e no filme de 2001, Porto da Minha Infância, recriação dos lugares 150 de um tempo que já persiste apenas na memória de Oliveira, muitos se recordarão e poderão reconhecer a voz de Maria Isabel, abrindo e encerrando a película documental, cantando, sem o apoio de qualquer instrumento, um bonito poema de Guerra Junqueiro. De Maria Isabel diz Manoel de Oliveira que tornou a vida e o cinema possíveis; foi graças a ela que pôde dedicar-se ao seu outro amor. Ainda que levassem vidas diferentes e, não poucas vezes, opostas, Maria animou-o sempre, deu-lhe forças e fê-lo encontrar razões para continuar depois do silêncio dos patrocinadores, dos catorze anos passados sem filmar, da recusa dos projectos, da detenção pela PIDE, da falência da fábrica, da imigração dos filhos, da morte dos pais, da venda da casa, de ver, enfim, um pouco por toda parte, o mundo que conheciam desabar, desaparecerem todos os amigos, suportar a imensa tristeza de ir ficando sozinho. Foi Maria Isabel quem encorajou o rigor e a teimosia de Oliveira em filmar como filmava, o que filmava, com aqueles actores, naqueles registos, aqueles textos, contra todas as críticas, até que conhecesse o abraço do reconhecimento mundial. Sacrificou-se e sofreu com ele sempre que foi caso disso, ajudou-o 151 nos filmes, nos sons contra o silêncio, na reconstituição das memórias contra o esquecimento. É hoje, ainda, que tenta com ele agarrar o tempo, aproveitar com a sabedoria dos anos aqueles que lhes restam. Ao longo de mais de sessenta anos e quarenta filmes, aceitou que Manoel também amasse o cinema, sem ciúmes nem censuras. É com a jovialidade concedida por aquilo que Donizetti descreveria como "o elixir do amor" que Maria Isabel e Manoel de Oliveira ainda abrem, galantemente, salões de dança, nem sempre ao som do Danúbio, como em Outubro de 2000, após a antestreia de Palavra e Utopia, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. São Maria e Manoel que, a caminho dos oitenta e quatro e dos noventa e cinco anos, respectivamente, podem ser vistos a passear, quando o tempo e as viagens assim o permitem, de mão dada, por entre os bancos e as árvores da Foz do Douro. São eles, enfim, que nos ensinam ainda que o amor é possível muito depois da perda da beleza e da inocência. 152 Pilar del Rio e José Saramago Para uma segunda vida Há histórias que acontecem por acaso e outras que, talvez parecendo-o, acontecem porque, pura e simplesmente, estavam destinadas a dar-se tal qual se deram.. A história de amor entre o escritor português José Saramago e a jornalista espanhola Pilar del Rio é uma delas: a história de um amor improvável entre um homem _ beira da terceira idade e uma mulher ainda jovem, um ribatejano e uma sevilhana, um escritor e uma jornalista, dois seres humanos que nunca se haviam cruzado a não ser pelas letras impressas de um e a leitura encantada do outro. Pilar tinha trinta e seis anos e costumava gabar-se de estar a par de todas as novidades literárias; contudo, o nome "José Saramago" não havia ainda cruzado o interesse do seu olhar. Estávamos, então, numa tarde de 1986; Pilar entrara numa livraria com algumas amigas, 156 quando viu um livro cujo título lhe despertou a curiosidade - tratava-se do célebre O Memorial do Convento. Retirou a obra da estante, leu uma página ao acaso, foi ao início ler a primeira e decidiu comprá-lo, sem mais hesitações. Mal chegou a casa, começou a lê-lo e já não pararia até o ter terminado. O encantamento começava. No dia seguinte, regressou àquela livraria de Sevilha e, para que nada lhe escapasse nesta nova descoberta, comprou todos os livros de Saramago que estavam, então, traduzidos para castelhano. O passo seguinte seria dado com a leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis - quando a acabou, foi invadida por uma comoção ainda maior e decidiu que qualquer coisa totalmente nova para si se impunha fazer: era absolutamente necessário percorrer aquelas calçadas, seguir todos os caminhos, pisar todas as pedras em todas as esquinas, bater a cada uma daquelas portas e esperar, serenamente, o chamamento dos mesmos fantasmas que inundavam aquele apaixonante itinerário lisboeta. Mais do que isso: sentiu uma obrigação de ordem moral de encontrar o homem por detrás daquele nome, José Saramago, o autor, e dizer-lhe o que tinha experimentado ao ler o seu livro, descrever-lhe 157 os minutos e as horas, esquecer o fascínio confundido com a adolescência e atravessar a fronteira com a intenção específica de lhe falar e completar o ciclo. Porque, do seu ponto de vista, um autor só acaba, em verdade, uma obra quando ela é lida e entendida. Era apenas isso que ela lhe queria dizer: que lera o seu livro, que o entendera e que, agora, ele já poderia repousar, no encerramento das vidas traduzi das naquelas páginas. Pilar comprou o bilhete de avião e fez as malas, isto é, pouco mais que a sua cópia de O Ano da Morte de Ricardo Reis e outra, a de O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, outro heterónimo de Pessoa, outro ilustre viajante, na vida e nas letras, pela cidade de Lisboa. Quando aterrou na Portela, trazia um bilhete com o número de telefone de Saramago no bolso e ainda não parara para pensar no que estava a fazer nem na razoabilidade dos motivos que a haviam impulsionado a tão súbito movimento. Telefonou-lhe. O escritor estava em casa quando recebeu a sua chamada, apresentando-se não como jornalista, mas como uma leitora que desejava viajar para Lisboa e roubar-lhe não mais que um quarto de hora. Ele aceitou. 158 Corria ainda o ano de 1986, portanto; na realidade, muito poucos dias tinham passado desde que o primeiro olhar de Pilar, silenciando-se para que interrompesse a conversa com as amigas sobre um assunto qualquer perdido com o tempo, pousasse nas letras pequenas da capa da edição espanhola do livro que concederia a José Saramago uma inesperada atenção por parte de toda a crítica especializada em relação a um autor já distante da sua juventude, mas que principiava ainda o rebentamento da sua criatividade literária. Não era, pois, ainda difícil encontrá-lo por motivo, aparentemente, tão pouco relevante. Ele tem sessenta e três anos e ainda está disponível o suficiente para não ter de deixar que o procurem, mas seja, antes, ele a ir ao encontro de quem lhe pedia, para mais, com tal entusiasmo, que tomassem um café, se lhe fosse possível, se não resultasse em grande incómodo. Estávamos no mês de Junho. E ele foi, sem grandes pensamentos, sem grandes problematizações nem expectativas sobre o que poderia resultar de "tomar um café" com uma jornalista sevilhana, admirada com a sua obra. Seguiu em direcção ao Hotel Mundial, na Baixa lisboeta, assim não muito distante, de resto, dos caminhos palmilhados 159 pela invenção corpórea desse Ricardo Reis, no ano da sua morte, regressado do Brasil, algumas semanas depois do funeral do seu querido amigo e criador, Fernando Pessoa. Quarenta e oito horas depois do telefonema, chegou à recepção e pediu que informassem a senhora Pilar del Rio de que eram quatro da tarde e que ele chegara, como combinado. E sentou-se, esperando-a, aguardando uma mulher que nem sabia quem era, como pareceria, o que lhe quereria dizer, numa cena que, mais tarde, haveria de recrear, no livro em que então trabalhava, A Jangada de Pedra. Ela estava no quarto quando o empregado telefonou; desceu, saiu do elevador e teve a primeira surpresa: era um homem alto - não sabe bem porquê, mas tinha sempre imaginado um homem baixo - apresentaram-se, apertaram as mãos e conversaram muito mais que um quarto de hora. Abandonaram, então, o hall, a pedido dela, porque gostaria de calcorrear esses espaços ligados a Ricardo Reis. Chegando à rua, fizeram um sinal ao primeiro táxi e seguiram para uma visita por Lisboa. Conversaram até chegar ao Mosteiro dos Jerónimos, depois, ao cemitério dos Prazeres, onde procuraram o túmulo de Pessoa; aí pararam e leram um fragmento de O Livro do 160 Desassossego. Pouco depois, apanharam novo táxi, regressaram ao hotel e despediram-se à porta, sem grandes constrangimentos e emoções, talvez, pouco mais que cordiais, com novo aperto de mãos. Mas talvez não fosse apenas isto, recorda-se bem a própria Pilar. Havia sido também o encontro entre dois seres humanos como o mesmo olhar perante o mundo e a História, o diálogo entre dois comunistas convictos, dois marxistas longe da desilusão com as tentativas práticas de fazer resultar aquela filosofia. Ao falar de política, daquilo que, então, acontecia na Europa, deram por si a reconhecer-se um no outro - afinal, estavam os dois no mesmo lugar, na mesma morada do Tempo - dois comunistas marxistas, desencantados com grande parte do mundo, mas fascinados e salvos, não poucas vezes, pela literatura. A jornalista deixava o hotel, chegava ao aeroporto, entrava e saía do avião, regressando a casa, imbuída de "uma estranha paz". Ainda antes que ela deixasse Lisboa, Saramago ligara-lhe para o hotel, na manhã seguinte ao seu encontro, pedindo-lhe a sua morada, a fim de lhe enviar, aqui e ali, quando o tempo o permitisse e caso lhe agradasse, alguns livros, clássicos da literatura portuguesa 161 e outros seus. Assim foi acontecendo, espaçada e periodicamente, respondendo Pilar com as suas análises críticas. Os livros eram acompanhados de cartas breves e educadas, jamais excedendo os estritos limites dos textos em questão e dos temas lançados aquando da sua única conversa na presença real de um diante do outro. Ela nada sabia acerca da sua vida nem ele da dela, porque nunca tinham, até então, trocado uma única palavra acerca disso, acerca das suas "vidinhas", como diz a própria jornalista. Ele tornou a submergir na feitura do seu livro. Mas sabia bem que ela o havia tocado, que havia ecos da presença dela pela sua casa e pelas frases que escrevia. Contudo, devia esperar, esperar como no hall do hotel e como no texto que tinha entre as mãos. Até que chegasse um dia. Até àquele dia em que, na tranquilidade da sua experiência dos anos, José Saramago escrevesse uma carta dizendo que, se as circunstâncias da vida dela o permitissem, iria visitá-la. E, evidentemente, a vida dela e as suas circunstâncias não criariam qualquer obstáculo e permiti-lo-iam, com toda a paz e toda a vontade. Estávamos nos finais de Outubro e, na verdade, Saramago sabia perfeitamente o valor e 162 o significado de cada uma das palavras que lhe escrevera, incapaz de suspender o seu raciocínio de escritor por um momento só, infiltrando cada frase, cada texto, de metáforas e sentidos à espera de um leitor capaz de os entender. A carta era, afinal, muito hábil: ele deveria visitar Espanha por aqueles dias, a propósito de uma conferência em Granada e, quando lhe escrevia "se as circunstâncias da tua vida o permitirem, gostaria que nos encontrássemos", perguntava-lhe, na verdade, por muito mais do que a simples disponibilidade dela por aqueles dias, perguntava-lhe, pela primeira vez, pela sua vida e, consequentemente, pela dele próprio, se ela estava ou não casada e, por fim, se estaria disponível para se encontrar com ele, não apenas por aqueles dias, mas por todos os outros que se seguissem. E Pilar era, já o sabemos, como nenhuma outra, uma magnífica leitora e intérprete das palavras escritas por Saramago. Um ano depois estavam juntos. O amor entre eles não só tinha germinado como havia crescido, entre aquelas trocas de cartas sobre política e literatura. O reencontro fizera disparar tudo quanto estava contido nessas epístolas simples entre um homem e uma mulher distantes num número incontável de coisas, 163 mas habitantes do mesmo lugar das sensações. E começaram as viagens. Saramago apanhava um autocarro que saía de Lisboa às seis da manhã, atravessava a fronteira e chegava a Sevilha às três da tarde; passava um ou dois dias com Pilar e regressava a Portugal - "parecia um estudante", confessa, sorrindo. A princípio, o silêncio daqueles que o rodeavam denunciava a estranheza acerca daquela relação, da diferença de idades entre eles, daquilo que ela poderia ter a ganhar com ele. Depois, contudo, quando os amigos do escritor conheceram a jornalista, desvaneceram-se as reservas e adoraram-na imediatamente; o apreço que ganharam pela sua personalidade levava Saramago, algumas vezes, a pensar que gostavam mais dela do que dele próprio - assim actuava a magia de Pilar. Um ano mais, casavam, na cidade de Ricardo Reis, de Fernando Pessoa, das frases que se soltavam para o mundo, deixando as suas mãos originais, para que depois regressassem, em abraços, em confissões, já lidas e entendidas, para que a obra se completasse. Pilar não tivera, de novo, qualquer hesitação: não duvidava de que era esse o lugar onde deveria viver. E, porque há histórias de amor, de forma pura e simples, destinadas a acontecer, 164 não teve um minuto de arrependimento, um momento de desencontro em que se sentisse inadaptada ou distante - quando Pilar veio para Lisboa, era a sua casa que chegava. Só em 1992 esta paz seria perturbada, tendo sido já Saramago aclamado com diversos prêmios e merecedor de um lugar ímpar na história da literatura nacional. O Governo português vetava a candidatura de O Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu, por considerá-lo blasfemo no seu ateísmo. Tal decisão revoltaria, de modo profundo, o escritor, considerando humilhante semelhante gesto em tempo de democracia, tantos anos volvidos já sobre a ditadura fascista e os acontecimentos que levariam ao seu despedimento do cargo de director adjunto do Diário de Notícias, em 1975, e que resultariam, de resto, em que se lançasse na carreira de escritor, entregando-se, corajosa e insanamente, em exclusivo, à sua própria produção literária. Desta feita, nova decisão de ruptura estava proporcionada: Saramago, nome de planta silvestre dado por alcunha à sua família e acrescentado, por erro do funcionário do registo civil, ao seu verdadeiro nome, não mais se poderia sentir bem no seu próprio país e, com Pilar, abandonou Lisboa 165 em direcção a Lanzarote, a sétima ilha das Canárias, decepcionado e triste, até hoje à espera de um pedido público de desculpas por parte do Governo. Aos oitenta anos, José Saramago sabe que Pilar mudou a sua vida, que lhe abriu um mundo novo que não esperava, de todo, estar-lhe ainda guardado para esta fase do tempo que lhe foi concedido; que ela fez dele uma pessoa mais cordial, mais equilibrada, melhor. Diz que fala sempre dela, mesmo quando a não menciona. Não gosta de pensar nela como a sua mulher, mas como ela própria, com o seu trabalho, a sua personalidade, o seu trajecto. Nada mudou neles desde que se conheceram. Vivem naquela ilha vulcânica e deserta, sem ribeiros nem árvores que a encham de verde, onde é preciso ir buscar água directamente ao mar, numa morada que ostenta uma placa onde se lê, precisamente, "A Casa". Lá, têm uma vida feliz, uma vida equilibrada, tranquila, aquela por que sempre lutaram. As portas e a mesa da sua sala de jantar estão sempre à disposição de quem quer que por lá passe, dos jornalistas aos simples admiradores; há um jardim com duas oliveiras que recordam a infância de José; dois andares e dois escritórios virados para o mar; três cães, 166 um deles de nome Camões; e uma estante onde se acotovelam todos os livros de Saramago e respectivas traduções, próximo de um pequeno quadro onde se pode ler, de modo provocador, dado tratar-se da casa de um ateu: "Dieu te cherche." Pelas paredes brancas há, sobretudo, relógios. Exceptuando um, chinês, do tempo da revolução cultural, todos marcam uma só hora: as quatro da tarde, as mesmas quatro da tarde daquele dia de Junho de 1986, no hall do Hotel Mundial, em Lisboa - foi ideia de Saramago pará-los - marcam a hora a que conheceu Pilar, a hora em que a sua vida mudou. Em Outubro de 1998, em Estocolmo, a Academia Sueca entregava a José Saramago o Prémio Nobel da Literatura, consagrando-o o primeiro português a receber tal homenagem. Na primeira fila, Pilar deI Rio conseguia convencê-lo discretamente a não subir ao palco, quando ele estendia a mão para ela, pedindo-lhe que dançassem juntos aquele baile de aplausos e reconhecimento. Ela entendia que era ele quem deveria receber todos os sons e todos os olhares, sozinho, ele só e não eles dois juntos, porque este era o seu momento; o dela, olhá-lo, com alegria, e amá-lo, uma vez mais, tornando a reconhecê-lo alto, para sua 167 surpresa. No vestido da bela mulher, reluziam algumas palavras extraídas de O Evangelho segundo Jesus Cristo: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe. Quero estar onde estiver a minha sombra, se aí estiveram os teus olhos." 168