HORTO DE INCÊNDIO Al Berto I recado ouve-me que o dia te seja limpo a cada esquina de luz possas recolher alimento suficiente para a tua morte vai até onde ninguém te possa falar ou reconhecer - vai por esse campo de crateras extintas - vai por esse porta de água tão vasta quanto a noite deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te e as loucas aveias que o ácido enferrujou erguerem-se na vertigem do voo - deixa que o outono traga os pássaros e as abelhas para pernoitarem na doçura do teu breve coração - ouve-me que o dia te seja limpo e para lá da pele constrói o arco de sal a morada eterna - o mar por onde fugirá o etéreo visitante desta noite não esqueças o navio carregado de lumes de desejos em poeira - não esqueças o ouro o marfim - os sessenta comprimidos letais ao pequeno-almoço vestígios noutros tempos quando acreditávamos na existência da lua foi-nos possível escrever poemas e envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído pelas salivas proibidas - noutros tempos os dias corriam com a água e limpavam os líquenes das imundas máscaras hoje nenhuma palavra pode ser escrita nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras ou se expande pelo corpo estendido no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se onde se pode - num vocabulário reduzido e obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua e nada mais se consiga ouvir apesar de tudo continuamos a repetir os gestos e a beber a serenidade da seiva - vamos pela febre dos cedros acima - até que tocamos o místico arbusto estelar e o mistério da luz fustiga-nos os olhos numa euforia torrencial outro dia cai na manhão do coração desolado a toutinegra que longe daqui cantava e nesse instante a tristeza do rosto subiu aos lábios para queimar a morte próxima do corpo e da terra mas se a noite vier cheia de luzes ilegíveis de véus de relógios parados - ergue as asas fere o ar que te sufoca e não te mexas para que eu fique a ver-te estilhaçar aquilo que penso e já não escrevo - aquilo que perdeu o nome e se bebe como cicuta junto ao precipício e à beleza do teu corpo depois deixarei o dia avançar com o barco que levanta voo e traz as más noticias dos jornais e o cheiro espesso das coisas esquecidas - os óculos para ver o mar que já não vejo e um dedo incendiado esboçando na poeira uma janela de ouro e de vento horto homens cegos procuram a visão do amor onde os dias ergueram esta parede intransponível caminham vergados no zumbido dos ventos com os braços erguidos - cantam a linha do horizonte é uma lâmina corta os cabelos dos meteoros - corta as faces dos homens que espreitam para o palco nocturno das invisíveis cidades escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios adormecem sempre antes que a cinza dos olhos arda e se disperse no fundo do muito longe ouve-se um lamento escuro quando a alba se levanta de novo no horto dos incêndios prosseguem caminho com a voz atada por uma corda de lírios os cegos são o corpo de uma fogo lento - uma sarça que se acende subitamente por dentro acordar tarde tocas as flores murchas que alguém te ofereceu quando o rio parou de correr e a noite foi tão luminosa quanto a mota que falhou a curva - e o serviço postal não funcionou no dia seguinte procuras ávido aquilo que o mar não devorou e passas a língua na cola dos selos lambidos por assassinos - e a tua mão segurando a faca cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado dos amantes ocasionais - nada a fazer irás sozinho vida dentro os braços estendidos como se entrasses na água o corpo num arco de pedra tenso simulando a casa onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia euforia cai neve no cérebro vivo do miraculado - dizem que estes milagres só são possíveis com rosas e enganos - precisamente no segundo em que a insónia transmuda os metais diurnos em estrume do coração dizem também que um duende dança na erecção do enforcado - o fulgor dos sémenes venenosos alastra no brilho dos olhos e um sussurro de tinta preta aflora os lábios fere a mão de gelo que se aproxima da boca o vómito da luz ergue-se das palavras ditas em surdina a seguir vem o sono e o miraculado entra no prateado voo dos cisnes o dia cansa-se na brutalidade com que a voz se atira contra as paredes abrindo fendas em toda a extensão das veias e dos tendões quando desperta com o crepúsculo o miraculado olha-nos fixamente e sorri dá-nos uma rosa em forma de estilete - fechamos os olhos sabendo que este é o maior engano da eternidade inferno na suave asa do grito reflecte-se o lume comestível do tempo - a mão transformada em polvo sacode a erva seca no sangue da manhã eis o mundo feérico das feridas incuráveis o inferno mesmo quando dormes gemes abandonado ao estertor da chuva na vidraça e ao vento que dança na persiana não saberás nunca da tua metamorfose em pantera aérea - vou proibir que te passeies por cima dos sentimentos e dos móveis e que te vingues do hábil sedutor de feras avião envolto num lençol de cal duas cintilações sobre as pálpebras húmidas e um ardor perfura a noite onde uma ponte atravessa um rio o voo é demorado ficaste a saber que nem deus é eterno desfez-se no erro daquilo que criou perdeu-se nas sua imperfeições e certezas agora pela janela do avião vês como tudo é mínimo lá em baixo - quando a oriente da loucura a mão cinzenta do inverno perdura no rosto daqueles que sonolentos viajam dentro deste pequeno túmulo de serenidade casa durante a noite a casa geme agita-se aquece e arrefece no interior frio do olho da tua sombra sentada na cadeira aparentemente vazia esperas acordado sem sono que a temperatura da casa funda com a temperatura incerta do mundo depois escreves exactamente isto: o horror dos dias secou contra os dentes - e rouco dobrado para dentro do teu próprio pensamento ferido atravessas as sílabas diáfanas do poema levantas-te tarde atordoado para extinguires o lume ateado junto à memória da casa - respiras fundo para que o gelo derreta e afogue a vulgar noite do mundo olhas-te no espelho atribuis-te um nome um corpo um gesto dormes com a árvore de saliva das ilhas - com o vento que arrasta consigo esta chuva de fósforos e estes presságios de tranquilos ossos fantasmas bateram à porta - não abriste estavas a convocar nesse instante a brancura dos dados por lançar e o corvo do sr. poe mais o maléfico negrume dos mares de melville e os passos em redor do andarilho etíope e as mulheres da patagónia que estão sentadas ao fim da tarde à beira de insondáveis glaciares seguias absorto o percurso daquele que comprava revistas tabaco souvenirs e via os comboios sumirem-se na gare de munique - mais a rua onde te encontro e te perco - rapaz a quem se esqueceram de dizer que tinha um corpo de papel bom para amachucar com os dentes é verdade - bateram à porta mas não podias abrir nesta casa só sobrevive a memória turva dos poemas amados - mais ninguém mais nada além da parede de lodo e da caixa de sapatos cheia de sílabas preciosas - e uma mesa pequena com um albatroz empalhado para te vigiar a alma a um canto da sala o cigarro continua a arder na ponta dos dedos do teu retrato escondido atrás do sofá - virado para a parede como tu coberto de bolor de sustos e de aborrecimento aqueronte ensanguentou-se a fonte dos sonhos por isso fecha os olhos e vê como o desejo acabou - vê a prata suja envolvendo os amantes no meio de sedas cintilantes espelhos e fogos onde o sussurro das horas se perde na trepadeira fatal da paixão vê como um protege o outro - os dois procurando um sémen limpo e nenhuma palavra será adiada ou dita como dantes vê como a terra é um veludo a escorrer da boca para a boca - triste néctar envenenado contra os lábios que se despedem da casa dos afectos dos amigos das coisas insignificantes e da rua que não voltarão a ver isolados dos outros pernoitando na dormência ávida dos rios avançam deitados no fundo da pesada barca - etéreos entram com vagar na cidade desmoronada na fissura deste tempo pestífero que já não lhes pertence mektoub a luminosidade é uma placa de zinco suspensa do céu de deserto em redor a imensidão das areias vibra contra o caos de pedra e de eufórbios que se multiplicam a perder de vista o bafo inquieto dos cavalos acende a pólvora das festas inesperadas uma coruja morre no cimo açucarado da tamareira caminhas sitiada pelo canto agudo do muezzin chamado à oração mektoub sítios onde a vida cessou e tudo está escrito há séculos - onde o coração dos homens é uma rosa nómada e calcária no limite da escassa água e desta terra seca mal abençoada - caminhas na plana noite das ardósias nas jeiras de súplicas e recolhimento onde talvez se esconda o contorno quase terno do rosto de deus bisédimo perseguem-te os cães de ninguém e por trás da tua cabeça rebenta a luz que lhes devora a reles pelagem - com um dardo abres a ferida do ouro que carregas à cintura tudo se mantém obscuro na orla das dunas as mulheres crescem por dentro das miragens mostram os seios descem às fontes turvas do oásis dormem envoltas na poeira e na baba dos dromedários durante a noite um chacal ronda o limite das imagens - uiva por dentro da pele deixando pegadas na chamejante madrugada levanta os olhos e a voz - abre a boca solta a praga de gafanhotos acidulados pela geada dos verdes dos azuis das antracites e sorri ao fechares o pequeno livro da abissínia quem anunciará aos vindouros destas paragens o esplendor do lume por cima da floresta do bisédimo? senhor da asma deitado há muito tempo - o cigarro luzindo como um olho de tigre da noite e lá fora ainda se apercebe a húmida incandescência das frésias o rumor surdo de vozes pelo jardim onde a florida macieira se recorta do intenso céu de verão mais além o rouxinol a madressilva sebe de pilriteiros a brisa de um mar invisível - aflora-te a boca arde no coração a memória álgida dos limos dos casinos das praias saturadas de sal e de sedução mas nada é perfeito - nem o magnífico chapéu de mademoiselle de noailles nem os dias que aos ziguezagues vão passando iguais e monótonos falta-me o tempo para procurar o tempo perdido e não estou deitado na recordação da infância confesso que odeio escrever cartas ou enviar recados ando há uma semana arrumando livros - comovido acabei agora mesmo de sacudir o pequeno novelo de poeira acumulada no interior das páginas do senhor da asma por hoje é tudo engate é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas rente aos grandes cinemas do mar como se fosses o espelho côncavo de feira onde posso mergulhar e renegar-me sim se olhares o céu lúgubre deste fim de século se fizeres um movimento de farol com o cigarro eu - que vou a passar - tudo verei mas nada será meu porque não se pode falar com o espectro mudo do engate - nem o desejo se levantará para seduzir o corpo daquele que se ausentou mesmo assim conheço todas as esquinas da imunda cidade que amo mesmo assim sofro de insónias - imito o noitibó o bêbado louco gesticulo como aquele que já não sou e outro não serei mantenho-me de pé e fumo dentro deste túmulo de incertezas onde nos encostámos de mãos enlaçadas à espera que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos obrigados a vender o corpo já usado aos insuspeitos violadores de poemas sida aqueles que têm nome e nos telefonam um dia emagrecem - partem deixam-nos dobrados ao abandono no interior duma dor inútil muda e voraz arquivamos o amor no abismo do tempo e para lá da pele negra do desgosto pressentimos vivo o passageiro ardente das areias - o viajante que irradia um cheiro a violetas nocturnas acendemos então uma labareda nos dedos acordamos trémulos confusos - a mão queimada junto ao coração e mais nada se move na centrifugação dos segundos - tudo nos falta nem a vida nem o que dela resta nos consola a ausência fulgura na aurora das manhãs e com o rumor do corpo a encher-se de mágoa assim guardamos as nuvens breves os gestos os invernos o repouso a sonolência o vento arrastando para longe as imagens difusas daqueles que amámos e não voltaram a telefonar incêndio se conseguires entrar em casa e alguém estiver em fogo na tua cama e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho e do tecto cair uma chuva miudinha - não te assustes são os teus antepassados que por um momento se levantaram da inércia dos séculos e vêm visitar-te diz-lhes que vives junto ao mar onde zarpam navios carregados com medos do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu a morada de uma vida inteira e pede-lhes para murmurarem uma última canção para os olhos e adormece sem lágrimas - com eles no chão notas para o diário deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos. a dor de todas as ruas vazias sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo. sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo. a dor de todas as ruas vazias mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto de enganos, da sorte e de encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade de outro corpo. a dor de todas as ruas vazias pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame. é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro. a dor de todas as ruas vazias sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca. a dor de todas as ruas vazias os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam- me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo. o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste de mar. a dor de todas as ruas vazias lisboa (1) por trás dos muros da cidade no seu coração profundo de alicerces de argilas e de sísmicos arroios - cresce uma voz que sobe e fende a brandura das casas da escrita dos inumeráveis povos quase nada resta - deitas-te exausto na lâmina da lua sem saberes que o tejo te corrói e te suprime de todas as idades da europa mais além - para os lados do corpo - permanece a tosse dos cacilheiros os olhos revirados dos mendigos - o tecto onde um navio nos separa de uma vácuo alimentado a soro plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar de quem nos olha contra um céu desesperado - jardim de íris açucenas palmeira cobertas de rocio e a ponte que nos leva aos campos do sul - lisboa lugar derradeiro do riso que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres e morres carregado de tristezas e de mistérios - morres algures sentado numa praceta de bairro - o olhar fixo no inferno marítimo das aves lisboa (2) desejaste um país de silêncio de chuvas salgadas - sem caminhos nem sonhos tiveste um país sombrio onde a realidade devorou o delírio e ficou desabitado - e este país nocturno que geme contra a solidão do corpo - perguntas-te que espécie de lume cospem os cardos? caberá o mar dentro da tua ausência? e o caule negro dos analgésicos por mim acima... que cidade de areia construída grão a grão aparecerá? quantas lisboas estão enterradas? ou submersas? o vento traz-te o aroma dos trópicos dos tamarindos floridos das avenidas e dos fenos primaveris das planícies - o vento proteger-te - leva-te no alado ácido das geadas e das incertezas dirás coisas alucinadas - as almas uma álea de roseiras e da bruma desprende-se o adocicado olor da morte lisboa (3) imaginaste um país imóvel devorado pelo sol e o arrepio do canto espalhou-se pelas ruas onde o tempo passa lento e branco em direcção a outro tempo igual ao fundo do restaurante o olhar preso em ti da dama do charuto - café flor do mundo encruzilhada onde se dorme frente à europa apercebida como uma sombra que se afunda nas veias dos arrumadores de carros imaginaste que em ti permaneceria esse barulho metálico de continentes abandonados enfim ontem foi o último dia em que conseguiste calçar-te - essa guerra que te deixou por sarar um túnel de veludo ensanguentado na cabeça lisboa (4) vieste dos remotos desertos africanos onde semeaste tormentos e filhos negros enrola-te agora no pano ardido do tempo de lisboa - rasgas em tiras dolorosas o sonho e tentas navegar pelos sucalcos dos mares mas a saudade pelos que partiram e agora se aproximam desta voz - vêem um império de navios vazios e tu sob o sol cruel - perdido de olhar em olhar jogando a vida contra o sujo casco dos cacilheiros vagueias pelos becos à procura de um rosto que imite a felicidade da voz perdida - ou um corpo qualquer para fingir o sono junto ao teu mas lisboa é feita de fios de sangue de províncias de esperas diante dos cafés de vazio sob um céu plúmbeo que ensombra os jardins de estátuas partidas há um pressentimento de sono sem fim refugias-te num quarto de pensão e dormitas o dia todo - para que lisboa te esqueça carta de emile a minha cidade tinha um rio donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando as cabeças dos vivos as pontes as que vi ruírem nas imagens dos jornais continuam de pé algures na memória mas não podíamos sair dali ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir - porque não tínhamos nada para trocar excepto a fome e a vontade inabalável de viver nem pão nem balas nem esperança - e cada um de nós metamorfoseou-se num cemitério ambulante - cada um de nós sepultou na alma uma quantidade desumana de dor e de mortos tudo se decompões apodrece e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim te escrevo sentado na parte mais triste do meu corpo noite dentro na boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã e os tiros recomecem e a cinza do cigarro caia no chão e em mim cresça uma alegria maligna resposta a emile a guerra daqui não mata - mas abre fissuras nos nervos - é o que te posso dizer deste país que escolhi para definhar a cidade é um amontoado de lixo de tapumes de sucata e de casas que se desmoronam a realidade estragou os olhos das crianças no fim do corpo em que me escondo espalhou-se a treva onde guardo a corola azulínea da tua ausência e o marulho nítido de um mar que canta e um calor sísmico nos lábios que beijaste é-me difícil continuar a escrever-te o que me destrói - sei que estou fodido e tu já não és meu preparo-me para entreabrir os olhos e deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas e das coisas tristes mudança de estação para te manteres vivo - todas as manhãs arrumas a casa sacodes tapetes limpos o pó e o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe o brilho regas o coração e o grande feto verde-granulado deixas o verão deslizar de mansinho para o cobre luminoso do outono e às primeiras chuvadas recomeças a escrever como se em ti fertilizasses uma terra generosa cansada de pousio - uma terra necessitada de águas de sons de afectos para intensificar o esplendor do teu firmamento passa um bando de andorinhões rente à janela sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo donde se soltaram as abelhas incompreensíveis da memória luzeiros marinhos sobre a pele - peixes que se enforcam com a corda de noctilucos estendida nesta mudança de estação mapa abres o mapa da europa e assinalas o lugar perdido junto ao mar - o sol fulmina a narceja e o leite sábio das mães coalhou num sabor a plâncton e húmus na floreira da janela virada ao mar secaram os goivos dos navegantes e um cardo amarelo irrompeu hirsuto e firme - o tempo chuvoso alastra pelas ruelas insinuando-se na alma uma babugem grossa de maresia - a europa afasta-se com seus falhanços ao som dos tambores de água recordas assim a noite varada à porta dos grandes frios o corpo carbonizado que perdeu a nacionalidade as cidades sem nome o acidente a auto-estrada o recado deixado no café a cerveja entornada o alarme da noite a fuga a terra dos gelos eternos a viagem sem fim a faca rente ao pescoço e os comboios e a ponte ligando a treva à treva um país a outro país - onde dissemos coisas que matam e largam rastros de aço nas pálpebras mas no cansaço da torna-viagem no desalento de tudo o mapa da europa ficou aberto no sítio onde desapareceste ouço o atlântico uivando de abandono enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco na lenta escrita de um diário - depois fecho o mapa e vou pela crueldade desta década sem paixão febre sopra um vento pelo peito do mareante - vento cinzento capaz de apagar os gestos que restam e de limpar os passos incertos pelas ruas do cais vento um vento que te sacode as veias os tendões faz vibrar os músculos e a mastreação - como a árvore que se desprende das entranhas do mar corre corre um vento pelas fissuras da pele - vento de pó enferrujado abrindo feridas nos animais vivos colados à memória onde uma serpente mergulhou no sangue e desata a fulgurar sopra um vento pelo peito do mareante desperta a florescência pálida do plâncton - varre a noite e lava as mãos dos condenados à morte corre um vento vento de febre - sismo de orquídeas que acalma quando acendes a luz e abres as asas vibras e levantas voo não cantes olha em redor dos bosques as veredas destruídas pela explosão devastadora das minas e ouve as vozes límpidas morrerem no poema antes e depois da alegria antes e depois do pânico grava na parede esboroada do ar o sulco ténue da infância - e fala-me dela aproxima-te para veres o horror tranquilo das imagens no fundo dos meus olhos antes e depois da alegria antes e depois do pânico debruça-te naquele terraço virado ao inimigo onde um rosto de estuque arde e um ferro reduziu a memória a nada antes e depois da alegria antes e depois do pânico em volta das casas demolidas o anoitecer o lume incontrolável - e alguém atravessa o deserto com uma criança de jade nos braços antes e depois da alegria antes e depois do pânico mas sempre durante o sofrimento não cantes clamor tudo vem ao chamamento noite após noite o que dissemos e o que nunca diremos - a viagem com uma giesta de algodão presa nos cabelos e a sensação fresca de um sulco de aves na pele tudo vem ao chamamento - os lobos os anões as fadas as putas as bichas e a redenção dos maus pensamentos - enquanto te barbeias vês no espelho o homem cuja solidão atravessou quase cinco décadas e está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez num deslize perto da asa do nariz não sei quem é - sei porém que vai afogar-se naquela superfície clara quando dela se afastar e abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo vem ao chamamento por dentro do clamor da noite II morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de novembro de 1996 I Todos os pássaros sossegaram. As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas. A noite está próxima. Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa. Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma. Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com suas traições... ouço hélices de barcos, motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão. A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios. E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva. Caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens. O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros. E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer. A noite está próxima. Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo. Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas. abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono. Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece. De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo. Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas. O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais. Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens. Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas... espirais de som subindo aos subúrbios da alma. E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria. Não semearei o meu desgosto, por onde passar. Nem as minhas traições. II Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro. Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora. Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa. Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho. Pela janela vejo a linha crepuscular da duna. Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades. Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação. Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro. O que dissemos perdeu o sabor e o sentido. Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo... o canto sublime das miragens. Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça. Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo. Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou por um insulto. Imitávamos assim a felicidade... (Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado. (E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente. Enfim, o mundo não é assim tão grande... E a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade. Mas estou cansado. Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas. Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de neve e de miséria, de cidades, de fome e de violência, de sangue, de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez uma voz... o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia. E embarquei num cargueiro, desertei em Java, pensei mesmo construir uma casa Mas não foi possível. Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo. Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui. Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões. E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei. III Os dias estão cheios de cartas e recomendações, de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios. De morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação. Uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. E talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder... Não tenho mais nada a dizer. Os poemas morreram. Fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encarar o desespero. Bebi águas inquinadas. Vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o coração batendo descontrolado. Mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples... ...vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias. Por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar: Quantos africanos murcharam na boca do amor? Quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer? Quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão? Quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos? A qual dos demónios me vender? Que besta suja será preciso adorar? Em que sangue contaminado mergulharei a língua? Que fogo estranho é este? - que devora a beleza interior das coisas... Que mentira me poderá salvar? Uma golada de veneno e eis que se acende o talento. O rumor precioso das sílabas. O choro e o riso. O brilho gelado das imagens. (Então), Ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde guardo o ouro - e vou pelo engano das palavras... Descubro a febre, a ânsia do eterno viajante. Abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros, que dizem ser a alma dos mortos... um espelho onde não me reconheço... mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho. O azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me tenham corrido bem... Foi maldição, dizem. Paciência. Mas não há maldição sem desejo - e eu não paro de desejar, sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão. Ou de matar. IV Um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs. Mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém. A dor, a perna amputada - a mapa da abissínia. O sol enterra-se nas areias. Viajo, sem me mexer desta enxerga branca. Tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio. No lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto. O que morrer, quase não faz falta... Dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro. Mas um homem em cujo coração esteja concentrada toda a fúria de viver, será um homem feliz? Não sei se posso querer alguma eternidade... não sei... ... o que vejo já não se pode cantar. Que horas serão dentro do meu corpo? Que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei... ... o que vejo já não se pode cantar. Lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela. Mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada. Recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento. O que vejo já não se pode cantar. Caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma. Espero que o vento passe... escuro, lento - então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.